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Dando seqüência aos trabalhos que tenho realizado sobre Lévi-Strauss e a música 3 ,
desejo abordar aqui o seu pensamento musical do ponto de vista daque le aspecto que
entendo como o mais interessante e que poucos têm levado a sério – ou mesmo, ninguém
segundo conheço: pretendo agora refletir sobre Lévi-Strauss como pensador sobre a música
ocidental, do tope dos maiores, isto é do tope de Spengler, Adorno, Weber e outros
monstros no assunto. Fazendo isto eu espero poder prestar uma justa homenagem à
fertilidade de sua obra monumental, salientando-lhe um aspecto eventualmente
surpreendente. A produção acadêmica, e não, sobre o tema – o pensamento musical de
Lévi-Strauss - é grande, privilegiando a abordagem da relação que o autor estabelece entre
o mito e a música, relação que constitui um capítulo – digamos assim – de seu pensamento
sobre o mito, este, sim, de grande impacto nas ciências humanas, na filosofia, nas artes e
em outros domínios 4 .
Sempre me pareceu estranho, mas confesso que nunca levei isto a sério, senão
recentemente, que Lévi-Strauss tenha trabalhado tão pouco sobre as músicas indígenas
ameríndias propriamente ditas. Se não me falha a memória, o grosso de sua contribuição
nesta temática está no segundo volume das Mitológicas (1967), ao que se pode acrescentar
algo mais em Tristes Trópicos (1986 [1955]). Pouco mais haverá, creio. Nos dois casos,
porém – especialmente no primeiro -, sua ênfase está antes nos instrumentos musicais e por
assim dizer na fonografia que na música, ela mesma. Quer dizer: quem se dispuser a buscar
1
Uma versão anterior deste texto, pelo qual sou o único responsável, foi publicada em Araújo e outros, orgs.
(2008), outra tendo sido apresentada à Mesa Redonda 4 – de homenagem aos 100 anos de Lévi-Strauss -,
organizada por Tânia Stolze Lima para o 32º. Encontro Anual da ANPOCS (Caxambu, 27-31/10/08).
Obrigado a Samuel, Gaspar e Vincenzo pela preparação dos originais para a publicação e a Tânia pelo convite
para participar da Mesa. Sou grato também àqueles integrantes da audiência desta, pelos comentários.
2
Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o
Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe (http://musa.ufsc.br). Pesquisador
do CNPq. Contato: rafael@cfh.ufsc.br ou rafael.bastos@pesquisador.cnpq.br.
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Como em (1978 [1999], 1982, 1990a, 1990b, 1993, 1995a, 1966) e dois livros em preparação.
4
Para a consideração deste impacto nos campos musicológicos, ver, entre tantos outros textos, Nattiez (1971,
1973a, 1973b), Imberty (1979, 1981) e Pousseur (1971). Conforme os trabalhos referidos na nota 3 para um
mapeamento mais sistemático. Veja Merquior (1975) sobre a estética em geral do autor.
em nosso autor – justamente famoso pelo pensamento mito- musical – dados, informações e
reflexões sobre os sistemas musicais ameríndios, ficará decepcionado. Sugiro que isto não é
uma omissão de Lévi-Strauss, casual ou não, resultando, isto sim, de uma posição
sistemática sua, mesmo que se possa argumentar com base na sua conhecida declaração de
que as músicas étnicas (entre as quais estão as ameríndias) não exercem sobre ele a mesma
“força sugestiva” que a música tonal ocidental (Nattiez 1973a: 6) 5 .
Lévi-Strauss, então, quase não aborda as músicas indígenas, um dos motivos mais
fortes, aliás, das muitas críticas que recebeu por parte dos integrantes das várias
musicologias 6 . Mas ele dedica-se com fervor - e abrangência - a elaborar um pensamento
muito marcante sobre as relações entre o mito, típica mas não exclusivamente o ameríndio,
e a música, tonal ocidental. Mas o que, mais precisamente, pensa ele sobre essas relações?
5
Sobre a força sugestiva, sobre ele, da música ocidental – referida tantas vezes no decorrer de sua obra -, de
imediato recordo a famosa passagem de Tristes Trópicos, sobre a invasão obsessiva de seu espírito, em Mato
Grosso, pelo Estudo nº. 3, opus 10, para piano, de Chopin (Lévi-Strauss, 1986: 373-374).
6
Ver Menezes Bastos (1999: 52-54, 1990: 41-42) para o mapeamento dessas críticas. Para as incursões
musicológicas do autor, veja o Finale do L’Homme Nu e alguns dos textos de Olhar, Escutar, Ler (1997a).
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Refiro-me ao pensamento sobre a música clássico-romântica. Brevemente, aí a música é imaginada como
uma entidade, por assim dizer, “em estado puro e livre de qualquer encarnação” (veja adiante, como a
matemática para Lévi-Strauss). Tenho tratado disto em vários textos (por exemplo, 1990a, 1995a, 1996).
8
Conforme respectivamente Lévi-Strauss (1991 [1964], 1971 e 1979 [1978]).
conhecedor cultivado da vida musical de concerto – como ele modestamente diz, através do
rádio - e da literatura musical e musicológica sobre ela.
9
A idéia da partitura como símile do mito já havia sido posta pelo autor pelo menos desde 1955 (veja 1970a:
232).
10
Ver Menezes Bastos (1996: 156-160, 176, nota 12).
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A fuga a que Lévi-Strauss se refere é a Bachiana (1979: 72-73).
12
Tratei deste cruzamento entre Lévi-Strauss e Spengler (veja 1973) em 1995a e 1996. No mesmo Finale (:
584), diz Lévi-Strauss, sem referir-se a Spengler: “quando o mito morre, a música torna-se mítica da mesma
maneira que as obras de arte, quando a religião morre, cessam de ser simplesmente belas para se tornarem
sagradas” (tradução minha).
Para o autor, então, o pensamento mítico no ocidente moderno deixa de ter
consistência em seu próprio campo, i.e. mitológico, migrando inicialmente para a literatura
e a música, logo passando, porém – sob o império da arte da fuga –, a ter residência
específica no campo da música, ali onde suas “funções intelectuais e também emotivas”
encontraram condições de pleno desenvolvimento (1979: 69).
Poder-se-ia dizer de tudo isso: “Mein Reich ist in der Luft”. É óbvio apontar, mas
vale: o pensamento musical de Lévi-Strauss é um pensar quase que exclusivamente sobre o
ocidente – e, não, sobre o mundo ameríndio -, tendo tanto interesse quanto o de outros
intelectuais da mesma estatura. Por exemplo, como já disse, Spengler, Weber e Adorno 13 .
Será possível pensar o ocidente sem a música?
Ainda no Finale, Lévi-Strauss aborda a música sob uma ótica mais abrangente,
mantendo-a ao lado do mito e incluindo os dois no rol “das quatro famílias de ocupantes
maiores dos estudos estruturais”, juntamente com as entidades matemáticas e as línguas
naturais. Sua intenção com isto – que qualifica como uma hipótese - é estabelecer as
relações mito- música de maneira mais clara e convincente (: 578).
No caso das entidades matemáticas, o autor ressalta que elas consistem de estruturas
“em estado puro e livres de qualquer encarnação”. Sendo elas assim, Lévi-Strauss -
recordando Saussure - vai apontar que elas mantêm uma relação de oposição com os fatos
13
Recordo que para Weber a grande marca da música ocidental é a racionalidade, enquanto que para Adorno,
a ratio progressiva (Menezes Bastos 1990a, 1995a, 1996).
da língua, duplamente encarnados, pelo som e pelo sentido. As entidades matemáticas e
lingüísticas ocupam, então, pólos opostos de um mesmo eixo no presente esquema de Lévi-
Strauss. A música e o mito desenham o segundo, nele posicionando-se de maneira também
oposta: no caso da primeira, a estrutura “descola-se do sentido e adere ao som”. Quanto ao
mito, dá-se o inverso – “descola-se do som e adere ao sentido” (: 578).
Estas duas questões remetem minha reflexão aos primórdios da obra de Lévi-
Strauss, ali onde ela é, por assim dizer, programada - aos textos republicados como os
capítulos II-V e XV-XVII de Antropologia Estrutural (1970 [1958]), a As Estruturas
Elementares do Parentesco (1976 [1949]) e a Tristes Trópicos. Muito brevemente falando:
ali o autor, apropriando-se de um lado da semiologia de Saussure e do estruturalismo
lingüístico da escola de Praga – neste, Jakobson ocupando posição destacada; das
matemáticas qualitativas, desenvolvidas, entre outros, nos campos das teorias da
informação e dos jogos, e da cibernética – Wiener aqui sendo central; e, de outro, da teoria
da reciprocidade de Mauss, busca compreender o homem sob a moldura geral da
comunicação – “Quem diz o homem diz linguagem, quem diz linguagem diz sociedade”
(1986: 385).
Mas o que será um dicionário de temas? O que será um tema? Haverá, enfim,
alguma linguagem traduzível - intersemioticamente - em outra? Como “digo”, por exemplo,
“pedra” em “pintura de Monet”? Tudo começa, aqui, com o que será “dizer” no plano
intersemiótico e evidentemente que não vale dar respostas do tipo “’anthropology” é
“anthropologie”, que é “antropologia”, que é ... etc’”, pois assim continuamos na mesma
linguagem em termos intersemióticos, ou seja continuamos operando com a língua falada.
Sugiro que nas Mitológicas Lévi-Strauss, ele mesmo, tangencia um dos enigmas
(palavra que prefiro a mistério, no caso da inquirição antropológica) da música. Isto, ao
analisar o mito sob inspiração da idéia de tema & variação, apontando simultaneamente
para a noção de motivo - átomo do estrato sintático da música - e para os processos
variacionais através dos quais os motivos são elaborados na trama musical: inversão,
justaposição, retrogradação, oposição e tantos outros mais.
O que é um motivo? – Digamos que algo que de um lado tem a natureza do tema –
coisa que ninguém pode denegar à música (é claro que não a toda, mas a alguma) - ao
mesmo tempo em que é similar a um assunto ou tópico, o que muitos (tipicamente, músicos
e aficionados, como Lévi-Strauss, da música clássico-romântica ocidental) recusam ter
existência no campo musical. O motivo é uma causa ou agitação elementar, um tema
minimal, digamos desta maneira (veja Menezes Bastos 1990a). Algo, enfim, como uma
palavra ou, melhor dizendo, tema, raiz, radical do campo da língua falada.
Não creio, assim, que o problema – expresso agora com esta palavra o que antes
chamei de enigma e que o autor compreende como um mistério – da música seja que ela
exclua a algo como a palavra e, assim, o dicionário. O problema que Lévi-Strauss levanta,
apontando somente para a música – e, assim, recontando o mito que constitui a própria
música ocidental, não qualquer uma, mas tipicamente a clássico-romântica -, seria, se o
fosse realmente, um problema geral das linguagens. De todas e de qualquer uma, caso sua
inquirição se estabeleça no plano da tradução intersemiótica, pensada esta em termos
sinonímicos ou da reprodução dos mesmos sentidos pelas diferentes linguagens. Trata-se –
é o que penso – de um falso problema. Ao nível, é certo, do enigma (mas não do mistério).
Como o que eu mesmo disse uma vez, as linguagens ou “subsistemas envolvidos na trama
intersemiótica na verdade constituem, um a um, esforços de expressão significante de
significados de outros canais, deslocando-os, no entanto, através dos novos significados,
conseqüentes, que mimeticamente produzem” (Menezes Bastos 2001: 347).
Pois bem, é muito curioso que numa região famo sa por descurar o tempo histórico,
as terras baixas da América do Sul, a música, vista no mundo ocidental como a arte que
cancela o tempo, trabalhe a longa duração. Sugiro que seria como se a música fosse ali uma
espécie de arquivo histórico. Quer dizer, as sociedades frias, no caso, as amazônicas, seriam
quentes quanto a sua música, enquanto que o ocidente – mãe de toda quentura histórica –
seria fria quanto a seu mito.
Referências
Basso, Ellen B. 1985. A Musical View of the Universe: Kalapalo Myth and Ritual
Performances. Philadelphia: Pennsylvania University Press.
Mello, Maria Ignez Cruz. 2005. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual entre os Wauja do Alto
Xingu. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Tese de Doutorado em
Antropologia Social.
Menezes Bastos, Rafael José de. 1978. A Musicológica Kamayurá: Para uma Antropologia
da Comunicação no Alto Xingu. Brasília: Funai14 .
14
Há uma segunda edição deste livro, de 1999, quase ipsis litteris em relação à primeira, pela Editora da
Universidade Federal de Santa Catarina.
--------------------------------------. 1982. "Myth, Music and Dance in the Formation of Ritual
Discourse Among the Xinguano Indians of Central Brazil", in Actes du XIIIe Congrès de la
Société Internationale de Musicologie, M. Honneger e C. Meyer, orgs., Strasbourg:
Association des Publications près les Universités de Strasbourg, v. I. pp. 448-452.
--------------------------------------. 1990a. A Festa da Jaguatirica: Uma Partitura Crítico-
Interpretativa. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
--------------------------------------. 1990b. "Mito e Música no Alto-Xingu: O Ritual do
'Yawari'", in Mito: Ontem e Hoje, Donaldo Schüler e Miriam B. Goettems, orgs., Porto
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--------------------------------------. 1993. "A Saga do Yawari: Mito, Música e História no Alto
Xingu", in Amazônia: Etnologia e História Indígena, Eduardo Viveiros de Castro e
Manoela Carneiro da Cunha, orgs., São Paulo, 1993, v. , p. 117-146.
---------------------------------------. 1995a. "Esboço de uma Teoria da Musica: Para Além de
uma Antropologia Sem Música e de uma Musicologia Sem Homem", in Anuário
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---------------------------------------. 1995b. “Indagação Sobre os Kamayurá, o Alto Xingu e
Outros Nomes e Coisas: Uma Etnologia da Sociedade Xinguara”, in Anuário
Antropológico/1994, pp. 227-269.
----------------------------------------. 1996. “Musicalidade e Ambientalismo na Redescoberta
do Eldorado e do Caraíba: Uma Antropologia do Encontro Raoni-Sting”, in Revista de
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----------------------------------------. 2001. “Ritual, História e Política no Alto Xingu:
Observações a Partir dos Kamayurá e do Estudo da Festa da Jaguatirica (Jawari)”, in Os
Povos do Alto Xingu: História e Cultura, B. Franchetto e M. Heckenberger, orgs., Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, pp. 335-357.
----------------------------------------. 2007. “Música nas Sociedades Indígenas das Terras
Baixas da América do Sul: Estado da Arte”, Mana 13 (2): 293-316.
----------------------------------------. Em preparação. A Arte do Esquecimento: Música e
Ritual nas Terras Baixas da América do Sul.