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Karin Sachs*
Rita Lenira de Souza Bittencourt
RESUMO
A Pós-Modernidade vive uma eterna “crise de identidade”, a qual é vista como parte de um processo mais
amplo de mudança, que desloca as estruturas e processos das sociedades modernas e abala os padrões de
referência que davam aos indivíduos uma sensação de estabilidade no mundo social. Em relação à literatura,
a pós-modernidade é uma tentativa de mudança daquele “uno totalizante” que caracteriza boa parte da
modernidade, onde as definições estão todas estabelecidas e os papéis dos sujeitos estão rigidamente
determinados. A pós-modernidade entra na literatura tentando romper com este padrão, caracterizando-se
então, pela descontinuidade, pelas quebras de sequência narrativa, pelo uso de todas as linguagens, pela
intertextualidade, pela confluência de estilos. O importante são as possibilidades de relativização e
pluralismo, a tematização. Dos autores modernos, ninguém melhor do que José Saramago para expor e dispor
da identidade do sujeito. O que se procura, neste trabalho, por intermédio de um pequeno recorte na vasta
produção literária desse autor, é demonstrar, de forma sucinta, como Saramago lida com a questão da
identidade em algumas de suas obras, no caso “Memorial do Convento” (1997), “Ensaio sobre a Cegueira”
(1999), “O Homem Duplicado” (2002) e “Todos os Nomes” (1997).
ABSTRACT
The Post-Modernity lives an eternal "identity crisis", which is seen as part of a wider process of change that
moves the structures and processes of modern societies and undermines the benchmark that gave individuals
a sense of stability in the social world. For literature, post-modernity is an attempt to change that "one
totalizing" that characterizes much of modernity, where the settings are all established and the roles of the
subjects are rigidly determined. Post-modernity comes in the literature trying to break this pattern, thus being
characterized by discontinuity, breaks in the narrative sequence, the use of all languages, the intertextuality,
by the confluence of styles. Important now are the possibilities of relativism and pluralism, the thematization.
From the modern authors, no one better than José Saramago to expose and dispose the identity of the subject.
The purpose of this work is to show, briefly, how Saramago deals with the question of identity in his work,
considering, out of his vast literary output, just four of his novels, such as "Baltasar and Blimunda" (1997 ),
"Blindness" (1999), "The Double" (2002) and "Todos os Nomes" (1997).
1 Introdução
A Pós-Modernidade, por sua total falta de definição (ou excesso de definições) vive
uma eterna “crise de identidade”, a qual é vista como parte de um processo mais amplo de
mudança, que desloca as estruturas e os processos das sociedades modernas e abala os
*
Licenciada em Letras Português-Inglês, Mestranda em Literatura Brasileira – UFRGS. ksachs@terra.com.br
padrões de referência que davam aos indivíduos uma sensação de estabilidade no mundo
social.
O sintoma da crise é, portanto, o declínio das velhas identidades, sejam elas de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça seja de nacionalidade, gerando o surgimento de
novas identidades e a fragmentação do indivíduo.
O conceito de identidade pessoal também passa por mudanças na medida em que a
visão de um sujeito integrado se desfaz. Essa perda de um “sentido de si” ocasionou o que
se denomina “deslocamento ou descentralização do sujeito”. O que gera a crise de
identidade é, acima de tudo, a descentralização dos indivíduos, tanto do seu lugar no
mundo social e cultural, quanto de si mesmos.
Por algum tempo, a obra de Saramago esteve vinculada à História. Muitos críticos
classificam os romances por ele produzidos até o lançamento de “Ensaio sobre a Cegueira”
como “romances históricos”. Até então, os enredos se desenrolavam em locais ou épocas
determinadas, com forte presença de personagens tirados da história. A partir de “Ensaio
sobre a Cegueira”, e nos romances subsequentes, o nome do local ou do personagem
deixam de ser tão importantes. O uso de metáforas e alegorias aumenta e o objetivo maior
do romance parece ser a sociedade contemporânea. No entanto, a análise da questão da
identidade e do deslocamento do sujeito discursivo, em confronto com os registros
históricos, aponta em outra direção, a do escritor alinhado aos questionamentos sociais e à
fragmentação do sujeito contemporâneo. E em outras palavras: alinhado à pós-
modernidade. “Ao demonstrar que a verdade absoluta sobre o passado é inacessível, ele se
inscreve como pós-modernista”. (CASTRO, 2007, p.27) (Marx Sabine, pesquisador
inglês).
Saramago possui um estilo todo próprio de escrever, presente em praticamente
todos seus romances. Ele é um autor que, acima de tudo, problematiza o ato de escrever,
ele observa a história com um distanciamento do discurso oficial, combina ensaio e
romance, implodindo a fronteira entre ensaio e ficção, criando alegorias que pretendem
levar o leitor a reflexões muito além do que é exatamente relatado. Possui, também, um
estilo próprio de pontuação: poucos pontos, muitas vírgulas e discurso corrente, o que nos
leva a uma leitura, muitas vezes, ao nível de fluxo de consciência. Suas influências são,
declaradamente: Kafka, pela exposição das forças desumanizadoras que operam neste
mundo, Fernando Pessoa, pela sua percepção de que o eu individual é na realidade
múltiplo, e Borges, cuja escrita revela um mundo composto por rituais.
Sua trajetória sofreu uma brusca mudança a partir do grande sucesso “Ensaio Sobre
a Cegueira”. Na primeira fase, a de “romances históricos”, o seu objetivo não era
reconstituir o passado, mas de subvertê-lo. Na fase atual, iniciada com “Ensaio Sobre a
Cegueira”, lugar e tempo se tornam indeterminados, o tom alegórico é ainda mais
ressaltado. Saramago observa os fatos do mundo e cria situações-limite, quase como
projeções do que pode vir a ser. O que mudou? Nas palavras do próprio Saramago: “antes
eu descrevia a estátua, depois de ”Ensaio sobre a Cegueira passei a me preocupar com o
interior da estátua”.
A questão da identidade tem sido abordada por Saramago de diferentes modos, mas
sempre como um meio de desconstruir paradigmas e de dar voz às diferentes facetas do
sujeito inserido em um mundo onde, segundo o autor, “muitos falam e poucos ouvem”.
1 O Homem Duplicado
REFERÊNCIAS
CASTRO, R. A leste do Éden – Dossiê Saramago – Revista Entre Livros, ano 2, n.23, pp.
24-46. São Paulo, Duetto Editorial, 2007.
______. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.