Você está na página 1de 3

O vigésimo terceiro passo

Há muito tempo não visitava uma cidade tão agitada. O estalo dos calçados nas
pedras, o riscar do chão com o arrastar das pernas e a repetitiva arquitetura ao
longo de todos quarteirões.
-Finalmente! - eu exclamei para a nova monja - só precisamos encontrar uma boa
casa de adeptos, mostrar nossos trajes, recitar algumas palavras e aí estará, bons
dias de conforto. Eu estou muito empolgado - disse sem controlar minha agitação na
voz.
Minha companheira não se simpatizou com a minha alegria.
-Não sei porque você se contenta tanto, em menos de 3 horas você vai estar quase
morto em uma dessas esquinas, de novo - disse, então, finalmente sorrindo.
A monja entrou em um dos primeiros bares visíveis da entrada da cidade. Eu,
como já havia me acostumado, a segui. A conheci há alguns dias e já me apercebi do
vendaval que governava suas ações.
-Eu não acho que procurar adeptos dentro de um bar, seja a forma mais
eficiente - tentei alertá-la.
O bar estava vazio, senão por dois clientes maltratados em uma mesa ao fundo
e um homem e uma mulher, ambos robustos e com cara de poucos clientes a frente do
balcão principal.
-Vocês dois - gritou a mulher olhando para a mesa barulhenta ao longe - vamos!
saiam! chegaram clientes, regras da casa.
-Sim, senhora. Sim, senhora - repetiram com entonações diferentes e riram-se.
-Não precisam se incomodar - eu interrompi - nós entramos por engano.
-Pois saiam todos - disse agora o homem raivoso - estamos cheios de vagabundos.
-Mas se sairmos ainda ficariam vocês dois - disse a monja com sua voz inocente, mas
maliciosa.
A porta fechou-se logo por trás de nosso novo grupo e ouvimos um abafado grunhido,
facilmente ignorado pela as sobrepujantes risadas dos expulsos bêbados. Estávamos
novamente na rua e éramos quatro. Dois monges e dois bêbados.
-O que vocês fazem aqui amigos? - perguntou para nós o primeiro.
-Procuramos um lugar para repousar durante a noite.
-Ótimo, ótimo. O que você acha Borys? - perguntou o segundo.
-Dois monges comediantes, Jarilo, não precisamos nem discutir sobre, temos que
ajudar - disse Borys enxugando as lágrimas.
Em nossa caminhada até nosso misterioso potencial novo local de descanso
descobrimos sobre a profissão de operário de Jarilo e a total libertinagem de
Borys. Jarilo, usava todo seu dinheiro na compra de bebidas para os libertinos da
cidade, que agora, por um acaso, eram poucos. Já Borys, era um daqueles que
recebera da amizade e mecenato de Jarilo.
Atravessamos a parte mais afastada da cidade, no momento em que o bosque em que
estávamos encontrou-se com uma colina, nos deparamos com um templo em meio a
algumas lápides. Os nossos guias abriram as portas, deixaram o mormaço lutar com o
frio do fim da tarde recém formado e nos convidaram ao recinto.
-Bem vindos ao nosso lar - disse Borys com um sorriso parvo.
-Esse é o templo de repouso dos mortos? Por que ele está vazio? - eu indaguei
duplamente confuso.
-A gente removeu os corpos, espero que os senhores monges não se incomodem -
explanou Jarilo.
-Eu adorei - minha companheira rebateu contemplada pela situação.

-Minha missão não inclui confortar os mortos - lancei minha justificativa enquanto
mentalmente pedia perdão aos Budhas - mas eu quis dizer - tentei dar prosseguimento
- onde estão os outros companheiros de vocês?
Jarilo contou sobre a morte de seus amigos. Primeiro havia sido Anastasia, depois
Ivan e assim seguiram um a um, vitimas de algo que ninguém da cidade se importava.
Seus corpos? Cremados.
Lamentamos as mortes lembradas, fechamos as portas e nos tornamos a dormir.
Era uma daquelas noites em que acordamos espontaneamente incomodados. Um silêncio
sufocante, a escuridão dos lugares fechados, um templo no meio de um cemitério e
estava rodeado por pessoas de índoles questionáveis. O cenário perfeito para um
confronto inesperado.

“Vagabundos”. Sussurravam as frestas das portas.

“Bêbados”. Dizia o estalar da construção.

Eu levantei impaciente e me dirigi para a saída para me refrescar. A porta não


abria. Me empenhei até a todos acordar. Um pouco embaraçado resolvi pedir ajuda:
-Desculpa, como eu faço para abrir?
-É só forçar a madeira, não tem tranca - Jarilo respondeu enquanto olhava ao
redor para se localizar - onde está Borys?
Realmente estávamos em três dentro do templo. A monja despertara como de um ótimo
sono e se sacudia ainda com um sorriso de canto. Do lado de fora, os barulhos que
eu originalmente pensei serem de minha imaginação ficaram claramente audíveis.

“Vagabundos! Bêbados! Escórias!”.

-Quem é você? - Eu gritava para o outro lado da porta.


-Borys? - Gritou Jarilo.
-Eu? Eu sou a Opinião Pública. E Borys está morto.
A voz era tenebrosa, falava como se fossem milhares. Jarilo estava paralisado - Já
enfrentei a Opinião Pública antes, tu consegue Jarilo - Jarilo agora espremia a
ponta de seus dedos com menos intensidade.

-Você vai dar um jeito não vai, senhor Monge? - Ele ainda estava aflito e
lixava a própria nuca com as unhas.

A Opinião Pública estava lá por Jarilo, ninguém conhecia as razões de sua aparição
senão o próprio operário.

-Argumentos lógicos meu amigo, argumente com ela. Ela vai ser desfeita. Diz o que
você pensa sobre ela. Qualquer coisa. - Eu não mais pensava direito, olhei para a
monja buscando um apoio que convencesse Jarilo, porém ela já dormia encostada em
uma das antigas tumbas.

-Eu acabei de acordar, meu amigo agora tá morto e o senhor monge vem falar de
argumentação, de discussão ainda entendo bem, mas tô desestabilizado, não vai. De
discussão teve aquela vez que um senhor doutor fulano veio debater na cidade de
higienizar tudo, falava de limpar rua, limpar poste, pintar muro, mas depois veio
falar de tirar nosso grupo de libertino, não teve outra, eu discuti mesmo, na
verdade, eu só não, fomos em seis, a gente gritou cada coisa que só saímos de lá
quando acabou o torneio. Tinha essa moça que faleceu também, provavelmente por
conta dessa Opinião Pública, menina direita ainda, só porque bebia foi deserdada,
falou muitas, família dela, ex-família, sei lá, ficou horrorizada, ou fingia tá
também, porque eles sabiam que fizeram errado, era letrada e tudo. O senhor pai
dela bem que bebia um vinho até ficar rubro e depois batia na pequena, só porque
não bebia com a gente se achava melhor bebum, pois nunca batemos em ninguém. E
bebida é tudo bebida da mesma bebida, falava assim o Borys também, eu gostava
muito, a moça ria. Depois ficaram falando que eu que fui o responsável, paguei uma
bebida uma vezinha, na educação. E se um quer beber com os outros não sei que vem
outros para desmerecer a bebida oferecida. Libertino, eu sempre achei isso elogio,
tu não acha senhor monge? Trabalhei a vida toda, tenho muito prazer de ter servido
a mesma indústria por 15 anos, até meu chefe já bebeu na nossa garrafa, ele nunca
voltou, pensando bem, mas não me demitiu também o que é sinal muito melhor e sei
que se tivesse aqui me defendia em número e grau. Lembro quando a mãe dele ficou
doente, da empresa lá só fui eu, e nem foi para puxar saco, que sei que ele nem
gostava tanto assim da mãe, fiquei lá umas 5 horas depois do expediente mesmo, isso
ninguém veio me agradecer, só o coitado mesmo que viu a mãe morrer. O senhor doutor
que só falava de produto de limpeza, pergunta se ele já visitou a mãe de alguém que
morreu quietinha assim, dava até para sentir a alma saindo de tão devagar que foi o
processo, todo esse povo da cidade chama a gente de muito nome sem respeito, quando
um tropeça no meio da rua e torce algo, quem sai do bar para atender é gente nossa,
o dono lá das bebidas não fecha a porta nem se a mãe ficar nas últimas …

-Jarilo! - gritei, o interrompendo - a Opinião Pública já se desfez tem um tempo.


O operário parou de abrupto e voltou a arranhar a nuca - Desculpa, senhor monge,
foi subindo uma indignação e juntou com o calor da bebida, eu fui falando, falando
e nem lembro algumas partes, o senhor me desculpe.
Dos libertinos só sobrou Jarilo. A monja sugeriu que ele viesse conosco, puxou ele
pelo braço e saímos da cidade.

Você também pode gostar