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ESTADO DE MATO GROSSO

DEFENSORIA PÚBLICA
Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a
inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ALTERAÇÕES PRODUZIDAS NOS ARTIGOS


165, 276, 277 E 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO PELA LEI
11.705/081

Bruno Preti de Souza

1. Introdução; 2. Considerações sobre os artigos 277, §3º e 165 do Código de


Trânsito Brasileiro; 3. O artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro e o
princípio da lesividade e da ofensividade; 4. Da necessidade de se dar
interpretação conforme à Constituição ao artigo 306 do Código de Trânsito
Brasileiro; 5. Da inconstitucionalidade dos artigos 165, 276, 277, §3º, e 306 do
Código de Trânsito Brasileiro. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.

RESUMO
O presente artigo analisara as alterações produzidas pela Lei 11.705/08, a
denominada “Lei Seca”. De duvidosa constitucionalidade, a Lei deve ser
interpretada à luz da Constituição Federal e das reiteradas decisões proferidas
pelo Supremo Tribunal Federal. Será defendida a inconstitucionalidade das
alterações feitas nos artigos 165, 276, 277, §3º do Código de Trânsito
Brasileiro, bem como a necessidade de ser dada interpretação conforme a
Constituição do artigo 306 do referido Código. Com relação ao artigo 276 e 306
do Código de Trânsito Brasileiro, deverão ser interpretados, para sua correta
aplicação no caso concreto, através dos princípios da lesividade e da
ofensividade.

1
Artigo publicado na Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS nº 114
– Jun/2009.
ESTADO DE MATO GROSSO
DEFENSORIA PÚBLICA
Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a
inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

PALAVRAS-CHAVE
Código de Trânsito Brasileiro – Lei 11.705/08 (“Lei Seca”) – Princípios da
lesividade e da ofensividade
ABSTRACT
The present article analyzes the alterations produced for Law 11,705/08, the
called “Dry Law”. Of doubtful constitutionality, the Law must be interpreted to
the light of the Federal Constitution and the reiterated decisions pronounced for
the Supreme Federal Court. The unconstitutionality of the alterations made in
articles 165, 276, 277, §3º of the Code of Brazilian Transit will be defended, as
well as the necessity of being given to in agreement interpretation the
Constitution of article 306 of the related Code. With regard to article 276 and
306 of the Code of Brazilian Transit, they will have to be interpreted, for its
correct application in the case concrete, through the principles of the lesividade
and the ofensividade.
KEYWORDS
Code of Brazilian Transit – Law 11.705/08 (“Dry Law”) – Principles of the
lesividade and the ofensividade

1. INTRODUÇÃO

Entrou em vigor no dia 20.06.2008 a Lei Federal


11.705/2008, alterando dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, com a
finalidade de estabelecer alcoolemia zero e impor penalidades mais severas ao
condutor que dirigir sob a influência de álcool (artigo 1º).
Ao longo da história brasileira, sobretudo nos
períodos ditatoriais, reservou-se ao direito constitucional um papel menor,
marginal. Nele buscou-se não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o
disfarce. A Constituição Federal de 1988, com suas virtudes e imperfeições,
teve o mérito de criar um ambiente propício à superação dessas patologias e à
difusão de um sentimento constitucional, apto a inspirar uma atitude de
acatamento e afeição em relação à Lei Maior. Assistimos hoje a uma grande
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preocupação com a efetividade do texto constitucional, com o seu real


cumprimento, com a concretização da norma no mundo dos fatos e na vida das
pessoas.2
A Constituição jurídica de um Estado é condicionada
historicamente pela realidade de seu tempo. Esta é uma evidência que não se
pode ignorar. Mas ela não se reduz à mera expressão das circunstâncias
concretas de cada época. A Constituição tem uma existência própria,
autônoma, embora relativa, que advém de sua força normativa, pela qual
ordena e conforma o contexto social e político. Existe assim, entre a norma e a
realidade social uma tensão permanente, de onde derivam as possibilidades e
os limites do Direito Constitucional, como forma de atuação social.3
No presente trabalho iremos analisar, sob a égide
constitucional, as alterações produzidas nos artigos 165, 276, 277 e 306 do
Código de Trânsito Brasileiro pela denominada “Lei Seca” (Lei 11.705/08).
Isso porque, sendo a Constituição Federal a lei das
leis, norma fundamental que é, orientadora de todo o sistema jurídico brasileiro,
é de rigor a análise constitucional das alterações introduzidas pela citada Lei,
em homenagem ao Estado Democrático e Social de Direito, ao primado da
dignidade da pessoa humana e outros princípios e valores constitucionais que
serão abordados.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS ARTIGOS 277, §3º E 165 DO


CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO;

As alterações dos artigos 277, §3º e 165 do CTB


permitiram que as garantias constitucionais mais comezinhas conferidas ao
cidadão representadas pelo princípio da liberdade, da não-culpabilidade, da

2
Luiz Roberto Barroso. Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom para você também?). p.
47.
3
Konrad Hesse. La fuerza normativa de la Constitución. p. 75.
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razoabilidade, da proporcionalidade, fossem violadas. Tais dispositivos


passaram a ter a seguinte redação:

Art. 165 - Dirigir sob a influência de álcool


ou de qualquer outra substância psicoativa
que determine dependência: Infração -
gravíssima; Penalidade - multa (cinco
vezes) e suspensão do direito de dirigir por
12 (doze) meses; Medida Administrativa -
retenção do veículo até a apresentação de
condutor habilitado e recolhimento do
documento de habilitação.

Art. 277 - Todo condutor de veículo


automotor, envolvido em acidente de
trânsito ou que for alvo de fiscalização de
trânsito, sob suspeita de dirigir sob a
influência de álcool será submetido a testes
de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou
outro exame que, por meios técnicos ou
científicos, em aparelhos homologados pelo
CONTRAN, permitam certificar seu estado.
o
§ 3 Serão aplicadas as penalidades e
medidas administrativas estabelecidas no
art. 165 deste Código ao condutor que se
recusar a se submeter a qualquer dos
procedimentos previstos no caput deste
artigo

Não bastasse, o artigo 276 do CTB alterado pela Lei


11.705/2008, sujeita o condutor de veículo com qualquer concentração de
álcool por litro de sangue às penalidades previstas no artigo 165 do CTB.
Assim, a quantidade mais ínfima ou insignificante de
álcool por litro de sangue encontrada no condutor, sujeita-o às penalidades do
artigo 165 do CTB, num juízo perfunctório de tipicidade.
Igualmente, o condutor que se negar a fazer o “teste
do bafômetro” ou qualquer outro teste de alcoolemia, exames clínicos, perícia,
a fim de certificar seu estado, sofrerá as sanções previstas no artigo 165 do
CTB, conforme dispõe o §3º do artigo 277 do CTB.
É inegável que as alterações legislativas produzidas
colocam em risco a liberdade de locomoção do condutor, que poderá ser
conduzido a uma delegacia de polícia caso se recuse a fazer o “teste do
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bafômetro” ou qualquer outro exame previsto no caput do art. 277 do CTB.


Sem adentrar, neste momento, na análise do artigo
306 do CTB, os artigos 277, §3º e 165 ameaçam, indiretamente, o direito
constitucional da liberdade. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal
Federal, em Recurso Ordinário em sede de Habeas Corpus, cuja relatoria foi
do Eminente Ministro Carlos Velloso (RHC nº. 76.946-2/MS):

Constitucional. Processo Penal. Habeas


Corpus: cabimento. Inconstitucionalidade
incidenter tantum. I. - Não é somente a
coação ou a ameaça direta à liberdade de
locomoção que autoriza a impetração do
habeas corpus. Também a coação ou
ameaça indireta à liberdade individual
justifica a impetração da garantia
constitucional inscrita no art. 5º, LXVIII, da
C.F. II. - Possibilidade da discussão da
constitucionalidade de norma legal no
processo do Habeas Corpus. Precedentes
do STF. III. - Recurso provido.

Não poderíamos deixar de destacar as palavras


proferidas pelo Eminente Relator Carlos Velloso, quando de seu voto:

“(...) O que deve ficar certo é que, pesando


contra a liberdade individual ameaça direta
ou indireta, é cabível o habeas corpus. No
caso, fala-se em tese, a ameaça indireta
existe, se determinado dispositivo
processual penal impede que o acusado em
processo penal arrole um certo número de
testemunhas, pois pode ocorrer que as
testemunhas, no número pretendido, sejam
indispensáveis à comprovação das teses da
defesa. Fala-se em tese, evidentemente,
porque o mérito da argüição deverá ser
analisado pelo Tribunal. Acrescente-se que
é perfeitamente possível em sede de
Habeas Corpus, a argüição da
inconstitucionalidade de norma legal e a
declaração, incidenter tantum, da
inconstitucionalidade de qualquer norma. No
caso, questiona-se o direito ao devido
processo legal, vale dizer, ao contraditório e
ao direito de defesa. Menciono, inter plures,
os seguintes acórdãos em que esta Corte
discutiu a constitucionalidade de norma
legal, em sede de habeas corpus: HC
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71.713-PB, Min. Pertence, decisão “DJ”


04/11/1994; HC 72.930-MS, Min. Ilmar
Galvão, “DJ” 15/03/1996; HC 69.921-MS,
Min. C. de Mello, RTJ 147/235; HC 74.761-
DF, Min. M. Côrrea, RTJ 162/688; HC
72.582-PB, Min. Ilmar Galvão, “DJ”
20/05/1995 e HC 74.983-RS, Min. C.
Velloso, Plen., 30.6.97, RTJ 163/1083.

É patente o risco de agressão à liberdade do


condutor, seja na recusa ao fazer o teste do bafômetro, seja por estar com
quantidade de álcool no sangue inferior à quantidade prevista no artigo 306 do
Código Brasileiro de Trânsito.
Não se lhe pode impor a ameaça da prisão, a
ameaça da condução até uma delegacia de polícia para a aplicação de
sanções administrativas plenamente desarrazoadas, desproporcionais.
Vivemos em um Estado Democrático de Direito onde
se prezam as liberdades individuais, que não podem ser suprimidas por
alterações legislativas que servem de “bode expiatório” à ineficiência do Estado
em aplicar medidas menos drásticas para coibir a combinação álcool e direção.
Ora, basta ligarmos a televisão para vermos
propagandas incitando o consumo de bebidas alcoólicas e, sempre, tal
consumo vem conjugado ao futebol e a mulher.
O mesmo Estado que permite a veiculação de
propagandas de bebidas alcoólicas, utilizando-se o futebol e o corpo feminino,
é o mesmo Estado que quer punir severamente o cidadão que após beber,
conduzir seu veículo.
Então, porque não acabar primeiramente com as
propagandas enganosas pelas quais as fabricantes de bebidas alcoólicas
seduzem seus consumidores? Porque é mais viável punir o cidadão que é
falsamente induzido por tais propagandas, como se a felicidade e a diversão
dependesse da combinação bebida, futebol e mulher.
Outrossim, o entendimento do Supremo Tribunal
Federal é no sentido da impossibilidade da realização de prova contra si
mesmo, observando rigorosamente o princípio “nemo tenetur se detegere”, o
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que ocorre da inteligência do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e


do artigo 8º, §2º, g, do Pacto de São José da Costa Rica.
Nesse sentido, além de inúmeros outros
precedentes (HC 68.929, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28.08.1992; HC 73.035,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 13.11.1996; HC 83.960, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ 14.05.2005; HC 75.257, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 17.06.1997;
HC 72.815, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 06.10.1995; HC 75.616, Rel. Min. Ilmar
Galvão, DJ 14.11.2007), já decidiu o STF:

COMISSÃO PARLAMENTAR DE
INQUÉRITO - PRIVILÉGIO CONTRA A
AUTO-INCRIMINAÇÃO - DIREITO QUE
ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU
TESTEMUNHA – IMPOS-SIBILIDADE DE O
PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RES-
TRITIVAS A QUEM EXERCE,
REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA
- PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERI-
DO. - O privilégio contra a auto-incriminação
- que é plenamente invocável perante as
Comissões Parlamentares de Inquérito -
traduz direito público subjetivo assegurado a
qualquer pessoa, que, na condição de
testemunha, de indiciado ou de réu, deva
prestar depoimento perante órgãos do
Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do
Poder Judiciário. - O exercício do direito de
permanecer em silêncio não autoriza os
órgãos estatais a dispensarem qualquer
tratamento que implique restrição à esfera
jurídica daquele que regularmente invocou
essa prerrogativa fundamental.
Precedentes. O direito ao silêncio -
enquanto poder jurídico reconhecido a
qualquer pessoa relativamente a perguntas
cujas respostas possam incriminá-la (nemo
tenetur se detegere) - impede, quando
concretamente exercido, que aquele que o
invocou venha, por tal específica razão, a
ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos
agentes ou pelas autoridades do Estado. -
Ninguém pode ser tratado como culpado,
qualquer que seja a natureza do ilícito penal
cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem
que exista, a esse respeito, decisão judicial
condenatória transitada em julgado. O
princípio constitucional da não-
culpabilidade, em nosso sistema jurídico,
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consagra uma regra de tratamento que


impede o Poder Público de agir e de se
comportar, em relação ao suspeito, ao
indiciado, ao denunciado ou ao réu, como
se estes já houvessem sido condenados
definitivamente por sentença do Poder
Judiciário. Precedentes. (STF – HC
79812/SP – Rel. Min. Celso de Mello. DJ.
16/02/2001).

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL.


IMPOSSIBLIDADE DE SE EXTRAIR
QUALQUER CONCLUSÃO DESFA-
VORÁVEL AO SUSPEITO OU ACUSADO
DE PRATICAR CRIME QUE NÃO SE
SUBMETE A EXAME DE DOSAGEM
ALCOÓLICA. DIREITO DE NÃO
PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO:
NEMO TENETUR SE DETEGERE.
INDICAÇÃO DE OUTROS ELEMENTOS
JURIDICAMENTE VÁLIDOS, NO SENTIDO
DE QUE O PACIENTE ESTARIA
EMBRIAGADO: POSSIBILIDADE. LESÕES
CORPORAIS E HOMICÍDIO CULPOSO NO
TRÂNSITO. DESCRIÇÃO DE FATOS QUE,
EM TESE, CONFIGURAM CRIME.
INVIABILIDADE DO TRANCAMENTO DA
AÇÃO PENAL. 1. Não se pode presumir
que a embriagues de quem não se submete
a exame de dosagem alcoólica: a
Constituição da República impede que se
extraia qualquer conclusão desfavorável
àquele que, suspeito ou acusado de praticar
alguma infração penal, exerce o direito de
não produzir prova contra si mesmo:
Precedentes. 2. Descrevendo a denúncia
que o acusado estava "na condução de
veículo automotor, dirigindo em alta
velocidade" e "veio a colidir na traseira do
veículo" das vítimas, sendo que quatro
pessoas ficaram feridas e outra "faleceu em
decorrência do acidente automobilístico", e
havendo, ainda, a indicação da data, do
horário e do local dos fatos, há,
indubitavelmente, a descrição de fatos que
configuram, em tese, crimes. 3. Ordem
denegada. (STF – HC 93916/PA – Rel. Min.
Carmen Lúcia – DJ. 27.06.2008).

HABEAS CORPUS. CRIME DE


DESOBEDIÊNCIA. RECUSA A FORNECER
PADRÕES GRÁFICOS DO PRÓPRIO
PUNHO, PARA EXAMES PERICIAIS,
VISANDO A INSTRUIR PROCEDIMENTO
INVESTIGATÓRIO DO CRIME DE
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FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. NEMO


TENETUR SE DETEGERE. Diante do
princípio nemo tenetur se detegere, que
informa o nosso direito de punir, é fora de
dúvida que o dispositivo do inciso IV do art.
174 do Código de Processo Penal há de ser
interpretado no sentido de não poder ser o
indiciado compelido a fornecer padrões
gráficos do próprio punho, para os exames
periciais, cabendo apenas ser intimado para
fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação
gráfica configura ato de caráter
essencialmente probatório, não se podendo,
em face do privilégio de que desfruta o
indiciado contra a auto-incriminação, obrigar
o suposto autor do delito a fornecer prova
capaz de levar à caracterização de sua
culpa. Assim, pode a autoridade não só
fazer requisição a arquivos ou
estabelecimentos públicos, onde se
encontrem documentos da pessoa a qual é
atribuída a letra, ou proceder a exame no
próprio lugar onde se encontrar o
documento em questão, ou ainda, é certo,
proceder à colheita de material, para o que
intimará a pessoa, a quem se atribui ou
pode ser atribuído o escrito, a escrever o
que lhe for ditado, não lhe cabendo,
entretanto, ordenar que o faça, sob pena de
desobediência, como deixa transparecer, a
um apressado exame, o CPP, no inciso IV
do art. 174. Habeas corpus concedido. (STF
– HC 77135/SP. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ
06.11.1998).

Fica claramente evidenciada a falta de razoabilidade


e proporcionalidade nas sanções aplicadas ao condutor de veículo automotor
que seja submetido a exame de alcoolemia e seja encontrada pequena
quantidade de álcool em seu organismo ou ao condutor que se recuse a ser
submetido ao referido teste.
A lei, portanto, criou uma espécie de “perigo
abstrato” ao sancionar a quantidade mais ínfima de álcool, bem como criou
uma “presunção de culpabilidade” ao sancionar o condutor que se recusar a
ser submetido aos exames previstos no artigo 277 do CTB.
Assim, na hipótese do condutor de veículo
automotor se recusar a ser submetido aos testes referidos no caput do artigo
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277 do CTB, sofrerá as sanções previstas no artigo 165, conforme §3º do artigo
277 do CTB. Ou seja, a lei impõe, violando garantias mínimas
constitucionalmente asseguradas, a submissão do condutor a tais exames.
Nesse sentido, não poderíamos deixar de citar as
palavras do Eminente Ministro Celso de Mello, relator do HC 73338/RJ:

“A submissão de uma pessoa à jurisdição


penal do Estado coloca em evidência a
relação de polaridade conflitante que se
estabelece entre a pretensão punitiva do
Poder Público e o resguardo à
intangibilidade do jus libertatis titularizado
pelo réu. A persecução penal rege-se,
enquanto atividade estatal juridicamente
vinculada, por padrões normativos, que,
consagrados pela Constituição e pelas leis,
traduzem limitações significativas ao poder
do Estado. Por isso mesmo, o processo
penal só pode ser concebido - e assim deve
ser visto - como instrumento de salvaguarda
da liberdade do réu. O processo penal
condenatório não é um instrumento de
arbítrio do Estado. Ele representa, antes,
um poderoso meio de contenção e de
delimitação dos poderes de que dispõem os
órgãos incumbidos da persecução penal. Ao
delinear um círculo de proteção em torno da
pessoa do réu - que jamais se presume
culpado, até que sobrevenha irrecorrível
sentença condenatória -, o processo penal
revela-se instrumento que inibe a opressão
judicial e que, condicionado por parâmetros
ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o
ônus integral da prova, ao mesmo tempo
em que faculta ao acusado, que jamais
necessita demonstrar a sua inocência, o
direito de defender-se e de questionar,
criticamente, sob a égide do contraditório,
todos os elementos probatórios produzidos
pelo Ministério Público. A própria exigência
de processo judicial representa poderoso
fator de inibição do arbítrio estatal e de
restrição ao poder de coerção do Estado. A
cláusula nulla poena sine judicio exprime,
no plano do processo penal condenatório, a
fórmula de salvaguarda da liberdade
individual”.

O Estado não pode cercear de forma arbitrária a


liberdade individual. Foi-se o tempo em que prevalecia em nosso direito
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positivo a regra que, em dado momento historio do processo político brasileiro


(Estado Novo) criou, para o acusado, com a falta de pudor que caracteriza os
regimes autoritários, a obrigação de provar sua própria inocência.
O condutor de veículo automotor tem que aceitar a
submissão aos testes previstos no caput do artigo 277 do CTB, para
demonstrar ao agente público que encontra-se apto a conduzir seu veículo.
Caso recuse a ser submetido aos testes, sofrerá as sanções previstas no artigo
165 do CTB.
Dessa forma, o condutor que não apresente sinais
evidentes de embriaguez, que não se encontra dirigindo colocando em risco
concreto a integridade física de terceiros e recusa-se a ser submetido aos
referidos testes, receberá uma multa de quase mil reais, terá seu direito de
dirigir suspenso por um ano, perderá 7 (sete) pontos na carteira e terá seu
veículo retido.
É patente a agressão ao Estado Democrático e
Social de Direito a regra prevista no artigo 277, §3º do CTB.
O princípio do Estado de Direito impõe o postulado
da submissão do poder punitivo ao Direito, o que dará lugar aos limites
derivados do princípio da legalidade. A idéia de Estado Social serve para
legitimar a função de prevenção na medida em que seja necessária para a
proteção da sociedade. Isso já implica vários limites que giram em torno do
requisito da necessidade social da intervenção estatal. E com relação ao
Estado Democrático, sua concepção obriga a colocar o direito a serviço do
cidadão, o que pode ser visto como fonte de certos limites que hoje são
associados ao respeito a princípios como o da dignidade humana, da
igualdade, da moralidade e, principalmente, da legalidade substancial4.
Se o Estado de Direito impõe a submissão do poder
punitivo ao princípio da legalidade, e no Estado Social tal poder só se legitima
na medida em que serve à eficaz e necessária proteção da sociedade, um

4
Santiago Mir Puig. Direito penal: fundamentos e teoria do delito. p. 86.
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Estado que também pretenda ser democrático tem que preencher o Direito com
um conteúdo que respeite o cidadão como ser dotado de uma série de direitos
derivados de sua dignidade humana, da igualdade (real) entre as pessoas e de
sua faculdade de participação na vida social. São estes os fundamentos de
certos princípios políticos criminais geralmente aceitos na atualidade que
podem e devem ainda ser aprofundados se quisermos seguir em direção a um
Direito penal realmente democrático5.
Tais lições aplicam-se perfeitamente nas medidas
administrativas arbitrárias e inconstitucionais que o Estado vem aderindo, com
as alterações produzidas pela Lei 11.705/2008.
O pensamento jurídico atual não pode mais aceitar
as violações reais como se fossem o Direito, ou dele decorressem ou por ele
pudessem ser legitimadas. Se algum sistema jurídico, se alguma norma
permitir o abuso, ela e ele hão de ser tidos como ilegítimos, inválidos e
inconstitucionais.
Conforme preceitua a Constituição Federal em seu
artigo 1º, inciso III:

Art. 1º - A República Federativa do Brasil,


formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;

Dessa forma, é inconstitucional e viola a dignidade


da pessoa humana qualquer decisão contrária ao princípio “nemo tenetur se
detegere”, o que ocorre da inteligência do artigo 5º, inciso LXIII, da
Constituição Federal e do artigo 8º, §2º, “g”, do Pacto de São José da Costa
Rica.
Nesse sentido, vale destacar trechos da decisão
proferida pelo Ministro Paulo Medida, do Colendo Superior Tribunal de Justiça,

5
Ibidem, p. 98.
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quando do julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº. 18.017-SP


(2004/0037858-1):

“(...)Na data de 05.10.2000, a autoridade


coatora, constatando sinais de embriaguez
no Recorrente, no serviço, induziu-o à
realização de exame de sangue, para
apuração do teor etílico, acompanhado de
policiais militares do Fórum de Presidente
Prudente. Tanto a jurisprudência, quanto a
doutrina, têm consagrado o princípio "nemo
tenetur se detegere", o princípio de que
ninguém é obrigado fazer prova contra si
mesmo. Esse princípio decorre de outro
princípio jurídico, considerado como um dos
fundamentos do Estado Democrático de
Direito no Brasil, qual seja, a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, CR/88). A regra
segundo a qual "ninguém pode ser
compelido a depor contra si mesmo, pois
ninguém é obrigado a auto-incriminar-se"
era reconhecida, desde os tempos em que
os homens eram considerados súditos,
categoria muito inferior a de cidadão .
Assim, utilizando-se da hemenêutica
constitucional adequada ao contexto do
paradigma do Estado Democrático de
Direito, ou seja, aplicando-se os princípios
da máxima efetividade e da força normativa
da constituição, para justificar uma
interpretação extensiva dos direitos
fundamentais, o texto do citado dispositivo
constitucional desdobra-se em conceitos
muitos mais amplos, chegando a determinar
que ninguém pode ser compelido a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa, seja em
âmbito processual, administrativo ou
qualquer outro, que tenha a possibilidade de
trazer-lhe prejuízo”.

Dessa forma:

"A interpretação da regra constitucional


deve ser no sentido de que a garantia
abrange toda e qualquer pessoa, pois,
diante da presunção de inocência, que
também constitui garantia fundamental do
cidadão (art. 5º, inc. LVII, CF e, ainda,
Convenção Americana sobre direitos
humanos, art. 8º, § 2º) a prova da
culpabilidade incumbe exclusivamente à
acusação . Em decorrência disso, são
incompatíveis com os referidos textos
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quaisquer disposições legais que possam,


direta ou indiretamente, forçar o suspeito,
indiciado, acusado ou mesmo qualquer
pessoa (inclusive testemunha a uma auto-
6
incriminação".

Ou seja,

"O princípio nemo tenetur se detegere


abrange todas as ações, verbais ou físicas,
capazes de contribuir para a incriminação
de alguém. A recusa em submeter-se a
intervenções corporais - colheita de sangue
para exame de DNA - e a participar da
reconstituição do crime; a negativa em
sujeitar-se ao exame de dosagem etílica em
delitos de trânsito; a oposição à entrega de
documentos que possam comprometer seu
possuidor. Todos esses comportamentos,
por trazerem potencial lesão ao direito de
defesa do acusado, estão encobertos pela
7
máxima" .

Portanto, torna-se evidente que o princípio


constitucional da não-auto-incriminação:

"Constitui uma barreira intransponível ao


direito à prova da acusação; sua
denegação, sob qualquer disfarce,
representará um indesejável retorno às
formas mais abomináveis de repressão,
comprometendo o caráter ético-político do
processo e a própria correção do exercício
8
da função jurisdicional".

Vale salientar que todas as sanções administrativas


aplicadas ao condutor que nega a ser submetido aos exames previstos no
artigo 277 e sofre as sanções do artigo 165, por se tratar de ato administrativo,
poder-se-ia alegar que ao Poder Judiciário não é lícito adentrar na análise do
mérito do ato administrativo.
Porém, tal interpretação encontra-se há muito tempo
ultrapassada pela jurisprudência pátria, por ser, justamente nos atos

6
Antônio Magalhães Gomes Filho. Direito à Prova no Processo Penal. p. 113.
7
Carlos Henrique Borlido Haddad. O interrogatório no Processo Penal. p. 136.
8
Antônio Magalhães Gomes Filho. Direito à Prova no Processo Penal. p. 114.
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DEFENSORIA PÚBLICA
Missão: Promover assistência jurídica aos necessitados com excelência e efetivar a
inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

discricionários que a Administração Pública tem mais liberdade para agir com
abuso de poder e desvio de finalidade, atentando contra os direitos dos
administrados.
Dessa forma, o §3º do artigo 277 do CTB, incluído
pelo artigo 5º, inciso IV da Lei 11.705/2008, chega às raias do absurdo ao
estabelecer que as penalidades previstas no artigo 165 serão aplicadas
àqueles que se negarem a submeter ao “teste do bafômetro”, ou qualquer outro
exame previsto no caput do artigo 277.
Tal exigência, além do excessivo rigor da lei e das
potenciais arbitrariedades em sua aplicação, é uma anomalia jurídica, uma
norma flagrantemente inconstitucional. É princípio basilar do direito, num
Estado Democrático e Social de Direito, que ninguém pode ser obrigado a fazer
prova contra si mesmo.
Atenta ainda contra a intimidade e à imagem do
cidadão, que não pode ser submetido a práticas vexatórias com as quais não
concorda e que podem ser consideradas invasivas, ultrajantes, humilhantes.
O inciso LXIII do artigo 5º da Constituição Federal
permite ao cidadão recusar-se a fazer prova contra si mesmo.
O artigo da lei e a ordem que está sendo dada pela
polícia, obrigando o cidadão a assoprar o “bafômetro”, são medidas
inconstitucionais. E, caso não cumpra, será multado e levado a uma delegacia
de polícia, como diariamente tem noticiado a mídia, indiciado em inquérito, terá
o carro apreendido e será proibido de dirigir.
Por isso não se pode negar que a ameaça à
liberdade está em estado potencial, haja vista que o condutor pode, a qualquer
momento, ser parado em uma blitz policial e, recusando-se a fazer o teste
referido, ser conduzido a uma delegacia de polícia para a elaboração do
respectivo boletim de ocorrência e autuado nos termos do artigo 165 do CTB.
Provavelmente ainda, caso tente recusar-se a ser
conduzido para uma delegacia, responderá pelo crime de desobediência e/ou
resistência.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

Não é demais lembrar também que a possibilidade


de alguém ser castigado por erro é enorme. Os “bafômetros” são aparelhos
sabidamente sujeitos à falhas. Pessoas maiores em estatura e com maior
índice de gordura corpórea terão menos possibilidade de serem punidas em
relação a pessoas de baixa estatura e com índice de gordura corpórea menor,
devido ao fato de o álcool se espalhar pelo sangue.
Portanto, o §3º do artigo 277 do CTB é
flagrantemente inconstitucional, pois obriga o cidadão a produzir prova contra si
mesmo e, caso recuse, será punido administrativamente e/ou criminalmente,
conforme o caso.
O Estado de Direito é governado por uma
fundamental finalidade: fazer com que o exercício do poder político não elimine
a liberdade individual. A sociedade que o Estado de Direito quer construir é
aquela onde os indivíduos disponham o máximo possível de liberdade e onde,
não obstante, se possam realizar os interesse públicos.
Ao Estado de Direito não basta a submissão das
autoridades públicas à lei, senão a superioridade da lei seria um fim em si
mesmo. Fundamental que o sistema sirva à preservação e obediência aos
princípios constitucionais, em especial da liberdade e da dignidade da pessoa
humana.
Por isso a lei não pode tudo. A Constituição Federal
lhe confere limites: os direitos e garantias fundamentais que protege hão de ser
preservados, ainda que o legislador tente suprimi-lo, em nome de um suposto
interesse público.
Decerto que a garantia de direitos em favor dos
indivíduos não impede o Estado de regulá-los por via legislativa. Porém, os
condicionamentos que da lei resultem para os direitos somente serão legítimos
quando vinculados à realização do interesse público real, importante,
imprescindível e claramente identificado e jamais baseado em suposições e
abstrações.
Daí a enunciação do princípio da mínima
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

intervenção estatal na vida privada. Por força dele, todo constrangimento


imposto ao indivíduo pelo Estado deve justificar-se pela necessidade de
realização do interesse público. O legislador não pode cultivar o prazer do
poder pelo poder, isto é, constranger os indivíduos sem que tal
constrangimento seja teologicamente orientado.
Tal princípio exige, portanto: a) que todo
condicionamento esteja ligado a uma finalidade pública, sendo ilegítimos os
constrangimentos que a ela não se vincule; b) a finalidade ensejadora da
limitação real, concreta; c) que a interferência estatal guarde relação de
equilíbrio com a garantia e estrita observância aos direitos e garantias
fundamentais; d) não seja atingido o conteúdo essencial de algum direito
fundamental.
É patente então a inconstitucionalidade do §3º do
artigo 277 do CTB pela grave afronta aos princípios da proporcionalidade e da
presunção de inocência, não se podendo aplicar as sanções previstas no artigo
165 do CTB pela simples recusa à submissão ao “teste do bafômetro” ou
qualquer outro teste viole o princípio nemo tenetur se detegere.
Não é demais lembrar o conceito de ato
administrativo dado por Hely Lopes Meirelles, segundo o qual, “ato
administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração
Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir,
resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor
obrigações aos administrados ou a si própria”. 9
A finalidade do ato administrativo é também requisito
sempre vinculado ao interesse público que se quer resguardar. Assim, o
objetivo mediato de toda atuação administrativa é a tutela do interesse público.
O desrespeito a esse elemento conduz ao vício do
ato administrativo, conhecido como abuso de poder, na modalidade desvio de
finalidade, pois a alteração legislativa realizada viola direitos e garantias

9
Direito Administrativo Brasileiro. p. 141.
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fundamentais sob o pretexto da suposta garantia de segurança nas vias


públicas.
Veja-se, para a aplicação de qualquer sanção, seja
administrativa ou penalmente, deve-se avaliar a possibilidade de risco concreto
de dano à incolumidade física ou ao patrimônio de terceiros.
Não se pode presumir como faz a lei em comento.
Pune-se pela suposta e abstrata possibilidade de ser causado algum acidente
pelo condutor de veículo automotor que tenha ingerido qualquer quantidade de
álcool.
O motivo ou a causa é a situação de direito e de fato
que determina ou autoriza a realização do ato administrativo. E o motivo ou a
causa no presente caso é a exposição de perigo concreto à incolumidade física
e/ou patrimônio de terceiros pelo condutor de veículo automotor que tenha
consumido bebida alcoólica.
O motivo pode vir expresso na lei como condição
sempre determinante da prática do ato administrativo ou pode a lei deixar ao
administrador a avaliação quanto à existência e a valoração quanto à
oportunidade e conveniência da prática do ato.
A prudência e o bom senso deveria recomendar a
análise pelo Poder Público de cada caso para a aplicação das disposições
previstas no artigo 165 e 277, §3º do CTB. Somente aquele condutor que
estiver visivelmente embriagado, transitando com seu veículo em condições de
risco concreto a terceiros, poderá ser autuado mesmo recusando-se a fazer o
“teste do bafômetro”.
Não basta a simples e mera alegação, insuficiente
para a prática do ato administrativo em comento, de estar o condutor de veículo
automotor exalando álcool ou com voz pastosa.
Necessita, pois, de prova concreta da exposição de
risco concreto de dano a terceiros para que o ato administrativo seja revestido
de proporcionalidade e razoabilidade e revestido do interesse público que visa
proteger.
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Uma sociedade pluralista supõe a ocorrência de


distintos valores. O que para uns é justo, para outros não o é. Cada um tem
seu ponto de vista sobre a Justiça, porque cada um possui seus próprios
valores éticos.
O único modo de possibilitar a coexistência
democrática de todos os grupos sociais é renunciar à imposição coercitiva de
exigências meramente éticas pelo Poder Público, aplicando-se medidas
desproporcionais e desarrazoadas, em detrimento de garantias
constitucionalmente asseguradas.
A pena constitui, em princípio, o meio mais
contundente com que conta o Estado para punir o indivíduo em virtude da
transgressão de algum preceito, seja ele de ordem criminal, seja de ordem
administrativa. Não se pode negar que a pena é um mal necessário, um mal
que se impõe como conseqüência de sua inobservância.
Pois bem.
Uma coisa é analisar o que seja a pena, outra coisa
é analisar o caráter do castigo imposto. Caminhando pelas teorias da pena no
campo penal, temos que para a teoria retribucionista, a pena serve para a
realização da Justiça e se legitima como exigência de pagar um mal através de
outro mal.
Com relação à teoria da prevenção, a pena se impõe
como forma de se evitar futuras condutas capazes de ensejar a aplicação
daquela sanção.
Dito isto, devemos levar em consideração que no
Estado Democrático e Social de Direito somente devem ser punidas aquelas
condutas reputadas absolutamente necessárias para a proteção da sociedade.
Em um sistema de sanções fundamentalmente
desproporcional com relação às sanções inúmeras condutas, a lei se converte
num mecanismo de terror. Dessa forma, a penalidade aplicada somente poderá
ser considerada como um mecanismo adequado para a garantia a segurança
coletiva quando: A) não seja ineficaz; B) não existam outro meios mais eficazes
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que seriam preferíveis; C) não seja desproporcional.


Quando o Estado cria normas desproporcionais
como a discutida no presente trabalho, somente demonstra que perdeu o
controle da ordem pública e, através de tal medida, tenta restabelecê-la.
Certamente existem meios mais eficazes com
penalidades menos severas e respeito aos postulados constitucionalmente
garantidos para coibir determinadas condutas e não se pode sustentar a
legalidade de atos administrativos que estuprem garantias constitucionais e
não se pode sustentar a constitucionalidade de uma lei que permita a prática
de tal abuso.

3. O ARTIGO 276 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO E O


PRINCÍPIO DA LESIVIDADE E DA OFENSIVIDADE

Na hipótese do condutor de veículo aceitar,


voluntariamente, passar por alguns dos exames previstos no artigo 277 do CTB
e ficar constatado, por exemplo, concentração de álcool por litro de sangue
inferior a 6 (seis) decigramas, também será aplicada as sanções previstas no
artigo 165 do CTB.
Consoante dispõe o artigo 276 do CTB, com
redação dada pela Lei 11.705/2008: “Qualquer concentração de álcool por litro
de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste
Código”.
Ora, como já afirmado acima, não se pode punir
alguém, seja administrativamente, seja criminalmente, por condutas que não
ofereçam riscos à sociedade. O que se nota pelo teor do artigo 276 do CTB é a
punição meramente disciplinar, desprovida do mínimo de razoabilidade e
proporcionalidade.
Ou seja, a lei parte da presunção que qualquer
quantidade de álcool, por mais ínfima que seja, é capaz de colocar em risco a
própria sociedade.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

E isso não é verdade.


Poderíamos dizer, sem sombra de dúvidas, que o
teor do artigo 276 do CTB é análogo aos crimes de perigo abstrato.
Dessa forma, devemos interpretar a hipótese
prevista no artigo 276 do CTB à luz dos PRINCÍPIOS DA LESIVIDADE E DA
OFENSIVIDADE.
Enquanto a danosidade real pode ser percebida na
hipótese do condutor de veículo dirigindo na contramão, em ziguezague, com
excesso de velocidade etc., a periculosidade da conduta prevista no artigo 276
do CTB é imaterial em sua essência, por se tratar de uma representação
abstratamente valorada de uma conduta humana criadora de risco.
Somente quando as duas órbitas da disponibilidade
(uma, material, a da condução de veículo automotor com qualquer
concentração de álcool, e a outra jurídica, a do comportamento humano que
rompe com o princípio da confiança criando um risco proibido relevante) se
encontram é que surge a ofensividade típica (aquela não querida pela norma
do artigo 276 do CTB, reprovável, punível).
Em outras palavras, o fato torna-se
administrativamente relevante quando o bem jurídico coletivo (no presente
caso) entra no raio de ação da conduta criadora do risco proibido e relevante.
A simples ingestão de álcool, em quantidade
INCAPAZ de gerar alterações físicas e psicológicas capazes de alterar o
estado anímico do condutor de veículo, por si só, não pode acarretar as
sanções previstas no artigo 165 do CTB.
A lei não pode presumir que qualquer quantidade de
álcool no sangue, inferior a 6 (seis) decigramas, seja suficiente para aplicar as
sanções referidas. Imprescindível prova do risco concreto de dano a ser
causado pelo condutor de veículo que esteja com quantidade abaixo de 6 (seis)
decigramas de álcool por litro de sangue.
Portanto, nas condutas tidas como de “perigo
abstrato” (art. 276 do CTB) é imprescindível a existência de lesividade na
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conduta do motorista, ou seja, de ofensa ao bem jurídico tutelado ou de real


exposição deste a perigo de lesão.
A exigência da existência de lesividade ao bem
jurídico tutelado, consubstanciada na efetiva lesão ou no perigo concreto ou
idôneo de dano ao interesse jurídico, é própria de um Direito Administrativo
decorrente do Estado Democrático e Social de Direito, visando restringir ao
máximo o poder de polícia da administração pública, a fim de, realmente,
exercer sua verdadeira função, de apenas punir ou sancionar as condutas
capazes de prejudicar a vida coletiva.
É inaceitável interpretar o princípio da legalidade
formalmente, sem dar a ele o aspecto material, substancial, que lhe é inerente.
O referido princípio não pode ser instrumento puramente formal para propiciar
ao legislador a punição desmesurada, desproporcional, contrária à própria
função de proteção da coletividade e em detrimento de princípios e garantias
constitucionais.
A validade formal da norma, sua simples vigência,
não gera a validade substancial da mesma, pois um ordenamento
constitucional, como o brasileiro, que recebeu os direitos fundamentais da
liberdade, só se coaduna com a segunda, devendo o agente jurídico buscar a
racionalidade conteudística, sem se contentar, meramente, com sua validade
formal.
Destarte, a lei pode presumir fatos ou a
culpabilidade, pelo que, conseqüentemente, não tem o poder de presumir um
efeito inerente à mera conduta infratora do preceito legal.
Interessante notarmos que, não existindo a
necessidade de demonstração pelo agente público da concretude ou da
idoneidade do perigo causado pela conduta, em relação ao bem jurídico, há
flagrante contradição com o princípio do estado de inocência, pois este exige
do acusador a comprovação legal da culpabilidade. Segundo assevera Luiz
Flávio Gomes,
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"Comprovar legalmente a culpabilidade


significa demonstrar dentro do processo a
existência de um fato lesivo ou perigoso
para algum bem jurídico e, ao mesmo
10
tempo, que ele é atribuível ao seu agente."

Como a presunção de não-culpabilidade tem sede


constitucional, hierarquicamente é superior à presunção de perigo contida no
artigo 276 do CTB, motivo pelo que prevalece sobre esta, numa visão
kelseniana, na esfera do tradicional positivismo jurídico, cuja orientação teórica
deve ser sempre observada.
Portanto, a lei não pode ser utilizada como poderoso
e temível instrumento de coerção, de forma desproporcional e desarrazoada.
Assim como o direito penal, a idéia de se garantir o cumprimento das normas
através da banal criminalização de condutas que não traduzam perigo concreto
a um bem jurídico deve ser combatida.
Tal idéia está arraigada na produção legislativa
deste país, contudo não pode comandar a construção de um sistema jurídico
que se quer democrático, no qual o princípio da lesividade não pode ser jamais
desconsiderado ou traduzido em mirabolantes atividades hermenêuticas como
mera presunção.
Nesse sentido, podemos fazer uma analogia ao já
decidido pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da posse desmuniciada de
arma de fogo, no HC nº. 81.057-8/SP, cuja relatora foi a Eminente Ministra
Ellen Gracie, assim ementado:

Arma de fogo: porte consigo de arma de


fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o
agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta
disponibilidade de munição: inteligência do
art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato: 1.
Para a teoria moderna – que dá realce
primacial aos princípios da necessidade da
incriminação e da lesividade do fato
criminoso – o cuidar-se de crime de mera
conduta – no sentido de não se exigir à sua

10
A questão da inconstitucionalidade do perigo abstrato ou presumido, p. 81.
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configuração um resultado material exterior


à ação – não implica admitir sua existência
independentemente de lesão efetiva ou
potencial ao bem jurídico tutelado pela
incriminação da hipótese de fato. 2. É
raciocínio que se funda em axiomas da
moderna teoria geral do Direito Penal;
acatar a tese mais radical que erige a
exigência da ofensividade a limitação de
raiz constitucional ao legislador, de forma a
proscrever a legitimidade da criação por lei
de crimes de perigo abstrato ou presumido:
basta, por ora, aceitá-los como princípios
gerais contemporâneos da interpretação da
lei penal, que hão de prevalecer sempre que
a regra incriminadora os comporte. 3. Na
figura criminal cogitada, os princípios
bastam, de logo, para elidir a incriminação
do porte de arma de fogo inidônea para a
produção de disparos: aqui, falta à
incriminação da conduta o objeto material
do tipo. 4. Não importa que a arma
verdadeira, mas incapaz de disparar ou a
arma de brinquedo possa servir de
instrumento de intimidação para a prática de
outros crimes, particularmente, os
comissíveis mediante ameaça – pois é certo
que, como tal, também se podem utilizar
outros objetos – da faca à pedra e ao caco
de vidro - , cujo porte não constitui crime
autônomo e cuja utilização não se erigiu em
causa especial de aumento de pena. 5. No
porte de arma de fogo desmuniciada, é
preciso distinguir duas situações, à luz do
princípio da disponibilidade: (1) Se o agente
traz consigo a arma desmuniciada, mas tem
a munição adequada à mão, de modo a
viabilizar sem demora significativa o
municiamento e, em conseqüência, o
eventual disparo, tem-se arma disponível e
o fato realiza o tipo; (2) Ao contrário, se a
munição não existe ou está em lugar
inacessível de imediato, não há a
imprescindível disponibilidade da arma de
fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo
a produzir disparo – e, por isso, não se
realiza a figura típica.

Vale citar um trecho do voto proferido pelo Eminente


Ministro Cesar Peluzo no HC citado acima:

“(...) A paz social é atingida toda vez que se


comete um ilícito, e não só quando seja este
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de natureza criminal. E, por buscar o


restabelecimento da ordem jurídica violada,
conta o Direito com múltiplos instrumentos,
dentre os quais a sanção penal, mas
também, entre outros, a reparabilidade do
dano extrapenal, medidas constritivas
patrimoniais, sanções administrativas, etc.
O que justificaria a opção do legislador,
dentre todos os instrumentos de resposta
normativa, pela ameaça da sanção penal,
precisamente aquela que de regra atinge
um dos mais importantes direitos individuais
fundamentais, que é a liberdade (art. 5,
caput, da Constituição da República),
enquanto bem jurídico-penal alcançado pela
sanção?A resposta é uma só: por exigência
de proporcionalidade – afinal, trata-se da
mais grave das sanções do sistema jurídico
-, somente os atentados mais conspícuos
contra os bens, valores e interesses
igualmente mais importantes ao juízo do
mesmo sistema, ou o que hoje chamamos
de bens jurídico-penais. Foi por essa via, é
bom lembrar, que se estruturou todo o
arcabouço da moderna teoria do bem-
jurídico penal, que, desde as origens, com
FEUERBACH, sempre teve por finalidade
prevenir o abuso incriminador mediante
estabelecimento de critérios, seguros e
imanentes ao sistema, aptos a instaurar e
avaliar relação de proporcionalidade entre a
gravidade da sanção penal e o objeto
tutelado pela norma penal incriminadora.
(...) Mas só a identificação de um bem
jurídico fundamental como núcleo da tutela
penal ainda não satisfaria à
proporcionalidade que deve governar a
relação entre a restrição da liberdade
(sanção penal) e o fato criminoso. Isto é,
não basta que o tipo penal esteja disposto à
tutela de um bem jurídico fundamental; é
preciso mais, é necessário que a conduta
seja idônea a lesar ou pôr em perigo o
mesmo bem, o que se traduz, para
empregar termos contemporâneos, na
danosidade da conduta (...)”.

4. DA NECESSIDADE DE SE DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME À


CONSTITUIÇÃO AO ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Dispõe o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro,


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na redação dada pela Lei 11.705/08:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via


pública, estando com concentração de
álcool por litro de sangue igual ou superior a
6 (seis) decigramas, ou sob a influência de
qualquer outra substância psicoativa que
determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três
anos, multa e suspensão ou proibição de se
obter a permissão ou a habilitação para
dirigir veículo automotor

Assim como já referido acima quanto à existência de


um risco concreto de dano para se punir o condutor de veículo que tenha
ingerido qualquer quantidade de bebida alcoólica, com o artigo 306 do CTB não
é diferente.
Agora, tipificando a conduta de conduzir veículo com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis)
decigramas, retirou-se do referido tipo a existência do dano potencial à
incolumidade de terceiros que havia na redação anterior à Lei 11.705/98:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via


pública, sob a influência de álcool ou
substância de efeitos análogos, expondo a
dano potencial a incolumidade de outrem.

Fica evidente a intenção da lei em punir condutas


abstratas, bastando para o juízo de tipicidade o condutor do veículo estar com
quantidade de álcool no sangue igual ou superior à prevista na tipo para ser
processado por referido crime.
Mas somente isso basta para se punir alguém por
um crime?
Para decidir se um determinado fato constitui ou não
crime, a primeira coisa que devemos fazer é verificar se prima facie constitui
uma lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico penal previsto em
algum tipo.
O caráter fragmentário do direito penal constitui
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requisito relacionado com o princípio da subsidiariedade, sendo que ambos


integram o denominado princípio da intervenção mínima.
Nesse sentido, poderíamos afirmar que para
proteger os interesses sociais, o Estado deve esgotar outros meios menos
lesivos antes de se recorrer ao Direito Penal, pois este deve ser a ultima ratio.
Tendo em vista uma adequada política social, deve-
se antes preferir a utilização de meios desprovidos de caráter sancionador.
Somente quando nenhum dos meios (civil e administrativo) for suficiente,
estará legitimado o recurso à pena.
Um princípio derivado da limitação do direito penal
ao estritamente necessário é o postulado do caráter fragmentário. Significa
dizer que o direito penal não deve sancionar todas as condutas lesivas aos
bens jurídicos que protege, mas somente as modalidades de ataque mais
perigosas aos mesmos.
O direito penal de um Estado Democrático e Social
justifica-se como um sistema de proteção da sociedade. Dizer que o direito
penal deva proteger bens jurídicos não significa dizer que todo ataque a bens
jurídicos penalmente tutelados deva determinar a intervenção do direito penal.
Justifica-se a elaboração dos tipos penais por sua
objetividade jurídica. Segundo Chaves Camargo11, quando em cotejo com os
direitos fundamentais, o critério de conceituação do bem jurídico se faz
relevante, pois daí que se examina o dano social causado pela conduta e o
merecimento da pena. Desta forma, na Constituição são formalmente descritos
os bens jurídicos e, no contato com a realidade, surge o limite de sua proteção.
E completa:

O conceito de bem jurídico é dinâmico e


depende da percepção social para se
concretizar e ser objeto de proteção, não
pela vontade do legislador, mas pelo
reconhecimento social, através de um

11
Culpabilidade e Reprovação Penal. p. 52.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

12
fenômeno de comunicação.

Não se pode conceber a existência de uma conduta


típica que não atinja ou submeta a perigo um bem jurídico, uma vez que os
tipos configuram particulares manifestações da tutela jurídica desses bens.
Embora seja certo que o delito represente algo mais do que a lesão a um bem
jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade.
A simples ingestão de bebidas alcoólicas, por si só,
não possui o condão de atingir o bem jurídico que o artigo 306 do CTB quer
tutelar. É preciso mais. É preciso que o condutor, embriagado, esteja
conduzindo seu veículo em situação de patente risco, em situação de um risco
concreto de dano ao bem jurídico tutelado.
Não se pode violar bens jurídicos com condutas
abstratas, com condutas incapazes de gerar a danosidade social que o direito
penal moderno visa proteger, sob pena de voltarmos a um Estado Totalitário.
Uma concepção formal do tipo legal como a
descrição de um comportamento ou ainda como a descrição de um âmbito
situacional não é suficiente para dar conteúdo ao princípio garantista. Daí que
os tipos não devem estar configurados para proteger sentimentos (em especial
o de segurança), já que se trata de relações sociais e não de posições
subjetivas dos sujeitos. Tal projeto levaria, mais ainda, a um círculo vicioso, ou
seja, um comportamento seria punível porque merece proteção em nosso
sentimento de que tal comportamento deva ser proibido13.
Assim, o legislador parte da suposição de que o
comportamento descrito apresenta, por si só, um perigo ao bem jurídico, como
conduzir veículo sob a influência de bebidas alcoólicas implica a situação de
perigo para a segurança do tráfego, sem necessidade de nenhuma
comprovação real sobre a relação concreta entre o comportamento realizado e
o bem jurídico14.

12
Idem, ibidem.
13
Sergio de Oliveira Médici. Teoria dos Tipos Penais. p. 185.
14
Idem, ibidem.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

Conclui o autor então que “para que haja delito não


basta o mero cumprimento de um tipo legal, que não constitui suficiente
garantia para o cidadão, senão que é necessário ademais que se dê um
resultado (em sentido valorativo, não naturalístico), que se expressa em uma
lesão ou em um efetivo risco de lesão (perigo real)”.
Portanto, é inconstitucional o dispositivo por ferir a
não presunção de culpabilidade, haja vista querer punir tais condutas
abstratamente, sem uma análise concreta dos riscos que o condutor de veículo
pode causar.
A ineficiência do poder fiscalizatório do Estado não
pode suprimir direitos e garantias constitucionais fundamentais, ao querer punir
condutas abstratas.
Torna-se necessário, em respeito ao próprio Estado
Democrático e Social de Direito, a análise pormenorizada da potencialidade
lesiva e o risco de dano concreto ao bem jurídico tutelado violado pelo condutor
de veículo que tenha ingerido bebida alcoólica.
Não se pode partir da premissa de que todos
aqueles que tenham ingerido bebidas alcoólicas não tenham condições de
trafegar com seus veículos na via pública sem expor a perigo a incolumidade
de terceiros.
Portanto, é inconstitucional o referido dispositivo, por
ferir gravemente a Constituição Federal no pertinente à não presunção de
culpabilidade, bem como à própria liberdade e, conseqüentemente, o direito a
vida, a uma vida livre da ação violadora dos direitos e garantias
constitucionalmente asseguradas ao cidadão, por ato ilegal e abusivo do
Estado.
Não é demais lembrar que numa análise histórica
equilibrada e livre de preconceitos conduzirá antes, muito provavelmente, à
conclusão de que a sociedade foi sempre – e talvez mais do que hoje, e
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

porventura será sempre – uma sociedade de riscos15.


Nos tempos pré-modernos a sociedade sofria com
os azares, infortúnios e infelicidades. Porém, na modernidade o conceito de
risco substituiu o de sorte, destino ou fortuna, pois ocorreu uma alteração na
percepção da determinação e da contingência, de tal modo que os imperativos
morais humanos, as causas naturais e o acaso reinam no lugar das
cosmologias religiosas. Mais ainda: tais azares e infortúnios passaram a ser
riscos quando o projeto da modernidade, implantado com sucesso na confiança
dos indivíduos, emerge com a fórmula de previsão e probabilidade da
ocorrência de perigos16.
O princípio da liberdade subjetiva (subjektive
Freiheit) é a marca essencial da modernidade e surge como elemento histórico
distintivo em relação aos tempos antigos: o direito da particularidade do sujeito
de encontrar sua satisfação ou, o que é o mesmo, o direito da liberdade
subjetiva constitui o ponto central e de transição na diferença entre o tempo
moderno e a antiguidade17.
A fórmula da modernidade valorizou a capacidade
de explicar as indeterminações, a partir da construção da racionalidade
cartesiana. Ora, a modernidade caracteriza-se pela sua capacidade de
controlar as indeterminações. E, assim, de produzi-las. Este paradoxo
“acrescenta a necessidade de proteção e de segurança. É a necessidade de
agir para que as indeterminações não adquiram valor de estrutura”.18
No entanto, correr riscos torna-se completamente
diferente quando se tem a impressão de que se está permanentemente em
perigo. Anthony Giddens explica a diferença entre risco e perigo19:

“Perigo e risco estão estreitamente


relacionados, mas não são a mesma coisa.
A diferença não depende de um indivíduo

15
Figueiredo Dias. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. p. 72.
16
Eduardo Medeiros Cavalcanti. Crime e sociedade complexa. p. 150.
17
César Augusto Ramos. Liberdade subjetiva e Estado na filosófica política de Hegel. p. 23.
18
Raffaele Di Giorgi, citado por Eduardo Medeiros Cavalcanti, op. cit., p. 151.
19
As conseqüências da modernidade. p. 24.
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pesar ou não conscientemente alternativas,


ao considerar ou adotar uma determinada
linha de ação. O que o risco pressupõe é
precisamente o perigo (não
necessariamente a consciência do perigo).
Uma pessoa que arrisca alguma coisa
desafia o perigo, sendo este entendido
como uma ameaça para os resultados
desejados. Qualquer pessoa que assuma
um „risco calculado‟ está consciente da
ameaça, ou ameaças, que uma
determinada linha de ação acarreta. Mas é
certamente possível empreenderem-se
ações, ou ser-se sujeito a situações que
sejam inerentemente arriscadas, sem que
os indivíduos envolvidos estejam cientes de
quanto elas são arriscadas. Por outras
palavras, eles desconhecem os riscos que
correm”.

Os riscos que se podiam calcular na esteira da


modernidade tornaram-se incalculáveis e imprevisíveis na sociedade de risco.
Ao revés da noção linear de causa e efeito, possibilitando a delimitação de
responsabilidade pelos danos e perigos, a sociedade de risco produz a entropia
nos fenômenos, diluindo as linearidades e certezas. Os riscos acentuados
implicam novas modalidades de riscos20.
Com a pós-modernidade, portanto, os riscos se
acentual devido, sobretudo, à incapacidade metodológica da modernidade. A
convincente relação causa e efeito desmanchou-se no ar e o que resta são
apenas possibilidades. O desejo de segurança de tranqüilidade, não mais
suprido pela técnica cartesiana, abre espaço para o sentimento de insegurança
e intranqüilidade, muitas vezes superior à própria realidade de insegurança e
intranqüilidade sociais. Ora, ao lado do desenvolvimento de novos riscos não
se pode negar a redução de perigos procedentes de fontes naturais, como, por
exemplo, epidemias e catástrofes. Por isto, em razão de diversas causas, a
percepção subjetiva dos riscos muitas vezes é superior à própria existência
objetiva deles21.
Dessa forma, devido ao desgaste do discurso

20
Eduardo Medeiros Cavalcanti, op. cit., p. 151.
21
Idem, ibidem.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

técnico-científico para compreender a complexidade atual dos riscos e à


impossibilidade de autodescrições da sociedade contemporânea, surgem
desorientação, insegurança, medo do outro e medo do diverso.
A título de síntese, a lição de Ulrich Beck diagnostica
a sociedade do risco22:

“En la globalidad de la contaminación y de


lãs cadenas mundiales de alimentos y
productos, lãs amenazaz de la vida em la
cultura industrial recorren metamoforsis
sociales del peligro: reglas cotidianas de la
vida son puestas Del revés. Los mercados
se unden. Domina la carencia em la
sobreabundancia. Los sistemas jurídicos no
captan los hechos. Las preguntas más
evidentes cosecham encogimientos de
hombros. Los tratamientos médicos
fracasan. Los edificios cientificos de
racionalidad se vienen abajo. Los gobiernos
tiemblam. Los votantes indecisos huyen. Y
todo esto sin que las consecuencias que
sufren los seres humanos tuvieran algo que
ver com sus acciones, sus daños con sus
obras, y mientras que para nuestros
sentidos la realidad no cambia em
absoluto”.

O critério da ação individual está necessariamente


vinculado ao arbítrio subjetivo, o elemento da particularidade que determina o
interesse de cada um, a felicidade pessoal e o direito individual.
Se a liberdade subjetiva consiste na autonomia da
vontade, e se exerce pelo assentimento do indivíduo em reconhecer como
tendo valor apenas aquilo que a vontade julgar como bom para si, a marca da
modernidade repousa na convicção que cada individuo possui de aderir
somente àquilo que foi justificado pelo seu pensamento e vontade livre.
O princípio do mundo moderno permite ao sujeito
orientar a sua consciência e consagrar a sua ação por razões e crenças
independentes, e dar o seu consentimento apenas para o que foi legitimado por
sua própria convicção.

22
La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernida. p. 13-14.
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A liberdade, então, encontra seu ponto de flexão


pelo exercício de uma vontade que cria uma realidade adequada ao princípio
do seu querer livre. O movimento que consagra a liberdade na sua atuação
efetiva revela-se numa vontade que livremente quer e opera no sentido de
constituir um mundo resultado da sua manifestação.
A vontade evidencia o princípio de atuação do
espírito para realizar efetivamente o conceito de liberdade de forma objetiva. É
preciso, portanto, entender o direito como uma obra do livre querer do espírito.
O simples ato de conduzir veículo automotor em via
pública, após a ingestão pelo condutor de bebida alcoólica, não tem e jamais
poderá ter, o condão de, pura e simplesmente, penalizar o indivíduo
criminalmente.
Numa sociedade complexa e pós-moderna, a
criminalização de condutas não pode permanecer no plano abstrato, sem que
haja uma efetiva e concreta lesão ao bem jurídico que visa a norma penal
proteger.
A falta de políticas públicas por parte do Estado não
pode suprimir garantias individuais constitucionalmente conferidas aos
cidadãos. O direito de punir do Estado encontra-se obstáculos na liberdade
individual, quando o exercício dessa liberdade individual não possuir o condão
de lesar ou colocar em risco concreto de lesão os bens jurídicos.
Por isso, o simples ato de ingerir bebidas alcoólicas
e conduzir veículos automotor, independentemente da quantidade de álcool
ingerida, sem a evidente e concreta colocação em risco do bem jurídico
tutelado pela norma, não possui o condão de acarretar a responsabilização
criminar prevista no artigo 306 do CTB, sob pena de afronta à própria
Constituição Federal e a permissão ao Estado em criminalizar condutas
abstratas, de forma arbitrária, descriteriosa e desproporcional.
Por isso, saindo de cena o Estado-segurança,
emerge, conseqüentemente, a insegurança e o medo, ganhando força os
princípios da prevenção e da precaução. Com as incertezas da sociedade do
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risco, deve-se sempre, para que se possa falar em futuro, procurar saber ou se
informar sobre os riscos (princípio da prevenção). E, sendo o caso de
verossimilhança de incerteza sobre a ocorrência e a gravidade dos riscos,
deve-se ter a obrigação tanto de se abster, quanto de redobrar a prudência
(princípio da precaução)23.
A partir da segunda metade do século XX, o
processo criminalizador passa a sofrer com o aumento desenfreado de tipos
penais, bem como com o agravamento dos tipos penais já existentes.
Alguns fatores destacam-se neste processo de
expansão, como, por exemplo, o desenvolvimento do Estado Social e a
respectiva configuração de sua crise, o paradigma criminológico crítico como
estímulo à criação de novas figuras criminais, a sociedade complexa e a
globalização como desdobramento desta complexidade social.
Portanto, fica evidente que o processo de
criminalização brasileiro está carente de diretrizes político-criminais,
promovidos, muitas vezes, por mecanismos simbólicos de criminalização.
Não se pode tolerar, em pleno Estado Democrático e
Social de Direito, a ingerência do Estado na esfera particular do cidadão, sem
critérios mínimos e concretos de razoabilidade e proporcionalidade.

5. DA INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 165, 276, 277, §3º E


306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Há muito tempo o Direito traz a idéia de que a


reação há de ser proporcional à ação. Nesse contexto, pode afirmar-se, em
tese, que as providências adotadas pelos particulares ou pelo Estado com
relação aos interesses das demais pessoas ou dos administrados devem ser
adequadas a esses mesmos interesses, proibindo-se medidas excessivas.

23
Eduardo Medeiros Cavalcanti, op. cit., p. 162.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

Toda a faculdade de agir e decidir é limitada no


Estado Democrático de Direito, cujos fundamentos são a soberania, a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, a liberdade, os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, conforme se depreende do
art. 1º, incisos I a V, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Entretanto, mesmo com essa limitação ao direito de
agir e decidir, referidas medidas resultam ou podem resultar em livre arbítrio,
tirania, abusos, erros oriundos de decisões ou edições de leis, por exemplo,
que agridem direitos fundamentais e lesam direitos inerentes aos cidadãos.
Essa agressão, por sua vez, vai de encontro aos
preceitos da liberdade, da democracia, da justa medida, do Estado Social, os
quais estão previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de
1988.
O quadro atual brasileiro revela uma grande
quantidade de leis editadas, porém, nem sempre o pressuposto da relevância
social na edição destas leis é realmente observado ou, quando observado, feito
de forma correta, sem qualquer excesso ou distorção.
Na atual fase de evolução do estudo do direito, nada
mais é possível fazer de sério e importante que não passe pela capacidade de
trabalhar adequadamente o princípio da proporcionalidade, sobretudo após a
promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.
Na verdade, nesse período em que a democracia
restaurada desponta como valor supremo, o toque diferencial do operador do
direito é saber manipular este princípio, saber compreendê-lo e aplicá-lo na sua
dimensão jurídica, como instrumento de atuação profissional, mormente em
face do Poder Público.
O próprio nome do princípio já intuitivamente indica
que ele se refere à busca do proporcional, do meio termo, do bom senso e
neste sentido, do justo. Mas esta noção não é suficiente ao jurista, que deve
esmerar-se e desenvolver o princípio – aclarando-lhe a estrutura e identificando
o seu conteúdo – para com isso definir seu contorno e operacionalizar
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logicamente a sua aplicação na solução dos problemas submetidos ao crivo do


Direito.
Ao afirmar que todo homem possui uma esfera
intangível de direitos decorrentes somente de sua existência enquanto ser da
espécie humana, a Constituição garante a todos os cidadãos ser tratados de
forma eqüitativa, o que pressupõe, para além da igualdade formal, tratamento
diferenciado buscando adequar a lei às necessidades e peculiaridades de cada
um. A proporcionalidade está ínsita na própria concepção de Estado
Democrático e Social de Direito.
Em 1791, em conferência proferida diante do Rei da
Prússia, Friederich Wilhelm, propõe como princípio fundamental do direito
público “que o Estado só esteja autorizado a limitar a liberdade dos indivíduos
na medida em que for necessário, para que se mantenha a liberdade e
segurança de todos", deduzindo o princípio fundamental do direito de polícia
(Polizei-Recht), ou Direito Administrativo.
Assim, observa-se que o princípio da
proporcionalidade nasceu no âmbito do Direito Administrativo como princípio
geral do direito de polícia e desenvolveu-se como evolução do princípio da
legalidade. Requereu, para tanto, a criação de mecanismos capazes de
controlar o Poder Executivo no exercício da suas funções, de modo a evitar o
arbítrio e o abuso de poder.
Para que o Estado em sua atividade atenda aos
interesses da maioria, respeitando os direitos individuais fundamentais, faz-se
necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade, como
também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para se
ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio
da Proporcionalidade), para não retirar o mínimo necessário a uma existência
humana digna de ser chamada.
O princípio da proporcionalidade em sentido amplo é
derivado dos direitos fundamentais, precipuamente do princípio da dignidade
da pessoa humana.
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O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade


não está expresso na Constituição mas tem seu fundamento na idéia de devido
processo legal substantivo e na de justiça.
Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos
direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da
discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida
com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor
realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.
Em resumo, o princípio da razoabilidade permite ao
Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja
adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b)
a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos
gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso);
c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a
medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em
sentido estrito).24
O princípio pode operar também no sentido de
permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência,
de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema,
assim fazendo a justiça do caso concreto.25
Esta função é ressaltada por Paulo Bonavides,
quando afirma que uma das aplicações mais proveitosas contidas
potencialmente no princípio da proporcionalidade é aquela que o faz
instrumento de interpretação toda vez que ocorre antagonismo entre direitos
fundamentais e se busca daí solução conciliatória, para a qual o princípio é
indubitavelmente apropriado. As cortes constitucionais européias,
nomeadamente o Tribunal de Justiça da Comunidade Européia, já fizeram uso
freqüente do princípio para diminuir ou eliminar a colisão de tais direitos.26

24
Luiz Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição. p. 372-373.
25
Idem, ibidem.
26
Curso de Direito Constitucional. p. 237.
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Interessante observamos que o princípio em tela


assemelha-se muito com o método da concordância prática ou da
harmonização.
Abrindo aqui um parêntese, o princípio da
concordância prática ou da harmonização, como consectário lógico do princípio
da unidade constitucional, é comumente utilizado para resolver problemas
referentes à colisão de direitos fundamentais.
De acordo com esse princípio, os direitos
fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados por meio de
juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo os direitos e
bens constitucionalmente protegidos.
Nesse diapasão, a concordância prática pode ser
enunciada da seguinte maneira: havendo colisão entre valores constitucionais
(normas jurídicas de hierarquia constitucional), o que se deve buscar é a
otimização entre os direitos e valores em jogo, no estabelecimento de uma
concordância prática, que deve resultar numa ordenação proporcional dos
direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja, busca-se
o melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes.
Assim, cabe ao intérprete, por força do princípio da
unidade constitucional, um esforço de otimização: é necessário estabelecer os
limites de ambos os bens a fim de que cada um deles alcance uma efetividade
ótima. Em sintonia com esses princípios, decidiu o Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro:

“Sempre que princípios constitucionais


aparentam colidir, deve o intérprete procurar
as recíprocas implicações existentes entre
eles até chegar a uma inteligência
harmoniosa, porquanto, em face do
princípio da unidade constitucional, a
Constituição não pode estar em conflito
consigo mesma, não obstante a diversidade
de normas e princípios que contém. Assim,
se ao direito à livre expressão da atividade
intelectual e de comunicação contrapõem-
se o direito à inviolabilidade da intimidade,
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da vida privada, da honra e da imagem


segue-se como conseqüência lógica que
este último condiciona o exercício do
primeiro, atuando como limite estabelecido
pela Lei Maior, para impedir excessos e
abusos” (TJRJ. AC 29.708-01. Rel. Dês.
Sérgio Cavalieri Filho. DORJ, 29.ago.2002,
p. 352).

Portanto, consoante lição de Inocêncio Mártires


Coelho, o princípio da harmonização consiste numa recomendação para que o
aplicador das normas constitucionais, em se deparando com situações de
concorrência entre bens constitucionalmente protegido, adote a solução que
otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a
negação de nenhum.27
É de se mencionar também que a distinção entre o
princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade situa-se apenas
em sua origem, pois aquele surgiu no direito anglo-saxão, como face material
da cláusula do due process of law, ao passo que o segundo desenvolveu-se a
partir da doutrina alemã, evoluindo a partir do direito administrativo, conforme já
mencionado, como mecanismo de controle dos atos do Executivo.
Afirma Canotilho28 que com relação ao princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade, também chamado de princípio da
exigibilidade (ou princípio da necessidade ou da menor ingerência possível) é
colocada a tônica na idéia de o cidadão ter direito à menor desvantagem
possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de
determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o
cidadão.
Por essa razão, torna-se imperioso que o princípio
da proporcionalidade ou razoabilidade seja analisado à luz dos métodos de
interpretação constitucional, bem como à luz de outros princípios
constitucionais, a fim de aplicar a norma ao caso concreto, sempre
homenageando a força normativa da Constituição.

27
Métodos e princípios da interpretação constitucional. p. 180.
28
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. p. 264.
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

Assim, a título de exemplo, destacamos um trecho


da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na ADI 3689-PA, cuja
relatoria foi do Eminente Ministro Eros Grau:

(...) “7. O estado de exceção é uma zona de


indiferença entre o caos e o estado da
normalidade. Não é a exceção que se
subtrai à norma, mas a norma que,
suspendendo-se, dá lugar à exceção ---
apenas desse modo ela se constitui como
regra, mantendo-se em relação com a
exceção. 8. Ao Supremo Tribunal Federal
incumbe decidir regulando também essas
situações de exceção. Não se afasta do
ordenamento, ao fazê-lo, eis que aplica a
norma à exceção desaplicando-a, isto é,
retirando-a da exceção. 9. Cumpre verificar
o que menos compromete a força normativa
futura da Constituição e sua função de
estabilização”.

Em outro caso, agora na esfera criminal, manifestou-


se o STF, através do princípio da razoabilidade, o seguinte:

Habeas Corpus. Penal e Processual Penal.


Latrocínio, formação de quadrilha e porte
ilegal de armas. Prisão preventiva. Excesso
de prazo. Concorrência da defesa.
Razoabilidade: número de acusados e
complexidade do feito. A jurisprudência
desta Corte é pacífica no sentido de que o
excesso de prazo para o término da
instrução criminal mostra-se razoável
quando o feito é complexo e é grande
número de acusados. Ademais, há
elementos nos autos demonstrando que a
defesa concorreu para esse excesso com
artifícios protelatórios. Ordem denegada
(STF. HC 88443-BA. Rel. Min. Eros Grau.
Julgamento: 08.mai.2007).

Vê-se assim que o princípio da proporcionalidade-


razoabilidade, em um Estado Democrático de Direito, deve atuar como
instrumento de realização das normas e princípios positivados no texto da
Constituição Federal, a fim de tutelar os direitos fundamentais presentes em
determinado caso concreto.
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Portanto, temos que estão maculados pela eiva da


inconstitucionalidade, os artigos 165, 276, 277, §3º e 306, todos do Código de
Trânsito Brasileiro.

6. CONCLUSÕES

De tudo o que acima foi exposto, podemos extrair


algumas conclusões:
1) Em virtude dos princípios e garantias
constitucionais vigentes e em respeito ao Estado Democrático e Social de
Direito, não se pode obrigar o condutor de veículo a submeter-se ao “teste do
bafômetro” ou qualquer outro exame previsto no artigo 277, caput, do CTB, e,
havendo recusa, não se pode impor as sanções administrativas previstas no
artigo 165 do CTB, sob pena de afronta ao princípio “nemo tenetur se
detegere”, decorrente do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e do
artigo 8º, §2º, “g”, do Pacto de São José da Costa Rica.
2) As sanções do artigo 165 do CTB, somente
deverão ser aplicadas na hipótese de o condutor do veículo aceitar submeter-
se voluntariamente aos exames previstos no caput do artigo 277 do CTB,
desde que esteja com quantidade de álcool inferior a 6 (seis) decigramas por
litro de sangue e esteja conduzindo seu veículo em desrespeito às normas de
trânsito, em situação concreta e real de lesar o bem jurídico que o artigo 306
do CTB quer tutelar.
3) As sanções do artigo 165 do CTB, somente
deverão ser aplicadas na hipótese de o condutor do veículo aceitar submeter-
se voluntariamente aos exames previstos no caput do artigo 277 do CTB,
desde que esteja com quantidade de álcool superior a 6 (seis) decigramas por
litro de sangue e estiver conduzindo seu veículo em desrespeito às normas de
trânsito e esteja em situação concreta e real de lesar o bem jurídico que o
artigo 306 do CTB quer tutelar.
4) É patente a inconstitucionalidade do §3º, do artigo
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inclusão social, respaldada na ética e na moralidade.

277 do CTB, por violação ao princípio “nemo tenetur se detegere”, decorrente


do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e do artigo 8º, §2º, “g”, do
Pacto de São José da Costa Rica;
5) Também é patente a inconstitucionalidade do
artigo 276 do CTB, por violação direta ao princípio da proporcionalidade, da
liberdade e da presunção de não-culpabilidade;
6) Há necessidade de ser dada interpretação
conforme a Constituição dos artigos 165 e 306 do CTB, para que sejam
punidas apenas e tão somente aquelas condutas cuja potencialidade lesiva
estejam colocando em risco concreto de dano o bem jurídico tutelado pelo
artigo 306 do CTB, haja vista a arbitrariedade de se punir condutas meramente
abstratas, que não estejam colocando em risco a incolumidade física ou
patrimonial de terceiros, em grave afronta aos princípios da proporcionalidade,
da razoabilidade, da não-culpabilidade, da intimidade e, principalmente, da
liberdade.

7. BIBLIOGRAFIA

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