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Além de uma série de comportamentos ligados aos bruxos (que variam desde
comer sem lavar as mãos até urinar e defecar em terra alheia, passando por uma série de
humores como a irritabilidade, a gula e o rancor, e hábitos como o de pedir coisas aos
outros com frequência) descritos nesse capítulo, o que há de central para a descrição
pretendida pelo livro é o fato de que as vítimas de bruxaria, ou seus parentes, buscam
seus algozes bruxos entre seus inimigos, ou seja, é entre aqueles da vizinhança (porque
a bruxaria atua na vizinhança, como foi mostrado em capítulo anterior) com quem se
tem relações tensas, queixas (inclusive de bruxaria), dívidas ou outros inconvenientes da
convivência, que se identificam os autores da bruxaria de que se é vítima; tanto nos
casos em que se consulta o oráculo (a minoria deles, segundo o autor nos deixa saber
nesse capítulo), quanto naqueles em que não se chega a consulta-lo (a farta maioria) e
em que a bruxaria fica no campo da acusação não chancelada por um oráculo e a
suspeita.
Importante salientar que aqui, como em quase todo o livro, o autor nos deixa
claro que a bruxaria entre os azande é uma função das relações sociais, e que esta
envolve uma gama de juízos morais. Percebe-se também que praticamente todos são
bruxos, ou podem vir a ser em alguma ocasião.
V - Os Adivinhos
O treinamento dos novos adivinhos é feito desde tenra idade, comumente como
por volta dos 16 anos, aquele que deseja tornar-se adivinho busca um idoso da
corporação e este se torna seu patrono; não é raro, no entanto, que crianças de até 4 ou 5
anos de idade sejam vagarosamente treinados por seus pais ou tios que queiram que
suas crianças sigam tal carreira, fazendo com que ingiram drogas e dancem como os
mais velhos. Quando o processo se dá como no primeiro caso, o treinamento é
significativamente mais rápido e “ficando ainda ao sabor dos pagamentos feitos” (p.
111). A magia aqui é, por tanto, um bem a ser comprado.
Segue-se a descrição de uma comensalidade ritual, onde se exorta às drogas que
serão ingeridas proteção e bons agouros; mais uma vez a necessidade de pagamento
àquele que as prepara, se mostra: a magia deve ser comprada; adverte-se mesmo que se
as drogas não testemunhassem seu pagamento, poderia chegar a perder sua eficácia
mágica.
Ainda sobre a necessidade de pagamento vemos, sobre o treinamento do noviço,
que “a magia deve ser comprada como qualquer outro bem, e a parte realmente
significativa na iniciação é a lenta transmissão de conhecimento sobre as plantas do
professor ao aluno, em troca de uma longa série de pagamentos” (p. 117).
Registro ainda que a habilidade do adivinho está intimamente ligada ao mangu
que ele carrega intrinsicamente e à qualidade das drogas que ele ingeriu.
Pode-se afirmar, com este capítulo, que o oráculo de veneno regula a vida social
zande, inclusive porque sua sentença tem força legal.
Embora, como foi afirmado no capítulo III, a menor parte dos casos de suspeita
de bruxaria chegue à consulta ao oráculo de veneno, uma sorte de temas pode ser
averiguada por ele, como o sucesso de um parto, se se recobrará a saúde ou se a morte é
iminente, se houve adultério, se não é auspicioso que alguém se torne adivinho,
resultado de caçadas, e até relevantes questões políticas como mudanças na corte ou
decisão de envolvimento em guerra.
Há uma hierarquia quanto à assertividade do oráculo idêntica à hierarquia do
estamento social zande, de modo que o oráculo principesco é mais correto e de caráter
definitivo em relação ao oráculo de uma dada família, por exemplo. Da mesma forma,
os temas que chegam ao oráculo do príncipe são igualmente mais relevantes do que os
que chegam a outros oráculos, passando por ele as questões políticas semelhantes às
citadas no parágrafo anterior e decisões judiciais irrecorríveis.
Destaca-se ainda, nesse capítulo, que tal oráculo é vedado às mulheres; que uma
série de restrições alimentares envolve os que farão uso dele; que as consultas são
efetuadas fora das casas, no limite das roças, em horário matutino específico; que o
oráculo é dispendioso, assim que os mais pobres raramente o consultam e quando
chegam a consulta-lo, em geral é através de pedidos a que outros homens, mais
abastados, o façam em seu lugar; são os homens casados, chefes de família, que se
envolvem com o oráculo.
XI – Magia e Drogas
A magia parece estar dividida entre uma boa magia, cujo cerne é o combate à
bruxaria, e seu polo maligno, de caráter antissocial, tratada por feitiçaria, magia
perniciosa considerada ilícita, de consequências consideradas em geral graves e
maliciosas e que se difere da bruxaria: “deve-se observar também que os Azande temem
muito mais a feitiçaria que a bruxaria, a qual, como já mencionei, desperta antes raiva
que medo. Isso se deve em parte ao fato de que os sintomas produzidos pela feitiçaria
são mais sérios”. (p. 202)
A magia pode mobilizar uma série enorme de práticas, conhecimentos e
utensílios – como uma farmacopeia e seus usos mágicos, apitos, chocalhos, pulseiras,
encantações verbais, botânica, incisões, fogo e cinzas, etc. É dito haver um evidente
princípio homeopático na magia, embora ele nem sempre prevaleça.
Embora o capítulo se estenda com exemplos e detalhes, o que creio ser mais
importante destacar é o já referido caráter duplo da magia: ela é fonte de cura, de
proteção, de predição, de afastamento do mal, e dessa forma ela é pública, operada sob
as vistas sociais, dotada de seguidores, etc., quanto é também profundamente
antissocial, praticada de forma abscondida, obscura, fonte de malefícios e criminosa,
sendo chamada de feitiçaria. Nota-se ainda que, excluída da intrigosa rede de bruxaria
dos plebeus, é à feitiçaria que a nobreza teme e é ela que parece ser posta em operação
quando se trata de ataques no interior da aristocracia. Faz-se notar que ninguém admite
ter conhecimento de feitiçaria.