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DESTAQUES
O ARQUITECTO E A CIDA
Entrevista a Álvaro Siza
sequer ser considerado político. Irei, portanto, demonstrar que a sociedade europeia já
não é uma sociedade política: é algo totalmente novo para o qual nos falta ainda uma
terminologia apropriada e para o qual teremos, portanto, de inventar uma nova
estratégia.
Gostaria de começar com um conceito que, desde Setembro de 2001, parece ter
substituído qualquer outra noção política: segurança. Como sabem, a fórmula "por
razões de segurança" opera hoje em todos os domínios, da vida quotidiana aos con litos
internacionais, enquanto palavra-chave de imposição de medidas que as pessoas não
teriam motivos para aceitar. Irei tentar demonstrar que o real propósito das medidas de
segurança não é, como é assumido, o de prevenir perigos, problemas ou sequer
catástrofes. Serei então obrigado a traçar uma genealogia curta do conceito de
"segurança".
Uma das possibilidades de traçar essa genealogia seria inscrever a sua origem e história
no paradigma do estado de excepção. Nesta perspectiva, poderíamos relacioná-las com o
princípio romano de Salus Publica Suprema Lex, “a segurança pública é a mais alta lei”, e
relacioná-la com a ditadura romana, com o princípio canónico de que a necessidade não
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reconhece qualquer lei, com os comites de salut publique da revolução francesa e nalmente
com o Artigo 48 da República de Weimar, a base jurídica do regime Nazi. Tal genealogia
seria correcta, mas não creio que possa realmente explicar o funcionamento dos
dispositivos e das medidas de segurança que nos são familiares. Embora o estado de
excepção tenha sido originalmente concebido enquanto medida provisória, destinada a
lidar com um perigo imediato no sentido de restaurar uma situação normal, as razões de
segurança são hoje a tecnologia permanente de governo. Quando em 2003 publiquei um
livro onde procurei demonstrar, justamente, como é que o estado de excepção se estava a
tornar, nas democracias ocidentais, no sistema de governo normal, não podia imaginar
que o meu diagnóstico se revelaria tão preciso. O único precedente óbvio foi o regime
Nazi. Quando Hitler tomou o poder em Fevereiro de 1933 proclamou de imediato um
decreto suspendendo os artigos da constituição de Weimar relativos às liberdades
pessoais. O decreto nunca foi revogado e todo o Terceiro Reich pode ser considerado
como um estado de excepção que durou 12 anos.
O que acontece hoje é, no entanto, outra coisa. Não foi declarado qualquer estado de
emergência formal e, contudo, vagas noções não jurídicas – razões securitárias – são
evocadas para instaurar um constante estado de emergência arrepiante e ccional, sem
que qualquer ameaça seja identi cável. Um exemplo dessas noções não jurídicas que são
utilizadas enquanto factores instigadores de emergência é o conceito de crise. Para lá do
signi cado jurídico de julgamento em tribunal, convergem na história deste termo duas
tradições semânticas que, como vos será evidente, advêm do verbo grego crino: um termo
da medicina e da teologia. Na tradição médica, crisis signi ca o momento em que o
médico tem de julgar e de decidir se o paciente irá morrer ou sobreviver. O dia ou os dias
em que estas decisões são tomadas são chamados crisimoi, os dias decisivos. Na teologia,
a crisis é o último julgamento proclamado por Cristo no m dos tempos. Como podem
ver, o que é essencial em ambas as tradições é a ligação a um momento especí co no
tempo. Na utilização presente do termo, é abolida esta ligação. A crise e o julgamento são
separados do seu correspondente temporal e coincidem agora com o decurso cronológico
do tempo, de modo que, não apenas na economia e na política, mas em todos os aspectos
da vida social, a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma
ferramenta de governo. Consequentemente, a capacidade de decidir desaparece de vez e
o processo contínuo de tomada de decisões não decide absolutamente nada. Para o
formular em termos paradoxais, podemos dizer que, encarando um estado de excepção
contínuo, o governo tende a tomar a forma de um perpétuo golpe de estado. Este
paradoxo seria uma descrição precisa do que sucede tanto aqui na Grécia como em Itália,
onde governar signi ca fazer uma série contínua de pequenos golpes de estado. O
presente governo italiano não é legítimo.
É por isso que creio que, para compreender a peculiar governamentalidade sob a qual
vivemos, o paradigma do estado de excepção não é totalmente adequado. Irei, portanto,
seguir a sugestão de Michel Foucault e investigar a origem do conceito de segurança no
início da economia moderna, por François Quesnay e os Fisiocratas, cuja in luência na
governamentalidade moderna não pode ser sobrestimada. Começando com o tratado de
Vestefália, os grandes estados europeus absolutistas começam a introduzir no seu
discurso político a ideia de que o soberano deve cuidar da segurança dos seus sujeitos.
Mas Quesnay é o primeiro a estabelecer a segurança enquanto a noção central na teoria
do governo, e isto de um modo bastante peculiar.
Um dos principais problemas com que os governos tinham de lidar na altura era o da
fome. Antes de Quesnay, a metodologia habitual consistia em prevenir a fome através da
criação de celeiros públicos e da proibição da exportação de cereais. Ambas as medidas
tinham efeitos negativos na produção. A ideia de Quesnay foi inverter o processo: em vez
de tentar prevenir as fomes, decidiu deixá-las acontecer e dotar-se da capacidade de as
governar quando sucedessem, liberalizando tanto as trocas internas como as externas.
"Governar" retém aqui o seu signi cado etimológico cibernético: um bom kybernes, um
bom piloto, não evita as tempestades; mas, se uma ocorre, tem de ser capaz de governar
o seu barco, utilizando a força das ondas e dos ventos para a navegação. É este o
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signi cado do lema "laissez faire, laissez passer". Não é apenas a deixa do liberalismo
económico, é um paradigma de governo, que concebe a segurança (sureté, nas palavras de
Quesnay) não enquanto a prevenção de perigos, mas pelo contrário enquanto a
habilidade de os governar e conduzir a bom porto, uma vez que tenham lugar.
Não devemos negligenciar as implicações losó cas desta inversão. Signi ca uma
transformação epocal na própria ideia de governo, que inverte a tradicional relação
hierárquica entre causas e efeitos. Já que governar as causas é difícil e caro, é mais seguro e útil
tentar governar os efeitos. Sugeriria que este teorema de Quesnay é o axioma da
governamentalidade moderna. O ancien régime possuía como objectivo o domínio das
causas, a modernidade pretende controlar os efeitos. E este axioma aplica-se a todos os
domínios: da economia à ecologia, das políticas externas e militares às medidas internas
de polícia. Devemos perceber que os governos europeus desistiram de qualquer tentativa
de dominar as causas e desejam apenas governar os efeitos. O teorema de Quesnay torna
também perceptível um facto que de outro modo parece inexplicável: a convergência
paradoxal de um paradigma económico absolutamente liberal com um paradigma de
controlo policial e estatal sem precedentes e igualmente absoluto. Se o governo aponta
para os efeitos e não para as causas será obrigado a estender e a multiplicar o controlo. As
causas exigem ser conhecidas, enquanto os efeitos apenas podem ser veri cados e
controlados.
O passo mais extremo, porém, só foi dado nos nossos dias e está ainda em processo de
total implementação. Com o desenvolvimento de novas tecnologias digitais, com scanners
ópticos que podem facilmente gravar não apenas impressões digitais mas também a
retina ou a estrutura da íris ocular, os dispositivos biométricos tendem a ultrapassar as
esquadras e os gabinetes de imigração para se espalharem à vida quotidiana. Em muitos
países o acesso a cantinas ou mesmo a escolas é controlado por um dispositivo
biométrico onde o estudante coloca a sua mão. As indústrias europeias neste campo, que
estão a crescer rapidamente, recomendam que os cidadãos sejam habituados a este tipo
de controlo desde jovens. O fenómeno é especialmente perturbante, porque a Comissão
Europeia pelo Desenvolvimento da Segurança (como o ESPR, programa europeu de
pesquisa securitária) inclui entre os membros permanentes representantes de todas as
grandes indústrias no campo, produtoras de armamento que como a ales, a
Finmeccanica e a EADS & BAE systems se converteram ao negócio da segurança.
É fácil imaginar os perigos representados por um poder que possa ter à sua disposição,
de forma ilimitada, a informação biométrica e genética de todos os seus cidadãos. Com
um semelhante poder, a exterminação dos judeus, realizada com base em documentação
bem menos e ciente, poderia ter sido total e incrivelmente rápida. Mas não vou alongar-
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me neste aspecto importante do problema da segurança. As re lexões que gostaria de
partilhar convosco abordam, pelo contrário, as transformações da identidade política e
das relações políticas que estão envolvidas nas tecnologias securitárias. Esta
transformação é tão extrema que podemos legitimamente perguntar não só se a
sociedade onde vivemos é ainda uma sociedade democrática, mas também se uma tal
sociedade pode ser considerada política.
A hipótese que vos gostaria de propor é a de que este factor político fundamental entrou
num processo irrevogável que podemos apenas de nir como um processo de
despolitização crescente. O que era no início um modo de vida, uma condição activa
essencial e irredutível, tornou-se agora um estatuto jurídico exclusivamente passivo, no
qual a acção e a inacção, o privado e o público, são progressivamente obscurecidos e se
tornam indistinguíveis. Este processo de despolitização da cidadania é tão evidente que
não me vou demorar nele.
Se a minha identidade é então determinada por factos biológicos, que não dependem da
minha vontade e sobre os quais não tenho controlo, então a construção de algo como
uma identidade política e ética torna-se problemático. Que relação posso estabelecer
com as minhas impressões digitais ou com o meu código genético? A nova identidade é
uma identidade sem a pessoa, por assim dizer, na qual o espaço da política e da ética
perde o seu sentido e tem de ser pensado a partir do zero. Enquanto o cidadão grego era
de nido por uma oposição entre o público e o privado, entre a oikos, que era o lugar da
vida reprodutiva, e a polis, o local da acção política, o cidadão moderno parece antes
mover-se numa zona de indiferença entre o privado e o público, ou, para citar termos
Hobbesianos, entre o corpo físico e o político.
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complexo que implica uma multiplicidade de causas, entre as quais, num especial lugar,
o nascimento do biopoder. A primazia de uma identidade biológica sobre uma
identidade política está directamente relacionada com a politização da vida nua nos
estados modernos. Mas não devemos nunca esquecer que o nivelamento da identidade
social na identidade corporal começou com as tentativas de identi cação de criminosos
reincidentes. Não deveríamos surpreender-nos se hoje a relação normal entre o estado e
os seus cidadãos é composta pela suspeita, pelo arquivamento policial e pelo controlo. O
princípio secreto que comanda a nossa sociedade pode ser assim formulado: todo o
cidadão é um potencial terrorista. Mas que tipo de Estado é este que se rege por um principio
desses? Podemos ainda designá-lo de Estado democrático? Podemos ainda considerá-lo
político? Em que tipo de Estado vivemos hoje?
Como provavelmente sabem, Michel Foucault, no seu livro “Vigiar e Punir” e nos seus
cursos no Collége de France, esboçou uma classi cação tipológica dos Estados modernos.
Foucault mostra como o Estado do Ancien Régime, que ele designa de Estado territorial ou
soberano e cujo lema era fazer morrer e deixar viver, se desenvolveu progressivamente num
Estado populacional e num Estado disciplinar, cujo lema é agora o inverso ao fazer viver e
deixar morrer, na medida em que se ocupa da vida do cidadão no sentido de produzir
corpos saudáveis, ordenados e dóceis.
O Estado no qual vivemos agora já não é um Estado disciplinar. Gilles Deleuze sugeriu
chamar-lhe um “État de contrôle”, Estado de controlo, porque o que este deseja não é
ordenar e impor disciplina, mas antes gerir e controlar. A de nição de Deleuze é
correcta, porque a gestão e o controlo não coincidem necessariamente com ordem e
disciplina. Ninguém o disse tão claramente como o agente policial italiano que, após os
motins de Génova em Julho de 2001, declarou que o governo não queria que a polícia
mantivesse a ordem, mas que gerisse a desordem.
O nome deste elemento indecidível já não é hoje, como era no séc. XVII, a «raison
d’État», razão de Estado: mas antes “razões securitárias”. Um Estado securitário é um
Estado policial: mas, repito, na teoria jurídica a polícia é uma espécie de buraco negro.
Tudo o que podemos dizer é que quando a chamada “Ciência da Polícia” surge no Séc.
XVIII, a “polícia” é entregue à sua etimologia do grego “politeia” e oposta enquanto tal à
“política”. Mas é surpreendente ver que a polícia coincide agora com a sua verdadeira
função política, enquanto o termo política é reservado à política externa. Von Justi, no
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seu tratado sobre Policey Wissenscha t, chama então politique à relação de um estado com
outros estados, enquanto chama polizei à relação de um estado consigo próprio. Vale a
pena re lectir nesta de nição: “A polícia é a relação de um Estado consigo próprio”.
O paradigma Securitário implica que cada dissensão, cada tentativa mais ou menos
violenta de derrubar a sua ordem, cria uma oportunidade de o governar numa direcção
rentável. Isto é evidente na dialéctica que vincula o terrorismo e o Estado numa espiral
viciosa sem m. A partir da revolução francesa a tradição política da modernidade
concebeu mudanças radicais sobre a forma de um processo revolucionário que age
enquanto pouvoir constituant, o “poder constituinte” de uma nova ordem institucional.
Creio que temos de abandonar este paradigma e procurar pensar algo como
uma puissance destituante, uma “potência puramente destituinte”, que não possa ser
capturada na espiral de segurança.
É uma potência destituinte deste género que Benjamin tem em mente no seu ensaio “Sobre
a crítica do poder como violência” quando tenta de nir uma violência pura que consiga
“romper com a dialéctica falsa da violência que faz as leis, e da violência que as mantém”,
um exemplo do qual seria a greve geral proletária de Sorel. “Na ruptura deste ciclo”,
escreve no nal do ensaio, “sustentado pelas formas míticas da lei, na destituição da lei e
de todas as forças nas quais depende, e namente na abolição do poder do Estado, é
fundada uma nova época histórica”. Enquanto um poder constituinte destrói a lei apenas
para a recrear sob uma nova forma, a potência destituinte, na medida em que depõe de
uma vez por todas a lei, pode realmente abrir uma nova época histórica.
Pensar essa potência puramente destituinte não é uma tarefa fácil. Benjamin escreveu
que nada é tão anárquico quanto a ordem burguesa. No mesmo sentido, no seu último
lme, Pasolini faz um dos seus quatro mestres de Saló dizer aos seus escravos: “a
verdadeira anarquia é a anarquia do poder”. É precisamente porque o poder se constitui
através da inclusão e da captura da anarquia e da anomia que é tão difícil ter um acesso
imediato a estas dimensões e que é tão difícil pensar hoje em algo como uma anarquia
verdadeira ou uma anomia verdadeira. Creio que uma praxis que tivesse sucesso em
expor claramente a anarquia e a anomia capturadas nas tecnologias Securitárias do
governo poderia agir enquanto uma potência puramente destituinte. Mas esta não é
apenas uma tarefa teórica: signi ca antes de mais a redescoberta de uma forma-de-vida
e o acesso a uma nova gura dessa vida política cuja memória o Estado Securitário tenta
a todo o custo apagar.
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Giorgio Agamben
Filósofo. Nasceu em Roma em 1942. É fundamentalmente conhecido pela sua obra magna Homo
Sacer, publicada parcialmente em português, nomeadamente “Poder Soberano e Vida Nua” e “Estado
de Excepção”. É autor também de “Ideia da prosa” e “A comunidade que vem”.
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