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As origens do totalitarismo alemão:

uma introdução ao pensamento


de Thomas Münzer
Neimar M. Sousa*
João P. T. Silva**

Resumo: Esse artigo tem por objetivo investigar as raízes e os desdo-


bramentos do totalitarismo ou da solução autoritária às revoltas cam-
ponesas na Alemanha no século XVI. A pesquisa caracteriza-se pelo uso
das abordagens históricas e filosóficas sob o viés da análise crítica marxiana.
O método utilizado tem como lastro uma pesquisa sobre a vida, história e
pensamento de Thomas Münzer, a partir da obra Thomas Münzer, teólogo
da Revolução do filósofo Ernest Bloch. Além de Münzer, é analisada
também, no trabalho, a biografia de Lutero, sua Reforma e as Revoltas
camponesas incendiadas por Münzer e seu espírito democrático e, talvez,
paleo-comunista. O tema tratado em maior detalhe é o massacre camponês
realizado pelos príncipes fundamentados na doutrina luterana. De certa

* Professor de História da Filosofia Moderna e pesquisador na linha 3, Educação Indí-


gena e Diversidade Cultural, do PPGE/UCDB, na Universidade Católica Dom Bosco,
Campo Grande, MS.
** Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica Dom Bosco e estudante de Teolo-
gia no Instituto Teológico João Paulo II, Campo Grande, MS.

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forma, a solução autoritária, encontrada pelos príncipes alemães, caracte-
rizou-se pelo uso de violência e autoritarismo para dar solução aos confli-
tos sociais que emergiram durante a Reforma Protestante na Alemanha.

Palavras-chave: Filosofia Política. Totalitarismo. Revoltas camponesas.


Thomas Münzer.

As épocas revolucionárias são momentos de rejuvenescimento da história, que abrem


objetivamente as portas à chegada de uma nova sociedade, assim como a juventude se
encontra subjetivamente no limiar de uma vida ainda não vivida até agora.
Ernest Bloch, 1885-1977

Para entender as origens do totalitarismo alemão é preciso remontar


os fatos sucedidos no final do século XV e início do século XVI, enten-
dendo a Reforma Protestante e a Revolta Camponesa, bem como seu iní-
cio e consequências, a fim de saber onde, em que ponto e como se deram
seus primeiros suspiros. Entretanto, vale lembrar também que, antes da
Revolta münzeriana, houve outras revoltas, porém elas não farão parte
dessa pesquisa, pois o objetivo maior deste trabalho é a Revolta Campo-
nesa liderada por Thomas Münzer.
Esse artigo tem a finalidade de apresentar o homem que foi e criou
a antítese da Reforma Protestante. Thomas Münzer é entendido como
protagonista da Revolta Camponesa que suscitou a perspectiva demo-
crática nos primórdios da modernidade.
O método utilizado nessa pesquisa é o dialético hegeliano, a fim de
explorar as contradições processuais que impelem os homens no tempo.
Para ser compreendido um pouco mais sobre o que vem a ser método
dialético, será elucidado sobre a sua origem. O sentido filosófico do ter-
mo dialética não é unívoco na história das ideias. Recebeu significados
diferentes não se reduzindo um significado comum. Há quatro significa-
dos fundamentais: dialética como método de divisão; como lógica pro-
vável; como lógica e como síntese dos opostos. Este último, de origem
hegeliana, é o que empregamos nessa pesquisa (ABBAGNANO, 1999,
p. 269). O método dialético ou dialética como síntese dos opostos foi
formulado por Hegel, apresentado primeiramente por Fichte.

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Os opostos, dos quais falava Fichte, eram o eu e o não eu (ABBAGNANO,
1999, p. 272). Para Hegel a dialética é a própria natureza do pensamento,
visto ser a resolução das contradições [...] consiste em primeiro lugar na
colocação de um conceito “abstrato e limitado”; por segundo suprimir-
-se desse conceito algo “finito” e na passagem para seu oposto; a tercei-
ra é a síntese das duas primeiras oposições, considerando o que há de
afirmativo na sua solução e transposição (ABBAGNANO, 1999, p. 273).
Hegel afirma que dialética não é apenas lei do pensamento, mas lei da
realidade, e não são conceitos puros e abstratos [...] vê a realidade como
uma dialética, ou tríade de teses, antítese e sínteses nas quais a antítese
representa a negação, o oposto ou o outro da tese, e a síntese constitui a
unidade e ao mesmo tempo, a certificação de ambas [...] assim como em
Heráclito (ABBAGNANO, 1999, p. 273). E finalmente o método dialéti-
co hegeliano foi usado por Karl Marx e Friedrich Engels e seus discípulos
(ABBAGNANO, 1999, p. 273), entre eles Ernest Bloch.
Ernest Bloch e Georg Lukács foram os filósofos marxistas, que lastrea-
ram epistemologicamente essa pesquisa, sendo ambos de uma epistemologia
marxista não ortodoxa. Ernest Bloch, de origem judaica, nasceu aos oito de
julho de 1885 e faleceu aos quatro de agosto de 1977. Natural de Luewig-Sha-
fen, Alemanha. Bloch é considerado o filósofo da filosofia da práxis e uto-
pia concreta. Defende um ponto de vista escatológico-utópico-messiânico
no seu pensamento a esperança é integrada no projeto mais amplo de uma
filosofia da práxis, entendo como uma filosofia transformadora. Sua on-
tologia é baseada no ser social, todavia, não é uma ontologia individual
ou metafísica. Bloch estuda temas cristãos enfatizando seus aspectos so-
ciais como, por exemplo, o tema das revoltas camponesas (JAIME, 1993,
p. 264-272). Georg Lukács, também de origem judaica, nasceu em Buda-
peste – Hungria em 1885 e faleceu em 1971. É conhecido por trabalhar a
noção de um marxismo independente e revisionionista. Independente no
sentido de divergir da linha marxista-leninista (URDANOZ, 1985, p. 33-37).
Utilizaremos nesse trabalho sua categoria de “via-prussiana”.
Os livros e artigos utilizados nessa pesquisa foram: Thomas Münzer,
teólogo da Revolução (como obra principal), Ideologia e protesto de Georg
Rudé; O Galileu do século XX, artigos escritos sobre George Lukács, a fim
de entender a noção de “via-prussiana”, a partir de Walquíria Marques
Leão Rego.1 A ontologia do não-ser-ainda, publicada por Jorge Jaime da
1  Professora do Departamento de Sociologia do IFCH da Unicamp.

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Academia Brasileira de Filosofia; dicionários filosóficos: Nicola Abbagnano
e José Ferrater Mora, Norberto Bobbio (política) e Pedro Santidrián (re-
ligião); livro de filosofia da história: Historia de la Filosofia de Teofilo
Urdanoz, entre outros que constam nas referências.
A importância do tema é provocar a filosofia para as questões his-
tóricas, mediante a dialética marxista, tratar não só a história dos ven-
cedores, mas a dos perdedores. Contudo, o objetivo deste trabalho não é
apenas mergulhar na história meramente para contar apenas como foi,
mas a finalidade maior é investigar o pensamento democrático de Thomas
Münzer. É importante frisar que, o cunho deste trabalho é filosófico-his-
tórico, todavia, ele prioriza os elementos relacionados ao nascente pensa-
mento democrático münzeriano.

1. Thomas Münzer

Pouco se sabe sobre Münzer. Parte de sua história foi esquecida não
porque irrelevante, mas por conveniência. Cabe a pergunta: por quê?
Não se trata de responder as coisas de maneira adiantada ou simplista,
mas de traçar hipóteses e problematizar. Uma que propomos é: T. Münzer
é pouco conhecido porque foi um líder camponês, ou seja, ideologica-
mente não-alinhado à classe hegemônica, a burguesia. Passemos à aná-
lise mais detalhada.
Thomas Münzer nasceu em uma pequena vila chamada Stolberg
na atual Alemanha (BLOCH, 1973, p. 9), geograficamente localizada nas
Montanhas de Hartz situada a sudeste na Saxônia, ano de 1490, morreu
decapitado em 1525 pelos príncipes germânicos. Münzer foi o filho úni-
co de camponeses, gente pobre que servia aos grandes senhores. Seu pai
foi condenado à forca devido às arbitrariedades de um conde, já sua mãe
foi subjugada aos demais cidadãos do burgo, sendo maltratada e por
fim pretendiam expulsá-la da cidade, pois estava na completa miséria
(BLOCH, 1973, p. 9).
Eram os tempos intoleráveis da futura Alemanha. Ser pobre era
contra a lei e o abuso era a regra. E Münzer? Como vemos, Münzer expe-
rimentou desde cedo as amarguras da vergonha e da injustiça, fechou-se
em si mesmo, nada aceitou dos “outros”. Münzer viveu a necessidade do

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povo e esta moldou seu ser social. Via como estes eram definhados e,
como os demais de sua classe, submetidos a humilhações de todo tipo,
sentiu na pele o que é ser miserável, porém, negando sua situação, ficou
prenhe de novas realidades, teve inclinação à vocação sacerdotal (BLOCH,
1973, p. 9), ingressou no seminário onde completou o Bacharelado em
Bíblia. Sabia grego, latim e hebraico num período em que a maioria dos
camponeses era analfabeta.
Pouco se sabe sobre seus estudos em Leipzig (1506) e em Frankfurt
(1512). Terminou seus estudos em Frankfut em 1516.2 Em 1513 foi or-
denado sacerdote e, em 1519, seu pensamento tomou outros rumos,
momento em que sentiu a necessidade ou os apelos de uma reforma.
Neste período, Lutero já havia publicado suas 95 teses (1517), seu passo
seguinte foi aderir à reforma luterana. Importante notar que Münzer era
homem de seu tempo. Qual? Renascimento.
Não é fácil chegar a uma definição das características desta época,
pois não ocorrem mudanças somente no pensamento filosófico, mas
em toda a vida do homem, em todos os aspectos: sociais, políticos, mo-
rais, literários, artísticos, científicos e religiosos (REALE, 2003, p. 16). O
Renascimento foi um movimento de volta aos clássicos e, em sentido
mais popular, é retorno ao pensamento e às formas de expressão da an-
tiguidade. Renascimento não pode ser dissociado de humanismo, uma
vez que humanismo é consciência de Renascença (CORVISIER, 1983,
p. 51). Todo pensamento humanista-renascenitsta é perpassado por
grande anseio de renovação religiosa (REALE, 2003, p. 98). Não alheio
a este evento, se faz necessário, na concepção de Münzer, esse retorno às
origens do cristianismo, a fim de resgatar o comunismo dos apóstolos.
Podemos também afirmar que Münzer foi um dos primeiros reforma-
dores, antes mesmo de Calvino. Tendo em vista que o projeto revolucioná-
rio münzeriano teve início por volta do ano de 1513, já professor em Halle,
onde fundou uma liga secreta contra o Arcebispo de Magdeburg (BLOCH,
1973, p. 10). Os projetos reformistas de Jean Cauvin (CALVINO, 2007)3 são
evidenciados por volta do ano de 1541 quando impôs ordenanças eclesiás-
ticas que implicavam reforma na Igreja Católica (CORVISIER, 1983, p. 74).

2 Conforme reconstrução de Bianca Daéb's Seixas Almeida, professora da Faculdade


Batista Brasileira, mestranda em História pela UFBA. [Domus on line, 2004].
3 Jean Cauvin (Calvino) nasceu em Noyon na França, em 1509. Sua reforma foi poste-
rior à de Münzer.

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1.1. Atualidade de Münzer

A pessoa é o que conta autenticamente, por mais que pareça irrelevante,


pois é ela que se sente com maior intensidade, por mais que se esconda na in-
timidade do segredo, substância do homem autêntico (BLOCH, 1973, p. 89).
Assim, Münzer é um processo, não só do ponto-de-vista de caráter, mas
sim em relação à repercussão, abrangente, apto à lenda, luzindo a au-
réola acima da sua cabeça de chefe, enquanto quadro apenas imperfeito
(BLOCH, 1973, p. 90).
Münzer, exteriormente, mal se destacava dos outros. Nas descri-
ções, Münzer se apresenta de baixa estatura, com cabelos negros, pele
morena, olhar inflamado. A larga e ossuda face, mais tarde mantida
cheia de barba, parecia de origem eslava (BLOCH, 1973, p. 90).
Münzer tinha uma severa ascese monacal, desta forma fugia das
seduções femininas, fato também que se casou apenas para fins de pro-
criação e mesmo assim com ausência de alegria, quando nasceu seu filho
(BLOCH, 1973, p. 91). Lutou em favor do Homem Liberto. Boa parte
dos sermões de Münzer eram em função de libertar os camponeses das
mãos de seus opressores.

O próprio homem penetrou tudo, e pode assim de novo abando-


nar, livre, o ruim em que se meter [...] Ao libertar-se o homem,
então ele repele ativamente todas as grandezas deste mundo e a
este próprio, não se deixando mais dominar e fascinar por ele
(BLOCH, 1973, p. 107).

Münzer se via como Jesus Cristo, um salvador: “Não vim trazer a


paz, e sim a espada” [...] (BLOCH, 1973, p. 112) e desta forma se carac-
terizava a teologia münzeriana numa ascese muito marcante podendo
ser categorizada como milenarista ou quiliasta.4 Bloch escreveu um sub-
capítulo no livro Thomas Münzer, teólogo da revolução falando sobre a
revolta camponesa e seu caráter quiliástico.
4 Milenarista é o mesmo que Quiliasta. Crença num millenium, num período de mil
anos em que a esperança da realização plena do Reino de Cristo na terra foi o motor
que fez mover ideias, homens, ilusões ao longo do tempo [...] Este movimento percorre
toda a história do cristianismo, agravando situações de catástrofe: fome, guerra, inse-
gurança etc. (SANTIDRIÁN, 1996, p. 403-404).

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Münzer foi um homem fiel, coerente, ao contrário de Lutero. Os rela-
tos sobre sua fraqueza final são, na maior parte, mentiras comprováveis, o
resto sangra de milhares de contradições. Segundo Kautsky,5 Münzer deu a
vida por sua causa, ela própria continua vivendo e não atemoriza mais que
no seu tempo (BLOCH, 1973, p. 91). Münzer, contudo, era vaidoso e falas-
trão, não medindo bem suas ameaçadoras palavras (BLOCH, 1973, p. 92).

2. A Alemanha

Visando uma melhor compreensão do contexto em que se encon-


trava a Alemanha no período da Reforma, faz-se necessário uma prévia
apresentação do Estado alemão. Nos dizeres de André Corvisier, a Europa
era composta por sociedades cristãs. Não diferente a Alemanha, ainda
não unificada, sua unificação só aconteceria no século XIX. No período
reformista, era constituída por vários reinos governados por príncipes
seculares ou eclesiásticos.
Na região sul do Sacro-império alemão, encontravam-se os homens
de negócio humanistas que permaneciam fiéis à Igreja Católica, cavalhei-
ros empobrecidos, camponeses e artesãos não beneficiados (CORVISIER,
1983, p. 68), ou seja, o sul região onde se localizava a Saxônia, terra de
T. Münzer, era lugar de gente pobre. Na ausência de uma de uma forte mo-
narquia nacional, capaz de defender os fiéis contra a avidez da fiscalização
pontifical, os principados eclesiásticos, revelando os mesmos defeitos do
Estado pontifical, se reforçavam (CORVISIER, 1983, p. 68). Entende-se
que as grandes monarquias se concentraram na região norte da Alemanha,
onde também era forte o mercantilismo.
Carlos V, católico, foi eleito imperador do Sacro Império Romano
Germânico em 1519, ou seja, em plena efervescência do luteranismo, ou da
Reforma. Carlos V substituiu o avô, Imperador Maximiliano (GRIMBERG,
1967, p. 09). Após uma tentativa inútil de banir do Império o luteranis-
mo reconheceu o direito de cada príncipe germânico impor a própria
religião aos seus súditos (BLITZER, 1967, p. 17). Durante todo seu go-

5 Carlos Kautsky (1854-1938), foi o principal teórico do socialismo marxista na social demo-
cracia alemã e posteriormente crítico revisionista do comunismo leninista (URDANOZ,
1985, p. 19).

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verno houve embates entre protestantes e católicos. Carlos V dispunha
de um poder de tal maneira grande e de posições tão fortes, que exerceu
uma influência decisiva nos acontecimentos dos anos de 1520 e 1540
(GRIMBERG, 1940, p. 24-25).

2.1. A reforma protestante

O conceito Reforma é mais tardio do que Renascimento. Sempre


houve movimentos na Igreja Católica com a finalidade de retornar aos
primórdios do cristianismo, mas foi Lutero quem deu o sinal de um mo-
vimento que repercutiu pela Europa inteira seja por questões sociais ou
espirituais (CORVISIER, 1983, p. 65). Não podemos dizer que a causa
da reforma foi única e exclusivamente devido aos abusos da Igreja Ca-
tólica, o homem do século XVI reduzia tudo à religião, as condições de
vida, políticas, materiais ou morais. Podemos ver também a Reforma
como um meio das nações intervirem na religião, a unidade da Igreja do
Ocidente não pode resistir (CORVISIER, 1983, p. 65). Fato também que
a Reforma coincidiu com o período da formação dos Estados Nacionais
(LUIZETTO, 1994, p. 22).
André Corvisier acentuou três causas da Reforma: religiosas, mo-
rais e sociais (CORVISIER, 1983, p. 66). As religiosas marcam a finali-
zação das inquietudes religiosas do término da Idade Média. A que mais
se destaca é sobre as indulgências, venda de títulos que se constituíam
na absolvição de pecados ou até mesmo na compra de terrenos no céu.
Lutero, por sua vez, indignou-se com o fato de as indulgências permitirem
a um pecador receber méritos adquiridos pelos eleitos. No âmbito da
religião a Reforma propõe uma rejeição da tradição católica e fazer da
bíblia o fundamento único da crença (CORVISIER, 1983, p. 67).
Já no âmbito das causas morais questionava-se os sufrágios, abusos,
concubinagem, venda de sacramentos. Como causas econômicas, sociais
e políticas podem acentuar que, além do descontentamento religioso
desde a metade do século XV, o papel do dinheiro é o que mais suscitava
indignação e a revolta contra a miséria assumia com a facilidade a forma
de conquista do Reino de Deus.

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Estas inquietações econômicas, sociais e políticas foram provavel-
mente mais fortes na Alemanha (CORVISIER, 1983, p. 68).
A revolta de Lutero indagava principalmente sobre as indulgências.
Podemos firmar como marco desta Reforma o ano de 1517, ano em que
ele afixava suas teses na porta da igreja de Wittenberg, onde declarava
serem falsas as seguranças, como a salvação e a remissão dos pecados até
mesmo para os mortos (CORVISIER, 1983, p. 69). Os questionamentos
de Lutero se pautavam propriamente sobre as indulgências. Ele as via
como um meio de afastar as pessoas dos verdadeiros fundamentos da fé
cristã, uma vez que alguém com uma doação comprava o perdão dos pe-
cados, ou também comprava uma vaga no céu e ainda poderia livrar fa-
miliares do purgatório. A tese que chama atenção pela forma de abordar
a Igreja Católica, é a 26ª que diz o seguinte: “o Papa faz muito bem em
não conceder o perdão às almas em virtude do poder das chaves (coisa
que não possui), mas pela ajuda ou em forma de intercessão”.
As críticas luteranas eram bastante fortes pois questionavam o po-
der da Igreja e do Papa em conceder indulgência por meio de dote, a todo
modo, mediante a paga, conforme a 21ª tese. Na tese 52ª diz que esperar
ser salvo mediante 12 mecanismos de salvação. No sentido próprio da pala-
vra significa complacência, condescendente sinônimo de pronto a perdoar.
Desde meados do século XV, o papel do dinheiro é o que mais susci-
tou indignação. Os pregadores dominicanos eram duros para com o usu-
rário, lembrando-o da danação eterna. Todos os atingidos pelas transfor-
mações econômicas, pequena nobreza, artesãos dos ofícios alcançados pelo
capitalismo comercial, camponeses de determinadas regiões ouvem apai-
xonadamente essas prédicas nos primórdios do capitalismo comercial, en-
tre as cidades em pleno desenvolvimento e os campos (CORVISIER, 1983,
p. 68). A doutrina econômica da Igreja Católica orientava os indivíduos a
não perseguirem fins lucrativos, a usura e a especulação sobre preços eram
proibidos (CORVISIER, 1983, p. 83). É de se supor que a burguesia alemã
queria ver-se livre dos entraves de Roma, visando a obtenção de maiores
lucros na atividade mercantil.
Não estariam estes pequenos príncipes com a pretensão de fazer o
mesmo que gauleses e romanos fizeram na antiguidade tardia? Usar a reli-
giosidade como meio para justificar uma ação exploratória na sociedade,
pela força, pela economia ou os meios de produção e é claro, pela religião.
Não estariam estes pequenos príncipes objetivando apenas mudar o po-
der religioso de mãos?
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As pregações de Thomas Münzer levantaram suspetitas sobre a reta
intenção dos sereníssimos príncipes. Dominada a religião, além dos
meios de produção, os camponeses ficariam extremamente submetidos
aos mandos destes pequenos príncipes? E certamente estes foram os
grandes motivos para as indulgências tomarem na Alemanha um caráter
mais escandaloso do que noutros países, e desta forma despertando uma
reação decisiva. Uma antinomia fundamental é a pretensão de Lutero em
fazer uma reforma religiosa, dando autonomia às igrejas nacionais, e de
outro os pequenos príncipes buscavam independência do imperador e
do Papa (CORVISIER, 1983, p. 70).
Em meio a estes eventos Lutero queima, no natal de 1520, a bula
papal Exsurgere domine, que o condenava, sendo excomungado. Recu-
sando-se a retratar-se em abril 1521 separou-se definitivamente da Igreja
Católica. A Reforma Protestante consolidava-se dentro da ilusória uni-
dade da cristandade católica (CORVISIER, 1983, p. 70).
Esta é a primeira oposição, podemos dizer que caracteriza a primei-
ra fase dos eventos. Lutero e príncipes são as antíteses da tese, represen-
tada pela Igreja Católica. Veremos adiante que Münzer será a antítese da
Reforma Luterana.
Da oposição entre Reforma e Igreja Católica surgiu uma nova tese,
a Reforma Protestante e, junto dela, os príncipes desejosos de conquistar
sua autonomia, mas a contra a Reforma Luterana surgiu uma nova an-
títese, a Revolta Camponesa de 1524, comandada por Thomas Münzer.

2.2. A reforma münzerina

Münzer fazia parte da futura Alemanha do século XVI, momento


em que se desenvolveu um novo evento da história alemã: a Reforma
Protestante. O pano de fundo da discussão münzeriana apontava para as
inquietudes luteranas com relação à Igreja Católica.
O princípio historicista de que nenhum homem é alheio ao seu tem-
po pode ajudar na análise. O tempo de Münzer é o Renascimento, que rei-
vindicava uma volta às origens do cristianismo primitivo e comunitário. É
também, como já vimos anteriormente, o tempo em que camponeses eram
subjugados à força pelos príncipes aliados à burguesia incipiente. Essa classe
é aqui entendida como aquela que detém os meios de produção, pois os prín-
cipes controlavam a terra, um dos principais meios de produção nessa época.

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Neste período, várias transformações estavam ocorrendo na Europa,
resultado de pestes, guerras, fome (CORVISIER, 1983, p. 65), além da
questão das indulgências. Nesse período, a sociedade dispunha de um
Rei ligado à Igreja de Roma, constituído Imperador de todos os demais
países pertencentes ao mundo cristão ou Império Sacro-cristão.
A abordagem e explicitação que faremos agora sobre Münzer e seu
tempo parte dos estudos de Ernest Bloch, publicados na obra Thomas
Münzer: Teólogo da Revolução. Bloch não partiu do nada, pois explorou
várias biografias sobre Münzer, afirmou a necessidade de complementá-
-las, fazendo um estudo mais aprofundado sobre o líder camponês.
Os autores mais pesquisados por Bloch foram: Förstemann, Seidmann,
e Melanchton6 que, possivelmente, escreveu a primeira biografia sobre
Münzer. Strobel, segundo Bloch, foi quem escreveu a primeira biografia
sincera, seguido por Kautsky e pelo próprio Bloch (BLOCH, 1973, p. 4).
Os relatos sobre Münzer até Melanchton biografaram sua infelicidade e
seus fracassos, mas a partir de Strobel houve mudanças quanto ao que
falavam do líder camponês. Surgiu o herói camponês Münzer, espírito
brilhante e radical, gabava a ação militante que impelia o verdadeiro
cristão a sofrer por Deus (CORVISIER, 1983, p. 70).
Num tom acentuadamente mais ascético e inflamado, pôs a pregar
pelos arredores num tom nada luterano, cada vez mais forte, pregando
a expulsão dos mercadores do templo,7 quer dizer, estava desafinando a
harmonia do concerto que Lutero pretendia dar, e qual seria este tom lu-
terano? Podemos observar que são os mercadores que Münzer pretende
expulsar do templo, porém Lutero quer através dos príncipes assumirem
o controle da religião na Alemanha, e não apenas livrar-se dos mercado-
res da fé. Em 1543, já professor em Halle, fundou uma liga secreta contra
o Arcebispo de Magdeburg. Lutero nesse período escreveu que Münzer
“percorreu os campos em busca de um ninho para seu vício” (BLOCH,
1973, p. 10).
Nunca tímido e cortantemente decidido, diante dos seus amigos e
dos seus inimigos, já estava o jovem Münzer por completo disposto a
se revelar. Em Halle irrompia sua natureza de conspirador, se ocupava

6 Philip Mellanchton (1497-1560), nascido em Bretten, professor em Wittenberg, foi


fiel seguidor de Lutero. Interessou-se em dar fundamento filosófico à teologia luterana
(MORA, 2001, p. 1924-1925).
7  Os mercadores do templo, na acepção de Münzer, entende-se os clérigos da Igreja.

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muito com suas leituras de Eusébio, São Jerônimo e Santo Agostinho.
Münzer queria constatar um testemunho, uma iluminação e o idêntico
reflexo de uma luz, que não tomara de ninguém, porém que acreditava
receber “bem de cima” (BLOCH, 1973, p. 10-11).
Conheceu Lutero pessoalmente no ano de 1519 em Leipzig. Lutero teve
uma boa impressão de Münzer, este por sua vez, entregue por completo
à ascese, teve uma impressão menos favorável (BLOCH, 1973, p. 10-11).
Sentiu-se melhor para atuar entre os proletários da igreja de Santa Catarina
(BLOCH, 1973, p. 11-12).
Percebemos como vai se organizando a reforma de Münzer, os passos
que vão sendo dados, e, em momento algum transmite a possibilidade de
comungar com a Reforma de Lutero, afinal já se inicia uma série de oposi-
ções entre ambos, basta que observemos os delineamentos de um e de outro.
A realidade de Münzer, camponesa, e a de Lutero mais próxima da
nascente burguesia. Basicamente ambos têm formação eclesiástica, são sa-
cerdotes da Igreja Católica, concordavam coma volta às origens da Igreja,
a fim de resgatar a estrutura primeira, que segundo Münzer, morreu com
os apóstolos, esta é a básica caracterização da reforma münzeriana.
Münzer emitiu muitas proclamações, sempre visando os camponeses,
alimentando-os para uma revolução. Fazia-o com notas suplementares e às
vezes mais explícitas, sempre dirigidas a um público sutil e sensível. Münzer
age como político e como teólogo. Neste ativo teólogo da Revolução, os
dois aspectos, ação e fim longínquo, ideologia e ideia puramente religiosa,
tão intimamente se confundem que, sobretudo na juventude, Münzer se
apresenta diante dos últimos taboristas8 todo inflamado pelo sentimento
de missão, ódio aos senhores, ódio ao clero, à reforma da Igreja Católica e
com êxtase pelo advento de um novo tempo (BLOCH, 1973, p. 13).
Ernest Bloch vê o movimento de Münzer como teológico e político.
Münzer sente sua missão como divina, vindo dos céus, junta tudo isto ao
seu sofrimento e seus ultrajes. Aqui podemos ver o caráter teológico e ascé-
tico de Münzer. É natural que sentisse ódio, pois recebeu da vida todas
as formas de submissão desde o ventre materno. Também não foi muito
difícil para ele encontrar colaboradores para seu projeto, era constante
na região de Münzer proletários ou camponeses na mesma situação de

8 Membros de uma comunidade cristã, considerada herética pela Igreja Católica, que se
organizou a partir da cidade boêmia de Tabor no século XV. Seus seguidores também
foram massacrados em 1434.

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sua família. Apesar de ter estudado num seminário e se tornado sacer-
dote, num tempo em que a Igreja estava corrompida por homens que
buscavam benefícios próprios, ainda garantia cômoda sobrevivência.
Münzer não se esqueceu do seu passado miserável. Münzer não se aco-
modou, pois ele poderia continuar como confessor de freiras, sacerdote
ou professor, entretanto algo o incomodava:

empreguei um zelo ardente, até conseguir ser distinguido com


uma ciência mais completa e mais rara da insuperável e santa
fé cristã; a corrupção papal; as crianças pediram pão, porém
ninguém estava presente para dividi-lo; a igreja virginal e sem
mancha se tornou uma prostituta, através de espiritual adulté-
rio, rompendo seu casamento místico, após a morte dos após-
tolos, até que a natureza do trigo, bem como a da erva daninha
sejam esgotadas, assim arrancando-a de todas as obras do mundo
associado ao poder, podendo aprendê-la no julgamento mais justo;
fizeram da igreja de Deus um caos sombrio, uma igreja quebrada,
abandonada, dispersa. Porém, o senhor a constituirá de novo, a
consolará, a unirá, até que ela veja o Deus dos deuses em Sion,
Amém (BLOCH, 1973, p. 14-15).

Poucos dias após a afixação deste texto, escrito pelo próprio Münzer,
quatro guardas passaram a acompanhar os passos do líder camponês
(BLOCH, 1973, p. 15), período no qual se iniciam as perseguições a
Münzer. É enxotado, renegado, considerado morto pelos próprios amigos
(BLOCH, 1973, p. 16).
A partir desse fragmento da obra de Bloch podemos notar qual era a
angústia de Münzer, ele reclama da avareza dos senhores, quando fala das
crianças que pedem pão, porém não havia ninguém para dividir com elas,
nem mesmo as migalhas. Münzer acredita que a Igreja perdeu sua prin-
cipal característica após a morte dos apóstolos, a comunhão. O fato de
colocar as coisas em comum é o que tornaria a vida possível para os cam-
poneses. Estas são as ideias que fundamentariam a reforma münzeriana.
Podemos caracterizar Münzer como uma espécie de “teólogo libertador”,
o que explica o porquê de Bloch intitulá-lo de Teólogo da Revolução.
Muitos podem pensar as revoltas camponesas sob um aspecto de re-
beldia do campesinato, pois a burguesia entendia os camponeses como
destruidores das ordens institucionais estabelecidas. A Igreja e o Estado,
comandado pelos príncipes, ao ver o movimento comandado por Münzer,

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deram-se conta de seu objetivo não apenas religioso, mas social e filosófico.
Sua proposta é mais abrangente e traz a primeira manifestação democrática
e comunista na Alemanha do século XVI. Seu movimento foi suprimido
pela força autoritária-totalitária dos príncipes que encontravam a justifica-
ção de sua prática na doutrina pregada por Lutero.
Exclamava Münzer: “porque os chamais sereníssimos Príncipes? O
título não é, aliás, deles, e sim de Cristo. Porque os chameis de bem nas-
cidos? Eu pensava que fostes cristãos, mas não passais de um arquipagão
que fabricais Júpiteres e Musas” (BLOCH, 1973, p. 37).
Em suma, as palavras de Münzer se traduziam na esperança dos
camponeses, e nela os já despojados camponeses livraram-se de todas as
amarras que os prendiam às arbitrariedades dos senhores, até mesmo da
própria vida em favor de sua esperança.
Podemos notar também que Münzer propõe elementos democrá-
ticos, religiosos ou teológicos e sociais, fundamentados no comunismo
dos apóstolos. É evidente que se trata de uma luta entre burguesia e pro-
letariado. A burguesia da qual nós falamos é representada pelos prínci-
pes alemães e Lutero e o proletariado é representado pelos camponeses
e Münzer. Em Karl Marx, isto recebe o nome de luta de classe.9 É fato
também que o discurso de Lutero, de início, era recíproco ao dos cam-
poneses, porém não muito tarde mostra o que realmente pretendia, não
só ele, mas os príncipes também aproveitaram-se da situação, a fim de se
apossarem dos bens eclesiásticos.
Tomou por esposa uma freira evadida do convento, Ottile Von Gersen.
Esboça-se fortemente a tensão com os adeptos de Wittenberg e sua crença, a
qual, ao modo de um bom chefe de família, divide o pão, assim caben-
do à liberdade dos povos ser dispensadas, segundo a medida do paterna-
lismo divino (BLOCH, 1973, p. 16-17).
Da mesma forma que Lutero quer voltar às origens do Cristianismo,
ou seja, seguir à risca seu método de ir às fontes, concomitantemente
Münzer comunga desse propósito luterano, pois ambos visavam uma
reforma, tendo em vista que a imagem da Igreja Católica estava pre-
judicada pelos excessos dos sacerdotes, corrupção de clérigos e, o mais
agravante, as indulgências.
9 No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels relatam que a história de toda so-
ciedade se resume nas lutas de classes, onde homem livre e escravo, patrício e plebeu,
barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra opressores e oprimidos, sempre
estiveram numa luta ora disfarçada ora aberta (MARX e ENGELS, 1988, p. 66).

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O que chama mais atenção em Münzer é que ele buscou na reli-
gião o que não era socialmente possível na realidade cristã: a divisão
das terras. Seu maior intento era resgatar o modelo de vida dos após-
tolos, que se constituía no princípio básico da divisão, e, nesse sentido,
fundamentava os objetivos da revolta campesina. Os camponeses pre-
tendiam dividir a terra, propondo um modelo segundo o qual somente
a livre e independente propriedade do solo devia estar representada no
parlamento, buscando um império inteiramente constituído por peque-
nos proprietários, sem nobres, nem príncipes (BLOCH, 1973, p. 92).
Outra dificuldade para os camponeses é que nem a igreja reforma-
da queria dividir seus bens e muito menos Lutero, que, segundo Münzer,
não passava de um lambedor de botas dos príncipes. Enfim, o objetivo
da Igreja e dos príncipes alemães não era fazer reforma agrária, mas sim
criar uma nova ordem institucional, ou no caso da Igreja Romana, man-
ter a ordem já estabelecida. Lutero aceitou, de 1517 a 1522, o apoio de
todos os elementos democrático-revolucionários que correspondiam às
suas esperanças; quando, porém, não pôde mais controlar os aconteci-
mentos, tomou o partido dos mais fortes, traindo, de início, a oposição
senhoril e depois se voltando contra a Revolução camponesa-proletária-
-quiliástica, muito mais perigosa (BLOCH, 1973, p. 29).
Nesse momento deu-se início a trágica Revolta Camponesa. Münzer
enviou uma carta a Lutero na qual apresentou um estilo de solícita ré-
plica, de exposição objetiva. A ruptura já estava, desde há muito e, inti-
mamente decidida. Münzer surgiu como um comunista revolucionário,
de caráter quiliástico (BLOCH, 1973, p. 19). Assim, ele reuniu em torno
de si os indivíduos com idênticas opiniões. Oprimidos se ergueram e
cresceu a influência de Münzer entre as camadas inferiores.
As palavras de Münzer excitavam fortemente os proletários e, por
isso, os senhores passaram a proibir seus proletários de ouvirem os ser-
mões münzerianos (BLOCH, 1973, p. 17). A reação de dois príncipes
foi de inquirir a revolta de Münzer de forma decisiva contra o tribuno
popular em ascensão.
Um dos detratores mais inflamados era o Duque Johann, um áspero
senhor, com consciência de classe (BLOCH, 1973, p. 19). Esse príncipe
lembrou que a Reforma Luterana não tinha por objetivo resolver os pro-
blemas do campesinato. Sua preocupação maior era a defesa dos direitos
dos príncipes. Caberia então a Lutero formular teses que justificariam toda

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a ação dos príncipes, inclusive a de eliminar focos democráticos a fim de
manter os príncipes no poder, pois estes sustentavam ter um direito divi-
no concedido por Deus. A princípio vale dizer, os camponeses e Münzer
estavam iludidos com as propostas reformistas de Lutero, e logo tomaram
ciência das verdadeiras pretensões luteranas, justificar a ação dos príncipes.
Em 1524 apareceu o primeiro sermão: o Protesto ou Proclamação de
Thomas Münzer de Stolberg-no-Harz. Münzer trata de questões religiosas
e interpretações, critica o batismo antes da idade da razão e o apego à escri-
tura, princípio luterano (BLOCH, 1973, p. 19).
A linguagem de Münzer, embora política, também é fundamental-
mente teológica, e põe em primeiro lugar a luta de classes, no que se refere
às nações estrangeiras, ou ele deixa ficar para depois o assunto, ao enfatizar
a internacionalidade espiritual dos eleitos entre si (BLOCH, 1973, p. 20).
Münzer a cada instante ganhava mais popularidade. Ele tinha um
grande carisma, seu caráter era extremamente ascético (BLOCH, 1973,
p. 22). O sermão de Münzer aos príncipes tinha um teor revolucionário.
O que certamente iria desencadear rumores (BLOCH, 1973, p. 23). Havia
um contraste entre o sentimento münzeriano de missão e o servilismo
de Lutero, pois este era muito cortesão e disposto a curvar o espírito
diante do poder temporal. Münzer acusava Lutero de ter uma fé fingida e
o inclui entre os que amansam e coisificam o caminho cristão (BLOCH,
1973, p. 24). Münzer chega a convocar os príncipes a uma ação armada
em companhia do povo “contra os maus, que impedem o evangelho, co-
locando-o à margem e repudiando-o” (BLOCH, 1973, p. 25). Münzer parece
ainda acreditar que os príncipes iriam ouvir seu apelo. Ele acreditava que
os pequenos príncipes iriam se juntar ao povo para uma luta conjunta
contra os traidores da fé. Ledo engano de nosso teólogo, bem sabemos
quais eram as preocupações senhoriais.

Considerações finais

Esse mergulho na história alemã na companhia de Ernest Bloch


propiciou um novo entendimento do processo de transição capitalista na
Alemanha e resgatar o pensamento democrático de Thomas Münzer supri-
mido pelo caráter totalitário de Martinho Lutero e dos príncipes alemães

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no início da idade moderna. A Alemanha, ao trazer no ventre o embrião do
autoritarismo chegou atrasada na sua transição capitalista, porém, desen-
volvida. Atrasada no sentido de dar solução aos seus conflitos internos e
externos, uma vez que as soluções encontradas pela elite foram autoritárias
no seu proceder desde os primórdios da modernidade. A pesquisa buscou
na história alemã um marco, princípio, uma origem ou referência desenca-
deadora do processo totalitário alemão. Suprimido pelos príncipes e Lutero,
o pensamento democrático münzeriano tornou-se a referência maior para
este estudo e a retomada deste pensamento democrático foi necessária a
fim de evidenciar os primeiros suspiros do autoritarismo na Alemanha.
O exercício de um método histórico tradicional pode ser aplicado
na resolução ou melhor compreensão de outros problemas, ampliando
horizontes e abrindo a novas pesquisas. Ao encerrar este artigo, vale lem-
brar a importância e a profundidade deste tema, pois temos ainda por
abordar, por exemplo, as origens do totalitarismo no Brasil. Os movimentos
messiânicos no período colonial suprimidos pela elite moderna, e tam-
bém a escravidão, que segundo Walquíria D. L. Rego, é a instituição es-
sencial que impediu a constituição de atores democráticos entre nós.
Um dos méritos desse trabalho é tirar Thomas Münzer das penum-
bras da história, de desconhecido, ele já não passa despercebido no meio
acadêmico, com o elemento desfetichicizante da figura de Martinho Lu-
tero e de sua Reforma.
Outra evidência que pode ser averiguada é a forte vinculação entre
religião e economia, reportando aqui o fato da acumulação primitiva
de capital na Alemanha que tornou-se possível através da Reforma. Na
perspectiva münzeriana, a religiosidade reproduz a estrutura social, tan-
to a injustiça, quanto o anseio pela mudança, pois a Reforma pretendida
por Münzer e seus camponeses, falava de uma mudança não apenas re-
ligiosa, mas social e política, pretendendo a instauração do comunismo
dos apóstolos e a divisão das terras. Outro ponto marcante na teologia
münzeriana é o seu caráter messiânico ou quiliasta. Segundo Münzer,
esse movimento reformista seria o retorno à primitividade cristã.
Fica evidente que o processo totalitário na Alemanha tem seu início
no bojo da Reforma Protestante. As Revoltas Camponesas lideradas por
Münzer, como já comentamos no texto, constituíram-se na antítese a
Lutero e aos príncipes, que suprimiram as revoltas camponesas passando
a fio da espada oito mil camponeses na batalha de Frankenhausen, entre

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eles Münzer, denunciado por um camponês, por ironia da história ou
não, um camponês é denunciado por outro. O pano de fundo desse
evento são as lutas de classes.
A complementaridade entre o pensamento de Bloch e Lukács deram
a este trabalho seu cunho filosófico-crítico. Observa-se que, em Bloch foi
trabalhado as origens deste totalitarismo enfatizando o pensamento de
Münzer e a guerras camponesas, mostrando o lado dos perdedores e in-
justiçados, tirando-os do esquecimento. Em Lukács é entendido e proble-
matizado este processo de transição capitalista com a aplicação filosófica
da teoria da via-prussiana, uma ferramenta de análise histórica. Seguindo
os fatos históricos ocorridos no Sacro Império Germânico, o processo de
unificação da Alemanha com Bismark, do início do século XX até mea-
dos deste século, vê-se uma Germania com marcas de uma burguesia
autoritária e antidemocrática nas resoluções de conflitos. A resolução
mais trágica de todas foi a nazista.
Compreende-se, então, que o marco inicial de todo este processo
totalitário se deu no alvorecer da modernidade com a disputa entre cam-
poneses e príncipes, Lutero e Münzer.

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