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Claude Lévi-Strauss, o Mito Ameríndio e a Música Ocidental1

Rafael José de Menezes Bastos 2

Dando seqüência aos trabalhos que tenho realizado sobre Lévi-Strauss e a música 3 ,
desejo abordar aqui o seu pensamento musical do ponto de vista daque le aspecto que
entendo como o mais interessante e que poucos têm levado a sério – ou mesmo, ninguém
segundo conheço: pretendo agora refletir sobre Lévi-Strauss como pensador sobre a música
ocidental, do tope dos maiores, isto é do tope de Spengler, Adorno, Weber e outros
monstros no assunto. Fazendo isto eu espero poder prestar uma justa homenagem à
fertilidade de sua obra monumental, salientando-lhe um aspecto eventualmente
surpreendente. A produção acadêmica, e não, sobre o tema – o pensamento musical de
Lévi-Strauss - é grande, privilegiando a abordagem da relação que o autor estabelece entre
o mito e a música, relação que constitui um capítulo – digamos assim – de seu pensamento
sobre o mito, este, sim, de grande impacto nas ciências humanas, na filosofia, nas artes e
em outros domínios 4 .

Sempre me pareceu estranho, mas confesso que nunca levei isto a sério, senão
recentemente, que Lévi-Strauss tenha trabalhado tão pouco sobre as músicas indígenas
ameríndias propriamente ditas. Se não me falha a memória, o grosso de sua contribuição
nesta temática está no segundo volume das Mitológicas (1967), ao que se pode acrescentar
algo mais em Tristes Trópicos (1986 [1955]). Pouco mais haverá, creio. Nos dois casos,
porém – especialmente no primeiro -, sua ênfase está antes nos instrumentos musicais e por
assim dizer na fonografia que na música, ela mesma. Quer dizer: quem se dispuser a buscar

1
Uma versão anterior deste texto, pelo qual sou o único responsável, foi publicada em Araújo e outros, orgs.
(2008), outra tendo sido apresentada à Mesa Redonda 4 – de homenagem aos 100 anos de Lévi-Strauss -,
organizada por Tânia Stolze Lima para o 32º. Encontro Anual da ANPOCS (Caxambu, 27-31/10/08).
Obrigado a Samuel, Gaspar e Vincenzo pela preparação dos originais para a publicação e a Tânia pelo convite
para participar da Mesa. Sou grato também àqueles integrantes da audiência desta, pelos comentários.
2
Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o
Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe (http://musa.ufsc.br). Pesquisador
do CNPq. Contato: rafael@cfh.ufsc.br ou rafael.bastos@pesquisador.cnpq.br.
3
Como em (1978 [1999], 1982, 1990a, 1990b, 1993, 1995a, 1966) e dois livros em preparação.
4
Para a consideração deste impacto nos campos musicológicos, ver, entre tantos outros textos, Nattiez (1971,
1973a, 1973b), Imberty (1979, 1981) e Pousseur (1971). Conforme os trabalhos referidos na nota 3 para um
mapeamento mais sistemático. Veja Merquior (1975) sobre a estética em geral do autor.
em nosso autor – justamente famoso pelo pensamento mito- musical – dados, informações e
reflexões sobre os sistemas musicais ameríndios, ficará decepcionado. Sugiro que isto não é
uma omissão de Lévi-Strauss, casual ou não, resultando, isto sim, de uma posição
sistemática sua, mesmo que se possa argumentar com base na sua conhecida declaração de
que as músicas étnicas (entre as quais estão as ameríndias) não exercem sobre ele a mesma
“força sugestiva” que a música tonal ocidental (Nattiez 1973a: 6) 5 .

Lévi-Strauss, então, quase não aborda as músicas indígenas, um dos motivos mais
fortes, aliás, das muitas críticas que recebeu por parte dos integrantes das várias
musicologias 6 . Mas ele dedica-se com fervor - e abrangência - a elaborar um pensamento
muito marcante sobre as relações entre o mito, típica mas não exclusivamente o ameríndio,
e a música, tonal ocidental. Mas o que, mais precisamente, pensa ele sobre essas relações?

Permita-se-me assim expressar- me: para Lévi-Strauss, tudo se passa como se a


música ocidental fosse, ela mesma, mito, ou melhor, manifestação suprema no mundo
ocidental - durante determinada época - do pensamento mítico. No universo primitivo, para
ele, curiosamente, isto não se dá – ali ele pode até “se sentir exaltado por uma música
primitiva, mas por motivos não exclusivamente musicais: em razão do contexto ritual,
social, étnico” (Nattiez 1973a: 6, tradução minha).

O autor elabora essa provocante senha - onde o “exclusivamente musical” compõe


com o “contexto” um enigma bem ao gosto do pensamento musical ocidental moderno 7 –
cumulativamente. De maneira esquemática, eu diria que a partir das Mitológicas (na
Abertura II d’O Cru e o Cozido e no já citado Finale), com consolidação num pequeno
texto, Mito e Música 8 . Vale dizer que ao produzi- la ele o faz com base em sua condição de

5
Sobre a força sugestiva, sobre ele, da música ocidental – referida tantas vezes no decorrer de sua obra -, de
imediato recordo a famosa passagem de Tristes Trópicos, sobre a invasão obsessiva de seu espírito, em Mato
Grosso, pelo Estudo nº. 3, opus 10, para piano, de Chopin (Lévi-Strauss, 1986: 373-374).
6
Ver Menezes Bastos (1999: 52-54, 1990: 41-42) para o mapeamento dessas críticas. Para as incursões
musicológicas do autor, veja o Finale do L’Homme Nu e alguns dos textos de Olhar, Escutar, Ler (1997a).
7
Refiro-me ao pensamento sobre a música clássico-romântica. Brevemente, aí a música é imaginada como
uma entidade, por assim dizer, “em estado puro e livre de qualquer encarnação” (veja adiante, como a
matemática para Lévi-Strauss). Tenho tratado disto em vários textos (por exemplo, 1990a, 1995a, 1996).
8
Conforme respectivamente Lévi-Strauss (1991 [1964], 1971 e 1979 [1978]).
conhecedor cultivado da vida musical de concerto – como ele modestamente diz, através do
rádio - e da literatura musical e musicológica sobre ela.

Em Mito e Significado, Lévi-Strauss deixa de estabelecer as relações em comentário


(entre o mito e a música) no plano tão somente da similaridade – como fizera tipicamente
nas Mitológicas I -, saltando para aquelas do plano de contigüidade, conforme avançara no
último volume de sua célebre tetralogia. Quanto às primeiras (às relações na linha da
similaridade), tudo talvez possa ser resumido na idéia de partitura orquestral, onde a leitura
deve ser feita da esquerda para a direita e em sentido vertical, de cima para baixo
(curiosamente, não de baixo para cima) 9 . “Como é que isto acontece e por quê?”, pergunta-
se ele, logo avançando que as relações de contigüidade constituem a chave para as
primeiras (1979: 67-68).

Eis a chave, responde Lévi-Strauss: quando o pensamento mítico passou para


segundo plano no ocidente – entre a Renascença e o século XVIII –, começaram a surgir os
primeiros romances e os grandes gêneros da música ocidental. No campo da música, isto se
deu com Frescobaldi (1583-1643) e Bach (1685-1750), o que vai atingir seu pico adiante,
com Mozart (1756-1791), Beethoven (1770-1827) e Wagner (1813-1883) [: 68-69] 10 . Note-
se que no Finale, Lévi-Strauss colocara que o romance e a música partilhavam, entre as
épocas de Frescobaldi e Bach, a herança do mito, sendo que com a invenção da fuga deu-se
um descolamento entre os dois, a música assumindo “as estruturas do pensamento mítico” e
o romance, de mítico tornando-se romanesco (: 583) 11 . Sempre salientei que esta tese é
compatível com a de Spengler, que considera o século XVIII como o período em que o
indivíduo, no ocidente, comete o teícídio, entronizando-se como Deus na religião da arte 12 .

9
A idéia da partitura como símile do mito já havia sido posta pelo autor pelo menos desde 1955 (veja 1970a:
232).
10
Ver Menezes Bastos (1996: 156-160, 176, nota 12).
11
A fuga a que Lévi-Strauss se refere é a Bachiana (1979: 72-73).
12
Tratei deste cruzamento entre Lévi-Strauss e Spengler (veja 1973) em 1995a e 1996. No mesmo Finale (:
584), diz Lévi-Strauss, sem referir-se a Spengler: “quando o mito morre, a música torna-se mítica da mesma
maneira que as obras de arte, quando a religião morre, cessam de ser simplesmente belas para se tornarem
sagradas” (tradução minha).
Para o autor, então, o pensamento mítico no ocidente moderno deixa de ter
consistência em seu próprio campo, i.e. mitológico, migrando inicialmente para a literatura
e a música, logo passando, porém – sob o império da arte da fuga –, a ter residência
específica no campo da música, ali onde suas “funções intelectuais e também emotivas”
encontraram condições de pleno desenvolvimento (1979: 69).

Sugiro, assim, que não resulta de omissão a ausência na obra de Lévi-Strauss de


uma, por assim dizer, dedicação às músicas ameríndias, consistentemente compensada por
uma forte ênfase na música ocidental. É minha opinião que, quanto à música, o
fundamental na obra em tela é a composição, ela mesma, dessa relação - entre o mito (como
disse, ameríndio, mas não só) e a música (ocidental) - a partir de um insight muito
poderoso: a música tonal ocidental e o mito ameríndio são manifestações equivalentes de
uma mesma entidade, a saber o pensamento mítico. A música primitiva? - Está no mundo
do contexto.

Poder-se-ia dizer de tudo isso: “Mein Reich ist in der Luft”. É óbvio apontar, mas
vale: o pensamento musical de Lévi-Strauss é um pensar quase que exclusivamente sobre o
ocidente – e, não, sobre o mundo ameríndio -, tendo tanto interesse quanto o de outros
intelectuais da mesma estatura. Por exemplo, como já disse, Spengler, Weber e Adorno 13 .
Será possível pensar o ocidente sem a música?

Ainda no Finale, Lévi-Strauss aborda a música sob uma ótica mais abrangente,
mantendo-a ao lado do mito e incluindo os dois no rol “das quatro famílias de ocupantes
maiores dos estudos estruturais”, juntamente com as entidades matemáticas e as línguas
naturais. Sua intenção com isto – que qualifica como uma hipótese - é estabelecer as
relações mito- música de maneira mais clara e convincente (: 578).

No caso das entidades matemáticas, o autor ressalta que elas consistem de estruturas
“em estado puro e livres de qualquer encarnação”. Sendo elas assim, Lévi-Strauss -
recordando Saussure - vai apontar que elas mantêm uma relação de oposição com os fatos
13
Recordo que para Weber a grande marca da música ocidental é a racionalidade, enquanto que para Adorno,
a ratio progressiva (Menezes Bastos 1990a, 1995a, 1996).
da língua, duplamente encarnados, pelo som e pelo sentido. As entidades matemáticas e
lingüísticas ocupam, então, pólos opostos de um mesmo eixo no presente esquema de Lévi-
Strauss. A música e o mito desenham o segundo, nele posicionando-se de maneira também
oposta: no caso da primeira, a estrutura “descola-se do sentido e adere ao som”. Quanto ao
mito, dá-se o inverso – “descola-se do som e adere ao sentido” (: 578).

Do ponto de vista da encarnação pelo sentido e pelo som, as quatro famílias


referidas constroem, segundo o autor, um contínuo. Neste, as matemáticas são as mais
imunes, as lingüísticas as menos, as musicais e míticas sendo intermediárias. Por fim, diz
ele, a música é a linguagem – leia-se, a língua falada - sem o sentido. O mito? - O inverso,
o sentido sem o som (: 579).

O chão de todo esse exercício comparativo é dado pelo entendimento da língua


falada como a entidade que preexiste às demais (: 579). Mas, que tipo de preexistência será
esta? Ademais: de dentro de que antropologia o autor formula esse esquema tão insinuante?

Estas duas questões remetem minha reflexão aos primórdios da obra de Lévi-
Strauss, ali onde ela é, por assim dizer, programada - aos textos republicados como os
capítulos II-V e XV-XVII de Antropologia Estrutural (1970 [1958]), a As Estruturas
Elementares do Parentesco (1976 [1949]) e a Tristes Trópicos. Muito brevemente falando:
ali o autor, apropriando-se de um lado da semiologia de Saussure e do estruturalismo
lingüístico da escola de Praga – neste, Jakobson ocupando posição destacada; das
matemáticas qualitativas, desenvolvidas, entre outros, nos campos das teorias da
informação e dos jogos, e da cibernética – Wiener aqui sendo central; e, de outro, da teoria
da reciprocidade de Mauss, busca compreender o homem sob a moldura geral da
comunicação – “Quem diz o homem diz linguagem, quem diz linguagem diz sociedade”
(1986: 385).

Neste quadro, a precedência em consideração – a da língua falada sobre as demais


entidades abarcadas pelos estudos estruturais - parece evidenciar-se no plano absolutamente
radical da filogenia da espécie humana e, aí, da passagem do estado de natureza para o de
cultura. Isto, porém, merece ser abordado com generosidade – dir-se-ia, de maneira
“nuançada” -, não se perca de vista a polissemia com que o termo linguagem é
administrado pelo autor, o que inclui desde seus sentidos mais restritos ao campo
lingüístico propriamente dito até aqueles que apontam para a semiologia como domínio
geral dos estudos sobre os sistemas de signos, passando pelas suas acepções mais
propriamente sociológicas (conforme a noção de troca).

Em Totemismo Hoje (1975 [1962: 104-105]), abraçando as idéias de Rousseau


sobre a origem das línguas, Lévi-Strauss toma o partido de pensar a música (para ele,
sempre humana já que mesmo o canto dos pássaros não lhe aparece como propriamente
musical [1991: 27, nota 6]) como pré-verbal, ligada (como a poesia) ao mundo das paixões.
A língua é posterior, pertinente ao universo da intelecção e senha distintiva do advento da
cultura (: 104). O autor parece estabelecer, então, as relações música-língua falada em
termos ordinais (e, não, cardinais) no processo de hominização.

Em As Palavras e a Música (1997b), resgatando as idéias de Chabanon (1730-1792)


– diferentes das de Rousseau (1712-1778) e Rameau (1682-1764), particularmente por não
associar a origem da música com a da língua -, o autor assume uma posição algo distinta
desta, apontando para uma relação de ordem mais cardinal entre música e língua.
Homenageando Michel-Paul-Guy de Chabanon, violonista, compositor e filósofo frances,
pela antecipação, no século XVIII, de pontos que a semiologia Saussereana consolidará
(tipicamente sobre a arbitrariedade do signo, no caso musical) e recorrendo a Jakobson na
comparação entre a música e a poesia – no limite, a língua -, ele resume as diferenças entre
as duas dizendo que “a música não tem palavras”, sendo uma linguagem, assim, que
“exclui o dicionário” (: 71). Ele então retroage à sua célebre tese de O Cru e o Cozido: a
música somente é traduzível por ela mesma, sendo a linguagem que por excelência obtém
transcender a oposição entre o sensível e o inteligível (: 22), “o supremo mistério das
ciências do homem, contra o qual elas esbarram, e que guarda a chave de seu progresso” (:
26). É de dentro dessa antropologia, suma das ciências do homem – onde a ma temática é
tão objeto quanto o mito, a língua e a música -, que Lévi-Strauss propõe seu admirável
esquema.
Sabe-se desde pelo menos o final dos anos 1940, com a publicação de A Dictionary
of Musical Themes (veja Barlow e Morgenstern 1949), que a música – melhor dizendo, a
musicologia ou, mesmo, a teoria musical ocidental - inclui o dicionário e, pois, algo como a
palavra. Dicionário de temas, no caso organizado por compositor. Note-se que esse tipo de
obra em nada é excêntrica na história da teoria musical ocidental, radicada que ela está
numa longa tradição de estudos que tem início ainda no mundo clássico Greco-romano
(com os escritos sobre Retórica de Aristóteles e Cícero), tendo âncora como tem no labor
dos tratadistas medievais (entre os quais Boécio), tudo isso indo adiante com as
investigações sobre Retórica Musical e Tópicas, realizadas no século XVII por, entre
outros, Burmeister e Mattheson (veja Piedade 2007). Essa tendência analítica desenvolve-se
amplamente nos séculos seguintes, sendo que há cerca de pelo menos trinta anos ela tem
continuidade na área de estudos do que poderíamos chamar de inteligência musical (veja
Meek e Birmingham 2003).

Mas o que será um dicionário de temas? O que será um tema? Haverá, enfim,
alguma linguagem traduzível - intersemioticamente - em outra? Como “digo”, por exemplo,
“pedra” em “pintura de Monet”? Tudo começa, aqui, com o que será “dizer” no plano
intersemiótico e evidentemente que não vale dar respostas do tipo “’anthropology” é
“anthropologie”, que é “antropologia”, que é ... etc’”, pois assim continuamos na mesma
linguagem em termos intersemióticos, ou seja continuamos operando com a língua falada.

Sugiro que nas Mitológicas Lévi-Strauss, ele mesmo, tangencia um dos enigmas
(palavra que prefiro a mistério, no caso da inquirição antropológica) da música. Isto, ao
analisar o mito sob inspiração da idéia de tema & variação, apontando simultaneamente
para a noção de motivo - átomo do estrato sintático da música - e para os processos
variacionais através dos quais os motivos são elaborados na trama musical: inversão,
justaposição, retrogradação, oposição e tantos outros mais.

O que é um motivo? – Digamos que algo que de um lado tem a natureza do tema –
coisa que ninguém pode denegar à música (é claro que não a toda, mas a alguma) - ao
mesmo tempo em que é similar a um assunto ou tópico, o que muitos (tipicamente, músicos
e aficionados, como Lévi-Strauss, da música clássico-romântica ocidental) recusam ter
existência no campo musical. O motivo é uma causa ou agitação elementar, um tema
minimal, digamos desta maneira (veja Menezes Bastos 1990a). Algo, enfim, como uma
palavra ou, melhor dizendo, tema, raiz, radical do campo da língua falada.

Não creio, assim, que o problema – expresso agora com esta palavra o que antes
chamei de enigma e que o autor compreende como um mistério – da música seja que ela
exclua a algo como a palavra e, assim, o dicionário. O problema que Lévi-Strauss levanta,
apontando somente para a música – e, assim, recontando o mito que constitui a própria
música ocidental, não qualquer uma, mas tipicamente a clássico-romântica -, seria, se o
fosse realmente, um problema geral das linguagens. De todas e de qualquer uma, caso sua
inquirição se estabeleça no plano da tradução intersemiótica, pensada esta em termos
sinonímicos ou da reprodução dos mesmos sentidos pelas diferentes linguagens. Trata-se –
é o que penso – de um falso problema. Ao nível, é certo, do enigma (mas não do mistério).
Como o que eu mesmo disse uma vez, as linguagens ou “subsistemas envolvidos na trama
intersemiótica na verdade constituem, um a um, esforços de expressão significante de
significados de outros canais, deslocando-os, no entanto, através dos novos significados,
conseqüentes, que mimeticamente produzem” (Menezes Bastos 2001: 347).

Coda: Lévi-Strauss, a Música Ameríndia e a História Ocidental

Estou escrevendo um livro (veja Menezes Bastos, em preparação), baseado em


minha tese de doutorado (1990a), que de certa maneira vem a reforçar a posição de Lévi-
Strauss sobre a música ameríndia (veja também meus textos de 1993 e 1995b). O livro abre
algumas possibilidades de refletir sobre a idéia de ritual na Amazônia, e nele eu trabalho
com o conceito de Ellen Basso de ritual musical (conforme Basso 1985). De acordo com o
que estou a formular sobre isto, os ritos na Amazônia – basicamente, então, ritos musicais -
são rituais de longa duração (veja Menezes Bastos 2007). Noto que o rito que eu descrevo
no livro em preparação aconteceu em 1981 entre os kamayurá (xinguanos de língua Tupi-
Guarani), mas remonta há muitos anos antes, com a morte da pessoa que, através dele, é co-
esquecida (pois, não, co- memorada). No mesmo livro, trato da questão de suma
importância de como a audição de canções, músicas instrumentais ou mistas muito
freqüentemente provoca nos kamayurá a memória – prenhe de esquecimento – do passado,
o que às vezes alcança acontecimentos ligados a ancestrais de muitas gerações atrás.
Relendo recentemente a tese de doutorado de Maria Ignez Cruz Mello (2005), vi que ela
descreve rituais entre os wauja (ou waurá, também xinguanos, mas de língua Aruaque ) que
têm a ver com a construção de pilões feita há dez, quinze anos antes da época de sua
descrição. Esses pilões iriam ser queimados exatamente durante os rituais que Mello tão
bem estudou.

Pois bem, é muito curioso que numa região famo sa por descurar o tempo histórico,
as terras baixas da América do Sul, a música, vista no mundo ocidental como a arte que
cancela o tempo, trabalhe a longa duração. Sugiro que seria como se a música fosse ali uma
espécie de arquivo histórico. Quer dizer, as sociedades frias, no caso, as amazônicas, seriam
quentes quanto a sua música, enquanto que o ocidente – mãe de toda quentura histórica –
seria fria quanto a seu mito.

Referências

Araújo, Samuel e outros, orgs. 2008. Música em Debate: Perspectivas Interdisciplinares.


Rio de Janeiro: Mauad/Faperj.

Barlow, Harold e S. Morgenstern. 1949. A Dictionary of Musical Themes. London: William


& Norgate Ltd.

Basso, Ellen B. 1985. A Musical View of the Universe: Kalapalo Myth and Ritual
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Imberty, Michel. 1979. Entendre la Musique: Sémantique Psychologique de la Musique.


Paris: Bordas.
--------------------. 1981. Les Écritures du Temps: Sémantique Psychologique de la Musique.
Tome 2. Paris: Bordas.
Lévi-Strauss, Claude. 1967. Du Miel aux Cendres (Mythologiques II). Paris : Plon.
-------------------------. 1970a (1955). “A Estrutura dos Mitos”, in Antropologia Estrutural
(I), Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 225-253.
-------------------------. 1970b (1955). Antropologia Estrutural (I), Rio de Janeiro: Tempo
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-------------------------. 1975 (1962). Totemismo Hoje. Petrópolis: Vozes.
-------------------------. 1976. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrópolis: Vozes.
-------------------------. 1979 (1978). “Mito e Música”, in Mito e Significado, Lisboa: Edições
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-------------------------. 1991 (1964). O Cru e o Cozido (Mitológicas I). São Paulo:
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------------------------. 1986 (1955). Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70.
------------------------. 1997a (1993). Olhar, Escutar, Ler. São Paulo: Companhia das Letras.
------------------------. 1997b (1993). “As Palavras e a Música”, in Olhar, Escutar, Ler, São
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Meek, Colin e William P. Birmingham. 2003. “Automatic Thematic Extractor”, in Journal


of Intelligent Information Systems 21 (1): 9-33.

Mello, Maria Ignez Cruz. 2005. Iamurikuma: Música, Mito e Ritual entre os Wauja do Alto
Xingu. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Tese de Doutorado em
Antropologia Social.

Menezes Bastos, Rafael José de. 1978. A Musicológica Kamayurá: Para uma Antropologia
da Comunicação no Alto Xingu. Brasília: Funai14 .

14
Há uma segunda edição deste livro, de 1999, quase ipsis litteris em relação à primeira, pela Editora da
Universidade Federal de Santa Catarina.
--------------------------------------. 1982. "Myth, Music and Dance in the Formation of Ritual
Discourse Among the Xinguano Indians of Central Brazil", in Actes du XIIIe Congrès de la
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Association des Publications près les Universités de Strasbourg, v. I. pp. 448-452.
--------------------------------------. 1990a. A Festa da Jaguatirica: Uma Partitura Crítico-
Interpretativa. Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.
--------------------------------------. 1990b. "Mito e Música no Alto-Xingu: O Ritual do
'Yawari'", in Mito: Ontem e Hoje, Donaldo Schüler e Miriam B. Goettems, orgs., Porto
Alegre: Editora da UFRGS, pp. 165-167.
--------------------------------------. 1993. "A Saga do Yawari: Mito, Música e História no Alto
Xingu", in Amazônia: Etnologia e História Indígena, Eduardo Viveiros de Castro e
Manoela Carneiro da Cunha, orgs., São Paulo, 1993, v. , p. 117-146.
---------------------------------------. 1995a. "Esboço de uma Teoria da Musica: Para Além de
uma Antropologia Sem Música e de uma Musicologia Sem Homem", in Anuário
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---------------------------------------. 1995b. “Indagação Sobre os Kamayurá, o Alto Xingu e
Outros Nomes e Coisas: Uma Etnologia da Sociedade Xinguara”, in Anuário
Antropológico/1994, pp. 227-269.
----------------------------------------. 1996. “Musicalidade e Ambientalismo na Redescoberta
do Eldorado e do Caraíba: Uma Antropologia do Encontro Raoni-Sting”, in Revista de
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Janeiro: Editora da UFRJ, pp. 335-357.
----------------------------------------. 2007. “Música nas Sociedades Indígenas das Terras
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----------------------------------------. Em preparação. A Arte do Esquecimento: Música e
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Merquior, José G. 1975. A Estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro


Nattiez, Jean-Jacques. 1971. "Situation de la Sémiologie Musicale: Présentation du
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