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O Trio Ternura

Francisco possuía o pior traço que um brasileiro poderia ter: a ingratidão. Tinha acesso
ao que precisava, mas insistia em buscar o que queria. Esperançoso, cultuava em alma e em
casa, através de pôsteres e quinquilharias compradas com seu recém-provido cartão de
crédito, um apreço desmedido pelo estado da Califórnia. Morador de Natal, cidade semi-
soterrada pelas areias do tempo que assolam o Rio Grande do Norte, Chico nutria em seu
íntimo uma fascinação pelos coqueiros e ondas da costa oeste estadunidense.

O acréscimo de ironia à dele dava-se pois havia nascido em um estado marcado,


particularmente, por suas belas praias e seus coqueirais litorâneos. Entretanto, o santo da casa
geralmente não faz milagres e só as paisagens daquele fuso horário atrasado serviam para
Francisco. De tanto comentar, com olhar perdido e deslumbrado, sobre as maravilhas daquela
parte dos Estados Unidos, acabou ganhando um apelido do qual muito gostava e de que se
orgulhava: Chico Califórnia.

Chico tinha 31 anos: aproximava-se da Idade do Filho do Homem. Nessa altura da


vida, não sabia se ria ou se chorava; trabalhava como vendedor itinerante, motorista de Dona
Lisbela, uma caminhonete carcomida que fazia as vezes de carro da fruta. Lili, intimidade que
só Chico tinha, funcionava a diesel, mas o próprio Chico costumava afirmar que o veículo era
flex, pois era movido a fé e/ou esperança.

Lisbela, infelizmente, era temperamental, deixando Chico no prego inúmeras vezes –


a empurrar sozinho parecia tão árduo quanto carregar uma cruz – de modo que o convívio
com Lili tornou Chico um otimista desvairado. Não fazia sentido, dada a quantidade de falhas
mecânicas, se aventurar a dirigir a caminhonete sem uma grande dose de pensamento
positivo. Talvez por isso, Chico lembrava-se de seu pai a cada prego de Lili e murmurava que
todos estavam se virando, inclusive ele. Detratores afirmariam que Chico se virou tanto que,
posto de cabeça para baixo, não cairia uma única moeda.

Se Lisbela tornava Chico um sonhador liberto pela atribulação, não poderia faltar a
presença dos dois ladrões: Ubirajara e Roberto, companheiros de negócio de Chico. Sócios
por necessidade e conveniência, há certo tempo se juntaram à empreitada falimentar do
jovem Califórnia.

Bira era o autonomeado auxiliar de logística do Trio da Fruta: tinha por vocação e
missão sagrada garantir que os vegetais saíssem ilesos do trajeto parabólico entre a caçamba
de Lisbela e as mãos dos clientes, pois muitas vezes era mais cômodo lançá-los até os
interessados. A bem da verdade, a verdadeira profissão de Ubirajara era a de ladrão, mas uma
fuga quase mal sucedida o fez pensar com carinho na ideia de dar um tempo da sua atividade
por excelência. Como Bira era feio mas não era besta, logo encontrava o disfarce necessário
de cidadão trabalhador.

Bira, ironicamente, sofria dos nervos. Consultou um médico certa vez e, desde então,
nunca mais abandonou os psicotrópicos. Diziam os mais sensíveis observadores que Bira devia
sua paz ao Clonazepam, visto que não ousava sair de manhã sem, em suas palavras, botar
para dentro. Aliás, houve quem dissesse que Bira colocava o remédio para dentro de modo
a colocar seus fantasmas para fora. De qualquer forma, nosso querido Bira fazia uso da
medicação sem moderação.

Apelidado carinhosamente de Bira Tarja-preta, Ubirajara talvez realmente devesse sua


liberdade ao medicamento, visto que escapou da polícia pela última vez ao pular o muro da
Casa de Saúde de Natal e, lá dentro, misturar-se facilmente aos pacientes. Sequer foi notado
o novo rosto entre os presentes, já que o uso contínuo do Clonazepam, meio comprimido
matutino com farinha e banana e a outra metade, com cana e tira-gosto, na hora do jantar,
modificara as feições do rosto de Bira, deixando-o constantemente esturricado e agitado,
principalmente quando tomava o dobro da dose recomendada, o que era frequente.

Aliás, é preciso mencionar que Bira Tarja-preta realmente só viu um psiquiatra uma
única vez, pois valia-se de fotocópias coloridas da receita original, repassadas a um conhecido
que é balconista de farmácia, também prestativo e analfabeto, de modo que Bira costumava
dizer frequentemente que nunca lhe faltou o pão. Como a homem algum deve faltar o pão
nosso, Bira fazia questão de nunca tomar o Clonazepam após o almoço, pois comer pão a
esta hora é coisa de americano e isso Bira aprendeu logo ao começar a conviver com Chico
Califórnia.

Havia também Roberto, rebatizado de Beto pela preguiça alheia, que era o imame do
negócio: de seu minarete/banco do passageiro, exultava em chamamento todos aqueles que
tivessem o bom gosto de comprar as frutas carregadas por Lili, aquela jumenta de metal
quase saída de um filme pós-apocalíptico australiano. Com um megafone portátil, Beto
anunciava a boa-nova frutigranjeira pelos bairros de Natal, sem nunca deixar de contar suas
piadas e de proferir seus trocadilhos infames nos intervalos entre as vendas.

Carregava a alcunha de Beto Satã, a contragosto, após ter tido problemas durante a
adolescência com vizinhos religiosos, devido a seus interesses musicais; sendo um gótico
inveterado, suas roupas pretas – e dizem que até de lentes coloridas já andou – criaram entre
a vizinhança a fama de que adorava o Diabo, sacrificava animais, previa o futuro e se
transformava em pé de jaboticaba nas noites de lua cheia.
Beto nunca se interessou em combater os impropérios contra ele proferidos, até
porque seria melhor que os vizinhos o tivessem como um satanista do que soubessem de
sua verdadeira profissão, a de ladrão e estelionatário. Conheceu Bira na cadeia e,
coincidentemente, o encontrou logo após o mesmo ter conseguido um emprego com Chico.
Convencido por Bira que era melhor dar um tempo até a barra esfriar, pois era época de
eleição e a polícia estava mais ativa, Beto se valeu de suas palavras enfeitadas e analiticamente
ordenadas para enrolar Chico sobre sua suposta vasta experiência como vendedor de frutas
no CEASA.

Chico, que era uma alma perdida e exatamente por isso crédulo, passou a ver as
vendas crescerem após a parceria com Beto e Bira, que atraíam clientes pelas palavras difíceis
e pelo sorriso farto, respectivamente. O verdadeiro sonho de Chico era o de juntar dinheiro
suficiente para ir morar – ilegalmente, já que é mais gostoso – na Califórnia. Com a melhora
nos negócios, Chico finalmente pensou que poderia fazer jus a seu apelido: para acelerar o
processo, convidou Bira e Beto para dividirem as despesas do pequeno e decadente
apartamento em que morava, localizado em algum lugar da Cidade Alta. Ambos aceitaram
de bom grado, visto que um local tão insuspeito e afastado dos olhos do Estado seria um
bom refúgio da lei.

Começava então o périplo tupiniquim de Chico Califórnia, Bira Tarja-preta e Beto Satã,
que teriam suas vidas transformadas pelo santo espírito do Sonho Americano, que sussurrava
– enquanto Chico dormia – promessas de fortuna, sal, mar e Dólar, muito Dólar.

Partir, Andar

Francisco acordou sob o peso da dor que só conhecem os que perderam de verdade,
apesar de haver muitas perdas de mentira como daquelas estampadas em produtos com data
de validade. Chico, entretanto, olhava para o teto e pensava na perda do que não tem
expiração certa, que depende do tempo e da sorte para encerrar. Assim, não conseguia
acreditar em duas coisas: que tinha finalmente realizado seu sonho e que, apesar disso, este
se erguia sobre a ruína de suas perdas e lembranças.

Falando em perdas, Chico achava que o pior nos casos que lhe coube era o fato de
sustentar todo o peso do evento, pois quase sempre foi assim. Perdeu mulheres, os pais, os
parentes e se tornou um órfão de família próxima, abrangência que poucos queriam requerer.
Na verdade, Chico não pediu por qualquer uma das perdas pelas quais sofria – quem o faria,
afinal – e, talvez por isso, se resignava com o silêncio de quem convive, mas não vive.

Estando finalmente em solo estadunidense e tendo acordado sob o delírio meio


insone de sua primeira manhã nos EUA, Chico passava pela estranha situação, e não pela
primeira vez, de ter motivos para comemorar e, apesar disso, não conseguir. Notou o canto
dos pássaros que ouvia e pensou que, de repente, há certas coisas das quais não se foge e
que, assim como as aves cantam além do Equador, os fantasmas de sua mente não se calaram
ao cruzarem a fronteira.

Não tinha forças para levantar e entregou seu corpo para que suas memórias o
animassem. Como um boneco largado, transferiu sua visão de um teto do presente e
visualizou um casebre ancestral, ainda em Natal, onde a pobreza imperava e, agora criança,
contava os raios de sol que lhe tomavam o medo, pois a noite acabara de terminar.

Mas não podia continuar sendo isso: havia de se levantar e acordar os outros. Havia
de deixar o peso da morte de seus pais ao lado da porta, para que funcionasse como apoio
contra o vento. Aquela dor tinha de servir para alguma coisa, pois sua inutilidade criava os
piores remorsos e demônios, de modo que Chico entendia que o pior do sofrer era não poder
fazer nada. Aliás, no Brasil muitas vezes o esforço não valia muita coisa e o resultado final
era, afinal, duvidoso.

E outro teto novamente vinha, em uma imagem truncada e de baixa resolução,


daquelas de acontecimento distante, e não era apenas visão: ouvia o som dos carros na rua
e o lavar de roupas por sua mãe. Tentava sentir o cheiro inodoro daquele Alecrim do qual
lembrava, pois o Alecrim real, ao contrário da mera ideia de tal planta-bairro, cheirava a
esgoto a céu aberto.

Tentava mover o pesado e cansado corpo, mas resistia. Lembrou que, quando seus
pais e últimos parentes próximos morreram, nada mais o prendia. Lembrou da música, das
mensagens dos Paralamas do Sucesso: que bastou um sim para a partida de um país que
não mais o prendia com dinheiro, frases ou palavras.
Era absolutamente aterrador pensar que a primeira disposição de sua mente, após
tudo o que passaram para chegarem a Calistoga, foi a de melancolia e tristeza profundas.
Durante todo o tempo em que planejou imigrar, Chico esperou todas as reações possíveis
aos primeiros momentos de sua manhã inaugural nos EUA, e indubitavelmente o medo e a
melancolia não figuravam em suas expectativas.

Ainda assim, tais lembranças de Natal e de sua infância logo deram lugar a uma
euforia cansada e profunda, própria de um homem que passou, junto a seus companheiros,
por tantos desafios até chegar à desejada Califórnia.

Maruim

Final de Outubro, calor e ausência de um aparelho de ar-condicionado. Três náufragos


da sorte, convivendo em perfeita esculhambação, continuavam dividindo aquele apartamento
no centro da cidade.

Bira e Beto, deitados em seus respectivos colchões, assistiam TV na sala quando, já


que desgraça pouca é bobagem, Chico Califórnia abriu a porta e adentrou com um ar
triunfante e exaltado. Explicava que, como era dia vinte e nove, haveriam todos de se preparar
para a comemoração do Samhain; Bira, estupefato, até entendia a relação entre festejar e
sarrar, mas desconhecia algum evento a ocorrer na cidade que tivesse esse propósito
específico.

Chico, estimando que Bira tivesse ouvido mal, perdoava-o, pois ele não sabia o que
pensava.

Deve-se repetir que Chico seria excêntrico se fosse rico mas, como era mais um
lascado, era visto como louco. Assim, Beto e Bira já tinham, de certo modo, conseguido se
acostumar – e até aprender alguma coisa – com aquele conhecimento enciclopédico e
geralmente pouco confiável que Chico insistia em propagar.

Infelizmente, Chico não era um homem apenas de fala duvidosa: costumava utilizar
Beto e Bira como cobaias para seus experimentos sociais e comemorações obscuras, além de
– em sua visão – brindá-los com sua sempre adicionante companhia. Não coincidentemente,
Bira e Beto tinham outra opinião sobre a maneira como Chico pensava, mas ele era um patrão
que até costumava não ter razão mas mandava, e é isso que importa.
Percebendo não se fazer entendido, Chico resolveu utilizar a expressão corrente na
terrinha: Halloween. Bira, homem do interior, continuava atônito. Beto, que conhecia uma
banda de rock por esse nome, associou os termos de Chico à famosa comemoração do Dia
das Bruxas, um negócio que só funciona nos Estados Unidos mas que, enquanto houvesse
televisão, seria conhecido onde Hollywood penetrasse.

Bira, que herdaria o Reino dos Céus graças a seu despreparo, além de não ter
entendido o tal Halloween, entendeu que a festa onde todos sarrariam a noite inteira se daria
no Maruim, bairro onde nasceu e que, nos últimos tempos, passava por um problema de
violência urbana. Considerando isso, Bira prontamente falou que não havia mulher que valesse
o perigo, e que seria melhor esperarem melhor oportunidade de diversão.

Chico tentou explicar que tal evento não era nada relacionado à propagação genética
voluntária, o que deixou Bira ainda mais exasperado por não saber se tinha se metido em um
pesadelo permanente que misturava The Big Bang Theory e o Forró do Dagô: uma alucinação
permanente.

Em verdade, vos digo que Bira nunca utilizaria um termo tão erudito, mas que isso
era deveras pouco importante, visto que ainda que tivesse proferido tal eufemismo, Chico
teria se apossado de todo o crédito. Mr. Califórnia, afinal, era do pior tipo de profissional:
aquele que é meramente experiente sobre algo e, ainda assim, opina quando possível.

Passarem-se cinco longos minutos enquanto Chico fazia o favor, a seus olhos, de
explicar a Bira todo o processo histórico da comemoração do Dia das Bruxas, desde sua
origem pagã na Europa até sua adaptação ao festival de hiperglicemia que os estadunidenses
moldaram. Daquele modo, enquanto Beto pegava no sono, Bira continuava ouvindo e
tentando entender o que diabos eles tinham a ver com tamanhas bizarrices.

Foi aí que fez-se a luz e Chico, afirmando que tal iniciativa fazia parte do Programa
de Enquadramento à Influência Americana, confirmou aquilo que era temido: que os três
iriam, sem recurso, participar de uma overdose celebrativa de festas de Halloween, tudo
ocorrendo entre os dia 29 de Outubro e 02 de Novembro. Resignados, Bira e Beto exercitavam
a crença de que boa parte de sua convivência com Chico era de provas e expiações e que,
antes isto que a cadeia.

Chico explicava que era fundamental que, já que todos iam se aventurar nas terras do
Tio Sam, soubessem e assimilassem as filigranas da cultura nacional dos EUA, de modo que
sua adaptação fosse a mais suave possível. Bira, que gostava mesmo de tomar cachaça,
avaliava que, conseguindo ao menos embriagar-se e voltar vivo ao apartamento, já estaria no
lucro.
Beto, por sua vez, não negava seu passado de gótico natalense. Sempre achou a
figura de Chico, e principalmente suas ideias, absolutamente estranhas. Ainda assim, em
brevíssima auto-análise, percebeu que talvez Chico tivesse entrado em sua vida para lembrá-
lo do tempo em que fora profundamente autêntico, de quando não precisou vestir-se ou
falar bem, pensar no adequado à situação, preocupar-se com o que pensariam dele, pagar
contas e ir preso. Foi um tempo feliz, de quando Beto ainda podia exibir sua bunda desnuda
janela afora do ônibus e quando ainda era o Robert Smith de Candelária, respeitadas as
devidas proporções.

Devaneios postos de lado, Chico terminou sua preleção com grande entusiasmo e,
como se entrasse em êxtase, disse que já possuía os conceitos de fantasias para todos: ele
próprio se vestiria – mesmo tendo dito que estava apenas afirmando sua verdadeira vocação
– de surfista estadunidense. Beto, por sua vez, se transformaria por cinco noites no infame
Homem-Caixão, o único caixão ambulante de Natal, que bem sabia poder fazer coisa melhor
de sua existência do que abrigar defuntos.

Já Bira... ah, Bira. O filho do Maruim, que não tinha qualquer interesse pelo Halloween,
teve sua fantasia tratada com carinho especial por Chico. Durante aquelas cinco noites, Bira
se converteria em Francis Butico. Mais do que um conceito, Francis Butico seria um
personagem complexo, ao contrário dos estereótipos a serem encarnados por Chico e Beto.
Francis Butico era, em verdade, o amálgama absolutamente bizarro que surgiu da tentativa
de um estadunidense ser informal como um brasileiro e de um brasileiro ser abastado como
um estadunidense.

Tal persona se apresentaria, parido pela genialidade auto-proclamada de Chico,


através da imagem de um homem vestido de lama e coberto de dólares. Chico estabeleceu
que Francis precisava estar com os pés na lama como o brasileiro e coberto de dólares como
o estadunidense. Assim, estava decidido que Beto, Chico e Francis, digo, Bira sairiam em
procissão pelas festas natalenses de Halloween que aconteceriam no fatídico período entre
29 de Outubro e 02 de Novembro.

Antes de se explicar o que houve nas festas acima mencionadas, é preciso esclarecer
um quase enigma em si mesmo: o porquê de Chico ter batizado a alegoria ou fantasia, a
essas alturas pouco importava, de Francis. Foi dito por Chico que tinha ouvido em um
programa de rádio um escárnio público a um homem de alcunha Chico Butico. Tendo achado
aquela combinação particularmente sonora e entendendo que a propaganda é a alma da
fantasia, optou por tal nome esdrúxulo e aparentemente desconectado com o já bizarro tema
da alegoria de Bira. Não obstante, precisou trocar o primeiro nome da alcunha pois não
aceitaria qualquer outro Chico naquele grupo: era único, primogênito de si mesmo e original.
Como entusiasta da anglofonia que era, Chico pensou na equivalência no inglês do nome
Francisco, e daí nasceu Francis Butico.

Criado Mr. Butico, Chico explicou que haveria outro adereço além das notas: Bira
haveria de ser acompanhado por um papagaio, ave genuinamente brasileira, a ser batizado
de Bush Filho. Bira não tinha a menor ideia de quem viria a ser o tal Bush Filho, ao passo que
Chico explicou-lhe que se tratava de uma homenagem a um ilustre ex-presidente
estadunidense e que já tinha até ensinado palavras para que o papagaio repetisse e animasse
as festas às quais iriam.

Dito isto, Chico trouxe para dentro do apartamento a gaiola de Bush Filho, que,
assustado e lembrando dos choques elétricos aplicados por Chico, desatou a falar o que fora
ensinado. Como um autômato, Bush Filho passou o resto da noite e madrugada repetindo
um tal de America, frase que Bira nunca ousou pedir para ser traduzida. Talvez tenha sido
melhor assim.

Terminada esta longa digressão, retornamos ao problema central do evangelismo


cultural de Mr. Califórnia: havia poucas e ruins festas de Halloween na cidade e Chico, sem
outra saída, teria que fazer do Edifício Ducal um Empire State Building. Para executar tamanha
melhoria, retirou todo o aparato de venda de frutas da carroceria de Dona Lisbela e decorou-
a como quem veste uma filha. Terminada a longa empreitada, Lisbela assemelhava-se a um
misto de batmóvel e carro de funerária: do batmóvel herdara a cor e do carro de funerária,
todo o resto.

É difícil descrever o mau-gosto que Chico empregara na decoração do carro. Além de


morcegos de plástico, teias de aranha e uma grande abóbora decorada sobre o capô, Chico
armou um tripé metálico na carroceria de Lisbela e, no topo de tal totem macabro alocou
uma grande caveira de burro, para dar sorte.

Dias depois do anúncio fatídico de Chico, tudo estava pronto: Lisbela decorada, Chico
paramentado com roupas e prancha, Beto mal conseguindo respirar dentro de um caixão de
madeira, pernas e braços para fora, e Bira... Bira tinha quase sido afogado no mangue e,
besuntado de lama, teve diversas notas de dólar, todas de origem duvidosa, grudadas em
seu corpo. Por fim, lhe foi dada a gaiola de Bush Jr, esta também pintada de preto e laranja
para não destoar da ocasião.

Resume-se aqui os contratempos ocorridos nas festas entre os dias 29 e 30 de


Outubro: como Natal não estava preparada para Chico Califórnia e a maioria dos ambientes
a serem frequentados pelo insólito trio eram as festas organizadas pelas escolas locais de
inglês, aqueles Degredados do Éden foram, não em ordem: expulsos de duas escolas,
perseguidos pela polícia, assediados por cidadãos desejosos pelos dólares em Bira, quase
linchados quando Lisbela quebrou ao lado de uma igreja evangélica em pleno culto e,
finalmente, constantes alvos de furor comunicativo entre vizinhos e em grupos do Whatsapp.

Apesar dos reveses acima descritos, Chico era um grande otimista. Por isso, convenceu
novamente os outros que não poderiam deixar de estar presentes na maior festa de
Halloween a céu aberto do estado, que se dava em uma certa praça no bairro de Ponta
Negra. Desse modo, chegaram em grande estilo e foram saudados pela multidão que se
aglomerava na praça. Chico, sabe-se lá como, conseguiu abrir passagem com a versão de Dia
das Bruxas de Lisbela e colocou o carro em meio ao povo, pois todo bom homem não pode
negar suas origens.

Muitos não sabiam como reagir ao choque de realidade provocado por um surfista,
um homem coberto de lama e dólares segurando uma gaiola com um papagaio e uma pessoa
vestida de caixão, todos recém-chegados em um carro digno de Elvira, a Rainha das Trevas.

Momentos de tensão separaram a chegada do carro e a reação ao choque por parte


da plateia: Chico suava e pediu ajuda ao Tio Sam, seu santo padroeiro, para que sua
integridade física fosse preservada e que os fracassos dos dias anteriores não se repetissem.
De repente, Tio Sam, por linhas tortas, respondeu ao silencioso clamor de Chico: uma banda
local acabara de começar a tocar Dani Califórnia, do Red Hot Chilli Peppers.

Era um sinal.

Chico sorriu, e nisso o povo o imitou.

Em pouco tempo, viam-se os três nos braços do povo, em ato de efusividade e


reconhecimento dignos de um capítulo de O Bem Amado. Enquanto eram levados pelo mar
de braços que os tiraram do carro e os deslocavam para o palco onde estava a banda, Bira
começou a achar que esse tal de Maruim era uma festa de muita boa vontade, pois os
convidados eram recebidos daquele jeito mesmo estando vestidos da pior maneira possível.

Aclamados como portadores das melhores fantasias da noite, chegaram ao palco, nos
braços do povo, enquanto Dani Califórnia ainda era tocada. Só então Bira percebeu que o
povo aproveitou o momento de exultação para afanar quase todas as notas que estavam
grudadas a seu corpo, de modo que chegou ao palco nu, tendo tido que se utilizar de Bush
Jr, e a ave não parava de dizer America, e de sua gaiola como tapa sexo.

Chico estava tão próximo do céu quanto o Brasil permitiria, pensava.

E discursaram longamente, em uma entrevista coletiva, sobre como tinham


conseguido tamanha criatividade e ousadia artística. Chico, orgulhoso, era o Joãozinho Trinta
daquele desfile, e de nada carecia enquanto a banda tocava outra música do Red Hot Chilli
Peppers.

Bira, é claro, achava aquela coisa de rock algo muito estranho, mas gostava dos
aplausos e de ser alvo das câmeras da multidão.

Foi então que Beto, que tinha dificuldades para falar pelo pequeno buraco cavado no
caixão por Chico, não aguentou o calor já instalado e aumentado pelos holofotes do palco.
Como uma pedra, começou um decidido processo de desmaio que, caso não aparado pelos
que estavam embaixo, resultaria em um grande estrondo.

A vida é cheia de ironias: enquanto Beto começava a tombar, Bush Jr. – agora
promovido a tapa sexo de Bira – sentiu-se ameaçado de predação por uma entidade próxima
e parecida com uma cobra. Acuado na gaiola, beliscou com vontade e não soltou. Bira deu
um grito que foi ouvido em embarcações em alto-mar, pequeninas no horizonte marinho, e
começou a tombar do palco quase em sincronia com Beto. Chico, imediatamente, gritou no
microfone: Bira é um solidário!

A multidão conseguiu segurar a gaiola, Bira, Beto e o caixão. Por algum tipo de
alucinação quase religiosa movida a inebriantes, recusaram-se a por todos no chão.
Novamente, deslizavam pelo mar de mãos.

Chico, um ingênuo sonhador, não entendeu que Bira e Beto haviam desmaiado.
Pensando se tratar de uma performance do Rock and Roll que Bira e Beto estavam começando
a assimilar, decidiu jogar-se também para a multidão, já tendo falado tudo o que queria sobre
os adereços e estando aproveitando aquele momento de idolatria. O PEIA (Programa de
Enquadramento à Cultura Americana) havia sido um sucesso, dada a intensa introdução de
Beto e Bira ao Halloween.

Continuaram a noite bêbados e nos braços do povo.

O caixão de Beto figurou em mais de duas mil e quinhentas selfies.


Vizinhos

O Trio Ternura, como quase todo mundo, tinha vizinhos que, sendo humanos,
alternavam-se entre quatro estados: a mediocridade nossa do dia a dia, o desassossego pois
venceu a prestação, o raro momento de civilidade bondosa e, por fim, quando Satanás reina
absoluto e não dá troco. Certa feita, o Três deixaram para trás o apartamento para mais um
dia de trabalho com Lili, tendo se deparado com uma cena até corriqueira: uma discussão
matinal entre a viúva do 201 e a mal-amada do 102, as quais logo receberiam reforços de
outros que também saíam para o trabalho.

Um pouco espantados com este verdadeiro café-da-manhã servido pela humanidade,


nosso querido trio observava a profusão de vizinhos, em um bate-boca incessante, que já
deixava alguns dos querelantes do lado de fora da portaria do carcomido prédio da Cidade
Alta, pois já não havia espaço para quem quisesse se indignar.

Além da saída térrea das escadas só havia Terra de Ninguém: a pauta do dia não
eram os rejeitos alimentares do cachorro de um ou o vazamento de água pelas plantas de
outra. Não era sequer o barulho dioturno de Bush Jr, que ainda se recuperava do trauma
sofrido durante o Halloween. Realizado o pior dos eventos, os muitos vizinhos batiam boca
por algum assunto que rapidamente foi superado e se transformou em uma discussão sobre
política.

Uma afirmava que a culpa era da presidente, ao passo que outro defendia a líder. Um
terceiro disse que a crise quebrou sua barraca na feira e uma quarta afirmou que o papel
higiênico subiu e, por isso, optava por uma marca mais áspera, tendo perdido seu sossego
após tal indignidade.

Beto e Chico buscaram passar pela aglomeração sem chamar tanta atenção, mas Bira
ficou decididamente encantado com o argumento sobre o papel higiênico e, então, parou
para ouvir o que se dizia. Nunca fora interessado em política, exceto para inspiração: seus
pares mais proficientes em Brasília o motivaram a seguir a arte da subtração material. Ainda
assim, rapidamente a discussão mostrou a Bira que não valia mesmo a pena morar em um
país em que não se podia ter certo poder de compra, pois a crise comia a poupança dos
pobres e os fundos, obviamente os de investimento, dos ricos.

Beto logo interveio e disse que reclamavam à toa, devendo se mostrarem satisfeitos
pelo fato de a crise ainda não ter devorado coisa mais importante. A viúva do 201 parou por
um momento, com o olhar perdido no horizonte, e Beto intuiu que talvez ela, naquele
momento, quisesse secretamente que a crise piorasse um pouco mais.

Chico, percebendo que o falatório havia cativado Bira e entretido Beto, sacou seu fiel
livro paradidático de inglês para motoristas e, resignado, decidiu esperar dez minutos.
Eventualmente, intervia brevemente reforçando a insistência de Bira em dizer que não valia
mais a pena viver em um país em que se devora os fundos todos os dias enquanto alguns
estão fazendo chapinha em cachorro. Em dado momento, Bira parecia assenhorar-se de parte
da discussão, Freudianamente insistindo no argumento sobre o papel higiênico e os fundos.
Tamanha foi sua exaltação retórica que Beto chegou a pensar que Bira tinha certo tino para
a política, o que só reforçou sua opinião de que Mr. Tarja-preta tinha escolhido a profissão
certa antes de começar a vender frutas.

Subindo em cima de um caixote que até há pouco carregava e que deveria ser
destinado à carroceria de Dona Lisbela, Bira proferiu o apogeu retórico de sua fala: afirmou
que o Brasil nunca iria para a frente enquanto se continuasse a alisar o cachorro sem valorizar
os fundos. Acrescentou que os fundos são o maior patrimônio imaterial do país e, por isso,
deveriam receber tratamento real. Rapidamente, Bira começou a confundir tudo, gritando que
deveriam investir no cachorro e alisar os fundos e que devia-se fazer chapinha nos fundos e
limpar o cachorro, dentre outras derivações.

Chico e Beto, que a tudo ouviam sem coragem de interpelar, decidiram arrancar Bira
de cima do caixote e afastá-lo dos vizinhos, tentando removê-lo de seu transe oral. Em pouco
menos de dez segundos a vizinhança já estava novamente criando bodes expiatórios para a
esculhambação geral em que sempre esteve o país. Chico, atencioso, notou que os empregos
de todos ali, e até mesmo o dele, eram miseráveis a ponto de serem menos interessantes do
que um bate-boca às sete da manhã, e que a condição de autônomos de praticamente todos
os moradores daquele velho prédio não os puniria por atraso no início de mais um expediente.

Mr. Califórnia refletiu e percebeu que não havia como qualquer lugar do mundo ir
para a frente enquanto metade de seu povo queria ir à esquerda e a outra metade, à direita.
Na verdade, boa parte não queria ir em direção alguma, mas o pessoal politizado acabava
parecendo muito mais numeroso do que as reais contagens. Chico também observou o óbvio:
que se conversas e desejo criassem dinheiro, ele teria feito do próprio trabalho um esforço
de home office bem sucedido.
Na verdade, um dia Chico até tentou mudar a própria vida através da força do
pensamento, influenciado por um programa televisivo esotérico às três da madrugada, mas
tudo o que conseguiu foi ser demitido por justa causa ao ficar em casa desejando
intensamente um aumento. Passaram-se três dias e, incomunicável, Chico falhou em
influenciar o universo a lhe dar o que queria. Findo o período de transe, Chico atentou para
o cheiro fétido do lixo, para as moscas sobre os pratos sujos pela casa e para sua então
condição de desempregado. Infelizmente, não conseguira qualquer aumento ou fora
transportado magicamente para a Califórnia e, exatamente por isso, estabeleceu que o único
beneficiado pelo universo foi o autor do best seller que postulava tal método.

Bem, voltando. Arrancado Bira de cima do caixote, o Trio seguiu para sua ronda urbana
diária, da qual por vezes retornava ao apartamento para constatar que Chico estava mais
pobre do que quando saíra. Considerando-se a crescente inflação dos últimos meses, o
carente tino comercial de Chico, o fato de que Beto e Bira eventualmente afanavam parte do
apurado e o pior, de Chico saber disso e ainda assim amá-los, a venda de frutas talvez não
fosse a maneira mais eficiente de se chegar à Califórnia, ao menos durante aqueles tempos
de crise.

É importante lembrar que o santo patrono de Chico, Tio Sam, por vezes se comunicava
esquizofrenicamente com seu afilhado. Enquanto rodavam pela cidade, o Trio observou uma
passeata em protesto contra a crise econômica brasileira de 2015. É necessária a ressalva
cronológica, pois corria-se o risco de confundir a crise atual com a de 2014 ou até mesmo
com a de 2013.

Parecia coincidente que Chico estivesse observando outro fenômeno social sobre o
mesmo tema, a crise, em um espaço inferior a cinco horas. Mas, como Chico era um crente
cético, não se deixava levar por qualquer apelo emocional prévio quanto a uma suposta
comunicação do Além para com ele.

Foi aí que o pneu de Lili furou.

Bira e Beto eram muito pouco versados na arte da troca pneumática. Ao contrário,
conheciam bem apenas a parte da remoção do pneu do veículo, por obrigação profissional.
Ainda xingando o buraco massivo pelo qual passou, Chico desceu do carro para executar o
serviço. Recordemos que os buracos rodoviários de Natal em nada deviam em tamanho aos
seus primos encontrados nos centros de certas galáxias, o que fez Chico dar graças a Deus
ao perceber que ainda tinha restado a calota, mesmo perdido o pneu.

E então, Tio Sam se fez carne.


Chico, após buscar o estepe, viu uma nota de cem dólares grudada por um chiclete
à calota do carro. Imediatamente começou a suar e empalideceu. Não sabia o que dizer, nem
se seria educado comemorar antes de agradecer ao Santo Padroeiro. Aliás, sua mente estava
em tamanha confusão que chegou à conclusão de que a nota era um sinal de seu patrono,
portando a seguinte mensagem: a crise econômica lhe daria dinheiro, e ele deveria explorá-
la para conseguir sua sonhada imigração para os EUA. Como Chico era um crente cético, não
admitiu qualquer outra possibilidade que explicasse como uma nota de cem dólares pudesse
ter ido parar dentro de um pneu, grudada à calota por um chiclete. O fato do pneu ter furado
bem em frente à manifestação contra a presidente só reforçou a noção de que a crise, fagulha
da insatisfação popular, culminaria em muitos dólares caso Chico seguisse a orientação do
santo.

Beto e Bira aproveitaram a situação para vender tomates e frutas velhas, a preço de
novas, para os manifestantes. Dentro em pouco tempo os revoltados estavam a jogar frutas
em um grande boneco inflável que representava a mandatária maior e, como muçulmanos
apedrejando o Diabo, rogavam uma praga a cada projétil lançado. Ninguém dirá que Chico
não estava cercado dos mais astutos colegas de trabalho, dotados de uma sensibilidade ímpar
quanto a oferecer aquilo que o cliente quer comprar, mesmo sem ainda o saber.

Logo, Chico já tinha trocado o pneu e estava explicando a mensagem que lhe fora
apresentada por Tio Sam. Beto e Bira, prevenidos, estavam felizes com a descoberta de Chico
mas não sabiam bem qual seria o método para a aquisição de tais dólares, visto que a sorte,
perdoem o trocadilho, contou quem era o santo mas não revelou o milagre, ao contrário do
que geralmente ocorre entre os seres humanos.

Chico desdenhou da dúvida de seus companheiros, dizendo-lhes que o bom da fé


era exatamente o mistério e que ninguém gosta de spoilers. Esperançoso, Mr. Califórnia disse
que não queria saber muito adiante do grande seriado de sua vida e que tudo aquilo ainda
viraria um filme. Como um Colombo a comandar marinheiros absolutamente incertos do
destino da viagem, Chico ordenou aos dois que voltassem para o carro e que confiassem.
Bira, que perderia os dentes mas não a piada, respondeu de pronto: “Eis o mistério da fé”. É
preciso lembrar que Bira, mesmo jovem, já usava dentadura: tal fato parece explicar melhor
sua disposição para o humor.

Era final de tarde quando o Trio retornava ao apartamento, após mais um dia mediano
de trabalho que só não foi pior graças aos manifestantes e seu ímpeto apedrejatório.
Estacionado o carro, viram o impensável: os vizinhos, agora em maior número, permaneciam
no mesmo lugar onde se encontravam pela manhã e continuavam em acalorada discussão.
Bira, que não entendia muito de internet, ficou com a impressão que era de tais
barracos descomunais que ela se mantinha ativa. Beto, mais íntimo da digitalidade, concordou.
Chico, ainda sob influência mística, aproximou-se e percebeu que o assunto aparentava ser o
mesmo da manhã: a crise econômica brasileira. Vendo nisso mais um sinal do Tio Sam, Chico
entendeu que deveria tentar ganhar dinheiro do ódio no coração dos brasileiros.

Rapidamente subiram os três até o apartamento e voltaram paramentados, tendo


Chico explicado que iriam faturar viabilizando a manifestação do ódio político no Brasil.
Quando desceram, armaram uma pequena barraca ao lado do grupo de 26 vizinhos que, às
sete da noite, continuavam batendo boca.

Armada a barraca, Beto e Bira se encarregaram de anunciar os produtos enquanto


Chico arrumava os salgadinhos e refrescos. Também se oferecia um serviço de guarda de
lugar na discussão, caso um dos envolvidos precisasse subir para usar o banheiro. Além disto,
Bira e Beto passaram a sugerir caminhos retóricos para que ambos os lados da querela
pudessem melhor se expressar e tentar ganhar o argumento.

Como sofistas, urubus da desgraça alheia, os três trabalharam como nunca e faturaram
alto. Chico, enquanto preparava os refreshments para os envolvidos na discussão, percebeu
que havia gente lucrando alto com a esculhambação nacional histórica e a presente desunião
do país, e que valia a pena ser um deles. O debate encerrou-se por volta das onze da noite,
com o retorno domiciliar dos vizinhos, inalterados em suas opiniões, sem vencedores
aparentes. Chico, Beto e Bira nunca ganharam tanto dinheiro em um só dia; nada como um
nicho de mercado.

Déficit

Beto não estava em seu melhor dia. Consternado, novamente se perguntava o que
diabos fazia de sua vida ao envolver-se com um louco americanizado e com um companheiro
malandro de profissão. Aliás, houve dias em que, após passar a integrar o Trio Ternura,
desejou estar na cadeia: lá, pensava, sabia mais ou menos o que esperar. Não apenas isso,
nosso querido Beto não estava completamente convencido da idéia imigratória que Chico
constantemente apresentava. Bira, mais influenciável, fora vencido primeiro. Beto Satã, a
exemplo da famosa madame pernambucana, era tinhoso e não tinha certeza de que sua
felicidade estaria além da linha do Equador, fosse na Califórnia ou em Vancouver.

É preciso esclarecer que Bira e Beto, este particularmente, tinham feito escolhas
profissionais duvidosas, mas não era lá más pessoas. Na verdade, Beto sentia um tédio mental
incrível, fato este que corroborou para seu envolvimento com o excitante mundo do crime.
Em verdade, o próprio Chico, homem enciclopédico, já havia afirmado que Beto sofria de
Transtorno de Déficit de Atenção. O paciente, por outro lado, achava que o real problema em
sua vida era o Déficit de Dinheiro, doença essa ainda não inserida nos anais do DSM-5.

Infelizmente para o avanço da técnica da ladroagem, Beto era um péssimo larápio: o


pouco que conseguiu furtar antes de ser preso foi surrupiado por um advogado de má índole
que, honrando seu colarinho branco, levou a grana de Beto, não passou recibo nem o tirou
da cadeia, não tendo cumprido com o combinado. Para sua sorte, conseguira surrupiar seus
documentos e ficha criminal da delegacia de interior na qual se encontrava, pois essa coisa
de digitalização não era condição nacional, e não tinha, para todos os efeitos, antecedentes
criminais comprováveis.

Aliás, lembra-se aqui que Beto era tão azarado como ladrão que conseguiu, ainda em
seus primeiros roubos, dar voz de assalto a um policial à paisana. No embate de vozes que
se seguiu, prevaleceu a de prisão. Por sorte, Beto não se tornou mais uma estatística da
violência policial, pois só apanhou um pouco e não foi morto. Apesar destes e de tantos
outros problemas, pode-se dizer que Beto era um homem otimista.

Sozinho com seus pensamentos e em seu quarto, Beto estava alheio ao mundo
exterior, que se resumia à tentativa, na sala, de ensino de inglês a Bira. Chico se esforçava,
mas Bira era resiliente em sua insistência de falar uma variante muito própria do português
brasileiro. Enquanto o professor insistia, Beto refletia.

Pensava sobre o que passou por sua cabeça ao aceitar o convite de juntar-se à trupe
de Chico, ainda mais decidindo morar em seu apartamento. Talvez, imaginava, partilhasse da
mesma esperança férrea que sustentava Chico em seu desejo de dias melhores longe do
Brasil. Por outro lado, talvez fosse mera conveniência. Incerto, deixava uma profusão de
pensamentos tomar conta de seu cérebro, nunca detendo-se em nenhuma linha de raciocínio.

Nosso estimado Beto não sabia, mas ter Déficit de Atenção, para além dos aspectos
técnicos, era basicamente estar amarrado à uma cadeira em frente à uma televisão ligada,
cujos canais estão sendo constantemente trocados, não se tendo acesso a seu controle
remoto. Lembrando do finado Espanta Jesus, quem padece de tal mal “…pega Globo e SBT
ao mesmo tempo”.

Beto nunca se envolveu com atividades intelectuais relevantes. Lera poucos livros na
vida e, também por isso, seu problema passara desapercebido por sua família e poucos
amigos. Na verdade, sempre fora considerado uma criança problemática, com notas ruins e
pouca disciplina: hiperativa. Ainda assim, era dotado de uma articulação oral, associada à uma
percepção arguta e sensível de seus arredores, que o permitiram ir escapando pelas brechas
da infância e adolescência. Foi na idade adulta que as expectativas sociais e financeiras se
abateram sobre Beto e, por isso, seu problema neurológico se mostrou o mais irruptivo. Não
tendo conseguido se manter em qualquer emprego por muito tempo e dado o seu caráter
distraído e de palavras por vezes inconsequentes, acabara por cair no crime como forma de
se manter e de extravasar uma profunda mágoa que tinha por uma sociedade que, como
diria o grande Fábio Junior, “…só paga para ver”.

Mas, para sua sorte e imensa frustração, nem para ladrão prestava. Vítima ou algoz
social? Beto não perdia tempo com esse tipo de reflexão, apesar de ser levemente inteligente.
Queria mesmo ganhar dinheiro e viver bem e longe de problemas, como a esmagadora
maioria dos seres humanos. Na verdade, antes de quaisquer adjetivações, pessoas como Beto
precisavam de ajuda de uma sociedade que, por ignorância sistêmica, sequer sabia do que
estava havendo e, ainda assim, é possível que não cooperasse mesmo que soubesse.

O que muitos não entendiam é que uma doença psiquiátrica não é um problema
moral e que nem todo o comportamento é uma representação fiel do que se queira chamar
de personalidade. No caso de Beto, muito de seus excessos ao longo da vida eram condutas
adaptativas de seu cérebro para aumentar a produção de seus neurotransmissores. Assunto
técnico, sem dúvidas, mas é sempre preciso lembrar que pode existir mais relação do que
parece entre dois compostos químicos de nomes complicados e os atos impulsivos de tão
mal-sucedido ladrão.

Em certo aspecto, o Trio era composto por representantes que compunham o


turbilhão mestiço, indefinível e tênue que gira o Brasil. Como era um otimista, Beto ao menos
aceitou que sua situação atual poderia ter a tendência de melhorar. Ainda não sabendo bem
o porquê de ter considerado, seja por força retórica de Chico ou por loucura própria, embarcar
na grande expedição que os levaria aos EUA, Beto ficou propenso a tratar sua situação como
o prelúdio de grandeza antes impensável ou como o primeiro capítulo de sua própria, gloriosa
ruína.

Não sabendo qual seria seu destino, rolava no colchão quando lembrou de sua mãe,
Dona da Paz, que costumava afirmar que do chão não se passa. Acabou rolando demais e
comprovando o aforismo de sua velha e finada mãe. Há seletas situações na vida em que não
se é tão ruim não se ter dinheiro para comprar uma cama.

Beto tentava avaliar suas opções: afastar-se completamente do pardieiro de loucos


no qual se encontrava e enfrentar a promessa de uma vida pobre e banal ou arriscar-se como
imigrante ilegal em um país cuja cultura pouco conhecia e cuja língua lhe era estranha. Não
apenas isso, mas tornar-se um imigrante ilegal guiado por um messias de gosto duvidoso e
com tendências levemente esquizofrênicas.
Apesar do P.E.I.A., Programa de Enquadramento à Influência Americana, Beto ainda
era forasteiro no que tangia o modo de vida estadunidense. O que sabia com certeza, graças
às figuras de Youtubers que lá moravam, é que os tais EUA eram uma terra de abundância
em quase todos os sentidos, principalmente quanto à comida.

E isso era o que mais lhe doía: saber que, no Brasil, até mesmo os gêneros
fundamentais estavam dramaticamente caros quando se considerava o poder de compra do
Real. Beto, que sempre dependeu de um salário mínimo para sobreviver – isso é, quando
ainda trabalhava no mercado formal – entendia muito bem quando Chico lhe afirmava que
viver nos EUA não era só uma possibilidade de comprar eletrônicos baratos, mas de viver
manifestações de dignidade pessoal que o Brasil os negara.

Roberto era louco por maçãs e sempre quis poder as comer quando lhe conviesse,
mas seu estilo de vida absolutamente modesto nunca o permitiu desfrutar de mais do que
poucos frutos por mês. Na verdade, até passou a comer mais algumas quando passou a furtar
tais frutas do mercadinho de seu bairro – este seu início na vida do crime – mas logo
abandonou os ataques ao mercado em questão pois rapidamente aprendeu que qualquer
ladrão que se preze não atua perto de onde mora.

Verdade seja dita, Chico atingiu o ponto fraco de Mr. Satã quando o falou sobre uma
iguaria da culinária anglo-saxã-estadunidense, a apple pie. Para incautos monoglotas como
nós, meramente uma receita de torta de maçã como nunca praticada nas terras tropicais de
Natal. Vendo vídeos sobre tal produto, Beto até tentou reproduzir a torta em companhia de
Bira e Chico, mas as perícias culinárias do trio não equivaliam a muito e o empreendimento
fracassou.
Título a Definir, Capítulo a Terminar

O Brasil tem sido, há muito tempo, um país em que todos estão, de maneiras distintas,
se virando. Beto, como tantos, entendia muito bem que a flexibilidade é fundamental para
que haja fluidez na vida no Brasil; Chico, por outro lado, tinha adquirido uma inflexibilidade
protestante e puritana, não se sabe se por deslumbre cego ou por admiração resultante de
uma análise crítica.

Certa vez o Destino fez com que, em uma noite de bebedeira e descontração após
outro dia de venda frutigranjeira, Beto e os Meninos (e aqui entenda-se Bira e Chico)
encontrassem dois amigos de longa data de Beto: Lucimauro e Danileuska. Esse par tinha
muitos elementos em comum, começando pelo importante fato de que ambos foram
batizados em momentos de extrema infelicidade. Talvez também por isso Dani e Luci,
contrações que usavam no convívio diário, se sentissem unidos em desgraça, unha e carne.

Luci e Dani tinham também dois elementos em comum que são importantes para
esta narrativa: gostavam de Funk Carioca e tinham uma atração pelo lado mais, digamos,
performático da vida. Por isso, andavam juntos com bastante frequência, assolando as festas
de música eletrônica da cidade, muitas vezes começando a noite na Cidade Alta e
amanhecendo em algum lugar da Ribeira, completamente bêbados.

O fato é que, reunidos no Bardalos, Luci e Dani foram apresentados por Beto a Chico
e Bira. De início, Bira ficou um pouco assustado com os adereços e trajes um pouco mais
exóticos da dupla: era Sexta-feira e, por isso, Luci e Dani aqueciam os motores no bar antes
de partirem para mais uma noitada de absoluto hedonismo. Beto, já acostumado com o
comportamento flamboyant de Dani e Luci, e também habituado às suas roupas de festa, não
se preocupava com tamanhas trivialidades.

Era perfeitamente compreensível o comportamento de ambos: escutavam todos os


dias, à exaustão e em diversos meios, que o Brasil era um país sem futuro. Poupança e
previdência eram abordagens saxãs: na Banânia, nome que era dado ao país por certos setores
da mídia televisiva, viver o presente e sofrer no futuro costumava ser a conduta de ordem.
Também por isso, Dani e Luci não perdiam tempo no tocante a aproveitar a vida.

Não que qualquer indivíduo com um mínimo de bom senso achasse adequado o
estado de coisas brasileiro; entretanto, nosso povo prefere (se) virar a capotar. Devido a isto,
Luci e Dani sustentavam uma forma de encarar o Brasil que chamavam de Presentismo.
Explicavam frequentemente que a diferença entre o Presentismo e o Imediatismo nada mais
era que o primeiro pensava na farra da semana que vem, ao passo que o Imediatismo, coisa
de gente míope e que não cuida do amanhã, pregava a mais irresponsável preocupação com
o agora.

Havia algo oculto sobre o Presentismo, a existência de um ensinamento esotérico que


apenas o casal conhecia: a vida era um Presente e até mesmo os mais azarados, ao nascerem
do lado errado da Linha do Equador, tinham o direito e a possibilidade de aproveitar suas
existências da melhor maneira possível. Dani e Luci não se preocupavam com a imagem de
irresponsáveis ébrios e comedores de macarrão instantâneo que a sociedade lhes tinha, pois
entendiam que o milagre, da vida ou religioso, é algo absolutamente intransferível e pessoal,
de modo que o poder de suas experiências presentistas era mais importante que qualquer
aprovação de terceiros.

Mas, naturalmente, Beto e os Meninos pouco sabiam das coisas acima descritas.

Sentados à mesa e após algumas cervejas, Luci e Dani explicaram ao Trio como tinham
ser tornado membros respeitados de uma banda de Funk Carioca, que Bira insistia em arcaizar
chamando de conjunto, de nome Problemas Funk Band. O Problemas, pioneiro do Funk
Acanalhação, era um expoente criativo do cenário musical natalense: não havia alma
modernosa que não tivesse ouvido falar das performances de Luci, que tornava-se MC
Danone, e Dani, que passava a encarnar a MC Timbu.

Beto, já sob efeito de um pouco de álcool, iniciou a complexa explicação de como


Danileuska, que já sofria com seu nome de batismo, foi obrigada a assumir a alcunha de
Timbu: a mesma havia confirmado que, antes de assumir os vocais da Problemas, tentou
alcançar notoriedade como DJ sob diversos nomes, nunca obtendo sucesso. Certa noite, um
bêbado que passeava pelo bairro da Ribeira a confundiu com um Timbu, provavelmente
devido à sua peruca e à suas roupas, e foi sugerido que Dani tentasse desenvolver seu
trabalho sob essa nova persona.

Foi um sucesso estrondoso: todos queriam conhecer a MC, funkeira sem firulas, que
tinha a ousadia de se apresentar aludindo à imagem de um mamífero tão fraco de feição. Já
Lucimauro teve a brilhante ideia de capitalizar a sua já famosa obsessão por Danones, sem
os quais não passava um dia, e valer-se da alcunha que exalta o seu objeto de desejo.
Natal York City

Preá Biônico

Ubirajara Tarja-preta

Chico Califórnia

Beto Satã

Pedro “Valadão” Soares Mota Albuquerque Farias de Oliveira Neto

O Clube da Insônia

O Pau de Santo Antônio

Dias de Ruína

Carro da Fruta

Halloween = Maruim?

P.E.I.A. = Programa de Enquadramento à Influência Americana

Tojeba, o Cão

Chico era um homem melancólico, daqueles que preferia a tuberculose a ter que viver
sob o neon do século XXI; entretanto, nunca abriu mão de seus eletrônicos e, vai ver, Chico
era mais um ser humano que queria o passado findo para poder tapar o buraco de um
presente, em suas palavras, meio complicado.

A parada gay

MC Timbú/MC Danone/Deletério Jeová

Programa de Rádio “Chuchu Erótico”

Show de Entrevistas do Burro Cego

Porte de armas com NERFs.

Catecismo imigratório e cookie como óstia

Cerveja Gourmet: a mesma coisa pelo dobro do preço.

1o de Maio, ou como a natureza não respeita feriados.

Prova de triathlon Macaxeira Man, organizada por Bira.

“Eu sou a reencarnação de Sérgio Porto!”

As Crônicas Sabáticas de Marceleza

Antônio (Tonho) Labareda

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