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INSTITUTO SUPERIOR DE AGRONOMIA

DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA FLORESTAL

UMA ABORDAGEM À FAUNA IBÉRICA: FAUNA


ATLÂNTICA, FAUNA MEDITERRÂNEA E
INTRODUÇÃO À ZOOGEOGRAFIA DA ICTIOFAUNA
DULCEAQUÍCOLA

Texto de apoio às aulas das disciplinas


de Biologia e Ecologia de Vertebrados
leccionadas no Instituto Superior de
Agronomia

António Manuel D. Fabião

LISBOA
2007
INSTITUTO SUPERIOR DE AGRONOMIA
DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA FLORESTAL

Índice

1. Definição e Caracterização das Grandes Regiões Biogeográficas da Península ...............................1


1.1. Enquadramento geográfico ..............................................................................................................1
1.2. O meio atlântico na Península Ibérica .............................................................................................2
1.3. A região mediterrânea......................................................................................................................4
1.4. A influência da altitude e da interioridade .......................................................................................8
1.5. A influência do tipo de substrato ......................................................................................................9
1.6. As plantas mediterrâneas ...............................................................................................................11

2. A Fauna de Vertebrados da região Atlântica.....................................................................................13


2.1. O coberto vegetal na região atlântica ............................................................................................13
2.2. Tipologias do habitat florestal da região atlântica ........................................................................14
Faiais ................................................................................................................................................14
Carvalhais caducifólios ....................................................................................................................15
Vidoais ..............................................................................................................................................17
Pinhais ..............................................................................................................................................18
Florestas mistas ................................................................................................................................19
Matagais arbustivos..........................................................................................................................20
2.3. Os vertebrados típicos da região atlântica: exemplos mais representativos..................................22

3. A Fauna de Vertebrados da região Mediterrânea.............................................................................25


3.1. O coberto vegetal na região mediterrânea .....................................................................................25
3.2. Tipologias das comunidades lenhosas da região mediterrânea .....................................................28
Azinhais.............................................................................................................................................28
Sobreirais..........................................................................................................................................30
Carvalhais marcescentes ..................................................................................................................32
Pinhais ..............................................................................................................................................33
Matagais arbustivos..........................................................................................................................34
3.3. Os vertebrados típicos da região mediterrânea: exemplos mais representativos ..........................35

4. A Regiões Ictiogeográficas da Península Ibérica ...............................................................................39


4.1. A especificidade dos rios e da ictiofauna dulceaquícola ibéricos ..................................................39
4.2. A ictiofauna dulceaquícola peninsular ...........................................................................................41
4.3. Algumas possíveis consequências da ligação entre bacias hidrográficas......................................44
INSTITUTO SUPERIOR DE AGRONOMIA
DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA FLORESTAL

Índice de Figuras

Figura 1. As duas grandes regiões bioclimáticas da Península Ibérica e respectivas subdivisões


principias (adaptado de Blanco Castro et al., 1997). O significado das subdivisões está
explicado mais adiante neste texto...................................................................................................2
Figura 2. Galeria ribeirinha com loendro, ou cevadilha (Nerium oleander), numa ribeira de caudal
intermitente do Perímetro Florestal da Contenda, no interior do Alentejo.................................7
Figura 3. Estratificação vertical típica e espécies mais comuns das florestas de caducifólias da
região atlântica (adaptado de Rodriguez de la Fuente, 1971). ....................................................14
Figura 4. Pinhal de pinheiro-bravo (Pinus pinaster) nas areias da Mata Nacional de Leiria, próximo
da Marinha Grande. .......................................................................................................................19
Figura 5. Estrutura esquemática de um montado, ilustrando a variação de pequena escala das
condições ambientais relacionada com a presença de árvores dispersas: devido à sombra, à
queda de folhada e à intercepção da precipitação pelas copas, a humidade do solo, o teor de
matéria orgânica e a produtividade tendem a ser mais elevados sob a copa, do lado em que
sopram os ventos transportadores de precipitação. Este fenómeno encontra-se também
descrito em savanas das regiões tropicais. ....................................................................................27
Figura 6. As árvores grandes e antigas dos montados da região mediterrânea têm grande valor
para a fauna de vertebrados. Na sua fase de crescimento ainda vigoroso (metade esquerda da
figura) atraem sobretudo as aves, chegando os mamíferos a partir do período em que entram
em caducidade (metade direita). 1: peto-verde; 2: pombo-torcaz; 3: picanço-real e/ou picanço-
de-barrete-vermelho; 4: pega-rabuda; 5: águia-calçada; 6: águia-de-asa-redonda; 7: águia-
imperial; 8: cegonha-comum; 9: milhafre-rabo-de-bacalhau e/ou milhafre-preto; 10: mocho;
11: coruja; 12: gralha-de-nuca-cinzenta; 13: morcegos; 14: geneta; 15: lince-ibérico; 16:
coelho; 17: lagartixa. Adaptado de Rodriguez de la Fuente (1971) e baseado em estudo
realizado por Valverde no Coto Doñana (sul de Espanha). ........................................................28
Figura 7. Um montado de azinho na região de Évora, em área de aparcamento de gado bovino.....30
Figura 8. Montado de sobro no Alto Alentejo, na região de Montemor-o-Novo. ...............................31
Figura 9. Carvalhal de carvalho-cerquinho (Quercus faginea ssp. broteroi) no Parque Natural das
Serras de Aire e Candeeiros, perto da aldeia de Alvados. ...........................................................33
Figura 10. Esboço aproximado dos três sectores ictiogeográficos da Península Ibérica e sua relação
com as principais bacias hidrográficas portuguesas....................................................................40
Figura 11. Distribuição das espécies dulciaquícolas da Península Ibérica por tipos (dulciaquícolas
ou migradoras) e origens (endémicas, autóctones não endémicas, ou exóticas). As espécies que
apenas frequentam os estuários e as espécies marinhas que entram ocasionalmente nos rios
não foram incluídas. .......................................................................................................................42
Figura 12. Distribuição das espécies de peixes dulciaquícolas endémicas da Península por sectores
ictiogeográficos (quando exclusivos de um sector) e pelo número de sectores em que ocorrem.
Apenas uma espécie ocorre em bacias hidrográficas dos três sectores. .....................................42
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

1. DEFINIÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DAS GRANDES REGIÕES


BIOGEOGRÁFICAS DA PENÍNSULA1

1.1. Enquadramento geográfico

A Península Ibérica enquadra-se na transição entre duas grandes regiões de flora e


vegetação, a região mediterrânea e a região eurosiberiana, ambas pertencentes a uma
unidade de ordem superior geralmente designada por Reino Holárctico, a qual se
estende por grande parte das zonas temperadas e frias do Hemisfério Norte. Cada uma
daquelas duas regiões pode caracterizar-se por plantas e comunidades vegetais que lhes
são próprias, mas possuem também outras que lhes são comuns, pelo que a separação
entre elas não é clara nem taxativa: por razões que serão referidas adiante, existe uma
influência mútua que torna os limites frequentemente imprecisos. Até certo ponto, pode-
se afirmar com segurança que existem espécies e variedades que têm o seu óptimo de
desenvolvimento precisamente nas condições intermédias entre as duas regiões, como
acontece com algumas das que são habitualmente classificadas como subatlânticas e
submediterrâneas (figura 1).

A região eurosiberiana abrange grande parte da Europa (com excepção dos países
mediterrâneos, da zona árctica e de parte dos países mais orientais) e da Ásia
setentrional. Está representada na Península Ibérica pela chamada (pelos fitogeógrafos e
fitossociólogos) província atlântica, que se caracteriza por um clima húmido ou
subhúmido, suavizado pela influência oceânica, com invernos suaves (isto é, pouco
frios) e com o período seco estival pouco acentuado ou mesmo inexistente. Estende-se
pelo noroeste de Portugal, a maior parte da Galiza, Astúrias, Cantábria, País Basco,
noroeste de Navarra e Pirinéus ocidentais. Entre a Galiza e o País Basco ocupa apenas
uma faixa estreita entre a Cordilheira Cantábrica, que lhe forma o limite sul, e o mar.
Contudo, a sua influência estende-se em muitos pontos mais para o interior da
Península, sob a forma de presença de espécies e comunidades vegetais, especialmente
nas partes norte e ocidental. A Cordilheira Cantábrica pode também ser incluída nesta
região, consoante os critérios de reconhecimento e classificação que se utilizem.

1
Este capitulo é largamente baseado, com adaptações e complementos, em:
López González, G. 2004. Guía de los Árboles y Arbustos de la Península Ibérica e Baleares. 2.ª
Edicíon corregida. Mundi-Prensa. Madrid.

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Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

Figura 1. As duas grandes regiões bioclimáticas da Península Ibérica e respectivas


subdivisões principias (adaptado de Blanco Castro et al., 1997)2. O significado das
subdivisões está explicado mais adiante neste texto.

1.2. O meio atlântico na Península Ibérica

A vegetação natural está representada na região atlântica peninsular por florestas de


carvalhos, com freixiais de Fraxinus excelsior (o freixo mais comum na Europa) e
comunidades dominadas pela aveleira (Corylus avellana) nos solos mais frescos e
profundos do fundo dos vales. O piso montano (ou seja, em altitude) caracteriza-se pela

2
Blanco Castro, E., M. A. Casado González, M. Costa Tenório, R. Escribano Bombín, M. Garcia Antón,
M, Génova Fuster, Á. Gómez Manzaneque, J. C. Moreno Saiz, C. Morla Juaristi, P. Regato Pajares e H.
Sainz Ollero. 1997. Los Bosques Ibéricos: una Interpretación Geobotánica. Editorial Planeta. Barcelona.

2
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

presença de faiais (povoamentos de faia, Fagus sylvatica) e, por vezes, sobretudo nos
Pirinéus, por abietais de abeto-branco (Abies alba); estas formações ocupam geralmente
as encostas mais frescas e com solos profundos, em montanhas não muito elevadas.
Faz-se por vezes sentir alguma influência mediterrânea, traduzida na presença de
azinhais com loureiros, nos cumes e encostas mais quentes, especialmente em solos de
origem calcária.

Em muitos casos, estas formações foram substituídas por pinhais instalados pelo
homem (principalmente de pinheiro-bravo, Pinus pinaster, pinheiro-silvestre, Pinus
sylvestris, ambos autóctones, e pinheiro-insigne, P. radiata, este oriundo da Península
de Monterey, na Califórnia), eucaliptais (Eucalyptus spp., mais frequentemente o E.
globulus), povoamentos de larício (Larix spp.), acaciais (Acacia spp.) e povoamentos de
outras espécies, autóctones ou exóticas, que acabaram por se integrar profundamente na
paisagem actual.

O aproveitamento destes espaços pelo homem acabou por transformar também


muitas das florestas ditas naturais em pastagens pastoreadas directamente, que muitas
vezes conservam nos seus limites e linhas divisórias restos do povoamento arbóreo
primitivo. A orla natural das florestas de caducifólias inclui espécies arbustivas e
subarbustivas que se desenvolvem também nas clareiras e outras situações mais
soalheiras; as mais comuns são roseiras-bravas (Rosa spp.), silvas (Rubus spp.),
abrunheiros (Prunus spp.), pilriteiro (Crataegus monogyna3) e outros arbustos mais ou
menos espinhosos. Por vezes desempenham este papel giestais dominados pelos géneros
Genista e Cytisus e integrando outras leguminosas subarbustivas e espinhosas, como os
tojos (Ulex spp.). Os matagais que se instalam na sequência da degradação das
formações florestais através do corte das árvores ou do seu consumo pelo fogo
costumam ser dominados por ericáceas (família Ericaceae) que incluem diversas
espécies de urzes (Erica spp.), Daboecia cantabrica e torga, ou queiroga (Calluna
vulgaris), acompanhadas em regra por tojos e por algumas outras leguminosas
subarbustivas, como a carqueja (Pterospartum tridentatum). As cistáceas (família
Cistaceae) do género Halimium também podem ocorrer nestas formações. Estas
formações subarbustivas estariam originariamente associadas ao sub-bosque das
florestas e aos solos mais pobres e erosionados, geralmente de baixo pH.

3
Espécie frequente e fácil de observar também na Tapada da Ajuda (C. monogyna subsp. brevispina).

3
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

De acordo com a classificação bioclimática proposta por Rivas-Martinez (1987)4, a


região eurosiberiana caracteriza-se por um período seco de duração igual ou inferior a
dois meses, sendo o critério de secura uma precipitação mensal (em mm) inferior a duas
vezes a temperatura média do mesmo mês (em ºC). Admite quatro andares principais,
definidos de acordo com o valor de um índice de termicidade (It) calculado pela
expressão:

It = (t+m+M) × 10,

na qual t é a temperatura média anual (ºC), m é a média das temperaturas mínimas


do mês mais frio (ºC) e M é a média das temperaturas máximas também do mês mais
frio (ºC). Os andares definidos através deste índice são:

• O andar colino, quando It>180;

• O andar montano, quando 180>It>50;

• O andar subalpino, quando 50>It>-50;

• O andar alpino, quando It<-50.

Em qualquer dos andares podem ocorrer diferentes ombroclimas, definidos em


função da precipitação média anual (P), em mm:

• Sub-húmido, se 900>P>500;

• Húmido, se 1400>P>900;

• Superhúmido, se P>1400.

De acordo com a tipologia fitoclimática da Península Ibérica de Alcazar Ariza et al.


(1987)5, a região eurosiberiana abrange em Portugal a província Cantabro-Atlântica
(subprovíncia Astur-Galaica) através de um sector designado por Galaico-Português, o
qual inclui sobretudo o Minho, parte do Douro Litoral e o extremo norte da Beira
Litoral.

1.3. A região mediterrânea

O resto da Península, correspondendo à maior parte da mesma, bem como as ilhas


Baleares, considera-se incluído na região mediterrânea, cuja principal característica é a
existência de um período seco estival mais ou menos pronunciado, mas sempre

4
Rivas-Martinez, S. 1987. Memória del Mapa de Séries de Vegetacion de España. ICONA. Madrid.
5
Alcazar Ariza, F. e outros. 1987. La Vegetación de España. Universidad de Alcalá de Henares. Madrid.

4
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

significativo (por regra, durando mais de dois meses). Os montantes anuais da


precipitação podem contudo ser muito elevados, como acontece geralmente nas serras
da região, atingindo níveis iguais ou mesmo superiores aos que ocorrem na região
eurosiberiana. O impacto de um período seco estival com 2 a 4 meses de duração (por
vezes até um pouco mais) tem muito mais importância biológica do que a quantidade
anual de precipitação. Esta pode variar desde níveis médios tão baixos como os 350 mm
anuais até mais de 1500 mm6. As temperaturas de Inverno podem ser igualmente
variáveis, desde zonas que só ocasionalmente apresentam geadas (geralmente as mais
próximas do mar), até outras em que temperaturas nocturnas de até -20º C (por vezes
mesmo mais baixas) ocorrem com alguma frequência.

Na classificação bioclimática referente a esta região, com mais de dois meses secos,
os andares bioclimáticos definidos pelo índice de termicidade (It) referido na página
anterior são os seguintes:

• Inframediterrâneo, quando It>470;

• Termomediterrâneo, quando 470>It>350;

• Mesomediterrâneo, quando 350>It>210;

• Supramediterrâneo, quando 210>It>60;

• Oromediterrâneo, quando 60>It>-30;

• Crioromediterrâneo, quando It<-30.

As variantes ombroclimáticas definidas pela precipitação média anual (P) são neste
caso mais abundantes do que na região eurosiberiana, distinguindo-se os seguintes
tipos:

• Árido, com P<200 mm;

• Semiárido, com 200<P<350;

• Seco, com 350<P<600;

• Sub-húmido, com 600<P<1000;

• Húmido, com 1000<P<1600;

6
Como termo de comparação recorde-se que Lisboa tem uma precipitação média anual de cerca de 700
mm.

5
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

• Superhúmido, com P>1600 mm.

A nível basal7 – a influência da altitude será referida mais adiante – a região


mediterrânea da Península apresenta como comunidades florestais típicas as dominadas
por espécies arbóreas de folhas perenes e muito cutinizadas, geralmente designadas por
formações de esclerófilas: azinhais (predomínio de Quercus ilex, em Portugal da
subespécie Q. ilex ssp. ballota = Q. ilex ssp. rotundifolia), sobreirais (Q. suber),
zambujais (Olea europaea var. sylvestris), zimbrais (Juniperus spp.) e outras de
características idênticas. Estas formações podem ser acompanhadas ou substituídas em
áreas mais quentes e erosionadas por pinhais de pinheiro de Alepo (Pinus halepensis8) e
em zonas arenosas por zimbrais de sabina-da-praia (Juniperus turbinata) e pinhais de
pinheiro-manso (Pinus pinea9). Só na região sudeste da Península, nas zonas baixas das
províncias de Murcia e Almeria (Espanha), parece não haver condições para o
crescimento arbóreo de qualquer tipo, pelo menos nas condições actuais de clima e
degradação do solo. A vegetação natural é aí um coberto mais ou menos ralo de
subarbustos rasteiros e palmeiras-anãs10. O mesmo se pode dizer das zonas salinas, ou
endorreicas, com alguma representatividade no interior da Península (em Espanha), nas
quais prevalecem quando muito pequenas árvores isoladas ou em formações com pouco
desenvolvimento em altura.

Dentro da região mediterrânea, os vales dos rios e ribeiras e os solos com o lençol
freático próximo da superfície compensam pela humidade do solo o período de secura
estival, permitindo a ocorrência de formações florestais ribeirinhas dominadas por
espécies caducifólias. Incluem ulmeirais (Ulmus spp.), choupais (Populus spp.),

7
Aqui referido no sentido da Carta Ecológica de Portugal de J. de Pina Manique e Albuquerque, que
considera o nível basal como aquele que se estende dos 0 aos 400 m de altitude. A maior parte do
território continental de Portugal pertence a este nível, subindo para os níveis submontano (400-700 m),
montano (700-1000 m), altimontano (1000-1300 m), erminiano (1300-1600 m) e subalpino e alpino
(1600-1900 e mais de 1900 m) apenas em áreas mais restritas situadas sobretudo nas serras do centro e
norte do País.
8
Não é claro se a área de distribuição natural desta espécie, que é mediterrânea e ibérica, terá incluído no
passado território de Portugal, mas é pouco provável que assim fosse. Os pinhais actuais de pinheiro de
Alepo foram instalados pelo homem e este pinheiro é o mais comum na Tapada da Ajuda, por exemplo.
9
O pinheiro-manso estaria originariamente associado às dunas e outros solos de textura grosseira da
região meridional da Península, de características mediterrâneas, embora a acção do homem o tenha
levado a ocorrer actualmente em quase todo o País. O pinheiro-bravo, Pinus pinaster, pelo contrário, é
um pinheiro claramente atlântico, povoando as dunas situadas mais a norte. Está mesmo representado em
Portugal, Galiza e região de Bordéus (França) pela subespécie P. pinaster subsp. atlantica, designação
muito esclarecedora. A sua presença para sul do cabo de Sines deve-se provavelmente à acção humana
(no Holocénico antigo, há cerca de 8 mil anos, parece ter chegado até aos areais um pouco a sul do Sado,
segundo os resultados dos estudos do Quaternário Ibérico).
10
O palmito, palmeira-anã, ou palmeira-das-vassouras (Chamaerops humilis) é a única palmeira com
distribuição natural na Península Ibérica. Em Portugal ocorre naturalmente no Algarve.

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freixiais de Fraxinus angustifolia11, salgueirais (Salix spp.) e florestas mistas destas


espécies. No leito dos cursos de água, sobre aluviões ou depósitos coluviais, onde são
frequentes as inundações e alagamentos, desenvolvem-se frequentemente salgueirais
arbustivos. Nas zonas mais quentes e com caudais dos cursos de água com maior grau
de intermitência, a vegetação lenhosa ribeirinha passa a ser dominada por arbustos
como a cevadilha (Nerium oleander), as tamargueiras (ou tamarizes, Tamarix spp.) e o
tamujo (Securinega tinctoria = Flueggea tinctoria), este último apenas em terrenos de
origem siliciosa12 (figura 2).

Figura 2. Galeria ribeirinha com loendro, ou cevadilha (Nerium oleander), numa ribeira
de caudal intermitente do Perímetro Florestal da Contenda, no interior do Alentejo.

De acordo com a tipologia fitogeográfica da Península Ibérica estão representadas


em Portugal, na região aqui designada por mediterrânea, as províncias Carpetano-
Ibérico-Leonesa (norte e centro interior, abrangendo os sectores fitogeográficos
Estrelense, Lusitano-Duriense e Orensano-Sanabriense [orla norte do nordeste
transmontano]), Luso-Estremadurense (a maior parte do centro e quase todo o sul do

11
Esta espécie, um endemismo ibero-norte-africano, substitui na região mediterrânea o freixo-europeu
(F. excelsior), do qual difere essencialmente por ter folíolos (a folha dos freixos é composta) mais
estreitos, justificando o qualificativo específico de angustifolia.
12
Este tipo de formações pode ser facilmente observado em ribeiras do Alentejo e Algarve, sobretudo
nas que reduzem fortemente ou perdem de todo o caudal durante a época estival.

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País, incluindo os sectores fitogeográficos Toledano-Tagano, Mariânico-Monchiquense,


Beirense Litoral, Ribatejano-Sadense e Divisório Português [Estremadura]) e Gaditano-
Onubo-Algarviense (litoral do Algarve, incluindo apenas um sector, designado por
Algarviense).

1.4. A influência da altitude e da interioridade

É bem conhecida a influência moderadora da proximidade dos oceanos sobre o


clima, designadamente sobre a temperatura, em relação à qual actua como um
amortizador das alterações bruscas e das amplitudes. Esta influência deve-se ao elevado
calor específico da água, que precisa de absorver ou ceder grandes quantidades de
energia para alterar de forma significativa a sua temperatura e, mais ainda, para mudar
de estado (isto é, para a as passagens entre as fases gasosa, líquida e sólida). A presença
da água tem um efeito semelhante em solos profundos e frescos, enquanto que os
afloramentos rochosos e os solos delgados e pedregosos podem mudar de temperatura
com maior rapidez.

Quando se avança para o interior da Península a influência marítima vai


naturalmente diminuindo, o que pode acontecer de forma muito marcada quando
existem cadeias montanhosas que actuam como barreira de condensação da humidade
atmosférica, impedindo a passagem dos ventos marítimos carregados de humidade. A
inércia térmica da atmosfera diminui com o decréscimo da humidade relativa do ar,
acentuando-se o carácter continental – no caso da Península Ibérica é mais correcto
referir o carácter interior, dada a sua menor dimensão e o facto de não ser um continente
separado – do clima: os invernos tornam-se mais frios, os verões mais quentes e as
condições ambientais menos favoráveis ao crescimento vegetal. Em muitas zonas do
interior da Península, a ausência ou a baixa densidade do coberto vegetal, associada aos
dias (e noites) de céu sem nuvens, ainda mais acentuam o carácter de interioridade do
clima, quer devido à exposição do solo à radiação directa, quer devido à falta de
cobertura vegetal, que favorece a irradiação nocturna de energia, com o consequente
arrefecimento do solo e a eventual formação de geada.

Nas regiões montanhosas, à medida que aumenta a altitude vai diminuindo a


temperatura média, ao mesmo tempo que aumenta também o montante da precipitação,
devido ao efeito de barreira de condensação das montanhas em relação à humidade
atmosférica. Estes factores originam alterações no tipo de vegetação que são
semelhantes às que se podem observar com o aumento da latitude. Pode-se assim

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Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

observar, na maioria das montanhas do Globo, uma transição em altitude entre pisos, ou
cinturas, de vegetação. Na maioria das montanhas mediterrâneas da Península, é
característica a passagem, à medida que aumenta a altitude, de florestas de perenifólias
para outras de caducifólias e destas para florestas de coníferas e/ou matagais de
montanha, com ocorrência de variações em torno deste padrão comum, que emula as
transições entre tipos de coberto que se podem encontrar a nível basal quando se avança
de sul para norte.

Nas encostas montanhosas mais soalheiras pode ocorrer aquecimento da atmosfera,


seguido do arrefecimento da mesma em áreas elevadas menos expostas e conduzindo à
condensação de humidade e formação de nevoeiros, que mais acentuam diferenças
microclimáticas locais. Por vezes, o contraste entre a vegetação de encostas soalheiras e
de encostas úmbrias chega a ser surpreendente, devido a diferenças de temperatura e de
humidade relativa do ar muito consideráveis. Pode-se traduzir, no coberto vegetal
lenhoso, pela passagem de uma formação perenifólia com espécies de folha cutinizada
para outra de caducifólias: azinhal para carvalhal de carvalho-roble (Quercus robur), ou
azinhal para carvalhal de carvalho-negral (Q. pyrenaica), por exemplo.

A exposição sombria ou soalheira e a situação mais ou menos interior da cadeia de


montanhas que estiver em causa modificam a altitude e a extensão de cada cintura de
vegetação. Nas montanhas litorais ou ainda relativamente próximas da costa,
especialmente nas mais meridionais, as plantas mais exigentes em temperaturas
elevadas (mais termófilas e próprias de climas quentes) podem muitas vezes ascender a
altitudes consideravelmente mais elevadas do que nas montanhas do interior, devido ao
carácter mais continental e mais rigoroso do clima nestas últimas.

1.5. A influência do tipo de substrato

Outro factor importante para a compreensão da distribuição de espécies e


comunidades vegetais na região mediterrânea é a influência que pode ter nas plantas o
tipo de substrato em que enraízam. Na região eurosiberiana, a precipitação mais ou
menos abundante e bem distribuída ao longo do ano, bem como a menor
evapotranspiração, traduzem-se numa lavagem mais ou menos intensa dos solos que
tende a tornar semelhantes, pela acidificação, os solos provenientes de substratos
litológicos distintos. Na região mediterrânea, pelo contrário, a influência do tipo de
substrato é mais decisiva, podendo geralmente distinguir-se dois tipos de situações: os
solos ácidos, derivados de substratos siliciosos como os granitos, gneisses, quartzitos e

9
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arenitos e conglomerados de matriz siliciosa; e os solos básicos, mais ou menos ricos


em cálcio activo, derivados de calcários, margas e outras rochas carbonatadas.

Muitas plantas são indiferentes à natureza do substrato, mas muitas outras requerem,
para terem um desenvolvimento normal, apenas um dos tipos acima descritos. Podem
nesse caso ocorrer apenas num deles ou, pelo contrário, manifestar apenas uma
preferência mais ou menos marcada por um dos tipos em relação ao outro, embora
desenvolvendo-se em ambos, o que pode estar relacionado com diferenças na sua
capacidade para resistirem com sucesso à concorrência movida por outras espécies em
cada um dos dois tipos de solos. Para além desta dicotomia entre solos de natureza
siliciosa e calcária, que é um tanto simplista, são conhecidos na Península substratos
siliciosos capazes de originarem solos quase neutros, como alguns arenitos do Triássico,
e substratos constituídos por rochas ultrabásicas (pteridotites e serpentinas, por
exemplo), sobre os quais se podem desenvolver solos básicos ricos em metais pesados
tóxicos, com forte acção selectiva sobre as plantas.

Os terrenos siliciosos predominam de forma clara na metade ocidental da Península,


compreendendo a Galiza, a maior parte de Portugal13, a Estremadura espanhola, a Serra
Morena, os Montes de Toledo, o Sistema Central, parte do Sistema Ibérico e a
Andaluzia oriental (Serra Nevada, Serra de los Filabres). Os terrenos calcários tornam-
se dominantes na parte oriental da Península Ibérica: Catalunha, Aragão, Comunidade
Valenciana, grande parte de La Mancha, Alcarria, Serrania de Cuenca e parte da
Andaluzia, bem como nas ilhas Baleares, com excepção de uma parte da de Menorca.
As formações de origem calcária têm frequentemente maior permeabilidade do que as
de origem siliciosa, devido à acção da água com dióxido de carbono dissolvido e à
contribuição desta solução para a manifestação de fenómenos cársticos. Os solos
calcários têm por isso tendência para serem mais secos, o que influencia também a sua
temperatura. O predomínio de solos ácidos, em conjunto com uma maior influência
oceânica, dá à parte ocidental da Península e a algumas montanhas siliciosas do seu
centro um carácter mais húmido e suave, característico das regiões de influência
atlântica e das espécies e comunidades vegetais associadas a esta, como os faiais (ou
carvalhais de carvalho-roble, em Portugal) e urzais.

13
As formações calcárias ocorrem em Portugal sobretudo na Região Centro – serras calcárias da
Estremadura e Serra da Arrábida – e numa faixa do Algarve (zona Calco-mediterrânea da Carta Ecológica
de Portugal de J. de Pina Manique e Albuquerque).

10
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

1.6. As plantas mediterrâneas

A repartição das diversas espécies na Península Ibérica está de acordo com as suas
preferências de solo e de clima. As espécies mediterrâneas termófilas, que exigem uma
temperatura elevada e ausência de geadas, ocorrem geralmente nas regiões costeiras do
sul, estendendo-se desde a Catalunha ao Algarve; muitas delas sobem ainda pela costa
atlântica até perto de Lisboa o penetram no interior através dos vales do Ebro e do
Guadalquivir. Também se encontram representadas na flora das ilhas Baleares. Algumas
delas, frequentemente relacionadas com a flora do Norte de África, adaptaram-se a
condições de secura mais elevada e têm uma área de distribuição natural mais
circunscrita ao sudeste árido (províncias de Murcia e de Almería). Outras espécies
mediterrâneas, igualmente adaptadas a climas quentes, resistem melhor às geadas e têm
áreas de distribuição que se estendem mais para o interior da Península, mas geralmente
não sobem acima dos 700 a 800 m de altitude. As espécies mais generalistas quanto à
natureza do substrato estenderam-se por quase toda a Península, faltando eventualmente
nos cumes mais elevados e frios, opondo-se às que são mais especializadas numa
natureza determinada do substrato.

Algumas espécies são tipicamente montanas e adaptadas à meseta, onde se refugiam


das temperaturas mais altas e da maior secura do piso inferior. Por outro lado, nas duras
condições climáticas das mais altas montanhas mediterrâneas, com invernos rigorosos e
verões secos e curtos, com uma intensa insolação, adaptaram-se as espécies designadas
por oromediterrâneas.

Em contraste com a província atlântica, a região mediterrânea da Península Ibérica


apresenta uma grande variedade de tipos de coberto lenhoso, tanto de floresta, como de
matagal. Tem-se afirmado frequentemente que a Península já esteve coberta totalmente,
no passado, por florestas, e que se se interrompesse de repente a influência do homem e
dos animais domésticos voltaria a essa situação. Esta suposição assenta no pressuposto
de que a vegetação natural potencial ibérica deveria ser a floresta, variando de
composição e de características conforme as regiões e as particularidades do meio
ambiente, tendendo para esse tipo de formação todas a comunidades dominadas por
plantas de menor porte, passado o tempo necessário para que se completasse a sucessão
ecológica. Nalguns locais da Península tem-se efectivamente observado uma evolução
desse tipo, mas não de uma forma generalizada.

11
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Biogeográficas

Com efeito, o registo fóssil de grãos de pólen demonstra, na história da vegetação


Ibérica, uma alternância de fases com diferentes densidades e proporções de espécies
arbóreas. Existe aliás na flora peninsular uma elevada proporção de espécies vegetais
não florestais, entre as quais muito endemismos, que sem dúvida se originaram e
diferenciaram em espaços abertos e luminosos, sem cobertura arbórea, visto serem
espécies heliófilas. Estas circunstâncias levam a crer que sempre houve vastos espaços
sem floresta, ou com esta presente sob a forma de formações abertas, ou formações
parque, com características semelhantes ao que hoje designamos por savana com
árvores (ou ao montado, que tem estrutura e características de funcionamento ecológico
semelhantes). As coníferas, melhor adaptadas a solos pobres e erosionados, têm sido
muitas vezes apontadas como sendo de expansão recente pela mão do homem, em
detrimento de espaços mais “nobres” presumivelmente ocupados por quercíneas, salvo
em situações de montanha e altiplano com clima mais agreste. Os estudos mais recentes
da flora do passado apontam, contudo, que os pinhais adquiriram uma importância
florestal considerável, em algumas regiões da Península, muito antes de terem sido
favorecidos pelo homem.

Nas condições actuais, a erosão e degradação dos solos pela actividade humana
tornaram irrecuperáveis a curto prazo algumas das formações arbóreas naturais da
Península, sobretudo em situações em que foram já completamente destruídas. Estão
nesta situação, como principal exemplo, as formações mais mesofíticas, como os faiais
que se haviam mantido na região mediterrânea como relíquia (em todo o caso
relativamente recente, já que a expansão da faia ocorreu há apenas cerca de 3 a 4
milhares de anos) de tempos com clima mais ameno.

12
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

2. A FAUNA DE VERTEBRADOS DA REGIÃO ATLÂNTICA

2.1. O coberto vegetal na região atlântica

A região eurosiberiana da Península Ibérica inclui uma vasta área – estimada em 60


a 70% da superfície total da região – de coberto florestal e de matagais lenhosos de
vários tipos, relacionados com as etapas sucessórias da floresta autóctone. A fauna de
vertebrados está, por isso, muito dependente do coberto lenhoso, com especial ênfase no
coberto florestal autóctone. Contudo, muitas formações florestais ordenadas e
intervencionadas pelo homem mantêm elevado interesse para a fauna de vertebrados, o
que se relaciona sobretudo com os sistemas de exploração florestal que nelas são
aplicados. Por exemplo, num estudo realizado em 1990 no Norte de Espanha verificou-
se que a densidade de aves nos povoamentos florestais da região era muito elevada nas
florestas de caducifólias, maioritariamente autóctones, mas da mesma ordem de
grandeza em pinhais interiores e até um pouco mais elevada em pinhais costeiros, muito
intervencionados pelo homem (mas com duração da revolução superior a 30 anos)14.

Os principais tipos de coberto florestal natural desta região são, de facto, dominados
por folhosas caducifólias. As coníferas, melhor adaptadas a solos pobres e erosionados,
têm sido muitas vezes apontadas como sendo de expansão recente pela mão do homem,
em detrimento de espaços mais “nobres” presumivelmente ocupados por quercíneas,
salvo em situações de montanha e altiplano com clima mais agreste. Os estudos mais
recentes da flora do passado indicam, contudo, que os pinhais adquiriram uma
importância florestal considerável muito antes de terem sido favorecidos pelo homem.
De qualquer forma, o coberto florestal dominante inclui actualmente espaços florestais
de ambos os tipos – folhosas e resinosas – sendo geralmente as florestas de folhosas
caracteristicamente muito estratificadas, como se ilustra na figura 3.

Os principais tipos de coberto florestal descrevem-se sumariamente nas linhas


seguintes, mas apenas com carácter exemplificativo e não exaustivo. O território desta
região apresenta, em muitas áreas, uma ocupação humana antiga e laboriosa, que
transformou profundamente, pela agricultura e pecuária, o carácter primitivo do coberto
lenhoso arbóreo e arbustivo. O que se sabe ou julga saber sobre as características desse

14
Esta conclusão não é contudo suportada pelos poucos estudos feitos em Portugal em pinhais de
pinheiro-bravo, que apontam para uma densidade de aves muito baixa, em geral.

13
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

coberto depende do estudo de formações reliquiais e de conjecturas baseadas, em


muitos casos, na vegetação que permanece na orla de áreas agrícolas e de pastagens.

Figura 3. Estratificação vertical típica e espécies mais comuns das florestas de


caducifólias da região atlântica (adaptado de Rodriguez de la Fuente, 197115).

2.2. Tipologias do habitat florestal da região atlântica

Faiais

Os faiais são florestas atlânticas típicas, características do andar montano (ou acima
deste) da região eurosiberiana Ibérica, não tendo actualmente representação natural no
território de Portugal16. As principais áreas de distribuição sitiam-se entre os 800 e os
1500 m de altitude, em solos frescos e de relativa riqueza em nutrientes. Embora
possam ocorrer em solos tanto de origem siliciosa como calcária, estão quase sempre
15
Rodriguez de la Fuente, F. 1971. A Fauna: Vida e Costumes dos Animais Selvagens. Volume V:
Eurásia e América do Norte (Região Holárctica). Publicações Alfa / Publicações Europa-América. Mem
Martins.
16
Os faiais existentes actualmente em Portugal foram introduzidos e ocorrem sobretudo em Matas
Nacionais e Perímetros Florestais geridos pelos Serviços Florestais. Existem algumas áreas, por exemplo,
na Serra da Estrela.

14
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

situados em substratos acidificados pela lavagem. As faias são árvores produtoras de


uma sombra muito densa, pelo que no seu sub-bosque não há condições para o
desenvolvimento de outras plantas intolerantes à sombra. Só os abetos, espécies que
exigem (na sua grande maioria) coberto de protecção nas idades jovens, toleram este
nível de competição pela luz. Contudo, podem estar presentes outras espécies lenhosas
quando esta formação não é demasiado densa para permitir a sua sobrevivência:
tramazeira, ou cornogodinho (Sorbus aucuparia), mostajeiro (Sorbus torminalis),
carvalhos caducifólios e vidoeiro, ou bétula (Betula pubescens) são as mais comuns.

Apesar do seu carácter atlântico, os faiais penetram na Península até ao seu centro,
ocorrendo ainda na província de Madrid. É provável que estes núcleos mais interiores
representem um testemunho de “tempos melhores” para as faias, durante os quais a área
de influência atlântica na Península foi mais ampla. Refugiadas em locais frescos e
sombrios, nos quais podem encontrar condições microclimáticas excepcionalmente
favoráveis, estas faias são muito difíceis de recuperar quando ocorre a desflorestação
destas áreas, sendo nessa caso quase sempre substituídas por carvalhos-negrais
(Quercus pyrenaica).

Carvalhais caducifólios

As florestas de carvalhos caducifólios, sobretudo as de carvalho-roble, são


provavelmente a formação arbórea mais característica da província atlântica.
Representam a formação florestal típica do nível basal, podendo estender-se contudo até
uns 600 m de altitude17. A partir desse nível, nas montanhas, tendem a ser substituídos
por faiais ou, nos fundos dos vales e em solos mais húmidos, por freixiais de Fraxinus
excelsior e povoamentos de aveleiras (Corylus avellana). Quando se avança em
direcção ao centro da Península, o carvalho-roble pode ser substituído pelo da espécie
Q. petraea18, mais tolerante à interioridade/continentalidade e também à altitude, mas
por regra com um papel menos dominante nas formações de que faz parte. Em geral,

17
Por vezes mesmo mais, na fachada atlântica das serras do noroeste de Portugal e na Serra da Estrela.
Sobre este assunto pode consultar-se, por exemplo:
Alves, J. M. S, M. D. Espírito Santo, J. C. Costa, J. H C. Gonçalves e M. F. Lousã. 1998. Habitats
Naturais e Seminaturais de Portugal Continental. Tipos de Habitats mais Significativos e
Agrupamentos Vegetais Característicos. Instituto da Conservação da Natureza. Lisboa.
Esta publicação está disponível na Biblioteca do ISA (cota P01-411).
18
Sem ocorrência natural descrita em Portugal, mas semelhante morfologicamente ao carvalho-roble
(Quercus robur), do qual se distingue principalmente por ter folhas de pecíolo mais longo, com a base do
limbo mais arredondada e com algum (pouco) indumento na página inferior, principalmente nas axilas
das nervuras (as folhas do carvalho-roble são glabras).

15
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

porém, nas zonas mais interiores e com menos influência atlântica o carvalho-roble dá
lugar ao carvalho-negral, ou carvalho-pardo das Beiras (Quercus pyrenaica), transição
que se faz notar de forma evidente em Portugal.
O andar do carvalho-roble é o mais alterado de toda a região atlântica, por ser
actualmente e ter sido no passado histórico o mais adequado ao desenvolvimento e à
expansão da agricultura e da pecuária. Em muitas áreas da Península, como por
exemplo no País Basco, as formações de carvalho-roble desapareceram quase por
completo. As suas espécies companheiras mais comuns, o castanheiro (Castanea sativa)
e o vidoeiro (Betula pubescens), também nem sempre permanecem, não obstante o
interesse económico da primeira, explorada para produção de fruto e/ou da madeira. A
degradação dos carvalhais atlânticos dá lugar a formações arbustivas com dominância
de urzes (Erica spp. e espécies de características semelhantes) e tojos (Ulex spp.).
A área potencial de distribuição natural do carvalho-roble está hoje ocupada
florestalmente, tanto em Portugal como em Espanha, sobretudo por pinhais de pinheiro-
bravo ou pinheiro-silvestre (a maior altitude) e por eucaliptais de Eucalyptus globulus,
instalados principalmente após a ocorrência das fases degradativas do carvalhal, ou seja,
nos urzais atlânticos que se encontravam incultos. Contudo, Alves et al. (1998)19
reconhecem ainda a existência em Portugal de núcleos e pequenas manchas de
carvalhais naturais e semi-naturais de carvalho-roble.
O carvalho-negral (Quercus pyrenaica) é, de entre os carvalhos caducifólios da
região atlântica, um dos mais resistentes à secura e ao carácter continental/interior do
clima. As suas formações, mais subatlânticas do que atlânticas, representam muitas
vezes um coberto arbóreo de transição entre as regiões atlântica e mediterrânea,
constituindo como que o último indício da primeira. A área de ocorrência na Península
Ibérica é extensa, adquirindo uma importância considerável sobretudo nas montanhas da
região central: estende-se desde o interior da Galiza e da vertente sul da cordilheira
Cantábrica até aos sistemas Oretano e Mariânico, alcançando a sul, já de forma muito
localizada, a serra Nevada e as montanhas de Cádiz20.
No interior da península o carvalho-negral ocorre principalmente a partir do andar
montano, onde encontra níveis de pluviosidade adequados às suas necessidades, e nas

19
Obra citada (nota 17).
20
Em Portugal este carvalho ocorre principalmente no interior norte e centro, mas estende-se para oeste
até quase ao mar (já com ocorrência rara na Serra de Sintra, eventualmente introduzido) pelas serras
calcárias da Estremadura e para sul até ao Alto Alentejo interior (ocorrendo então especialmente na Serra
de S. Mamede e regiões limítrofes de maior altitude).

16
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

encostas úmbrias com solos profundos e frescos, estendendo-se desde os 700-800 m de


altitude até aos 1500-1600 m. Prefere os solos de natureza siliciosa e tende a substituir
em altitude os azinhais e sobreirais, que podem ocorrer nas mesmas áreas, mas a nível
basal. Em zonas de influência mais acentuadamente atlântica pode ser substituído nas
fases regressivas da vegetação por urzais semelhantes aos que foram mencionados para
os carvalhais de carvalho-roble, eventualmente com outras espécies mais tolerantes à
interioridade geográfica, sendo contudo mais frequente, na maior parte da área de
distribuição, a presença de cistáceas (família Cistaceae) e rosmaninhos (Lavandula spp.,
Labiatae), ou por vezes de leguminosas como as giestas (Genista spp.) e espécies
semelhantes. Nalgumas zonas o carvalhal pode ter sido substituído, por acção humana,
por pinhais de pinheiro-bravo (P. pinaster) ou de pinheiro-silvestre (P. sylvestris).

Vidoais

Na região atlântica o vidoeiro (Betula pubescens21) forma pequenos bosques, ou


bosquetes, junto aos alcantis rochosos ou nas clareiras dos faiais, em zonas com solos
mais pobres ou ácidos. Com ele ocorrem frequentemente o choupo-tremedor (Populus
tremula) e a tramazeira (Sorbus aucuparia). Por vezes ocupa um andar próprio, acima
do domínio da faia, na zona montana (ou acima desta) das cordilheiras com solos de
origem siliciosa, mas em regra com pouca extensão e de forma muito dispersa. Quando
assim acontece está geralmente associado ao carvalho da espécie Q. petraea e, de novo,
à tramazeira (S. aucuparia).

Na região mediterrânea, os vidoais representam enclaves de carácter atlântico,


provavelmente remanescentes de épocas mais húmidas e de clima mais suave.
Costumam desenvolver-se em ambientes também adequados ao carvalho-negral (Q.
pyrenaica) e requerem o acesso a níveis freáticos elevados, que compensem
adequadamente as suas exigências em humidade do solo: margens de rios e ribeiros e
áreas planas e deprimidas das montanhas, com superavit de água, sobretudo em solos de
origem siliciosa. Conjuntamente com o vidoeiro ocorrem frequentemente, nas condições
acima referidas, o choupo-tremedor (P. tremula) e o sanguinho-d’água (Frangula
alnus), sendo de resto o elenco florístico de tais formações muito semelhante ao dos
faiais mais pobres e acidificados.

21
Sinonímia para o taxon que ocorre em Portugal: Betula pubescens Ehrh. = Betula alba L. = Betula
celtiberica Rothm. & Vasc. = Betula pubescens ssp. celtiberica (Rothm. & Vasc.) Rivas Mart.

17
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

Em território continental de Portugal os vidoais ocorrem, em altitudes médias e


elevadas, em solos profundos e locais abrigados da serra da Estrela e serras a norte do
Douro, com Betula pubescens (= Betula celtiberica) e Saxifraga spathularis. Com
alguma frequência, estas formações ocorrem associadas a cursos e linhas de água, quer
de carácter permanente, quer temporário, beneficiando das condições hídricas
particularmente favoráveis desses locais.

Pinhais

A posição natural dos pinhais ibéricos está hoje muito alterada pela cultura e pela
reflorestação de terrenos incultos e abandonados, já que as características de
pioneirismo de algumas das espécies do género Pinus e a sua boa aptidão florestal têm
encorajado, desde há muito, a sua cultura e expansão. A tradição que, em Portugal,
atribui ao rei D. Diniz um papel de relevo no encorajamento da expansão do pinhal é
disso um bom exemplo, em todo o caso com pouco fundamento documental.
Os pinhais naturais mais característicos da região atlântica são talvez os de pinheiro-
montanhês (Pinus uncinata), sem representação natural em Portugal, e de pinheiro-
silvestre (P. sylvestris), o primeiro associado sobretudo ao piso subalpino dos Pirinéus22
e acompanhado frequentemente, nas suas formações naturais, por rododendros,
salgueiros de espécies típicas de altitude, arandos (Vaccinium spp.) e outras espécies
arbustivas. Estende-se até ao limite altitudinal do crescimento arbóreo, atingindo a cota
de cerca de 2400 m e, em exemplares isolados, até 2700 m.
O pinheiro-silvestre desempenha um papel semelhante ao do pinheiro-montanhês
noutras altas montanhas peninsulares, tanto calcárias como siliciosas. É acompanhado
por espécies lenhosas arbustivas de montanha, que podem formar comunidades próprias
acima do nível altitudinal em que ocorre este pinheiro. A sua cota inferior de ocorrência
actual tem sido influenciada pelo homem, que o expandiu para áreas mais baixas,
anteriormente ocupadas, presumivelmente, por florestas de folhosas caducifólias ou
pelas suas fases de degradação.
A altitudes mais baixas e em substratos geralmente siliciosos ocorre o pinheiro-
bravo (Pinus pinaster), que na Galiza e no noroeste de Portugal desce até ao nível do
mar e no interior da Península confronta por vezes com carvalhais de carvalho-negral. O
pinheiro-negro (P. nigra ssp. salzmannii), sem representação natural em Portugal, é já

22
Esta espécie não tem ocorrência natural em Portugal, tendo sido ensaiada pelos Serviços Florestais na
Serra da Estrela, em conjunto com outras espécies semelhantes das montanhas da Europa, devido à sua
resistência à neve.

18
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

uma espécie de níveis mais altos, ocorrendo não só nos Pirinéus, como também em
outras montanhas do centro, leste e sul da Península, mas em algumas zonas calcárias
desce em altitude, substituindo aí o pinheiro-bravo. Ambos podem ocupar, consoante as
regiões, o nível abaixo do dos pinhais de pinheiro-silvestre.
Em Portugal consideram-se de ocorrência natural ou semi-natural (devido à
intervenção do homem na sua cultura e expansão), na região atlântica, os pinhais de
pinheiro-bravo (figura 4) e de pinheiro-silvestre (este em altitude). Em arborizações
mais recentes foram introduzidas várias subespécies e formas do pinheiro-negro (Pinus
nigra), em plantações para arborização de incultos e terrenos agrícolas abandonados,
bem como de pinheiro-insigne (Pinus radiata), este originário da Califórnia (Península
de Monterey), com grande expansão em todas as regiões temperadas húmidas do Globo
e, em particular, na Península Ibérica.

Figura 4. Pinhal de pinheiro-bravo (Pinus pinaster) nas areias da Mata Nacional de


Leiria, próximo da Marinha Grande.

Florestas mistas

As formações lenhosas arbóreas em que predomina uma única espécie são as mais
comuns na Península Ibérica. Contudo, ocorrem também, em menor escala, situações

19
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

em que se misturam duas ou mais espécies arbóreas, embora sem que se encontrem por
regra situações de grande complexidade, como as das florestas mistas das regiões
tropicais e subtropicais. Podem encontrar-se, por exemplo, formações mistas de faia e
abeto-branco (Abies alba) nos Pirinéus e galerias ribeirinhas de composição mista. As
formações deste tipo podem ser formas de transição entre cobertos dominados por cada
uma das espécies que se encontram presentes, com ou sem intervenção e
condicionamento humanos, mas algumas situações escapam a esta tipologia, pelo
menos no presente, parecendo corresponder a algum tipo de partilha de nichos
ecológicos particularmente favoráveis a coexistência de mais de uma espécie.

Conhecem-se na Península vários tipos de formações que se podem considerar


mistas, mas nem todas têm representação significativa na região atlântica de Portugal.
Os casos mais comuns entre nós, para além das galerias ribeirinhas, são provavelmente
as transições entre carvalhais, envolvendo carvalho-roble (Quercus robur), carvalho-
negral (Q. pyrenaica) e/ou cerquinho (Q. faginea), este último sobretudo nas orlas
marginais da região atlântica, bem como as que se podem estabelecer entre freixiais
ribeirinhos de Fraxinus angustifolia e carvalho-negral, mas em qualquer dos casos
ocupando quase sempre reduzidas extensões geográficas, o que parece reforçar o seu
carácter de formações de transição.

Matagais arbustivos

As formações lenhosas constituídas por plantas de porte arbustivo e/ou subarbustivo


são um tipo de coberto muito comum e espalhado na região atlântica de Portugal.
Contudo, estas formações podem corresponder a várias tipologias, desde formações
cerradas de mato alto a formações subarbustivas mais ou menos abertas, passando por
várias formas de transição entre elas.

Do ponto de vista da aptidão para a sobrevivência das comunidades de vertebrados,


são particularmente interessantes as formações de montanha, como as que ocorrem por
exemplo nas serras a norte do Douro e na Serra da Estrela, em situações de elevada
altitude, interessantes também pelo papel que podem ter no revestimento de encostas
abruptas e muito sujeitas à erosão. Numa enumeração não exaustiva, destacam-se nestas
situações (Alves et al., 1998, ob. cit.):

20
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

• Formações de zimbro-anão (Juniperus communis subsp. alpina) e urze-


vermelha (Erica australis ssp. aragonensis) das altitudes das serras da
Estrela e do Gerês;
• Zimbral rasteiro dos pisos de maior altitude da Serra da Estrela, com
Juniperus communis subsp. alpina, Cytisus purgans e Lycopodium clavatum;
• Comunidades de Teucrium salviatum e Echinospartum lusitanicum, dos
cumes, cornijas e lugares subsecos dos pisos elevados da Serra da Estrela;
• Matos das serras do Noroeste, com carqueja (Pterospartum tridentatum) e
urze-vermelha (Erica australis subsp. aragonensis);
• Giestais dos níveis mais húmidos da Serra da Estrela e de outras serras a
norte do Mondego, com giesteira-das-serras (Cytisus striatus) e piorno-dos-
tintureiros (Genista florida subsp. polygaliphylla);
• Comunidades de litossolos elevados das encostas da Serra da Estrela e de
serras transmontanas, com giesta-branca (Cytisus multiflorus) e
Echinospartum lusitanicum;
• Zimbral de altitude da Serra do Gerês, com arando (Vaccinium myrtillus) e
zimbro-anão (Juniperus communis subsp. alpina);
• Medronhais da Serra do Gerês, com medronheiro (Arbutus unedo), amieiro-
negro, ou sanguinho-d’água (Frangula alnus) e azereiro (Prunus lusitanica).

Muitas destas formações de montanha estão adaptadas a invernos frios e


prolongados, nos locais mais elevados com cobertura de neve prolongada e/ou risco
duradouro de ocorrência de geadas, alternando com períodos de crescimento vegetativo
quentes e secos, devido à forte insolação e às temperaturas estivais elevadas. Abaixo
dos pisos subalpino e alpino (ou seja, abaixo dos 1600-1700 m de altitude) as condições
ambientais podem suavizar-se em relação aos pisos mais altos, permitindo a ocorrência
de muitos outros tipos de formações arbustivas, cuja diversidade dificulta a descrição
dos tipos principais. As urzes (Erica spp.), os tojos (Ulex spp.), as giestas (Genista spp.
e Cytisus spp.) e algumas cistáceas (Cistaceae, principalmente Cistus spp. e Halimium
spp.) constituem, em geral, as espécies dominantes em toda a fachada atlântica, podendo
também manter-se em zonas mais interiores do norte de Portugal, estendendo-se para o
interior peninsular.

21
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

2.3. Os vertebrados típicos da região atlântica: exemplos mais representativos

As comunidades de vertebrados características da região atlântica reflectem a


adaptação aos tipos de coberto referidos na secção anterior. Embora com algumas
excepções, correspondentes sobretudo a espécies cosmopolitas ou às que encontram
boas condições de sobrevivência também nalguns habitats da região mediterrânea, os
vertebrados da região atlântica pertencem sobretudo a espécies que podemos designar
como florestais (em sentido lato), por preferirem habitats com coberto lenhoso denso e
estável no tempo. A generalização de plantações florestais intensivas na região atlântica
deve, por isso, ter em conta a pertinência de um ordenamento florestal regional que
acautele as condições de sobrevivência das comunidades de vertebrados, preservando
áreas em que a conservação desta fauna seja um objectivo prioritário e/ou métodos de
ordenamento florestal que permitam preservá-la.

Algumas espécies de vertebrados são hoje emblemáticas da região atlântica. O caso


mais notável é, sem dúvida, o do urso-pardo (Ursus arctos arctos = U. arctus
pyrenaicus, Carnivora, Ursidae), extinto em Portugal no século XVII, mas do qual
subsistem em Espanha escassas dezenas de exemplares, distribuídos pelos Montes
Cantábricos e Pirinéus. Trata-se de uma espécie com clara preferência por habitats
florestados, com relevo para os carvalhais (as bolotas desempenham um papel
importante na sua alimentação outonal) e, em menor grau, pelo faiais e pinhais, estes
sobretudo ordenados para produção lenhosa na sua região de ocorrência. É espécie em
perigo de extinção e, na Península, exclusiva da região atlântica, pelo menos
actualmente.

O lobo (Canis lupus signatus, Carnivora, Canidae) mantém na Península Ibérica


aquela que ainda é, provavelmente, a população mais abundante da espécie na Europa
Ocidental. Embora não se possa de forma alguma considerar uma espécie atlântica
exclusiva ou sequer preferencial, foi nesta região que melhor se mantiveram condições
de habitat favoráveis à sua sobrevivência, pelo que é sobretudo aí que subsiste, salvo
pequenos enclaves no Sul da Península. O recentemente revisto Livro Vermelho dos
Vertebrados de Portugal23 classifica-o como espécie Em Perigo, considerando o seu
efectivo populacional no País compreendido entre os 200 e os 400 exemplares (cerca de

23
Cabral, M. J. (coord.), J. Almeida, P. R. Almeida, T. Dellinger, N. Ferrand de Almeida, M. E. Oliveira,
J. M. Palmeirim, A. I. Queiroz, L. Rogado & M. Santos Reis (eds.). 2006. Livro Vermelho dos
Vertebrados de Portugal. 2.ª edição. Instituto da Conservação da Natureza / Assírio & Alvim. Lisboa.

22
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

15% da população ibérica), sem evidência recente de crescimento, ao contrário do que


tem vindo a acontecer em Espanha.

Entre os pequenos carnívoros da família Mustelidae, representados na Península


Ibérica por várias espécies, avulta na região atlântica a marta (Martes martes),
exclusivamente atlântica e de habitat florestal preferencial ou mesmo exclusivo. A sua
ocorrência e estatuto de conservação em Portugal estão mal esclarecidos, no caso do
último por escassez de informação, o que levou a considerar esta espécie como tendo
Informação Insuficiente no Livro Vermelho acima referido.

O grupo taxonómico mais bem representado na região atlântica é, provavelmente, o


dos pica-paus (aves da Ordem Piciformes, Família Picidae), que encontram nas florestas
antigas que ainda aí subsistem excelentes condições de sobrevivência. De sete espécies
com ocorrência assinalada na Península Ibérica, seis podem encontrar-se na região
atlântica, três delas em exclusivo ou preferencialmente: o torcicolo (Jynx torquilla), de
preferência atlântica, o peto-real, peto-verde, ou pica-pau-verde (Picus viridis),
cosmopolita, o pica-pau-negro (Dryocopus martius), de preferência atlântica e
ocorrência irregular em Portugal, o pica-pau-malhado-grande (Dendrocopus major),
cosmopolita, o pica-pau-mediano (Dendrocopus medius), de distribuição atlântica e sem
ocorrência assinalada em Portugal, e o pica-pau-malhado-pequeno (Dendrocopus
minor), cosmopolita. O picanço-de-dorso-ruivo (Lanius collurio, Passeriformes,
Lanidae) é outra ave de ocorrência quase exclusiva na região atlântica, com
representação também no Norte de Portugal24.

Entre os anfíbios e répteis merecem particular referência alguns casos de espécies do


mesmo género ou de géneros muito afins que apresentam distribuições totalmente
separadas, ou quase, na região atlântica e na região mediterrânea. A título de exemplo,
entre os anfíbios, salientam-se a salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica, Caudata,
Salamandridae), endemismo ibérico de distribuição atlântica, e a salamandra-de-costelas
salientes (Pleurodeles waltl, Caudata, Salamandridae), endemismo ibero-norte-africano
de distribuição preferencialmente mediterrânea; entre os répteis, é notável a
exclusividade atlântica da víbora de Seoane (Vipera seonae, Serpentes, Viperidae),
endemismo ibérico, e da víbora-cornuda (V. latastei, Serpentes, Viperidae), endemismo
ibero-norte-africano de distribuição mais cosmopolita.

24
Reino, L. 2004. O Picanço-de-dorso-ruivo. João Azevedo Editor. Mirandela.

23
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Atlântica

Estes exemplos servem essencialmente para chamar a atenção para as características


de selecção do habitat da maioria dos vertebrados da região atlântica que, quando de
distribuição exclusiva naquela área, estão sobretudo ligados a um habitat de
características dominantemente florestais ou de matos altos e densos. Até o principal
ungulado da região atlântica é o corço (Capreolus capreolus, Artiodactyla, Cervidae), o
mais pequeno dos cervídeos ibéricos e claramente adaptado à sobrevivência em habitats
florestais. É também apenas na região atlântica que se encontra representada a lebre-
europeia, sob a forma de um endemismo cantábrico que é considerado subespécie
distinta do tipo (Lepus europaeus subsp. pyrenaicus, Lagomorfa, Leporidae). Embora
não seja uma verdadeira espécie florestal, encontra-se em zonas com coberto arbóreo e
arbustivo mais denso e abundante do que seria tolerado pelo lebre-ibérica (Lepus
granatensis), que não se encontra na mesma região geográfica…

24
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

3. A FAUNA DE VERTEBRADOS DA REGIÃO MEDITERRÂNEA

3.1. O coberto vegetal na região mediterrânea

A maior parte do território peninsular encontra-se sob a influência, em maior ou


menor grau, do clima mediterrâneo, que se caracteriza em linhas muito gerais por ter
elevadas temperaturas de verão, em simultâneo com um período prolongado –
convencionalmente, de mais de dois meses – de deficit hídrico.

A vegetação teve, assim, de se adaptar à necessidade de suspender o seu


crescimento durante os períodos do ano em que as condições climáticas são
desfavoráveis à manutenção dos processos fisiológicos: o inverno, devido às baixas
temperaturas (ainda assim nem sempre pronunciadas nesta região e podendo permitir
actividade vegetal ocasional em dias mais amenos) e o verão, devido à secura. O
crescimento vegetal ocorre nos períodos em que se conjugam temperaturas favoráveis e
disponibilidade de água: da primavera até meados do verão e no outono.

As condições de habitat para os vertebrados são fortemente condicionadas, na região


mediterrânea, por estas características do meio, com reflexos no coberto vegetal. A
disponibilidade de alimento pode, nestas circunstâncias, ser muito elevada
sazonalmente, mas alterna com períodos de pronunciada escassez, o que condiciona as
condições de invernação – fundamentais, por exemplo, para as aves migradoras que são
residentes de inverno – e de reprodução, que coincide frequentemente com as épocas de
maior disponibilidade alimentar.

A riqueza em vertebrados das formações lenhosas da Península baseia-se sobretudo


em dois componentes fundamentais: a disponibilidade natural de frutos com maturação
desde o fim do verão ao início do inverno e a abundância do coelho-bravo (Oryctolagus
cuniculus, Lagomorfa, Leporidae). Esta espécie, embora também presente na região
atlântica – tem, aliás, uma enorme e bem conhecida facilidade de adaptação a uma
grande variedade de meios – tem na região mediterrânea a sua abundância máxima,
constituindo a presa fundamental da maior parte dos carnívoros desta grande área, desde
o lobo (hoje extremamente raro e localizado na região mediterrânea) ao lince-ibérico
(Lynx pardina, Carnívora, Felidae, também muito raro e em perigo de extinção),
passando pela maioria dos ofídios e aves de rapina mediterrâneos. A redução das
populações de coelhos devido à mixomatose e, mais recentemente, à doença

25
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

hemorrágica viral, tem sido um dos factores de ameaça graves à sobrevivência dos
carnívoros ibéricos com estatuto de conservação mais delicado.

Por outro lado, a variabilidade estrutural das comunidades lenhosas mediterrâneas


fornece boas condições de acolhimento às aves migradoras do Paleárctico Ocidental,
que encontram na Península quer os seus quartéis de inverno, quer locais de repouso
com clima ameno durante a sua deslocação entre a Europa e as zonas de invernada da
África sub-saariana.

Os sobreirais e azinhais (de Quercus suber e Q. ilex subsp. ballota = Q. rotundifolia,


respectivamente), a par de comunidades dominadas por árvores e arbustos altos com
ampla presença de outras espécies, como o medronheiro (Arbutus unedo), o aderno
(Phillyrea latifolia), o folhado (Viburnum tinus), ou o zambujeiro (Olea europaea var.
sylvestris), constituem a matriz principal de uma floresta de esclerófilas perenifólias
bem adaptadas a solos pobres e secos. Estas características do solo podem dever-se
tanto às condições naturais, conduzindo a uma pedoevolução condicionada pela secura
do meio e a torrencialidade da precipitação, como a uma pressão humana antiga e a uma
agricultura incapaz de preservar o solo da erosão, devido ao pouco coberto vegetal
quando das primeiras chuvas de outono. Nestas áreas mais degradas, estabelecem-se
com frequência comunidades arbustivas de “charneca” dominadas por arbustos baixos
como a esteva (Cistus ladanifer) e outras cistáceas e por rosmaninhos (Lavandula spp.),
com ou sem árvores dispersas, que a pressão do fogo ou do dente do gado mantém nas
fases intermédias da sucessão.

Contudo, o homem encontrou também nesta região, desde muito cedo na sua
história, formas de aproveitamento das comunidades vegetais que se revestem hoje de
grande importância ambiental: o montado, mais frequentemente dominado por sobreiros
e/ou azinheiras, é uma comunidade de floresta aberta, ou formação-parque, que a
presença do gado – ovino, suíno, caprino, ou mais raramente, bovino ou equino –
mantém livre de arbustos baixos, emulando o comportamento de uma fauna silvestre de
ungulados que entretanto se reduziu ou desapareceu de todo (figura 5). A diversidade
biológica da sua fauna silvestre é elevada e o aproveitamento destes espaços pelo
homem é, com frequência, um modelo de uso múltiplo das formações lenhosas naturais.
O montado de sobro é o paradigma desta articulação entre o homem e a natureza: nele
se pode produzir simultaneamente cortiça, gado, mel e caça, entre outros produtos.

26
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

Figura 5. Estrutura esquemática de um montado, ilustrando a variação de pequena


escala das condições ambientais relacionada com a presença de árvores dispersas:
devido à sombra, à queda de folhada e à intercepção da precipitação pelas copas, a
humidade do solo, o teor de matéria orgânica e a produtividade tendem a ser mais
elevados sob a copa, do lado em que sopram os ventos transportadores de precipitação.
Este fenómeno encontra-se também descrito em savanas das regiões tropicais.

A presença de árvores grandes e antigas nos montados reveste-se de um valor


inestimável para a fauna de vertebrados (figura 6) e, devido ao modelo de
aproveitamento económico do solo, é mais fácil de ocorrer do que nas floresta atlânticas
ordenadas: por exemplo, a produção de cortiça não implica o abate das árvores e um
sobreiro bem descortiçado pode durar, em média, cerca de 150 anos (em todo o caso
menos do que a longevidade natural das árvores não exploradas, que é ainda mal
conhecida). Nas azinheiras faz-se actualmente o aproveitamento do fruto e das lenhas
resultantes de podas de frutificação e de conformação da copa, pelo que o abate das
árvores é, mais uma vez, desnecessário. Aliás, a regulamentação portuguesa protege
estas duas árvores, que só podem ser cortadas por motivo de interesse público
inquestionável e/ou após parecer favorável da Direcção-Geral dos Recursos Florestais,
emitido geralmente pelos seus serviços regionais após inspecção no local por técnico ou
técnicos qualificados.

27
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

Figura 6. As árvores grandes e antigas dos montados da região mediterrânea têm


grande valor para a fauna de vertebrados. Na sua fase de crescimento ainda vigoroso
(metade esquerda da figura) atraem sobretudo as aves, chegando os mamíferos a partir
do período em que entram em caducidade (metade direita). 1: peto-verde; 2: pombo-
torcaz; 3: picanço-real e/ou picanço-de-barrete-vermelho; 4: pega-rabuda; 5: águia-
calçada; 6: águia-de-asa-redonda; 7: águia-imperial; 8: cegonha-comum; 9: milhafre-
rabo-de-bacalhau e/ou milhafre-preto; 10: mocho; 11: coruja; 12: gralha-de-nuca-
cinzenta; 13: morcegos; 14: geneta; 15: lince-ibérico; 16: coelho; 17: lagartixa.
Adaptado de Rodriguez de la Fuente (1971)25 e baseado em estudo realizado por
Valverde no Coto Doñana (sul de Espanha).

3.2. Tipologias das comunidades lenhosas da região mediterrânea

Azinhais

Os azinhais constituem a formação arbórea natural da maior parte da região


mediterrânea da Península Ibérica, penetrando até às encostas mais quentes e soalheiras
da região atlântica, onde incluem geralmente no seu elenco de espécies arbóreas o
loureiro (Laurus nobilis). Estendem-se desde o nível do mar, onde é mais comum a
azinheira-de-bolota-amarga (Quercus ilex subsp. ilex), até cerca de 1400 m de altitude
(em montanhas e planaltos do interior peninsular), mas a azinheira presente nas
situações de maior interioridade é geralmente a azinheira-de-bolota-doce (Q. ilex subsp.

25
Obra citada (nota n.º 15), Volume IV: Eurásia e América do Norte (Região Holárctica).

28
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

ballota = Q. ilex subsp. rotundifolia, que é a que ocorre naturalmente em Portugal). Os


exemplares isolados de azinheira podem encontrar-se a altitudes ainda maiores, mas em
regra não se formam aí maciços arbóreos significativos.

Os azinhais costeiros e das montanhas próximas do litoral podem ser extremamente


ricos e diversificados quanto às espécies presentes, devido à ocorrência de numerosos
arbustos e de fanerófitos escandentes: salsaparrilha-bastarda (Smilax aspera),
madressilvas (Lonicera spp.) e hera (Hedera helix), principalmente. Entre os arbustos
de maior porte ocorrem sobretudo folhado (Viburnum tinus), gilbardeira (Ruscus
aculeatus) e, no sudoeste peninsular, zambujeiro (Olea europaea var. sylvestris), que
por vezes se torna dominante e forma zambujais mais ou menos extensos. Para o
interior da Península os azinhais vão-se empobrecendo progressivamente em espécies
vegetais, à medida que aumenta a interioridade, desaparecendo primeiro, geralmente, as
espécies mais sensíveis ao frio.

Os azinhais mais interiores e em terrenos de natureza siliciosa podem apresentar na


sua composição florística o zimbro-galego, ou cedro de Espanha (Juniperus oxycedrus),
dando lugar em altitude e nas encostas mais frescas a carvalhais de carvalho-negral (Q.
pyrenaica). Só raramente o zimbro-galego se torna dominante, podendo então formar-se
zimbrais mais ou menos extensos, com ou sem azinheiras. Com solos tão pobres e em
condições climáticas tão desfavoráveis à vida vegetal, a destruição destas formações
conduz quase sempre à ocorrência de matagais baixos muito pobres, dominados em
regra pela esteva (Cistus ladanifer), os rosmaninhos (Lavandula spp.) e o alecrim
(Rosmarinus officinalis, Labiatae), que originariamente ocorriam em clareiras e zonas
mais abertas do azinhal.

Os azinhais estão bem adaptados aos climas mediterrâneos, tanto na modalidade


quente como na fria, suportando bem, também, os solos de origem calcária. Podem ser
substituídos por carvalhais de carvalho-cerquinho e de outros carvalhos caducifólios,
bem como por sobreirais, em situações com clima mais húmido e com solos mais
profundos e frescos, ou por zimbrais de sabina-da-praia (Juniperus turbinata = J.
phoenicia ssp. turbinata) e pinhais de pinheiro-manso (P. pinea) com zimbro-galego (J.
oxycedrus) nas dunas fixas e areais do litoral.

Em Portugal não há indicação de ocorrência natural da azinheira-de-bolota-amarga,


sendo os nossos povoamentos constituídos pela subespécie de bolota doce, geralmente
designada entre nós por Quercus rotundifolia (= Q. ilex ssp. ballota = Q. ilex ssp.

29
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

rotundifolia). De uma forma geral, a intervenção humana tem conduzido o azinhal para
a forma de montado de azinho, sendo as mais das vezes o sub-bosque constituído por
pastagem natural de herbáceas ou de subarbustos pouco desenvolvidos, a qual é
utilizada para a criação extensiva de ovinos, caprinos e suínos (com relevo para o porco-
preto) ou, mais raramente, de bovinos ou equinos (figura 7).

Figura 7. Um montado de azinho na região de Évora, em área de aparcamento de gado


bovino.

Sobreirais

O sobreiro (Quercus suber) exige solos de origem siliciosa, preferencialmente de


textura arenosa, bem como clima suave e com alguma humidade atmosférica. Nessas
condições, pode substituir totalmente a azinheira na região mediterrânea, embora
também se possa associar a esta e ainda ao carvalho-cerquinho (Quercus faginea). A
área ocupada por sobreirais na Península Ibérica corresponde à Catalunha, a Menorca
(ilhas Baleares) e, sobretudo, ao quadrante sudoeste da Península, coincidindo com o
centro e sul litoral de Portugal. Em Portugal transitam gradualmente para os azinhais,
que preferem o interior mais seco, misturando-se as duas espécies em extensas áreas.
Pode também ocorrer a alternância com o carvalho de Monchique, ou das Canárias

30
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

(Quercus canariensis)26, nas áreas onde este ocorra, nesse caso ocupando geralmente as
encostas frescas e sombrias.

Os sobreirais podem incluir no seu elenco florístico o zambujeiro (Olea europaea


var. sylvestris), o medronheiro (Arbutus unedo) e o lentisco-bastardo (Phillyrea
angustifolia), espécies que ocupam os espaços mais abertos e dominam as fases
regressivas. Na Andaluzia ocidental são também frequentes nos sobreirais arbustos do
género Genista (giestas), mas em solos menos evoluídos as espécies mais comuns são
as da “charneca”, ou seja, a esteva (Cistus ladanifer) e outras cistáceas do género
Cistus, como aliás acontece em vastas áreas de Portugal. Contudo, em algumas áreas do
sudoeste peninsular pode também ocorrer nos sobreirais um coberto mais evoluído, com
giestas (Genista spp.), tojo-gatum (Stauracanthus boivinii) e várias espécies de tojo do
género Ulex. Em fases degradativas do sobreiral, estas espécies do sub-bosque são as
que tendem a dominar o coberto de substituição.

Tal como no caso dos azinhais e ainda com maior razão de ser, dada a sua
importância económica actual para a produção de cortiça, a intervenção humana nos
sobreirais tende a conduzi-los para a forma de montado (figura 8), puro ou misto (nesse
caso geralmente com azinheiras), que pode ou não ser pastoreado sob coberto.

Figura 8. Montado de sobro no Alto Alentejo, na região de Montemor-o-Novo.

26
Esta espécie tem actualmente uma distribuição quase residual em Portugal, encontrando-se
essencialmente na Serra de Monchique; pode formar híbridos com o carvalho-cerquinho (Q. faginea),
geralmente designados por Q. × marianica.

31
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

Carvalhais marcescentes

Sob esta designação incluem-se os carvalhais dominados por espécies de folha


caduca tardia, como o carvalho das Canárias (Quercus canariensis) e o carvalho-
cerquinho, ou carvalho-português (Q. faginea). Os carvalhais de carvalho das Canárias
estão hoje razoavelmente representados apenas na Andaluzia ocidental e, mais ou
menos alterados por hibridação da espécie principal, na Catalunha e na Cordilheira
Mariânica. São os mais exigentes em termos de temperatura e humidade atmosférica,
pelo que não se costumam afastar da influência marítima27. Preferem as encostas menos
expostas à radiação e mais frescas, bem como as zonas húmidas e as margens dos cursos
de água, alternando geralmente com os sobreirais, que podem substituir em condições
de maior frescura, partilhando aliás com estes a preferência por solos de natureza
siliciosa. Tanto nas suas clareiras como nas etapas degradativas, são frequentes giestas
dos géneros Genista e Cytisus, urzes (Erica spp.), cistáceas do género Halimium e,
ocasionalmente, a adelfeira (Rhododendrum ponticum ssp. baeticum).

Os carvalhais marcescentes de Quercus faginea ssp. faginea são talvez os mais


típicos e frequentes da Península Ibérica, já que se estendem desde a Andaluzia
(serranias de Ronda) até às encostas dos Pirinéus, constituindo como que uma transição
entre as formações arbóreas das regiões atlântica e mediterrânea. São mais resistentes ao
frio e è secura do que os de carvalho das Canárias, mas requerem solos mais profundos
e frescos do que os azinhais, com os quais entram frequentemente em contacto. Embora
se dêem bem em todos os tipos de substrato, nos terrenos de natureza siliciosa tendem a
desempenhar um papel secundário em relação às azinheiras, sobreiros e carvalhos-
negrais, que se tornam dominantes nessas condições. Nos terrenos calcários, contudo,
são geralmente os carvalhos-cerquinhos os dominantes, tanto desta subespécie, como da
subespécie Q. faginea ssp. broteroi, que ocorre na maior parte do território continental
de Portugal28. Pode confrontar-se com azinhais, que ocupam as encostas mais secas e
soalheiras e os níveis de altitude mais baixos, enquanto nos níveis mais elevados este
tipo de carvalhal pode dar lugar a pinhais de pinheiro-silvestre (Pinus sylvestris).

27
Na terminologia utilizada para a Carta Ecológica de Portugal, de J. De Pina Manique e Albuquerque,
estes carvalhos são considerados associados ao polo de influência termoatlântico, ou macaronésico, e
típicos da Serra de Monchique e áreas limítrofes do sudoeste alentejano.
28
A presença da subespécie Q. faginea ssp. faginea, pelas suas características e exigências ambientais,
pode ocorrer no nordeste do País e, de uma forma geral, em toda a zona mais interior, próxima da raia
com Espanha. Contudo, a outra subespécie (Q. faginea ssp. broteroi) pode ainda estar também presente
na maioria destas situações, pelo que seria necessário fazer a respectiva identificação em cada ocorrência.

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Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

O carvalho-cerquinho da subespécie broteroi, que é o mais comum em Portugal, é


mais exigente em humidade e menos resistente ao frio do que a subespécie faginea, mas
menos sensível às temperaturas baixas do que o carvalho das Canárias. Estende-se
principalmente pelo quadrante sudoeste da Península, frequentemente em solos de
natureza calcária, como por exemplo as serras calcárias da Estremadura (figura 9).
Pode-se associar à azinheira e, em terrenos mais lavados de cálcio, também ao sobreiro.

Figura 9. Carvalhal de carvalho-cerquinho (Quercus faginea ssp. broteroi) no Parque


Natural das Serras de Aire e Candeeiros, perto da aldeia de Alvados.

Pinhais

Os pinhais mais resistentes à secura e mais termófilos são os de pinheiro de Alepo


(Pinus halepensis), que ocupam as cristas e afloramentos rochosos e as encostas mais
soalheiras, desde o nível do mar (é o pinheiro típicos dos litorais do Mediterrâneo) até
uns 800 a 1000 m de altitude, no interior da Península Ibérica. Desenvolvem-se
preferencialmente sobre substratos de origem calcária. A espécie não parece ocorrer
naturalmente em Portugal, ou mesmo ter alguma vez ocorrido no passado geológico
recente (Holocénico). No entanto, tem sido bastante utilizada em arborizações em solos
de origem calcária e em situações de grande secura e solos esqueléticos, como por

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Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

exemplo nas serras do Algarve. É também comum em parques e jardins, apesar de não
ser muito interessante esteticamente, sendo muito abundante na Tapada da Ajuda, onde
a sua frutificação precoce (primavera e início do verão) é procurada pelos esquilos
(Sciurus vulgaris).

O pinheiro-manso (Pinus pinea) é um especialista de terrenos arenosos. Os seus


pinhais formam extensas formações por toda a Península, a nível basal, tanto nos areais
próximos da costa (onde é muito mais frequente, pelo menos em Portugal), como
nalgumas áreas mais interiores da península (ocorre nas regiões de Valladolid, Cuenca e
Madrid, por exemplo). Produz frutos de grandes dimensões, em comparação com as
outras espécies peninsulares do género, sendo por isso muito interessante para algumas
espécies de vertebrados, que procuram os pinhões como alimento. Ocasionalmente
encontra-se formando montados, ou seja, formações abertas, mas não é muito frequente.
O montado de pinheiro-manso pode ser, contudo, uma opção interessante do ponto de
vista do ordenamento da fauna, alternado por exemplo com montados de sobro e/ou
azinho.

Matagais arbustivos

A prevalência das características termófilas e de secura estival, próprias da


influência ecológica mediterrânea, levam a uma tipologia própria dos tipos de vegetação
arbustiva presentes, acentuada ainda em Portugal por altitudes genericamente mais
baixas do que no centro e norte do País. Embora alguns dos géneros referidos para a
região atlântica possam ainda estar presentes, o predomínio é em regra das formações
dominadas por cistáceas (sobretudo do género Cistus) e por outras espécies odoríferas,
sobretudo labiadas (família Labiatae), como os rosmaninhos (Lavandula spp.) e os
tomilhos (Thymus spp.).

Outras espécies, como o carrasco (Quercus coccifera), o lentisco-bastardo


(Phillyrea angustifolia), a aroeira (Pistacia lentiscus), o folhado (Viburnum tinus), a
murta (Myrtus communis), o piorno (Retama sphaerocarpa) e o pilriteiro (Crataegus
monogyna) podem também dominar em formações lenhosas particulares, em regra com
menor extensão territorial do que as referidas anteriormente. Muitas destas últimas
ocorrem associadas às elevações das serras do sul, por regra menos altas do que as do
norte e centro (as serras de S. Mamede, no Alto Alentejo interior, e de Monchique, no
Algarve, são as mais altas a sul do rio Tejo), mas ainda assim com uma influência
considerável na condensação atmosférica, induzindo condições de maior frescura e, por

34
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

vezes, dificuldades de acesso que moderaram a intensidade da acção humana sobre a


vegetação, permitindo a permanência de matos densos e de porte elevado.

A designação de “charneca”, já mencionada ao longo deste texto, associa-se em


geral a fases de degradação da vegetação na sequência de pousios prolongados dos
sistemas agrícolas, do abandono da agricultura e/ou do pastoreio e, por vezes, também
na sequência da ocorrência repetida de fogos, a que este tipo de vegetação é muito
susceptível, por ser dominado por plantas facilmente inflamáveis e com boa
combustibilidade. A charneca é uma comunidade de porte subarbustivo, com grande
variação da densidade e da composição florística, conforme a sua localização geográfica
e as condições climáticas e de solo em que ocorrem. Os pequenos vertebrados
encontram nestas comunidades muito boas condições de abrigo (coberto de protecção,
de camuflagem ou de fuga), sendo as condições de alimentação muito variáveis com as
espécies presentes e com a densidade de subarbustos, que influencia a densidade de
plantas herbáceas mais palatáveis para alguns herbívoros.

3.3. Os vertebrados típicos da região mediterrânea: exemplos mais representativos

A relação dos vertebrados mediterrâneos com o coberto florestal é muito menos


acentuada do que na região atlântica, se bem que, num sentido mais abrangente, que
inclua sob essa designação as formações lenhosas arbustivas e subarbustivas, se faça
ainda sentir de uma forma relevante. Contudo, ocorrem também nesta região muitas
espécies de espaços abertos, que pouco ou nada beneficiam com a ocorrência de coberto
lenhoso com alguma densidade.

O coelho (Oryctolagus cuniculus), como já foi referido, é uma espécie determinante


para a sobrevivência de muitos dos carnívoros mediterrâneos. Alguns deles podem,
contudo, seleccionar outras presas quando a abundância de coelhos diminui, passando
frequentemente, nesses casos, a basear a sua alimentação no lagarto, ou sardão (Lacerta
lepida). Ambas as espécies são abundantes e bem distribuídas na Península, mesmo na
região atlântica, tendo o coelho o estatuto de conservação de “quase ameaçado” (NT),
devido à incidência nas suas populações de doenças já referidas anteriormente. O
sardão, contudo, tem um estatuto de conservação de “pouco preocupante”, embora se
deva ter em conta que uma pressão acrescida da predação sobre as suas populações pode
ter consequências imprevisíveis na sua dinâmica.

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Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

O lince-ibérico (Lynx pardinus), espécie de distribuição preferencialmente


meridional e um dos vertebrados mais ameaçados da fauna ibérica (criticamente
ameaçado”, sobretudo devido à fragmentação do seu habitat), é precisamente uma das
espécies de carnívoros com maior dependência do coelho-bravo como presa. A
população actua desta espécie, difícil de observar e de quantificar (o lince-ibérico é um
carnívoro solitário que defende extensos territórios homogéneos em comunidade
arbóreas ou arbustivas muito cerradas), é já muito reduzida e estima-se que esteja em
declínio constante desde há várias décadas.

O saca-rabos (Herpestes ichneumon) é o único mangusto com distribuição europeia


(e também africana, ocupando uma vasta extensão territorial deste continente). É tido
como espécie introduzida na Península de longa data, provavelmente pelos fenícios,
estando actualmente bem adaptado e com população estável, após uma redução da sua
área de distribuição peninsular ao longo de século XX. Distribui-se pelo quadrante
sudoeste da Península, sendo o seu habitat os matagais densos de arbustos lenhosos,
eventualmente com árvores dispersas. A sua alimentação é a típica de um carnívoro
oportunista e pouco especializado, utilizando como presa quer o coelho, quer outros
pequenos roedores, bem como répteis, anfíbios, insectos, ovos e frutos silvestres,
embora em menor proporção.

Entre as aves de rapina, a águia-imperial (Aquila adalberti = A. heliaca subsp.


adalberti) e o abutre preto (Aegipyus monachus) são os “reis dos ares” da região
mediterrânea, não tanto pelo número, visto estarem representadas na região muitas
outras espécies de aves de rapina com quantitativos populacionais mais elevados, mas
sobretudo pela dimensão, porte majestoso e conservação delicada das suas populações.
Ambas são espécies da região mediterrânea, criticamente ameaçadas em Portugal e com
estatuto de conservação também elevado em Espanha. Entre os factores de ameaça
avultam, para além da perseguição directa, a destruição e fragmentação de habitats de
espaço aberto e de matagal e a diminuição dos quantitativos populacionais de presas
adequadas, como o coelho (águia-imperial) e mamíferos de maior dimensão e/ou gado
em pastoreio livre extensivo (abutre-preto). Este último tem sido considerado como uma
das maiores aves da Europa e é seguramente o maior dos abutres.

O pombo-torcaz (Columba palumbus) é também notável pela dimensão, em relação


a outras aves com afinidade taxonómica, dado ser o maior dos columbídeos europeus.
Ao contrário das espécies referidas no parágrafo anterior, é uma ave abundante e com

36
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

um estatuto de conservação pouco preocupante na Península Ibérica, sendo


inclusivamente espécie cinegética muito apreciada. A população ibérica da espécie é
considerada sedentária, embora realize movimentos dispersivos pós-reprodutivos para
sudoeste, concentrando-se em Portugal na região do montado de sobro. Na época
invernal reúne-se a esta população uma outra muito mais vasta, migratória, proveniente
de outras regiões mais setentrionais da Europa. É esta grande concentração de pombos-
torcazes, compreendendo um total estimado de alguns milhões de indivíduos, que
confere a esta espécie a sua importância cinegética. As bolotas de sobreiro e de
azinheira e as sementes das herbáceas mediterrâneas (sobretudo de gramíneas e de
leguminosas), bem como os frutos de outras espécies lenhosas (em menor escala)
constituem durante o período de invernada o grosso da sua alimentação.

A cegonha-preta (Ciconia nigra) possui na Península Ibérica um núcleo


populacional separado de toda a sua restante área de distribuição natural, que se estende
sobretudo pela Europa Oriental. A população ibérica tem uma distribuição
mediterrânea, prefrindo núcleos densos de vegetação arbórea e arbustiva alta, com
pouca perturbação e próximos de cursos ou massas de água. É uma espécie vulnerável,
tanto em Portugal como em Espanha, devido à escassez da sua população peninsular, à
preferência por locais sem perturbação causada pela presença humana e à alteração dos
tipos de coberto florestal no sentido da instalação de florestas ordenadas para a
produção de lenho, com intervenção produtiva mais ou menos regular.

O grou (Grus grus), regionalmente extinto na Península enquanto ave nidificante, é


actualmente um visitante de inverno com preferência pelos espaços abertos (searas
extensivas, pastagens naturais sem mato, …) e pelos montados pouco densos e com
vegetação herbácea. A agricultura intensiva e a florestação contam-se entre os principais
factores de ameaça a esta espécie, a par abandono da agricultura, que conduz ao
estabelecimento de largas extensões de mato, sem valor como habitat para os grous. É
também uma espécie sensível á perturbação causada pela presença humana, sendo
afectada, por exemplo, pela actividade cinegética próximo dos locais de permanência.

Em contraste com estas espécies de aves sensíveis e com estatuto de conservação


delicado, o charneco, rabilongo, ou pega-azul (Cyanopica cyanus) é uma espécie
mediterrânea quase omnipresnete na região e que não causa preocupações de
conservação, já que o seu estatuto é pouco preocupante. É um corvídeo mediterrâneo de
habitat preferencialmente florestal, encontrando-se tanto em formações de quercíneas

37
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Região Mediterrânea

como de coníferas da região mediterrânea. A sua origem na Península não é clara, dado
que o núcleo populacional mais próximo desta espécie encontra-se no Extremo Oriente.
Pode presumir-se uma separação de populações durante as glaciações do Quaternário,
com isolamento de dois núcleos distintos que teriam sobrevivido nas zonas menos
afectadas pelo frio. A outra explicação seria uma discreta importação por navegadores
portugueses e espanhóis no decurso do período épico das grandes navegações ibéricas.
Seja qual for a explicação correcta, o charneco é hoje uma das espécies de vertebrados
mais emblemática da região mediterrânea da Península: as suas cores discretamente
atractivas e alguma familiaridade com a proximidade da presença humana dão-lhe uma
visibilidade que facilmente se associa aos montados e pinhais do sul de Portugal e de
Espanha.

38
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

4. AS REGIÕES ICTIOGEOGRÁFICAS DA PENÍNSULA IBÉRICA29

4.1. A especificidade dos rios e da ictiofauna dulceaquícola ibéricos

Os rios não são meras reservas de água inertes e sem vida, mas comunidades
biológicas com características próprias, entre as quais há que contar o facto de estarem
isoladas das outras comunidades afins através das divisões que se estabeleceram
naturalmente entre as bacias hidrográficas. As formas do relevo desempenham um papel
decisivo na definição dos limites entre bacias hidrográficas vizinhas: linhas de relevo
altas e vigorosas podem representar barreiras intransponíveis para a flora e fauna
dulceaquícolas; um relevo baixo e aplanado pode permitir um contacto ocasional,
quando haja caudais elevados, nos troços inferiores das bacias.

Estas circunstâncias deram origem à diferenciação, em bacias hidrográficas


distintas, de comunidades biológicas diferentes ou semelhantes entre si, conforme o
caso. Por exemplo, não surpreende que as comunidades dulceaquícolas actuais dos rios
portugueses a Norte do Douro tenham grandes afinidades, já que, até há cerca de 13 mil
anos, estes rios estiveram ligados durante milhares de anos por um troço terminal
comum30. A barreira geográfica dos Pirinéus representou, para a flora e fauna
dulceaquícolas da Península, um factor de isolamento que se manifestou provavelmente
desde finais do Oligocénico, há mais de 25 milhões de anos. Este facto influenciou a
diferenciação das espécies de peixes de água doce, os quais ficaram separados dos seus
congéneres do resto da Europa e, a partir de certa altura, do Norte de África, a que a
Península esteve ligada durante o Pliocénico31. A maioria das espécies de peixes
dulciaquícolas da Península especiaram-se (isto é, evoluíram para novas formas) aqui
mesmo, deixando de ser interférteis com as de outros rios e lagos europeus.

Posteriormente, as barreiras de relevo do interior da Ibéria, em conjunto com as


glaciações do Quaternário, levaram à formação de comunidades ictiofaunísticas

29
Largamente baseado em:
Fabião, A. 1997. Os planos hidrológicos e a conservação dos peixes de água doce. Ingenium (2ª Sér.)
18, 73-75.
30
Este facto encontra-se muito bem ilustrado em:
Rodrigues, A., F. Magalhães, J. Alveirinho-Dias e M. Matos. 1990. A faixa costeira a Norte do Porto:
evolução pós glaciária. Actas do 1º Simpósio sobre a Protecção e Revalorização da Faixa Costeira do
Minho ao Liz. Porto. Pp. 140-154.
31
Sobre esta questão veja-se, por exemplo:
Almaça, C. 1976. Zoogeografia e Especiação dos Ciprinídeos da Península Ibérica. Col. «Natura»,
Nova Série, Vol. 4. Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais. Lisboa.

39
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

distintas no Norte e no Sul da região. Podem assim reconhecer-se actualmente, na


Península, três sectores ictiofaunísticos com espécies de peixes maioritariamente
diferentes entre si (figura 10): o Sector Ebro-Cantábrico, que inclui as bacias do Ebro,
da vertente ibérica dos Pirinéus e dos rios que desaguam no Mar Cantábrico; o Sector
Central, que engloba as bacias que correm para o Ocidente Peninsular, da Galiza até às
ribeiras a Norte do Rio Mira; e o Sector Meridional, que inclui todas as restantes bacias
da Península e engloba, em Portugal, as do Mira, Guadiana e ribeiras algarvias32. Em
consequência, a ictiofauna peninsular actual abunda em espécies endémicas (ou seja,
que só ocorrem nesta região), por vezes exclusivas de cada um dos sectores
ictiogeográficos.

Figura 10. Esboço aproximado dos três sectores ictiogeográficos da Península Ibérica e
sua relação com as principais bacias hidrográficas portuguesas.

32
Sobre este assunto pode consulta-se a obra citada (nota n.º 30) de Almaça (1976) e também:
Almaça, C. 1978. Répartition Géographique des Cyprinidae ibériques et secteurs ichthyogéographiques
de la Péninsule Ibérique. Vest. Cs. Spol. Zool. 42, 241-248.

40
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

4.2. A ictiofauna dulceaquícola peninsular

A taxonomia da ictiofauna dulceaquícola ibérica não está definitivamente


estabelecida: à medida que aumenta o conhecimento acerca dos peixes da Península têm
vindo a ocorrer alterações na sua classificação. As designações dos taxa dulceaquícolas
ibéricos usada neste texto, embora baseada em avanços recentes na taxonomia dos
peixes peninsulares, poderá ocasionalmente não concordar em absoluto com as últimas
actualizações produzidas nesta matéria. O facto, contudo, dificilmente afectará a
validade do que adiante se trata, pelo menos em termos gerais.

Entre peixes autóctones e introduzidos, pode reconhecer-se na Península Ibérica um


total de cerca de 59 taxa distintos, a maioria dos quais com o estatuto de espécie. Não
foram considerados neste cômputo os peixes estuarinos, nem os peixes marinhos que
entram nos rios e estuários. Mais de 50% são espécies dulciaquícolas autóctones, sendo
cerca de 42% do total (25 espécies) espécies endémicas da Península (figura 11). Cerca
de 34% (20 espécies) foram introduzidas pelo homem, embora em relação a uma − a
tenca (Tinca tinca) − se admita alguma dúvida. Todas as espécies introduzidas são
estritamente dulciaquícolas, isto é, não se contam entre elas migradores capazes de
utilizar os meios marinho e dulceaquícola em fases distintas do seu ciclo biológico. Das
endémicas, 60% ocorrem apenas em um sector ictiogeográfico e apenas uma é
conhecida em bacias dos 3 sectores. No Sector Meridional ocorrem 16 espécies
endémicas (cerca de 64% dos endemismos ibéricos), conferindo-lhe particular
importância neste contexto (figura 12).

De 29 espécies autóctones com ocorrência reconhecida em Portugal (excluindo-se,


como referido acima, os peixes estuarinos e os marinhos que também ocorrem em água
doce), apenas 6 (a que se podem acrestar as populações não migradoras da truta-
comum, ou truta-de-rio, Salmo trutta) têm um estatuto de conservação de “pouco
preocupante”, de acordo com a metodologia definida pela União Mundial da
Conservação (UICN): extinto, regionalmente extinto, extinto na natureza, criticamente
em perigo, em perigo, vulnerável, quase ameaçado, ou pouco preocupante33. A quase
totalidade das espécies ameaçadas comuns a Portugal e Espanha têm também algum
tipo de estatuto de conservação no País vizinho.

33
Cabral, M. J. (coord.), J. Almeida, P. R. Almeida, T. Dellinger, N. Ferrand de Almeida, M. E. Oliveira,
J. M. Palmeirim, A. I. Queiroz, L. Rogado & M. Santos Reis (eds.). 2006. Livro Vermelho dos
Vertebrados de Portugal. 2.ª edição. Instituto da Conservação da Natureza / Assírio & Alvim. Lisboa.

41
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

Figura 11. Distribuição das espécies dulciaquícolas da Península Ibérica por tipos
(dulciaquícolas ou migradoras) e origens (endémicas, autóctones não endémicas, ou
exóticas). As espécies que apenas frequentam os estuários e as espécies marinhas que
entram ocasionalmente nos rios não foram incluídas.

Figura 12. Distribuição das espécies de peixes dulciaquícolas endémicas da Península


por sectores ictiogeográficos (quando exclusivos de um sector) e pelo número de
sectores em que ocorrem. Apenas uma espécie ocorre em bacias hidrográficas dos três
sectores.

42
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

. Nos casos em que se conhece o estado populacional das espécies introduzidas este
é estável ou as populações encontram-se em expansão. Só no século XX foram
introduzidas na Península 10 a 11 novas espécies exóticas34, cuja expansão tem
constituído, em muitos casos, uma grave ameaça para a conservação da ictiofauna
autóctone. No norte do Mediterrâneo, a introdução de espécies exóticas tem ocasionado
problemas de conservação das espécies autóctones através dos seguintes factores de
ameaça: hibridação entre espécies taxonomicamente próximas, reduzindo a diversidade
biológica; predação de espécies nativas por ictiófagos introduzidos; competição
interespecífica entre endémicas e introduzidas, eventualmente conduzindo à extinção de
uma ou mais (por exclusão competitva). Está também documentado um caso que sugere
alterações do habitat em consequência da introdução de um taxon não nativo35.

A pesca profissional das espécies dulciaquícolas e migradoras peninsulares tem


perdido muita da sua primitiva importância em Portugal, onde chegou a ter relevância
económica considerável, sobretudo nas grandes bacias hidrográficas. Em contrapartida,
o número de licenças de pesca desportiva tem vindo a subir regularmente. Esta
actividade tem uma importância económica difícil de quantificar, mas um estudo de
divulgação restrita efectuado em meados da última década do século passado (Fabião e
Santos, não publicado) indicou que um pescador desportivo do Norte de Portugal
despendia, em média, 200 a 250 mil euros por ano nesta actividade, sem considerar
transportes nem utilização de infra-estruturas hoteleiras.

Cerca de 31 das 59 espécies de peixes consideradas acima (aproximadamente 53%)


têm interesse para a pesca desportiva ou profissional. Umas 7 espécies adicionais são
ocasionalmente capturadas por pescadores desportivos, mas são em regra consideradas
como de pouco interesse, quer pela pequena dimensão, quer por serem pouco
combativas. No sul da Península a actividade desportiva é garantida principalmente por
espécies exóticas, já que a maioria dos endemismos ibéricos meridionais enquadra-se na
tipificação das espécies desinteressantes: pequena dimensão e/ou ausência de
combatividade quando capturadas.

34
Almaça, C. 1995. Freshwater fish and their conservation in Portugal. Biological Conservation 72, 125-
127.
35
Crivelli, A. J. 1995. Are fish introductions a threat to endemic freshwater fishes in the northern
Mediterranean region? Biological Conservation 72, 311-319.

43
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

4.3. Algumas possíveis consequências da ligação entre bacias hidrográficas

A concentração de endemismos no Sector Meridional sugere algumas


consequências prováveis do estabelecimento de ligações entre bacias hidrográficas de
sectores distintos, como é muitas vezes referido – e, pelo menos em alguns casos, já
realizado em aproveitamentos hidráulicos – como forma de regularização geográfica do
abastecimento de água. Sendo geralmente reconhecido que os peixes endémicos, nos
poucos casos documentados, não atingem grandes quantitativos populacionais quando
têm acesso a outros sectores36, é de recear sobretudo a passagem de outras espécies para
o Sector Meridional, ocasionando riscos de hibridação e de competição interespecífica.
No primeiro caso, pode estar em causa a diversidade genética, tanto mais que está
documentado um caso de hibridação em Espanha, entre taxa do género Chondrostoma
(bogas), dos quais um oriundo de sector ictiogeográfico distinto e introduzido em rios
da parte Sul do Sector Ebro-Cantábrico37.

Os casos de competição interespecífica não parecem estar bem estudados para os


endemismos dulciaquícolas mediterrâneos, embora haja algumas referências na
bibliografia, precisamente para peixes endémicos do Sul de Espanha e espécies exóticas
aí introduzidas38. A coexistência estável entre espécies em competição nem sempre é
possível, podendo originar a eliminação de pelo menos uma delas, salvo em situações
em que os seus nichos ecológicos realizados não se sobrepõem totalmente39. Por outro
lado, os exemplos conhecidos e descritos configuram outro risco a recear na Península
ao abrir a comunicação entre bacias: o reforço da expansão de espécies exóticas, cuja
concorrência com as autóctones é já considerada um factor de ameaça, embora pouco
documentado, para a sobrevivência dos endemismos ibéricos.

Apesar de pouco interessantes para a pesca, os endemismos constituem um


património único e insubstituível das nações ibéricas e contribuem decisivamente para a
diversidade biológica e para a sustentabilidade dos ecossistemas dulciaquícolas. A
implementação de projectos que comprometam a sua conservação pode vir a criar um
problema jurídico interessante: 21 espécies autóctones de água doce (cerca de 34% do

36
Almaça (1995), obra citada (nota n.º 33)
37
Elvira, B. 1995. Conservation status of endemic freshwater fish in Spain. Biological Conservation 72,
129-136.
38
Veja-se, por exemplo, Crivelli (1995), obra citada (nota n.º 34).
39
Sobre este assunto pode consultar-se, por exemplo:
Begon, M., J. L. Harper & C. R Townsend. 1996. Ecology. Individuals, Populations and Communities.
3rd edition. Blackwell Science. Oxford.

44
Fabião, 2007: Uma Abordagem à Fauna Ibérica Regiões Ictiogeográficas

total), das quais 13 endémicas e 7 destas ocorrendo no Sector Meridional, estão listadas
no Anexo II da Directiva Relativa à Preservação dos Habitates Naturais e da Fauna e da
Flora Selvagens, do Conselho da Europa, publicada em 1992. Aquele Anexo, intitulado
«Espécies Animais e Vegetais de Interesse Comunitário cuja Conservação Requer a
Designação de Zonas Especiais de Conservação», obriga os estados membros a incluir
as áreas de ocorrência das espécies listadas numa rede europeia coerente de zonas
especiais de conservação (rede Natura 2000).

É já tradicional, quando se discutem obras de engenharia fluvial, referir as


medidas de mitigação das suas consequências ambientais desfavoráveis. Também neste
caso não será difícil delineá-las, consistindo essencialmente em dificultar a passagem de
peixes através dos canais de ligação entre bacias hidrográficas. Contudo, a maioria das
medidas dessa natureza não resolvem completa e definitivamente os problemas para
cuja resolução foram projectadas. O fracasso, no passado, de medidas de mitigação em
obras de engenharia fluvial de outros tipos é disso um bom exemplo, já que conduziu ao
gradual depauperamento da ictiofauna dos rios ibéricos por má adaptação às alterações
do habitat40.

A água vai ser provavelmente um dos recursos naturais mais valiosos para a
sobrevivência e para o desenvolvimento económico e social da humanidade no futuro
próximo. A sua adequada gestão, de forma a garantir a disponibilidade nas diversas
regiões, terá que passar certamente pela captação da que existe disponível e pelo seu
transporte da forma mais económica possível para onde escasseia. É necessário, no
entanto, ponderar cautelosamente os custos que isso pode ter em termos ambientais e
das consequências e alterações que poderá implicar nas formas de viver a que estamos
habituados. Seria adequado acautelar no planeamento a salvaguarda dos peixes
endémicos de água doce mais ameaçados. Não parece razoável projectar grandes
empreendimentos de engenharia fluvial ignorando potenciais contradições entre a sua
implementação e os compromissos assumidos para a conservação de habitats e de
espécies, tanto mais que a qualidade da água pode depender da manutenção de sistemas
ecológicos sustentáveis, incluindo portanto a conservação dos componentes da
diversidade biológica que lhes é própria.

40
Veja-se, por exemplo:
Ferreira, M. T. 1996. Gestão de recursos aquáticos − uma área subvalorizada da engenharia. Ingenium
(II Série) 9, 69-73.

45

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