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Gritos Abafados

H.S. Ferreira
2017-05-09

~ uma história realmente curta ~


O copo estalou contra o prato e o vinho espalhou-se pelo
tabuleiro, quando o atirei para o assento ao meu lado.
Onde é que está o raio do comando? Atirei as almofadas do sofá
pelo ar, agarrei-o e subi o som da televisão.
Quatro bombeiros carregavam um saco de plástico negro, paredão
acima. A voz do pivot do Jornal da Noite encheu a sala.
- Como podem ver nas imagens, o corpo foi resgatado ao
final da tarde, pelos bombeiros de Montemor-o-Novo, e
levado para o Instituto de Medicina Legal de Setúbal para
autópsia.
Não. Não pode ser!
- Desconhece-se, até ao momento, a identidade da vítima… e
as causas da morte. - concluiu o jornalista.
Caí no sofá, com o telecomando a tremer na mão.
A pizza contorceu-se no estômago, a minha língua desceu no
fundo da garganta, só tive tempo de me virar para o tabuleiro.
O jantar subiu-me pelo pescoço, um rio a ferver, queimou-me
num jorro ácido, expelido pela boca e pelo nariz. A piscina de
ácido tinto, onde pedaços de cogumelos meio digeridos
flutuavam, encheu o tabuleiro, cobrindo a meia fatia de pizza
por comer.
Os meus olhos ardiam, uma torrente de lágrimas traçou os vales
da minha cara, até aos cantos dos lábios, juntando sal ao
azedo na minha boca. O choque da adrenalina não teria sido
mais violento, se a tivessem injectado com uma seringa no meu
coração.
Cuspi os últimos pedaços de vómito, agarrados ao fundo da
garganta como peles do leite.
Forcei-me a olhar para a TV. Já estavam a dar outra notícia,
apontei o comando para a box e rebobinei.
A filmagem à beira da N4 mostrou uma vista abrangente da
barragem, pouco maior que um campo de futebol. O cameraman fez
zoom in nos bombeiros, na polícia, e nos carros com as luzes
de alerta a piscarem, estacionados no topo do paredão.
Todo o cuidado naquela noite fora inútil. Semanas! Pensei que
levaria anos, pelo menos meses, a ser descoberto o corpo.
- Até morto me fodes, cabrão. - disse em voz alta,
libertando alguma tensão.
Agora que pensava nisso, três semanas certas, o tempo que o
corpo do meu sócio estivera em paz, mergulhado nas águas.
Burro! Devia tê-lo enterrado. O desaparecimento levantaria
sempre questões, o medo de que se lembrassem de investigar os
nossos locais de construção, à procura dele, impedira-me de o
emparedar. Vejo a merda de filmes demais!
Tudo por causa do dinheiro das putas, o meu vício secreto. Na
última feira de Barcelona, eu tinha usado dinheiro da empresa
para celebrar a vida, e ele descobrira. As palavras escalaram
em agressões, e cinco anos de parceria terminaram abruptamente
quando lhe acertei na cabeça.
Teria sido um momento de insanidade, se não o tivesse voltado
a atacar quando se tentou levantar.
A imagem vivia agarrada à minha mente como uma carraça. Ele,
de joelhos no chão a erguer os olhos desfocados, o sangue da
primeira pancada a escorrer-lhe pelo rosto. O pisa-papéis a
estalar contra a fonte esquerda dele, estilhaçando o osso,
fazendo o olho esmagado saltar da órbita. Momentos antes
gritávamos e o silêncio chocou-me.
Sentia as minhas forças drenadas pela notícia, lavei a boca à
pressa e atirei-me vestido para cima da cama.

Acordei com os pés gelados e molhados. Ergui ligeiramente a


cabeça, as minhas mãos e o meu rosto estavam colados num
vidro, do outro lado, luzes fortes penetravam em água azul
escura. Borborejava num som contínuo à minha volta.
O meu cérebro deu três voltas dentro da minha cabeça. Forcei
uma nesga nos olhos, agora sentia água por todo o corpo. Estou
a afogar-me mas consigo respirar.
Os acontecimentos voltaram à minha cabeça, os bombeiros a
levarem o corpo… fez-se luz e sorri dentro de mim. Estou na
cama a dormir, a ter um sonho estúpido.
Sempre que nos apercebemos que estamos a sonhar acordamos a
seguir. Ia acordar a qualquer momento.
A água começou a subir pelo vidro, um sabor a peixe podre
atingiu-me os lábios e a língua. Não! Isto não está certo!
Forcei os braços contra o vidro, uma dor aguda, como um ferro
espetado no ombro esquerdo, acordou-me de vez. Rodei sobre
mim, o vidro em que estava apoiado era o pára-brisas do meu
carro, pelo tejadilho panorâmico, conseguia ver o topo das
águas a dançarem ao luar. O carro inclinado, descia com toda a
calma do mundo.
Adormeci ao volante! A notícia, o vómito, o corpo morto, tinha
sonhado aquilo tudo enquanto me afogava sem saber. Tinha a
certeza que trazia o cinto de segurança posto, mas estava
solto.
Tentei abrir a porta, empurrei com força, nem vibrou. O vidro,
era só abrir o vidro. Carreguei para baixo no comando
eléctrico da janela. Não respondeu. Tentei para cima, sem
resposta, cliquei repetidamente no botão para cima e para
baixo. O sistema eléctrico estava morto.
A água batia-me no rosto e entrava-me na boca, estava quase a
encher o carro. Inspirei e mergulhei, iluminado pela pequena
luz à frente do retrovisor.
Comecei aos murros ao vidro da janela, era como bater em gelo,
o som abafado do meu punho explodiu pela minha boca num grito
de pânico, ecoou e morreu na bolha de ar que restava no
interior do carro.
Rodei as pernas por cima do volante, e voltei a mergulhar.
Atirei os pés contra o vidro, um e o outro, os dois ao mesmo
tempo. Parecia à prova de bala. A frente do carro bateu no
fundo, o choque pressionou o meu ombro ferido contra o
tablier, a água em que estava submerso roubou o grito de dor.
Estiquei o pescoço, até chegar à bolha de ar quase extinta,
enchi o peito e mergulhei pela última vez nas águas.
Tentei abrir as portas, o nível de água no interior já devia
ter equilibrado a pressão, deveria conseguir abri-las, mas não
se mexiam. A porta estava trancada. Girei em direcção à outra,
trancada. Briguei com os bancos e passei para a traseira do
carro, puxei o manípulo da porta, empurrei, não se mexeu.
Tentei a outra, a violência da minha força arrancou o manípulo
que ficou a flutuar, como se não houvesse gravidade.
Senti o carro mexer, virei-me para baixo, os faróis
percorreram o lodo levantado pelo pára-choques. O carro estava
a cair para trás. Bateu no fundo, sobre as quatro rodas.
Procurei a bolha de ar para respirar, lancei as mãos contra o
tejadilho, o ar nos meus pulmões era o último que restava
dentro do habitáculo.
Pela janela traseira vi a mala do carro, parecia aberta. O meu
braço bom, mais rápido que o meu cérebro, tacteou à procura de
um fecho nos bancos. Senti o plástico duro do botão, rebati o
banco e deslizei o corpo para a bagageira, um impulso com os
dois pés lançou-me como um foguetão, em direcção à lua que
brilhava lá em cima.
Usei os dois braços e lutei contra a água, contra o peso das
minhas roupas, contra a dor a cada braçada. Dei um nó na
garganta, para estrangular o instinto fatal que me queria
forçar a abrir a boca.
Excruciantemente devagar a tona da água foi-se aproximando,
chegou ao meu alcance. Um último esforço, uma última dor no
ombro ferido e senti a ponta dos dedos romperem a água. Algo
prendeu o meu tornozelo, a braçada seguinte que deveria
inundar o meu peito com ar fresco, deixou-me no mesmo sítio.
Sacudi os pés e dei braçadas sem nexo, não me conseguia
soltar. Por favor, Deus.
Uma dor aguda na cabeça, um túnel a fechar-se nos meus olhos.
Num último assomo de força rodei a cabeça para baixo. Dedos
engelhados numa mão apodrecida, onde a carne rasgada deixava
ver ossos e tendões, agarravam-me o tornozelo. Cabelos
ondulavam na água, como tentáculos de uma medusa, escondendo o
corpo agarrado ao braço. A cabeça rodou para cima, e os
cabelos deslizaram para trás, o rosto implodido no lado
esquerdo, fitou-me com um só olho esbranquiçado. Arreganhou-se
como se fosse gritar, lodo e folhas em decomposição, onde
deveria estar uma língua.
Abri a boca para gritar, a água cortou-me os pulmões como uma
faca.

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