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Esperança Ciborgue) PDF
Esperança Ciborgue) PDF
2017v25n1p347
Introdução
O movimento de travestis, mulheres transexuais e
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Utilizo aqui travestis, mulheres homens trans no Brasil, ou simplesmente movimento trans1, foi
transexuais e homens trans como meu principal objeto de estudos ao longo de toda pós-
categorias êmicas através das
quais certos coletivos se identificam
graduação, e foi durante o processo de escrita da tese de
no campo político. Ressalvo que doutorado que me dei conta de que boa parte do meu
apesar dos esforços de definição material de campo passava pela internet, fundamentalmente
do que seja travesti e transexual, pelo Facebook, alguns blogs e canais no YouTube. Que as
perceptíveis tanto no plano político
novas plataformas digitais de interação social foram
quanto no plano científico, o uso
cotidiano desses termos por aque- incorporadas, modificadas e resignificadas nos usos políticos
las/es que os utilizam como cate- e sociais das mesmas é um fato inegável. Que estas mesmas
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Esse tipo de acusação remonta Por fim, destaco o uso ativista mais relevante para este
ao período de entrada de travestis artigo: o debate entre ativistas trans e outros setores da
num mesmo movimento que gays
e lésbicas em meados dos anos sociedade civil, mais notadamente em fóruns LGBT (Lésbicas,
1990. Uma de minhas interlocutoras Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e feministas. Nestes
da pesquisa de mestrado se referia espaços, os debates acontecem com pessoas em diferentes
à minorização de travestis no graus de engajamento político em lutas sociais que
movimento dizendo: “Imagina que
poderíamos considerar como paralelas, englobantes ou
coisa horrível ser a última da rabeira
da sopa de letras” (CARVALHO, interseccionais ao ativismo trans. No espectro LGBT dessas
2011, p. 47). interações, as “tretas” mais recorrentes giram em torno de
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Uma análise de material empírico disputas relacionadas ao protagonismo político e de
tratando de conflitos entre ativistas acusações de certo “monopólio” do movimento LGBT por
trans e feministas acerca da tais
questões consta em Carvalho e ativistas gays. Nestas “tretas”, é comum o uso da categoria
Carrara (2015). “GGGG” em substituição a “LGBT” como forma de explicitar
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Segundo Sérgio Carrara (1996, um descontentamento com a construção de pautas,
p. 170, grifo no original), nos anos reivindicações e protagonismos políticos centrados em
70 do século XIX, “organizou-se en-
apenas uma das categorias de identidades coletivas
tão um movimento que, inspirado
nas campanhas pela erradicação abarcadas pelo movimento6. Devo ressaltar que o uso da
do trabalho escravo, ficou conhe- categoria “GGGG” traz implicitamente outras acusações de
cido como abolicionismo. [...] Em hegemonias, como de classe e raça. Assim, em frases como
1877 fundava-se, em Genebra, “não aguento mais esses militantes GGGG”, fica implícita (e
a Federação Britânica e
Continental pela Abolição muitas vezes explícita ao longo da interação) que tais
da Prostituição
Prostituição, destinada a militantes também seriam brancos e de classe média.
pressionar os diferentes governos Já no espectro feminista de tais interações, as “tretas”
europeus no sentido de revoga- giram em torno de duas questões centrais: prostituição e o
rem os regulamentos [relativos ao
sujeito político do feminismo7. No que tange à prostituição, as
exercício da prostituição] onde
quer que eles existissem”. Atual- “tretas” reencenam antigos debates internos ao campo
mente, o termo continua sendo feminista entre posições que defendem a regulamentação
utilizado para se referir a posições, do trabalho sexual e posições abolicionistas8. A reivindicação
inclusive de setores do feminismo, de participação de travestis e mulheres transexuais em
contrárias a qualquer forma de
regulamentação da prostituição. espaços feministas, e consequentemente a ampliação do
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O debate sobre a participação sujeito político do feminismo, não é um debate (nem um
de mulheres transexuais em espa- conflito) novo9. Na reedição de tais contendas na internet, é
ços feministas remonta à década recorrente o recurso de categorias acusatórias como
de 1970, nos países do Norte glo-
“radfems”, em referência a um tipo de feminismo radical que
bal, sobretudo nos EUA. Uma das
principais vozes opositoras a tal consideraria apenas as pessoas assignadas ao nascer como
participação foi a norte-america- mulheres parte do sujeito político do feminismo, e “TERF”, que
na Janice Raymond, que publi- significa trans-exclusionary radical feminists, ou feministas
cou em 1979 o livro “The Transsexual radicais que excluem trans. Há também um uso pejorativo da
Empire: The Making of the She-
Male“. A obra, produzida numa categoria “piroco” para se referir a mulheres transexuais e
intersecção entre academia e ati- travestis, num alusão direta a “piroca” (pênis), no sentido de
vismo, ofereceu os principais ar- deslegitimar a identidade feminina de tais sujeitos.
gumentos anti-trans no feminismo,
ao mesmo tempo em que tam- Da interação face a face à interação media
media--
bém gerou uma sequência de
produções teóricas e contesta- da pela tecnologia: algumas contribuições
ções de pessoas trans. Entre tais
respostas cabe destacar: o artigo
a partir do interacionismo simbólico
“The Empire Strikes Back: a Post-
transsexual Manifesto“ publicado
É comum, não apenas nos estudos de movimentos
m 1991 por Sandy Stone, uma sociais como no próprio vocabulário militante, o uso de metá-
ativista trans que na época era foras bélicas tais como: luta, enfrentamento, disputa, inimigos,
Referências
ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões
sobre o campo feminista. cadernos pagu (43), Núcleo
de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, janeiro-junho
de 2014, p.13-56.
ÁVILA, Simone. FTM, transhomem, homem trans, trans, homem:
a emergência de transmasculinidades no Brasil contem-
porâneo. 2014. 243f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em
Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências
Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, 2014.
BELELI, Iara. Amores on line. In: PELÚCIO, Larissa; SOUZA, Luís
Antônio Francisco da; MAGALHÃES, Bóris Ribeiro de;
SABATINE, Thiago Teixeira (org.). Olhares plurais para o
cotidiano: gênero, sexualidade e mídia. Marília: Oficina
Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p.
56-73.
[Recebido em 12/05/2016
e aceito para publicação em 21/09/2016]