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Cais

ou
Da Indiferença dasEmbarcações

De Kiko Marques

Espetáculo em cinco quadros para atores, músicos e bonecos.

Personagens:

Sargento Evilázio
Poita Rorimeri
Magnólia
Nilmar
Bonifácio
Waldeci
Walcimar
Walciano
Berenice
Juciara
Guarda com o Nilmar
Mãe de Magnólia
Cabo Menezes
Cabo Moacir
Cachorrinho
Locutor do Circo
Ozório
Andréia Polaka
Padre Silas
Marlei
Mãe Walcimar
Pai Berenice
Neival
Valnei

(Cenário: um cais. No mar, próximo ao cais, amarrado à poita Rosimeri, o barco


Sargento Evilázio, esfarrapado, velho e inútil, em sua malemolência marítima.
No cais, o médico Walciano 30 anosolha o barco e aderna levemente para os
dois lados. Em seu rosto, a máscara fixa e mórbida das paixões destrutivas.)
1996

Rosiméri –
Está olhando de novo.

1
SargentoEvilázio–
É verdade.
Rosiméri –
Toda noite a mesma coisa. Há quanto tempo?
Sargento Evilázio –
Nem sei.
Rosiméri –
Todos vão embora e ele fica ali.
Sargento Evilázio –
Olhando.
Rosiméri –
Olhando.
Sargento Evilázio –
Não sei, mas sinto que chegamos ao fim.
Rosiméri –
Você acha?
Sargento Evilázio –
Eu acho.
Rosiméri –
Ao fim.
Sargento Evilázio –
Depois de tanta coisa.
Rosiméri –
Tanta.
Sargento Evilázio –
O fim.
Rosiméri –
Você sente isso?
Sargento Evilázio –
Sinto.
Rosiméri –
O fim. (Pausa) posso te fazer uma pergunta?
Sargento Evilázio –
Claro.
Rosimeri_
O que é o fim?

(Pausa)

2
Sargento Evilázio –
Nilmar e Magólia. 1949. Hora dos segredos. Um sol e uma noite sem lua antes
de ser encontrada morta, com os pés amarrados numa cadeira e usando o seu melhor
vestido, Magnólia,27 anos, está esperando, parada. No cais, que se move
imperceptivelmente.

(No cais, Magnólia, muito nervosa. Surge Waldeci,28 anos

Waldeci –
Noite. (Silêncio) o cumpádi?

Magnólia –
Você sabe muito bem que foi a Angra.

Waldeci –
Foi a Angras...

Magnólia –
O que você quer?

Waldeci –
Num tem pressa não.

Magnólia –
Você diz que quer conversar comigo e marca a essa hora. São mais
de meia noite. Deixei as crianças dormindo.

Waldeci –
Melhor, ué. Assim a gente cunversa mar na calma.

Magnólia –
Você está muito estranho, cumpadre. O que que você quer? Anda
logo, diz. (Ele ri) qual é a graça?

Waldeci –
E pensar que ontem mesmo eu cruzei a cumádi na igreja cos menino.
Queixo empinado. Só olhando... só de cima, só.

3
Magnólia –
Onde você quer chegar?

Waldeci –
Lugar nenhum, não. Eu só queria assuntá. Sobre uma pessoa.
Assuntá.

Magnólia(nervosa) –
Que pessoa?

Waldeci –
Um vagabundo. Um colono livre. Um vagabundo que anda por aí
tocando um violão.

Magnólia –
Não conheço nenhum vagabundo.

Waldeci –
Diz que o nome dele é Nilmar. N’hece não, cumádi?

Magnólia –
O que tem o Nilmar?

Waldeci –
Iele num tá trabalhano no jardim seu, lá da sua casa todas terça?

Magnólia –
Vai direto ao assunto.

Waldeci –
Primeiro vom deixar u’as duas coisa clara aqui. Um: Quem manda
nessa nossa cunversa aqui sou eu.

Magnólia –
Eu vou embora.
Waldeci –
E dois: Que tu é u’a vagabunda.
Magnólia –

4
O que você disse?
Waldeci –
Que tu é u’a vagabunda. U’a não. Tu é duas vagabunda. Mulher de
vagabundo é vagabunda. Mulher casada que lava a passarinha no vinagre é vagabunda,
também.
Magnólia –
Eu vou contar pro Bonifácio. Ele vai dar um tiro na sua cara.
Waldeci –
Na minha ou na sua?
Magnólia –
Na sua. Eu não sei do que você está falando.

Waldeci –
Ah, não, tu tem a cara dura de vir dizer no meu focinho que não
sabe. Pois é. É até um direito, sabia que é um direito? De você se defender. É um
direito, porra. Só que acontece que eu tenho como prová.

Magnólia (muito nervosa) –


Provar o que?

Waldeci –
Na terça feira eu fui na casa sua lá, ter com a cumadi... assuntá um
pouquinho. Fui. Encontrei tudo fechado. Tarra indo embora quando escutei. Sabia que o
cumpádi estarra no mar. Escutei. Fui degavarzinho. Até os fundo. (Rindo franco) o que
eu vi... Noivinha... Vou lhe sê sincero. Que beleza!

Magnólia –
Você não pode provar nada. Eu digo que é mentira. Meu marido
confia em mim. (Ele tira do bolso as cartas) então foi você, seu animal. Me dá isso.
Pelo amor de Deus.

Waldeci –
Não.

Magnólia –
Como conseguiu? Você roubou. Ladrão. Eu vou dar queixa no
destacamento.

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Waldeci –
Ah, vai no destacamento? Dá queixa de mim? No destacamento?

Magnólia –
Seu sujo.

(Ele a pega pelos cabelos)

Waldeci –
Escuta aqui, sua piranha.

Magnólia –
Pelo amor de Deus. Me solta, por favor. Solta. Eu faço tudo que você quiser, mas
me solta. Pode passar alguém. Me solta.

Waldeci –
Eu quero sabê quantos.

Magnólia –
O que?

Waldeci (gostando da própria ironia) –


Quantos visitaru a noivinha pela porta dos fundo?

Magnólia –
Deus do céu Waldeci. Me escuta. Eu não sou o que você está pensando. Os meus
filhos...Você me conhece. Todos aqui me respeitam. E é verdade. Eu casei virgem. E
nunca! Pode perguntar ao Bonifácio. Fora aquelas brincadeiras na infância, ele foi meu
primeiro homem. E foi sempre assim. Eu te juro. O que aconteceu foi que... Eu me
apaixonei. Você entende isso? Me apaixonei. Se você soubesse o inferno que eu... (Não
se contém.)

Waldeci –
Por um vagabundo...

Magnólia –
Eu só te peço uma coisa. Poupe os meus filhos. Eles são inocentes.
Não tem nada com isso.

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Waldeci –
Porque não pensou nisso antes de comprar o vinagre?

Magnólia (retomando a dignidade) –


Diz o preço.

Waldeci –
O preço?

Magnólia –
Eu te conheço num é de hoje, Waldeci. Diz o preço rápido que eu
tenho que voltar pra casa.

Waldeci –
O preço? Muito que bom. Fazer um negócio, então. Um que fique
bom pos dois. Tu me dá o que tu me deve e pronto. Não se fala mar nisso.

Magnólia –
Que que eu te devo?

Waldeci –
Eu quero também.

Magnólia(em pânico) –
O que?

Waldeci (pausadamente) –
Eu quero também.

Magnólia (balbuciando) –
Imundo.

Waldeci –
Eu podia te pegar na porrada. Cê num ia pode dizer nada. Mar num quero.
Quero que tu venha na tua vontade.

Magnólia (meio pra si) –


Nunca.

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Waldeci –
Ó, vom fazer o seguinte aqui, ó. Amanhã é passagem de ano, né
isso? Quando for mai ou meno assim umas uma da manhã, o Bonifácio já vai tá caindo
de beubo. Aí tu faz o seguinte. Tu vai botá ele pa dormir e vai sair degavarzinho pra não
acordar as criança. Tu vai direto lá pa Praia Preta encontrar comigo atrás da pedra
rachada. Tu vai chegá lá, eu vou tá lá. Cas carta.Te devolvo. Mas, ói noivinha... se tu
num aparecer... No dia seguinte, eu ponho elar na mão da dona Tildinha. N’ p’sa
responder. Pensa. Tu tem um dia inteiro de amanhã. Noite. (Vai saindo. Para) ah, um
detalhe. Vai caquele vestido. Aquele. Mar, casonum quiser aparecer... Feliz
1950.

Sargento Evilázio – 1995. Quarenta e dois verões depois de ter lido uma carta
pela primeira vez, O velho Bomifácio, 73 anos, está sentado no cais. A hora é a dos
caminhantes nostálgicos e das procuras e Ele fica ali segurando a carta amarelada pelo
sol dos verões.

Bonifácio (bêbado)–
Há quarenta e cinco anos que tu tomaste a barca e eu
continuo vindo. Todo ano. Não faltou nenhum. E esse cheiro... sempre o mesmo. De
café de cana coado recente, fumegando. De óleo do motor do Sargento Evilázio. De
maré cheia. Um cheiro de misturas. É, Magnólia... eu fui aprendendo a gostar desse
lugar. Tu lembras a raiva que eu tinha. Uma que num era uma. Raiva de falar no ouvido.
De dar ordens. Ano vinha, ia e ela só aumentava. Só. Eu vinha pra não endoidecer. Não
endoidar. Um dia, como apito de barco, a raiva calou vozes. Zarpante. Deixou a gente
num silêncio grande. De saudades. Sudoeste. O ano todo. (Pausa) os anos todos.
(Pausa) dentro. (Longa pausa) eu te perdoaria. Todos esses anos, eu te falei tanta
coisa... Doidice. Eu te perdoaria. Eu te perdôo.

(Começa a cantarolar um samba antigo. Surge Walciano29 anos.


Caminha decidido em direção a ele.)

Walciano–
Seu Bonifácio, desculpe incomodar o senhor. É que a situação exige
uma atitude urgente. O barco. Vão afundar. É preciso revogar a ordem.

Bonifácio –
Amanhã. Eu estou ocupado. Amanhã. Que coisa! Tenha um pouco
de consideração.

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Walciano –
Mas é que...

Bonifácio –
Agora me deixe sozinho, por gentileza.

Walciano –
Padrinho, por favor, me ajuda a salvar esse barco.
Bonifácio –
Amanhã.

(Ele vai. Na memória de Bonifácio, Magnólia acabou de colocar um


vestido de festa. Pega uma taça cheia, uma corda, uma carta e dança. Senta-se
numa cadeira. Amarra os pés. Toma o veneno.)

Bonifácio –
Eu te perdoaria.

Sargento Evilázio (enquanto troca as roupas velhas por seu anacrônico


uniforme de oficial) – 1930. Primeira luz do dia.Vinte verões antes da mão segurar
pela última vez um copo, Magnólia, 7 anos sente o calor de outra mão, maior que a sua.

(Magnólia meninae a mãe estão no cais, com roupas de domingo.


Procuram algo no horizonte.)

Mãe –
Ali, olha lá.

Magnólia –
Onde, onde?
Mãe –
Apontou. Ali, olha lá. Bem do lado da ilha do meio, ali. Tá vendo?

Magnólia –
Não.
Mãe -
Sobe aqui.

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Magnólia -
Eu vi. Eu Viiiiiiiiiiii.

(Comemoram.)

Mãe –
Tá feliz de ver o barco novo, filha?

Magnólia _
Como é o nome dele?

Mãe (pausadamente) -
Sargento Evilázio.

Magnólia -
Nome lindo.

Mãe –
O Constantino disse que faz a travessia em uma hora e meia.

Magnólia –
O que vão fazer o que com o outro, mãe?
Mãe –
Afundar.
Magnólia –
Por quê?
Mãe –
Porque ele não serve mais.

Magnólia –
Quando uma coisa não serve mais a gente afunda ela?
Mãe –
Só as embarcações.
Magnólia –
Olha, mãe. Como é grande.
Mãe –
Dizem que é capaz de atravessar todos os oceanos.
Magnólia –
Até o dos sonhos?

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Mãe –
Olha quem vem vindo ali. É o João-quer-Carne com a sanfona. Ó quanta
gente pra receber o barco novo, filha. É o progresso chegando pra esse lugar. Vai, acena
pra ele. Acena que o barco tá te vendo.

Magnólia –
Barco enxerga, mãe?
Mãe –
É só a gente querer. Acena, filha.

(Os músicos tocam. Os atores acenam. Impecável em seu uniforme o


Sargento Evilázio desfila, garbosamente diante dos músicos e da admiração dos
demais.)

Sargento Evilázio – 1932. Dois verões depois da chegada do barco Magnólia9


anos está pendurando roupas no varal. Do quintal ensolarado, Ela vê o cais.

(No cais, Nilmar 22 anos sentado com as mãos para trás. Em outro canto
do cais, Magnólia meninaestende um lençol. Ela o vê. Muito devagar, vem até
ele.)

Magnólia –
Oi. Quem é você?
Nilmar –
Nilmar. E você?
Magnólia –
Magnólia.
Nilmar –
É um bonito nome.
Magnólia –
Mentira.
Nilmar –
Verdade.
Magnólia –
Ninguém acha o meu nome bonito. Você está faland isso só pra me
agradar.

Nilmar –

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Não tou, não. Acho que combina com você. Se fosse Clarice não
combinava.
Magnólia –
Outra mentira. Clarice combina com qualquer menina.
Nilmar –
Você acha?
Magnólia –
Tenho certeza.
Nilmar –
Já eu acho que cada nome foi feito pra uma pessoa. Você é Magnólia.
Eu posso até fazer uma canção, só pra você. Quer ver?
Magnólia –
Você faz canção?
Nilmar –
Eu tento. Deixa eu ver:

De manhã eu acordei.
A casa estava fria.
Apesar de tudo
Pelas fresta da janela
O sol entrava lindo
Me dizendo sorrindo
Olha a janela, olha
No jardim brota uma flor
O nome dela é Magnólia.

Magnólia –
Cê inventou isso agora?
Nilmar –
Inventei. Viu que nome lindo que você tem? E é seu! Às veze tentam
colocar um nome em outra pessoa, mas logo dá pra vê que aquele nome não é dela.

Magnólia –
Nilmar é seu?
Nilmar –
Não. Era do meu vô.
Magnólia –
Sua mãe não gosta de você?

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Nilmar –
Por quê?
Magnólia –
Teu deu um nome que nem é seu.
Nilmar –
Minha mãe era muito pobre. Não tinha nada. Nem nome pra dar pros
filho. Teve que me dar esse velho, que foi do meu avô.
Magnólia –
Quantos anos você tem?

Nilmar –
Vinte e doi, e você?
Magnólia –
Nove.
Nilmar –
É você que lava a roupa na sua casa?
Magnólia –
Não. É minha mãe. Eu só ponho pra quará.
Nilmar –
Você é muito bonita.

Magnólia (sem se alterar, muito a vontade no elogio)–


Obrigada.
Nilmar –
Se eu não fosse casado eu esperava você crescer pra casar com você.

Magnólia –
A sua mulher é mais bonita que eu?
Nilmar –
Tão bonita quanto você.
Magnólia –
Hoje vai ter uma festa de passagem de ano aqui em casa. Porque
você não vem aqui?

Nilmar –
Não posso.

Magnólia –

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Eu falo com meu pai. Ele não se importa, ele é comunista.
Nilmar –
Você não devia dizer isso por aí que o seu pai é comunista.
Magnólia –
Por quê?
Nilmar –
Tem gente que não gosta de comunista.

Magnólia –
Eu sei. O meu pai trabalha lá na fábrica de Sardinha. A gente teve
que mudar lá de Botafogo porque tinha um monte de gente que não gostava do papai.

Nilmar –
E aqui gosta?

Magnólia –
Acho que sim. Pelo menos aqui não tem aquele carro preto passando
na porta de vez em quando. Quer dizer, nessa ilha não tem carro nenhum, né?

Nilmar –
Há quanto tempo vocês vieru pa cá?

Magnólia –
Sei lá. Onde você vai passar a virada então?
Nilmar –
Num lugar não muito bom.
Magnólia –
E porque vai?
Nilmar –
Porque eu fiz uma besteira muito grande, agora de castigo eu tenho
que ir pra lá.
Magnólia –
Foi seu pai que te botou de castigo?
Nilmar –
Não, foi um oto moço.
Magnólia –
Só meu pai me bota de castigo.
Nilmar –

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Cê tem sorte.

Magnólia (olhando para trás como se alguém a chamasse) –


É minha mãe. Eu tenho que entrar.

Nilmar –
Cê fazia um favor para mim?

Magnólia –
Que favor?

Nilmar –
Cê pedia uma coisa pro seu pai?
Magnólia –
O que?
Nilmar –
Eu tenho aqui um endereço. É da minha mulher. Eu não consigo falar
com ela. Já escrevi várias carta e ela não respondeu. Eu preciso saber como ela está,
dizer que eu tô morrendo de saudade.
Magnólia –
Você não parece que tá morrendo.
Nilmar –
As aparência engana. Você falava com ele?

Magnólia –
Meu pai nunca sai da Ilha Grande. Mas você pode pedir a outra
pessoa. Vem aqui à noite.

(Nesse momento chega o guarda com um pouco de cachaça para ele.)

Guarda –
Bora, sem vergonha. Bora que a gente ainda tem um morro pra
atravessar. E olha só, se não fizer nenhuma bobagem te dou um gole de cachaça no
caminho. Aproveita que não é todo dia que eu dou cachaça pra vagabundo.

Nilmar –
Obrigado, poeta, mas agora eu estou acompanhado.

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(O guarda percebe a menina.)

Guarda –
Desafasta um pouquinho, bonequinha. Chega muito perto não que isso
é vagabundo transferido. É a pior raça. Agora toca, rumbora.

Sargento Evilázio – Hora das grandes navegações.

(Ele levanta. Magnólia vê que ele está algemado.)

Guarda –
Tu tem sorte, animal. Aqui a janela do inferno dá vista po mar.

Nilmar –
O nome dela é Dalva. Ela mora em Campo Grande. Calma, parceiro.
Na Avenida principal, do lado da bodega. Pede pra ele ir lá. Pra dar nutícias.

Sargento Evilázio -
Nilmar e Magólia.

Nilmar –
Dalva. Num insquece. Minha parcerinha!

Sargento Evilázio - 1939. Sete verões depois de ter composto uma música pra
uma menina no cais Ele, 29 anos espera.

(Em pé, Nilmarpenteia-se com a palma da mão O cabo Menezes, ao lado,


fuma.)

Cabo Menezes –
Ói lá o Sargento Evilázio. Apontou.
Nilmar –
Meu peito vai estourar, poeta

Cabo Menezes –
Fuma mais um.

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(Fuma. Esperam. Chega Bonifácio 17 anosno barco. Traz uma viola e um
saco.)

Nilmar –
O meu violão. Encontrou, então?

Bonifácio –
Encontrei, Nilmar

Nilmar –
Falou com ela?
(Silêncio)

Nilmar –
Ela estava lá? (Silêncio) aconteceu alguma coisa com ela?
Bonifácio –
Ela tá bem.
Nilmar –
Ela disse por que não respondeu às minhas carta?
Bonifácio –
Ela mudou de endereço.
Nilmar –
Como ela está? (Silêncio) meu parcerin, por favor, fala de uma vez.

Bonifácio –
Ela casou com outro.
Nilmar –
Quando?
Bonifácio –
Em 30. Na primavera de trinta.

(Nilmar começa chorar.)

Bonifácio –
Qué isso, homem. Ela não merece essas lágrimas.

Nilmar –
Eu fui preso em 29, parceiro. Ela não esperou nem um ano por mim.

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Bonifácio –
Toma. Eu achei que você fosse precisar.

(Serve uma cachaça que trazia na bagagem, os dois viram ao mesmo


tempo. Nilmar está destruído. Bebe mais um trago.).

Nilmar –
Você falou com ela?
Bonifácio –
Falei.
Nilmar –
Ela disse que tinha saudade de mim?
Bonifácio –
Disse. Que ficou muito triste de não ter te avisado, mas que o
marido é louco de ciúmes. Que não podia nem tocar no nome seu.
Nilmar –
Entendo.
Bonifácio –
Mandou o violão.
Nilmar –
E agora?

Bonifácio –
Bola pra frente.
Nilmar –
Eu ainda tenho dez ano de cana, poeta. Eu só agüentei por causa dela.
Como é que eu faço? (Pausa) ela tem filho?
Bonifácio –
Dois.
Nilmar –
Doi... É menina?
Bonifácio –
Um menino e uma menina.
(Pausa.)

Nilmar –
Tá bom. Obrigado pelo que cê fez, parcerin. Posso tomar mai um gole?

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(Bebe.)

Bonifácio –
Leva a garrafa.
Nilmar –
Eles não deixa entrá.
Bonifácio –
Deixam, sim. O Menezes pede autorização. Cê explica a situação,
fala com o chefe da disciplina.

Cabo Menezes (com os olhos embargados) –


Falo sim. Pode deixar.
Nilmar –
Brigado. Obrigado. Vocês são... Brigado. Você é um grande amigo,
parcerin. Um grande amigo.

Sargento Evilázio – 1950. Hora do sol assando as pedras e os conveses. Muito


tempo depois de ter chorado num cais, Ele 40 anos, prepara o almoço na casa de pau a
pique que construiu, assim que saiu da cadeia.

(Nilmar com as panelas. Menezes e um soldado entram.)

Nilmar –
Ô, Meneze. Entra aí. Desculpe a bagunça. Com essa tragédia que
aconteceu na casa do seu Bonifácio, eu nem tive cabeça pra arrumar nada. Tarra me
peparando pra almoçar. Vocês são servido?

(Sem meias palavras, os dois policiais espancam Nilmar. Ao sair, param


para transmitir o recado)

Cabo Menezes –
Isso... É o presente de um grande amigo.

Sargento Evilázio - 1949. Alguns sóis antes de ser encontrado inconsciente e


ensanguentado na cozinha de casa Ele 40 anos, capina. Sua muito. Hora do sol
cozinhando as idéias. E os destinos.

Magnólia 27 anos–
Uma vez você disse que jamais pisaria numa flor.

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(Eleolha pra baixo pra ver se pisou uma. Entende a metáfora e recomeça
o trabalho com desespero.)

Nilmar-
Menina...eu só olhei pra você!
Magnólia –
Que mais que você quer de mim?
Nilmar –
Que a senhora respeite o seu marido.
Magnólia –
Eu respeito. E para de me chamar de senhora.
Nilmar –
Não parece.
Magnólia –
Só não o amo. Não posso continuar um casamento assim.

Nilmar –
Eu tenho a minha mulher.

Magnólia –
Uma mulher que abandou você por outro há vinte anos.
Nilmar –
Mai que eu não consigo esquecer.
Magnólia –
Porque é burro.
Nilmar –
Eu vou embora.
Magnólia –
Burro! Perdendo a chance de ter ao seu lado uma mulher de
verdade.
Nilmar –
Magnólia, eu vou embora. Eu já tava decidido, nem sei por que eu vim.
Olha, a suas carta. Fica com elas. Eu já tomei a minha decisão. Eu vou dizer pro meu
parcerin que não me adaptei ao seuviço. Pronto.

Magnólia –

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Deixa de ser... Vai largar o trabalho só por minha causa. Fica aí...
Capinando... Bobo. Eu paro. Não te provoco mais.

Nilmar –
Olha aqui. Você é uma mulé muito bonita. E fogosa. Qualquer homem
era feliz de ter uma mulher como você. Só que acontece que eu já lhe expliquei que é
uma coisa que é maior do que eu, que eu não consigo esquecer... a minha preta. E
mermo que não fora isso, o seu marido, o Bonifácio é como se fora irmão meu porque o
que ele fez pra mim é uma coisa que ninguém fazia. Então a senhora, por favor, não me
tente, porque eu sou um sujeito homem e estive preso vinte ano.

(Pausa.)

Magnólia –
Você pode pelo menos me dar uma ajuda? Eu tenho que baixar
umas caixas. Preciso de alguém forte.

Nilmar –
Onde é?
Magnólia –
Nos fundos.

(Ele vem lentamente, pisa no jardim. Num rompante, eles se agarram,


ele joga-a no chão e começa a possuí-la ali mesmo, como um animal. Nilmar
goza em segundos, com um gemido surdo.)

Sargento Evilázio – 1943. Na hora dos aviamentos ela, 20 anos recém-casada


espera Bonifácio no Cais.

Magnólia –
O que é isso?
Bonifácio –
O reembolsável.
Magnólia –
Como assim, isso não é do presídio?
Bonifácio –
É, mas sobrou.
Magnólia –

21
Como sobrou?
Bonifácio –
Veio a mais. Às vezes acontece isso. Eles calculam um tanto,
quando vão ver, veio a mais.
Magnólia –
E o que você vai fazer com isso?
Bonifácio –
Guardar o que servir pra nós, o resto, toco a vender no armazém.
Magnólia –
Bonifácio, isso não está certo. Além do mais você fica usando o barco
do presídio pra transportar mantimentos pro nosso armazém.
Bonifácio –
Qual o problema, minha pêra, o Sargento Evilázio é um senhor
barco. Ele sempre vem com meia carga do Rio. Qual o problema de eu trazer umas
coisinhas.
Magnólia –
Não acho certo. Vai devolver isso. E vamos comprar um barco
nosso.
Bonifácio –
De novo essa conversa. Que horas são?
Magnólia –
Quatro.
Bonifácio –
Nossa. Vou reabrir o armazém.
Magnólia –
A chuva, meu filho. Se cobre...

Sargento Evilázio – 1949. Na hora dos mosquitos Ela, 26 anosouve rádio. Um


verão antes de seu compadre marcar um encontro na madrugada do cais deserto.

Bonifácio27 anos(matando um mosquito)_


Mercedez! Magnólia, onde se meteu
essa menina.
Magnólia –
Deve tá na praia, brincando.
Bonifácio –
Mas eu já falei que ela ainda não tem idade pra brincar sozinha.

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Magnólia (matando outro mosquito) –
Claro que tem, Bonifácio.
Bonifácio –
E o bebê?
Magnólia –
Ta dormindo, será que você podia me deixar ouvir o meu rádio. Eu
passo o dia cuidando desses três pestes que você me fez botar no mundo, na hora em
que eu consigo ter um sossego, vem você com...

(Batem palmas.)

Magnólia –
Quer ver que é a dona Tildinha? Isso não é uma mulher, é um
carrapato.

(Ela vai atender. É Nilmar 39 anos.)

Nilmar –
Boa tarde, o Bonifácio está?
Magnólia –
Da parte de quem.
Nilmar –
Nilmar.
Magnólia –
Que nome você disse?
Nilmar –
Nilmar.

(Violão. Ela tem um momento de hesitação. Em boneco ela se põe a


pendurar roupas no varal. Magnólia anuncia.)

Magnólia –
Um sujeito chamado Nilmar.
Bonifácio –
Ah, manda entrar.
Magnólia –
Quem é?
Bonifácio –

23
Um amigo. Um preso. Uma alma rara. Tu vais ver. Entra, Nilmar.
Pode entrar.
Nilmar –
Meu parcerinho...
Bonifácio –
Nilmar. Que bom ver você fora daquele lugar. Vamos entrando,
vamos entrando.
Nilmar –
Licenci.
Bonifácio –
Essa é minha senhora, Magnólia.
Nilmar –
Magnólia é um bonito nome.
Magnólia (atônita) –
Obrigada.
Bonifácio –
Querida, o Nilmar passou vinte anos preso aqui na Cândido Mendes.
Recebeu a liberdade assistida quando mesmo?
Nilmar –
Há doi mêi, parcerin.
Bonifácio –
Isso daqui é um sujeito raro de se encontrar, viu.
Nilmar –
São os amigo que eu tenho.
Magnólia –
O que faz uma pessoa continuar vivendo dentro de uma cadeia?
Nilmar –
Fora os amigo? A esperança de um dia rever uma mulher.

Bonifácio –
E ela? Já respondeu as tuas cartas? Continua casada?

Nilmar –
Continua parceirinho. Não tem problema não, eu já decidi,quando eu receber
minha liberdade difinitiva ieu vou atrás dela.

Magnólia –
Você já não está livre?

24
Bonifácio –
É colono livre, Magnólia. De dia ele fica solto, mas toda noite tem
de voltar pra cadeia.
Magnólia –
Entendi.
Bonifácio –
És o sujeito mais obstinado que eu conheço. Olha, meu
bem, ele vai cuidar do nosso jardim.
Magnólia (desconcertada) –
Do jardim? Por quê?
Bonifácio –
Porque eu lhe prometi um emprego. Nosso jardim anda esquecido,
não tens paciência com as flores, tu vives dizendo.

Magnólia –
É, não tenho. São muito frágeis. Não gosto das coisas que hoje estão vivas e
amanhã, não.

Nilmar –
A senhora então deve gostar de árvores.

Magnólia –
Dessas eu gosto. As árvores fortes. Que resistem ao Sudoeste.

Nilmar –
Eu posso começar amanhã?
Bonifácio –
Quando você quiser, eu passo o dia na venda, quando não estou no
mar. Você vem todas as terças, não é isso?

Nilmar –
Isso. Mas se você querer que eu venho mais dia eu venho, não precisa
se preocupar de pagá.
Bonifácio –
Imagina. Um dia por semana está ótimo.
Nilmar –
Nos fundo tem planta tamém?
Bonifácio –

25
Tem sim.
Nilmar –
Posso dar uma olhada?
Bonifácio –
Vom lá. Enquanto isso a Magnólia passa um cafezin.

Magnólia(incoerente.) –
Só procura tomar cuidado com as flores.
Nilmar –
Pode deixar dona. Eu jamais pisaria uma flor.

(Nesse momento o boneco Magnólia para de pendurar roupas e olha pro


cais.)

Rosiméri – Magnólia é uma árvore ou uma flor?

1950

Sargento Evilázio - Hora em que tudo para. Pouco antes de escrever sua última
carta, colocar sua roupa de domingo e tomar veneno Ela, 27 anos, está olhando. Parada.
No cais que se move imperceptivelmente.

(Magnólia no cais. O olhar fixo. O corpo rígido, com um fantoche.


Anoitece. Chegam Magnólia menina 11 anose a mãe.)

Sargento Evilázio – 1934.

Magnólia –
Mãe, tô com sono.

Sargento Evilázio -
Hora das festas.
Mãe –
Filha, no ano passado você reclamou que todo ano era a mesma coisa,
que não acontecia nada de bom na passagem de ano, que a sua prima de campo Grande
vive dizendo que lá é a maior “fuzarqueira”. Então, esse ano o pessoal do destacamento
preparou uma função pras menininhas entediadas como você.
Magnólia –

26
Função?
Mãe –
Eles vão acender luzes no Sargento Evilázio, Magnólia. Já imaginou
isso?
Magnólia –
Luzes? (Com enfado infantil)Eu queria que o papai estivesse aqui.
Mãe –
Eu já te expliquei que o papai teve que fazer uma viagem.
Magnólia –
De novo?
Mãe –
De novo. E nesse ano ele não vai poder virar o ano aqui com a gente
porque deu um problema com a passagem e ele não vai conseguir chegar a tempo.

1949

(surge Nilmar 39 anos, com o violão. Senta e começa a afinar o instrumento.)

1934

Magnólia (sentida) –
Mas eu queria que ele tivesse aqui.
Mãe –
Eu sei. Mas, olha, deixa eu te falar uma coisa. Ele me fez prometer que
trazia a princesinha dele pra ver a passagem de ano no cais. Deita um pouquinho no
colo da mamãe e dorme que a mamãe vai cantar uma canção pra você. Quando estiver
na hora eu te acordo.

(Começa a cantar um samba alegre. Em outra época, Nilmar a


acompanha. Ela dorme em boneco no colo da mãe. Magnólia 26 anoschega no
cais onde Nilmar toca.)
Sargento Evilázio -
1949. Hora das festas. E das juras.
Magnólia –
Oi.
Nilmar –
Oi, dona. Feliz ano novo. Cadê meu parcerin?
Magnólia –

27
Lá no meu pai. Bêbado. No réveillon eles bebem até cair. Ele e o
meu pai.
Nilmar (escondendo a garrafa) –
Eu... Desculpa, dona. É ano novo.
Magnólia –
Dá um gole.
Nilmar (cuidadoso) –
É cachaça.
Magnólia (bebe) –
Argh!
Nilmar –
Isso é cachaça vagabunda. Fico até com vergonha de oferecer isso.
Magnólia –
Lua linda, né?
Nilmar –
Linda mesmo.
Magnólia –
Cê não devia estar no presídio?
Nilmar –
Passage de ano. Eles me deru indulto.
Magnólia –
Você tem bons amigos.
Nilmar –
Graças a Deu.
(Pausa.)

Magnólia –
Como é viver pensando numa pessoa a vida toda?
Nilmar –
Num adepende da gente.
Magnólia –
Isso eu sei. Ela é bonita? Você consegue lembrar do rosto, do corpo
dela?
Nilmar –
Cada centimtr. Às veze eu esquecia. Faz tan tempo que às veze eu
esquecia como era a mão dela por um exemplo. Então eu fechava a cara pra todo
mundo. E ficava só pensando. Só aqui cas minha lembrança. Pensava tanto que acabava
lembrando. Aí ficarra tudo bem.

28
Magnólia –
Cê acha que vai ver essa mesma mão quando olhar pra ela?
Nilmar –
Mai o meno, né. Vinte ano. Deve tá mais velha um pouco.
(Riem.)

Magnólia –
Cê vai vir trabalhar na minha casa todas as terças, é isso?
Nilmar –
Incomoda?
Magnólia –
Pelo contrário. Eu fico muito sozinha. As crianças vão pra escola, o
bebê é um sossego. Eu sinto falta de companhia. A gente vai poder falar de amor.
(Pausa) da sua mulher.
Nilmar –
Eu só não quero incomodá.
Magnólia –
Não incomoda. Esse assunto não incomoda nunca. O meu pai diz uma coisa
linda sobre o amor. Que o amor é mais importante que o pão.
Nilmar –
Darra música isso.
Magnólia –
Você ainda compõe?
Nilmar –
Compõe sim. Mas como é que a senhora sabe que eu componho?

Magnólia –
Você acha que o amor é sofrimento?
Nilmar –
Amor... Amor é sobrevivimento. (pequena pausa)
Magnólia –
O que você faria se uma pessoa sentisse por você a mesma coisa que
você sente pela sua mulher? Que tivesse passado a vida pensando em você. Tentando
lembrar das suas mãos presas numa algema, por exemplo. O que você faria?
Nilmar –
Que pergunta…Por causa de que uma mulé ia perde tempo esperando
um vagabundo que nem eu?
Magnólia –

29
Você ia convencer ela a esquecer você ou você ia saber ser amado?
(Pausa) dá mais um gole?
Nilmar –
Eu deixava.
Magnólia –
Porque?
Nilmar –
É sobrevivimento.
Magnólia –
Mesmo ela sofrendo?
Nilmar –
A gente sofre mais no vazio de amor.
Magnólia –
Mas e se ela nunca mais te quiser?
Nilmar –
A minha preta?
Magnólia –
Ela.
Nilmar –
Olha. Se ela não me quiser nunca mais eu vou continuar trazendo ela
aqui dentro. No meu violão. Nas minha lembrança. Sempre me ajudando. Me guiando
preu fazê a coisa certa. Qantas vez, lá na cadeia, na hora de enfiar o estoque num
companheiro eu pensarra nela. Pensava e a mão parava. Eu então cunversava. Falava
dela. O sujeito ouvia. É claro que nem sempre as coisa funcionava assim. Ali é o
Caldeirão do Diabo. E a única maneira de você vencer o inferno é dua. Ou cê faz o pacto,
ou você tem um amor pra te guiar você no caminho certo. (Percebe que ela está
diferente, teve uma espécie de insight) ô, dona, desculpe. Foi uma coisa que eu
falei?

Magnólia –
É. Isso que você acabou de falar...a noite...essa cachaça. É que eu
também sinto a mesma coisa que você.

(Riem.)

Nilmar –
Pelo meu parcerin.
Magnólia –

30
Não. (Pausa) você guardaria um segredo?

(Pausa. Ele bebe.).

Magnólia –
Eu não amo o meu marido. Não amo. Eu sou que nem você. Amo
uma pessoa. Um amor que eu não sei se é real, mas que é muito mais bonito que tudo.
E agora... Com isso que você disse eu entendi o sentido. Durante muitos anos eu sofri
pensando que se esse homem, esse homem que eu cruzei na vida uma vez, quando eu
tinha nove anos, se esse homem aparecesse na minha vida e cruzasse novamente a
minha porta, eu seria capaz de abandonar tudo, inclusive meus filhos que dependem só
de mim. Eu abandonaria tudo pra seguir esse homem, por onde ele fosse. Eu sofri muito
pensando nisso.

Nilmar –
Desculpa perguntá, mas o meu parceirin sabe disso?
Magnólia –
Não. Não pode saber. Nunca. É um segredo meu e seu.
Nilmar –
Se depender de mim.
Magnólia –
Um dia eu estava pendurando roupa no varal... A casa da minha
mãe é ali. Está vendo?
Nilmar –
Tô.
Magnólia –
Eu tava pendurando roupa... Quando o vi. Como uma luz me
chamando. A gente trocou algumas palavras e... Ele fez uma canção pra mim. Depois foi
embora como um ladrão. O que eu não sabia era que o dia que ele voltasse, não seria
pra me tirar dos meus filhos, mas pra me ensinar o sentido do amor. (Pausa) não fica
assim. Nem me olhe com esses olhos. Está na hora.

Todos os atores –
Nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, acendeu.

(Virada do ano. Música. O sargento Evilázio, precariamente iluminado,


navega pela orla da praia.)

31
Mãe –
Minha filha. Acorda, filha. Olha lá o Sargento Evilázio todo
iluminado.(Magnólia menina, em boneco olha, encantada o barco iluminado) feliz
ano novo, meu amor.

Magnólia – Quando eu era pequena, numa passagem de ano, o meu pai tinha
sido preso pra ser interrogado. Minha mãe ficava desesperada achando que ele não
voltaria mais e fazia de tudo pra eu não perceber, mas eu sempre percebia. Nesse ano
ela me levou pra ver a virada do ano no cais. Eles iam acender luzes no Sargento
Evilázio. Alguma coisa em mim sabia que meu pai podia não voltar mais e isso era
terrível, mas quando acenderam as luzes no barco eu senti uma felicidade tão grande.
Uma felicidade que não cabia. (Pausa) como agora.O que importa no amor são as
revoluções que ele faz. Feliz ano novo, poeta.

Nilmar –
Feliz ano novo, minha parceirinha.

Sargento Evilázio -
Bonifácio e Waldeci.
(Bonifácio e Waldeci sentados no cais, um ao lado do outro, olhando. Do mato
vem um barulho de cachorro bravo. Ele rosna, late. Eles saem. Surge o cabo
Menezes e o grupo dos mateiros chefiados pelo cachorrinho.).

Sargento Evilázio - 1945.Seis verões antes de uma mulher tomar veneno numa
madrugada insone, um policial está no cais junto com o destacamento. A hora é a dos
cachorros sem dono e ele conversa com o chefe dos mateiros.

Cachorrinho –
E o novo chefe?
Cabo Menezes –
Azar o do sujeito. No dia que assume, uma fuga dessas com um
guarda morto. Já foru acordá

Cachorrinho –
Quant’é que é que foru?
Menezes –
Desessete.
Cachorrinho –

32
Desessete vagabundo...
Menezes –
Morrê na véspera da passage de ano...
Cachorrinho –
Quem é que foi?
Menezes –
Cabo Silas. ‘Nhece?
Cachorrinho –
‘Ço não.
Menezes –
Renderam. Pegaram arma, foram com ele até o portão. Não sei porque
caralho ele tentou se sortá. Mataru ali mermo.
Cachorrinho –
E o contingente?
Menezes –
Trocaram bala.
Cachorrinho –
Mataru argum?
Menezes –
Só tiraru sangue só.
Cachorrinho –
Deixou cheiro.

Menezes –
Deixou.

(Silêncio.)

Menezes –
Ó, é ele. Boa noite, chefe.

(Surge Waldeci, 23 anos.).

Waldeci –
Boa noite é o caralho. Meu primeiro dia como chefe esses vagabundo
fia de uma puta... Quem é o chefe dos mateiro aí?

Cachorrin –

33
Sou eu, sim senhor.
Waldeci –
Cê que é o Cachorrin?
Cachorrin –
Ié como o pessoar me chama aí, sim.
Waldeci –
Ieu ouvi diz que os teus pessoal tem contentamento quando acontece de
ter preso no mato, é veudade isso?
Cachorrinho –
É porque aí tem seuvice pa nóis. Só se for.

Waldeci –
Num era isso não, o que eu tarra dizendo. Era isso não. Ó só... Vê se você
me entende, você. Disseram que cês gosta de judia com os presos no mato. É veudade
isso?

Cachorrinho –
Nós só faz o noss’ seuvice. (Pausa) vai fazendo. (Pausa) e
assim sucessivamente.

Waldeci –
Ieu só vô te dize un’a coisa pa você. Isso daqui tá uma badernança, preso
fugindo toda hora, sabe purque? Tu sabe, o amigo?

Cachorrinho –
Não num sei não senhor.
Waldeci –
Porque tarra faltando um chefe de disciplina que fosse macho nesse
rendevu. Tu tá me intendeno?

Cachorrinho –
O senhô tá dizendo aí na sua macheza, eu tô ovino na minha.

Waldeci –
Melhor, que eu gosto de falar é olho no olho, de homi pa homi. O que eu tô
tentando dizer a você é o seguinte. Eu não me meto com o que acontece do mato pa
dento, tá entendeno? É que nem a tua casa. O que tu far dentro dela é poblema seu, tá
me intendeno?

34
Cachorrinho –
Tô entendeno.
Waldeci –
Só que é eu que tenho que respondê por isso. Se entra no mato pra
pegar dez vagabundo e volta com um, quem é que vai ter que responder em que toca
vige os outros sou eu, tá me entendeno, tu?
Cachorrinho –
To entendeno, eu.
Waldeci –
Gostei de você, poeta. Vamo combina o nosso combinamento. Ieu vô
te dizeno ar minha necessidade e no que soba você mais os seur vai existino, fica bom
assim?
Cachorrinho –
Dipenden da suar necessidade, fica sim senhô.
Waldeci –
Então vamo lá no agora. Esses desassete. Eu não quero ninguém de
volta. Ouviu isso? Ninguém. É meu pimeiro dia, tão achano que isso daqui é hotel de
Copacabana, que eles entra e sai a hora que quer, caralho! Vai entocano. Onde der. Traz
um, um só. Pa contá. Mar judia, que eu não quero reconhecer a cara do puto. Mar o
meno é isso. No agora. Fica bom assim?

Cachorrinho –
Fica, sim senhô. Assim fica mais fácel. Deficel ia sê trazê os
vagabundo vivi. Fizeru viúva. Os meu pessoar num perdoa essas coisa. Se o amigo quer
nesse assim, eu me encarrego pesoarmente desse um e sorto os homi que eles
trabalham mar melhor é mermo na liberdade.

Waldeci –
Tu só tem que ter cuidado que or feladaputa pegaru uma berreta, uns cinco
trinta e oito…

Cachorrinho –
Bala tem que de ter direção pra ela matar. A primeira das coisa que
arrente faz com o vagabundo é fazer ele perder o norte, sim senhô. (Pausa)tem uns
que até pede pra morrê. (Pausa) e assim sucessivamente.

Waldeci –
Vai po mato que eu tenho que mandar o Sargento Evilázio pas praia.

35
Menezes -
Só tem mais o seguinte, chefe eles vai ter que vortá lá no presídio. O
caminhão ta vino.

Waldeci –
Por causa de que?
Menezes -
Por causa de que um vagabundo deixo sangue ali. Isso ajuda a percurá.

Cachorrinho –
C’a sua licenci.

(Eles vão saindo.)

Waldeci –
Escuta, é veudade que esse apelido é porque você tem faro igual ao de um
cachorro, é?

Cachorrinho –
Só pa vagabundo no mato e pa mulé cheirosa.

(Os policiais riem. Latido furioso de cachorro no mato.)

Sargento Evilázio - 1938.

(Um som de um auto-falante anuncia as atrações do circo de quinta categoria


que está no local.)

Locucutor do Circo –
São dez horas e quinze minutos na Vila do Abrão. Vamo
chegando minha gente, é o grande circo do Venceslau, as maiores atrações de todo o
continente aqui, na vila do Abrão. Venham se divertir no bingo do Venceslau. Números
de equilíbrio, mágica, e o hilariante palhaço Gaiolinha, somente hoje, aqui na vila do
Abrão.

(Chegam Bonifácio e Waldeci 16 anos, ambos correndo. Param no cais. Estão


muito cansados. Fugiram. Waldeci tem um rasgo na calça. Durante todo o
diálogo dos dois, o som do circo ficará ao fundo.)

36
Bonifácio –
Ele te modeu? O cachorro modeu?
Waldeci –
Modeu. Putcha méda, ele me modeu.
Bonifácio –
O pior é que eu tava vigiando. O pior é que eu tava. Não vi que tinha
cachorro. Deixa eu ver. Ó, foi nada, não. Foi não. N’ chegou nem a ferir. Só lanhou, só.

Waldeci –
Putcha méda.

(Bonifácio mostra a garrafa de pinga.)

Bonifácio –
Tu achas que alguém viu?
Waldeci –
Putcha sustcho.
Bonifácio –
Mas também quem manda deixá a janela aberta, quem manda? Pegamo
mermo. Dói?
Waldeci –
Arde, pô.
Bonifácio –
Se eu tivesse uma venda a primeira coisa que eu fazia era botar grade em
tudo. Peraí.

(Abre a cachaça e derrama um pouco.)

Waldeci –
Au! Animal. Que idéia é essa tua?
Bonifácio –
Pra esterilizar.
Waldeci –
Ô, fio dum guinmum!

(Se estapeiam como amigos.)

Bonifácio –

37
Dá isso aqui.
Waldeci –
Só um gole só que eu prometi pa ela que trazia bibida.
Bonifácio –
Nossa. É forte.
Waldeci –
É cachaça, burro.
Bonifácio –
Que hora ela vem?
Waldeci –
Na hora do bingo. O chifrudo canta a brincadeira, ela tem mai o meno uma
hora até o numero da corda.

Bonifácio –
E se alguém ver? Tu viu o tamanho do braço dele? Nossa mãe! Aquele ali
te quebra todos os osso do corpo.

Waldeci –
Queba nada. Só tem tamanho, só.

Bonifácio –
Mas isso ele tem. E a tua mulher em casa... Não vales um tostão. Que
hora, agora?

Waldeci –
Dez e quinze.
Bonifácio –
A Magnólia já deve ta me procurando.
Waldeci –
Ce deixou ela sozinha?

Bonifácio –
Com o velho. Esse negócio de namorar filha de comunista é um lucro. O
velho só falta me pegar no colo, só. O único problema é quando começa a falar de
política. Aí, desimbesta.

Waldeci –
Coja besta, noivado. Não sei como é que tu guenta?

38
Bonifácio –
Eu gosto.
Waldeci –
Isso é que não é vida pa mim, não. Esse lugar aqui... Né não. A Elisete me
contou, Bunifúncio! Ce já viu neve já?
Bonifácio –
Vi não, Waldecu.
Waldeci –
Aqui a rente não temo é nada. A gente tem que ir embora, poeta. Que
nem que no circo.

Bonifácio –
Tu num esqueceu não, que tens uma mulher grávida de três meses
em casa? Esqueceu não?

Waldeci –
A gente vamo fugir.
Bonifácio –
O que?
Waldeci –
Isso mermo. Eu e Elisete.
Bonifácio –
Fugir com a mulher do dono do circo? Tás louco? E tua mulher, o teu
filho?
Waldeci –
Eu disse que não queria esse filho. Eu falei pra tirá. Falei da uma mulher lá
de Angra lá que tira, em Angra lá que ela tira, coba barato até, ma ela não quis. Agora
guenta. O circo vai numa semana e eu, como é que eu fico, eu?

Bonifácio –
E ela topou fugir contigo?

Waldeci –
Disse que ia pensá. Eu acho que gostou da idéia. Falou de uma tia lá no
nordeste, lá. Uma tia que o porco num far nem idéia. Lá onde o Judas perdeu as
tamanca.

Bonifácio –

39
Mas vais sair daqui pra ir morar onde o Judas pegou gripe?

Waldeci –
No começo. Até ele esquecer. Depoi vamo viajá. Conhecê o mundo. A neve.
Que achas?

Bonifácio –
Acho que perdeste o juízo de vez. E vais viver de que?
Waldeci –
De amor.
(Surge Magnólia 15 anos.).
Magnólia –
Bonifácio.
Bonifácio –
É a Magnólia. Oi, meu jamelão.
Magnólia –
Fiquei na dúvida se era você. Oi, Waldeci.
Waldeci –
Oi, noivinha.

Magnólia (pro Bonifácio) –


O que aconteceu? Papai está esperando no bingo. Diz que
vai te ensinar um truque pra prever as bolinhas que tem mais chance de sair.

Bonifácio –
Aquele dali... E claro, meu doce. Estava só te esperando. Eu me sujei
porque tive que levar umas caixas pro meu pai.

Magnólia –
Cê viu que entraram na venda da dona Cizelda de novo?

Bonifácio (escondendo a garrafa)-


Quando?

Magnólia –
Agorinha mesmo. Tava indo no DPO.
Bonifácio –
Alguém viu alguma coisa?

40
Magnólia –
Parece que mexeram nas bebidas, só. (pausa - ação do Kiko). Já é a
terceira vez esse mês. Melhor num deixarmais roupa no varal. Esse lugar não é
mais o que era. Vamos. Tchau, brigão.

Waldeci –
Tchau, noivinha.
Bonifácio –
Cês parecem dois irmãos.

Magnólia –
Brigão...amanhã minha mãe vai fazer uma ceia de Ano novo. Você não
quer ir lá com gente?

Waldeci –
É veudade que teu pai conhece a União Seuvética?
Magnólia –
Conhecer, não conhece. Ele leu muita coisa sobre ela.
Waldeci –
É lá que tem neve, é?
Magnólia –
É. Me pai tem até um livro com um mapa.
Waldeci –
Tem neve no mapa, é?
Magnólia –
Deve ter. Os mapas do meu pai têm tudo.
Waldeci –
Ele mostrava o livro pa mim?
Magnólia –
Claro. Me pai adora mostrar esses livros dele. Agora vamos que eles estão
esperando.

(Saem.)

Waldeci –
A neve...

Sargento Evilázio - 1952. Poucas horas antes de morrer, Ele 30 anos, sua muito.

41
(Latidos. Policiais reunidos. É uma festa de casamento. Um policial bêbado.
Waldeci 30 anos está bufando. Fala como um cachorro. Um soldado tenta
acalmá-lo. Bonifácio 30 anos assiste a tudo.)

Ozório –
Posso falar.
Waldeci –
Tu cala a tua boca.
Ozório –
Mas eu tenho o direito de explicar.
Waldeci –
Cala a tua porra da tua boca!!!.
Cabo Anastácio –
Chefe...
Waldeci –
Ô seu feladaputa, tu tinha um turno pra tirá, seu merda, tinha um
trabalho pa fazê. Purque que, então tu se acho na porra de um direito de encher a burra
na hora do seuviçe, seu baiacu, pur causa de que?

Ozório –
Ieu num tô beubo.

Waldeci –
Sabeno que tem preso no mato, sabeno que tem, seu filho de uma
vagabunda......

Ozório –
Licença, tenente, dá... O senhor dei... O senhor deixa... Deixa eu me explicar.
Ieu só bebi um gole só. Num tô beubo.

Waldeci –
Ah, não. Não tá beubo. Se num tá beubo, então olha aqui pa minha mão, ó
pa ela, ó. Ieu vou mete a mão na sua cara. Se tu num tive beubo, tu consegue desvia.
Vom vê se tu não tá beubo, vom vê. Ó, atenção é um dois tês foi. (Sonora bofetada.)
pode tê sido azar. Né não? Vamo de novo que ele falou que num tá beubo, ele disse. Um
dois tês foi. (Outra bofetada, mais forte ainda) essa foi qase, ein. Olha, eu

42
realmente eu estou na dúvida se tu tá ou não tá beubo, seu gambá filho dum urubu.
Vom de novo. Tu desvia, animal. Um, dois tês… Atenção, vou dá agora. Foi.

(Bofetada, ele cai.)

Bonifácio –
Chega, Waldeci! Isso daqui é uma festa. Já bateu. Deixa eu levar
ele pra casa. Não para o calango, João-qué-carne. Chega de humilhá. Vai, Ozório,
levanta daí. Vamo dançar, minha gente. Eu levo você pra casa. (A festa recomeça
constragidamente. Caminhando com o bêbado apoiado, ele aponta com o dedo)
olha pali. Olha bem quem tá olhando ali. Aprende uma coisa, Ozório. Mulher só respeita
homem que outro homem respeita.

(Saíram.)

Cabo Moacir –
Chefe, desculpe, mas o senhor não devia. A mulher e o filho dele. Ali.
Viram tudo.

Sargento Evilázio – 1950.

Bonifácio 28 anos –
Me solta, me solta, porra.

Waldeci 28 anos–
Te acalma, poeta, não vai me fazer uma besteira.
Bonifácio –
Me solta, larga, larga de mim, Waldeci eu tô melhor, agora. Por favor.
Solta. Solta. Larga de mim. Olha, faz um favor. Tira ela de lá, tira de lá. Tira de lá. Tira
ela de lá! O enterro. Vai... Não sei. Pelo amor de Deus. Eu só preciso ficar um tempo
sozinho.

Waldeci –
Fica tranqilo, meu irmãozinho. Fica tranqilo. Ó... Fica tranqilo. A gente
faz isso. Só pomete pro seu irmãozinho aqui uma coisa. Que cê não vai fazer nenhuma
besteira. Promete.

Bonifácio –

43
Eu só quero ficar sozinho.
Waldeci –
Pomete que cê vai pensar nos seus três filho.
Bonifácio –
Me deixe, eu tô dizendo. Eu quero ficar sozinho, caralho. Me solta,
me solta, Waldeci.

Waldeci –
Já falei que eu só vou soltá se me prometê que não vai fazer bobage.
Bonifácio –
Solta, porra. Solta, solta.
Waldeci –
Pode dá porrada. Pode dá.

Bonifácio –
Eu não vou fazer nenhuma besteira. Não vou.
Waldeci –
Jura pelo amor que cê tem pelos teus filho.

Bonifácio –
Juro, porra. (Waldeci o solta) eu só quero ficar um pouco aqui, Waldeci.
Vai lá. Desamarra ela daquela cadeira e avisa o velho. Não deixa as crianças… Não
deixa. Avisa o velho. Eu já vou pra lá. Avisa no destacamento. Vai. Pode confiar. Eu sei
que os meus filhos dependem de mim.

Waldeci – Ó, meu irmãozin, ieu vô resolvê isso pa você. Mai, ó. Cê me descurpe,


mai o soldado vai ficá ali, ó. Só olhando, só. Cê fica o tempo que você pecisá, que eu vô
resolveno tudo. Tá certo, meu irmãozin? Tá certo? Tá certo?

Bonifácio –
Tá.
Waldeci –
Agora dá um abraço aqui no seu irmãozin.(Abraçam-se)

Sargento Evilázio - Um verão antes de ouvir, impassível o tiro que vai matar seu
amigo de infância, Ele 28 anos o abraça. É a hora dos desastres marítimos. E das idéias
fixas.
Waldeci –

44
Cê viu bem se ela num deixô nenhuma carta? Geralmente quem faz
essas coisa deixa…
Bonifácio –
Deixou não, já disse. Vai lá, Waldeci. E me faz um favor. Leva o soldado
que eu num sô homi de deixá três filhos sem pai nem mãe nesse mundo.
Waldeci –
Agora ouvi um sujeito homi falando.

(Ele afasta-se. Bonifácio senta-se. Olhar injetado. Verifica se ele saiu de fato.
Então mete a mão no bolso e tira a carta, ainda lacrada. Lê.)

Bonifácio –
Para ser lido unicamente pelo meu marido Bonifácio, longe de todos os
olhares.

(Enquanto ele fala a frase acima, Magnólia entra com o jardim enrolado. A carta
é falada sem emoção, como se estivesse lendo mesmo.)

Magnólia –
Meu marido, no momento que você estiver lendo essa carta eu já terei
partido. Tentei ao máximo fazer com que os acontecimentos tomassem outro rumo, mas
não foi possível. Deixo essa carta para que você entenda os motivos que me levaram a
agir assim. Eu tinha nove anos quando me apaixonei por um preso que cruzou a minha
porta enquanto eu estendia um lençol no varal. Trocamos meia dúzia de palavras, se
tanto, mas eu nunca o esqueci. Esse preso é o Nilmar, que hoje trabalha em nossa casa.
Assim que ele reapareceu, achei que aquilo havia passado, que havia sido uma coisa de
menina, mas com a convivência vi que era algo maior. Algo talvez de outra vida.
Confessei a minha paixão, mas ele foi irredutível. Em momento algum cedeu aos meus
apelos. Eu, dominada de desejo, já não me envergonho de dizer isso, passei a escrever-
lhe cartas. O fato é que algumas dessas cartas foram interceptadas pelo Waldeci, que
me chantageou, alegando que as mostraria a todos os moradores do Abraão, caso eu,
digo isso tomada de nojo, caso eu não me entregasse a ele. Você não imagina a dor que
sinto nesse momento por privá-lo ao mesmo tempo da esposa e do amigo, mas não
poderia fazer de outro modo. Vi-me totalmente sem saída. Jamais me entregaria a esse
homem muito menos a custa de uma chantagem sórdida como aquela. Por outro lado
não poderia suportar a vergonha de ser tratada como uma adúltera perante meus filhos.
Por isso fiz o que fiz. Peço-lhe que nossos filhos jamais saibam os motivos da minha
morte. Peço também que jamais se vingue do Nilmar. Ele foi irredutível. E por último

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peço que faça algo de bom por esse lugar. Você é um homem bom. Se tivesse algum
controle sobre as coisas jamais teria sentido o que senti, não teria feito o que fiz e
passaria a vida empenhada em fazê-lo o mais feliz dos homens, mas não somos donos
de nós mesmos. (entram Walcimar e Berenice) Tente ser feliz, case-se de novo e se
possível, reze por mim.

(Latidos.)

Sargento Evilázio -1966. Hora dos sonâmbulos. E dos amantes disfarçados de canoas
na areia. No cais iluminado pelos vaga-lumes, o menino dorme, sempre embalado pelas
histórias.

(No cais, Walcimar e Berenice 21 anos com o carrinho do bebê.)

Berenice –
Conta outra.
Walcimar –
Do meu pai?
Berenice –
Claro.
Walcimar –
A da mulher do dono do circo. Eu já te contei?
Berenice –
Não.
Walcimar –
O meu pai, com a minha mãe grávida de três meses da minha irmã,
fugiu com a mulher do dono do circo.
Berenice –
O quê?
Walcimar –
Tô te dizendo, meu pai era da pavirada.
Berenice –
Deixou tua mãe aqui, barriguda?
Walcimar –
Deixou. Minha mãe não pode nem ouvir falar nessa história que fica
doida.
Berenice –
Quem te contou?

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Walcimar –
Ah, quem me contou? O seu Bonifácio. Foi ele que me contou tudo
sobre o meu pai. Diz que os dois fugiram, mesmo. Saíram numa madrugada, é claro que
no Sargento Evilázio e com o Seu Bonifácio pilotando, mas isso ele não disse. Só que
eles foram morar em Campo Grande.
Berenice –
Aqui do lado.
Walcimar –
Pois é.
Berenice –
E o chifrudo, foi atrás deles?
Walcimar –
O dono do circo? Que nada, parece que tomou um porre pra
comemorar. Diz que a mulher não era de brincadeira, assim que meu pai e ela chegaram
em Campo Grande ela já arrumou uns dois. Aí, quando meu pai percebeu a fria, voltou
dizendo que tinha se arrependido, que descobriu o quanto amava minha mãe, o quanto
queria o filho...
Berenice –
E tua mãe.
Walcimar –
Ah, aquele coração que você conhece. (Pausa) quando eu ia
imaginar que a gente ia tá aqui, no cais, eu, você e o moleque, contando histórias do
meu pai. E rindo.

Berenice –
Impressionante como o Walciano se acalma nesse lugar.
Walcimar –
É
Berenice –
O que eu acho mal contada é essa história do tapa e do cara ter sido
absolvido.

Walcimar –
Foi o que eu te contei, paixão. Na noite anterior o tal do Ozório tava
com a mulher e o filho numa festa de casamento de serviço e encheu a caneca. Ai o meu
pai, chefe de segurança do presídio, fez o que sempre fazia. Meteu a mão na cara do
sujeito.

47
Berenice –
Na frente da mulher, eu sei.
Walcimar –
E do filho. Aí no dia seguinte o cara pegou a arma, foi na praia e...
Berenice –
O que eu acho estranho é ele ter sido absolvido por unanimidade.

Walcimar –
Defesa da honra.
Berenice –
Tudo bem, 1950. Defesa da honra. Tudo bem ele ser absolvido. Mas
três julgamentos diferentes, nenhum voto contra?
Walcimar –
Foi o que o seu Bonifácio contou.
Berenice –
O seu Bonifácio só fala do seu pai?
Walcimar –
Impressionante a amizade daqueles dois.

(Latidos. Amanhece.)

Sargento Evilázio - 1952. Começo de um dia sem sol. Pouco tempo depois de ter tido
uma ideia brilhante, Ele, 30 anos conversa com o bêbado da noite anterior.

Bonifácio –
Te acordei, Ozório?
Ozório –
De modos nenhum, seu Bonifácio.

Bonifácio –
Desculpe, homem, mas é que eu não consegui dormir. Imaginei que
tivesse acontecido o mesmo com a sua pessoa.

Ozório –
Mai ou menos, seu Bonifácio, mas por causa de que é que o senhor...

Bonifácio –

48
Por causa do que aconteceu a ti, rapaz. Tu sabes o quanto eu prezo a
ti e a tua família.

Ozório –
Claro que sei sim, seu Bonifácio. Quantas vez o senhor não segurou pra
mim na hora do aperto? Vendeu fiado. Pendurô. Do senhor eu não tenho do que
reclamar, não senhor.

Bonifácio –
Pois, é, porque eu penso assim. A gente tá nesse mundo é pra se ajudar, é
ou não é?

Ozório –
É, sim senhor.

Bonifácio –
Então é por isso que eu não consigo me conformar com o que
aconteceu ontem.

Ozório –
Até agora e não entendi aquilo que o senhor me disse pra mim.

Bonifácio –
Eu falei que mulher só respeita homem que outro homem respeita.

Ozório –
O que o senhor quis dizer com isso?

Bonifácio –
Eu não quis dizer nada. Me escapou. Mas é que não se humilha um homem
na frente dos seus. Eu já vi muito homem decente, digno das calças que veste entrar em
perdição por coisa menor que esta.

Ozório –
Não diga isso, seu Bonifácio.

Bonifácio –
Não que isso vá acontecer a você, mas sabe como é a vida. Esse lugar é
pequeno. Ontem, mesmo já estavam dizendo coisas.

49
Ozório –
Que coisas?

Bonifácio –
Nada. Piadas. Sabe como é a gente daqui. Não liga. (Pausa) pior é que eu
sei de uns aí que ficariam muito satisfeitos se esse Waldeci parasse de fazer o que bem
entende no Abrão.

Ozório –
Quem?

Bonifácio –
Eram capazes até de apadrinhar um que desse destino nisso.

Ozório –
Apadrinhar?

Bonifácio –
Pra você ver como esse daí tá com os dias contados. Resta saber quem vai
ser o felizardo que vai ter a sua honra lavada. As pessoas aí acham que somos amigos.
(Ri) na infância até que sim. Não nego. Mas depois... Não que me tenha feito nada. Não
diretamente, digo. Nada que me dê um motivo. Pelo menos diante da justiça. Mas que
me daria um sossego muito grande se esse tal de Waldeci parasse de desfazer por aí,
isso eu não vou negar ao amigo.

Ozório –
Isso dá cadeia, seu Bonifácio.

Bonifácio –
Nesse caso? Acho difícil. Tomando você como exemplo: Digamos
que você, bom... Uma hipótese? Que você cobrasse o seu prejuízo. Imagina se alguém
ia ter peito de te condenar. Defesa da honra, poeta. E se condenasse, é o que eu disse.
Esses que eu te falei têm dinheiro, dinheiro pra tornar a vida do sujeito, da família do
sujeito, uma coisa que qualquer dois anos de cana iam parecer uma viagem de férias.

Ozório –
Seu Bonifácio, o senhor ta brincando com a minha pessoa?

50
Bonifácio –
Tô te falando na mais profunda amizade que eu tenho pela sua pessoa,
rapaz. E tem mais, quem apanha uma vez apanha duas, apanhas três.

Ozório –
O senhor me botou uma pulga aqui atrás da minha orelha.

Bonifácio –
Então faz o seguinte. Hoje à tarde o Waldeci vai ta lá no Pernambuco
tomando cachaça. Só de calção de banho. Se essa pulga tá te incomodando, vai até lá.
Pergunta por que ele fez isso. Às vezes uma conversa resolve tudo. Mas vai armado pra
uma eventualidade. Sabe como é... Tá cheio de preso no mato.

1952

Sargento Evilázio - Tarde do mesmo dia sem sol. O menino 7 anos está no cais. Pesca.
Ao lado, um balde com o maior peixe que já conseguiu pescar.

(Bonecos. No cais, Walcimar. Vara de pescar. Ao lado o balde com um peixe


grande. Ele parece eufórico. De vez em quando olha para trás, para a fábrica de
sardinha. Soa um tiro. Ele olha o céu.)

Sargento Evilázio – 1937.

Waldeci –
Vem.

Sargento Evilázio – Hora dos lenços, dos acenos e do apito dos barcos partindo. Treze
verões antes de morrer, Ele 15 anosa traz pela mão. Ela14 anos vem contrariada.

Waldeci –
Vem.
Magnólia –
Aqui está bom.
Waldeci –
Vamo lá até o fim do cais, lá.

Magnólia –
Não, aqui.

51
Waldeci –
Só mais um pouco, só.
Magnólia –
Aqui.
Waldeci –
Bom. Tá bom. Aqui. (Imitando o Bonifácio) quando fincas o pé...

Magnólia –
Aqui. Então?
Waldeci –
Vom sentar?
Magnólia –
Ai. Aqui tá com cheiro de peixe.
Waldeci –
Não seje por isso.

(Tira a camisa e coloca pra ela sentar.)

Magnólia –
Põe essa camisa, menino.
Waldeci –
Qué que tem. Tá calor. É reveillon. Senta, aí. Senta. Pó sentá. Depois eu
lavo, eu. Senta. (Tentando ser doce) olha que lindo entardecer.

Magnólia –
Não posso demorar muito. Minha mãe deve estar preocupada que eu
não apareci pra tomar lanche.

Waldeci –
Não demora não. Gosto desse vestido que cê usa.
Magnólia –
Obrigada.
Waldeci –
Magnólia, você qué namorar comigo?

Magnólia(como se já esperasse pela pergunta)–


Sabe o que é Waldeci...você é um garoto muito bacana, mas é
que eu gosto de outro.

52
Waldeci –
Jura?
Magnólia –
Ãhã.
Waldeci –
Quem é que é? É o Bonifácio, é?
Magnólia –
Que Bonifácio? Eu não vou dizer. Um outro. Por isso eu não posso namorar
você nem ninguém porque não seria justo com você, nem com ele, nem comigo.
Waldeci –
Mas você namora ele, namora?
Magnólia (ri) –
Não.
Waldeci –
Então?
Magnólia –
É a minha resposta definitiva. Somos bons amigos.
Waldeci –
Me dá um beijo, então. Hoje à noite.
Magnólia –
Não.
Waldeci –
Só um beijo, só.
Magnólia –
Não.
Waldeci –
Só to pedindo um beijo. Só isso, só.
Magnólia –
E eu tô dizendo que não.
Waldeci –
Mar você beija todo mundo.
Magnólia (indignada) –
Quem te disse isso?
Waldeci –
Ieu sei, cê beijou o Renatinho, o Waldoclei, até o Ubiratan que é meio
bichinha cê beijou.
Magnólia –

53
Eu beijo quem eu quiser. A boca é minha.
Waldeci –
Mar então tem que me beijar também.
Magnólia –
Não tenho nada. Eu só beijo os meninos eu quero beijar.
Waldeci –
Se você não me beijar, ieu conto pro seu pai que cê beija todo mundo.

Magnólia –
Pode falar, ele não se importa, ele é comunista. E quem é comunista
acha isso muito natural. Por isso você fique sabendo que meu pai deixa eu beijar todo
mundo. Todo mundo que eu quiser beijar, menos você porque de você eu não gosto.

Waldeci –
Mintira que cê não gosta de mim.
Magnólia –
Não gosto porque você se acha o melhor,porque você gosta de bater
em todo mundo, e isso é ridículo. Passar bem.
Waldeci –
Se não fosse menina eu te dava-lhe uma porrada.
Magnólia –
Ce diz isso porque você não conhece o meu futuro namorado. Se ele
ouvisse você falar isso, ele acabava com você.
Waldeci –
Então me diz quem é esse babaca aí, diz, que eu quebo o nariz dele.
Magnólia –
Você é ridículo. Ridículo.
Waldeci –
E você é uma piranha.
Magnólia (chorando como uma criancinha) –
Vou falar pra ele, ele vai matar você.
Waldeci –
Pó fala, vai fala pa ele, vai. (Ela sai. Ele, rancoroso) piranha...

Sargento Evilázio - 1938. Um verão depois de ter chorado de ódio e orgulho a jovem
15 anosestá de novo no cais. Ele 16 anos chega com sua melhor roupa. Hora das
conversas animadas, dos brindes e do passeio dos lampiões.

54
Bonifácio –
Vim correndo. Gostaste da minha camisa?
Magnólia –
Bonita.
Bonifácio –
Ganhei de natal. Minha mãe comprou lá em Campo Grandes.
Magnólia –
Puxa!
Bonifácio (ajeita o cabelo) –
Sou todo ouvidos.
Magnólia –
Senta aí. É o seguinte. Você deve ter percebido que eu não beijo
ninguém há muito tempo.

Bonifácio –
É, quer dizer, o pessoal comentou. Todo mudo viu que você... é fato,
é fato.
Magnólia –
Eu não sei se você sabe por que eu fiz isso?
Bonifácio –
Não. Por quê?
Magnólia –
Porque uma pessoa que eu não quero dizer o nome, no ano passado
me disse uma coisa muito feia, e eu falei com os meus pais e eles me explicaram que a
Ilha Grande é um lugar muito retrógrado...
Bonifácio –
Muito o quê?
Magnólia –
Atrasado
Bonifácio –
Ah, isso é.
Magnólia –
E que eu preciso tomar cuidado porque num lugar como esse a gente
pode ficar mal falada por qualquer bobagenzinha que a gente faça. Por isso eu decidi
que não iria mais namorar ninguém.

Bonifácio –
Nós...percebemos.

55
Magnólia –
Só que minha mãe disse que eu estou uma moça e que preciso pensar em
casar.
Bonifácio –
Casar?
Magnólia –
É. Só que a pessoa que eu gosto, não é possível casar com ele
agora, então eu resolvi escolher um noivo.
Bonifácio –
E você escolheu?
Magnólia –
Escolhi.
Bonifácio (suando) –
Eu conheço?
Magnólia –
Conhece.
Bonifácio-
Quem é?
Magnólia –
É você.
Bonifácio –
Eu?
Magnólia –
Ah. Eu escolhi você porque você sempre pareceu uma pessoa boa.
Não briga com ninguém, Tá sempre sorrindo. E já disse várias vezes que gosta de mim.
E é bonitinho, também. Então eu queria saber se você gostaria de ser meu noivo.

Bonifácio (assovia) –
Fiuuuu...
Magnólia –
Não gostou?
Bonifácio –
Não, não é isso. Eu... Tu sabes que eu... Por ti... Mas ficar noivo?
Assim. E não disseste que... esse outro aí?

Magnólia –
Não se preocupe com isso. Foi uma pessoa que eu conheci um dia, mas
que está muito longe. Então, você aceita?

56
Bonifácio –
Eu...
Magnólia –
Olha...se você não quiser eu juro que eu não vou ficar ofendida.Você
é o primeiro da lista, mas eu posso falar com segundo...

Bonifácio –
Não, espera, essa lista, podes jogar fora. Eu aceito.

(vai beijá-la e ela interrompe)

Magnólia –
Primeiro eu preciso passar as minhas regras.
Bonifácio –
Regras?
Magnólia –
Sem beijos em público. Namoraremos na minha casa, com a presença de
minha mãe, meu pai ou algum dos meus irmãos. Em público somente beijos na mão. Ao
final dos nossos encontros permitirei um beijo de leve na face. Isso até o...Quarto mês.
Depois do quarto mês será permitido passarmos algum tempo sozinhos, na minha casa,
quando algum dos meus parentes estiver em outro cômodo. Nessas ocasiões poderá me
dar beijos leves nos lábios, sem troca de saliva. A partir do oitavo mês, poderemos
trocar um beijo na boca de verdade. Somente um a cada semana. Sempre em minha
casa e nunca na ausência completa de familiares. Em público, no entanto, vale a regra
do beijo na mão. Isso deverá permanecer até o dia do Casamento, quando então passo
a ser toda sua, você aceita?

Bonifácio –
Aceito.
Magnólia –
Eu vou contar pra minha mãe. (sai correndo, mas percebe e volta)
Antes pode beijar minha mão.

(Beija apaixonadamente.)

Bonifácio –

57
Vou contar os dias que faltam para o nosso casamento como um preso
conta os dias que faltam para a liberdade.

1946

Sargento Evilázio - Cinco verões depois de ter visto a mulher que o rejeitou casar com
seu melhor amigo, Ele 24 anosestá de branco, no cais, com o filho no colo. O menino, 26
verões antes de partir da ilha pela segunda vez, não quer dormir. Como irá fazer até o
fim da vida, ele olha o mar.

Waldeci –
Dorme, muleque. Dorme mulequinho. Dorme dorme dorme mulequinho
dorme dorme. Ce não quer dormir? Tem que dormir. Dorme, muleque. Dorme
mulequinho. Dorme dorme dorme mulequinho dorme dorme. Tem medo não. Tem não.
O papai ta qui com o muleque. Tem medo, não. Papai ta aqui. Papai taqui. Dorme dorme
dorme mulequinho seu muleque.

(Surge o cabo Menezes.)

Menezes –
Chefe! Chefe!
Waldeci –
Chiu! Não faz barulho, animal. O que que é?
Menezes –
Descurpe atrapalhá. Mas é que é melhor o senhor ir lá pro presídio.
Menezes –
Por causa de que?
Menezes –
Mataram o Cachorrin.
Waldeci –
Como?
Menezes –
Ninguém sabe. Os homi dele chegaram agora. Ninguém viu nada. Só
ouviu dois bicho brigando nu mato. Mas, olha chefe, pelo jeito que tá o corpo, parece
que topou com um negócio feio.
Waldeci –
Que merda!

58
Sargento Evilázio – 1934. Poucos minutos para a passagem. Hora do cio das meninas.

(Waldeci e Bonifácio meninos 12 anos, ambos de calçola de banho, sem camisa.


Faz frio.)

Waldeci –
Pensei que você não vinha.
Bonifácio –
Claro que eu vinha.
Waldeci –
Putcha méda! Tá frio.
Bonifácio –
Tá foda.
Waldeci –
Mas a rente combinamo.
Bonifácio –
Então vamos.
Waldeci –
Olha, tem que ser um baita mergulho, ein.
Bonifácio –
Tem que sair correndo.
Waldeci –
Mar diz que antes tem que fazer pedidos.
Bonifácio –
Como assim.
Waldeci –
É, diz que é assim, que faz assim. Faz os pedido e só depois é que dá
o último mergulho do ano.
Bonifácio –
Pedidos pra que?
Waldeci –
Prum ano novo melhor. Pra conquistar ar menina. Essas coisa que é
importante.
Bonifácio –
Vamo pedir então, né?
Waldeci –
Ieu quero furnicá com todas as meninas da Ilha.
Bonifácio –

59
Mas só têm três que vale a pena.
Waldeci –
Ieu quero furnicá cas três.

Bonifácio –
Ieu quero que ele não consiga furnicá com nenhuma delas e que eu
consiga, além de furnicá muitcho cas três, me tornar um dono de venda muito rico. E
viver com as três furnicando toda hora.

Waldeci –
Ie eu quero ir embora desse lugar um dia pra conhecer a neve e todas
as piranha do mundo.
Bonifácio –
Eu também quero conhecer as piranha. E quero muita saúde pro meu pai,
pra minha mãe, e pra toda a minha família.
Waldeci –
Ieu também quero isso, além de muita saúde pra minha cachorra
Pergunta a Ela.
Bonifácio –
Ridículo esse nome que você deu.
Waldeci –
Que ridículo? Engraçado pa caramba. O cara pregunta. Qual o nome da
cachorra? Eu respondo: Pergunta a ela. Ele fica ca maior cara de bosta.

Bonifácio –
Babaca.
Waldeci –
É você.

Bonifácio –
Sabe do que mais, apesar desse cara ser um grandessíssimo babaca, ele é
o meu melhor amigo e eu quero pedir saúde pra esse bunda-mole.[

Waldeci –
Ieu quero também pedir pra esse fio dum guimum, apesar de ele ser
viado pra caramba.

Bonifácio –

60
Está na hora. Dá a mão.

(Dão as mãos.)

Waldeci –
Agora. Um dois três, foi.

Bonifácio e Waldeci –
FELIZ ANO NOVOOOOOOOOOOOOO!

(Saem correndo, dão o pulo. Apaga a luz quando eles estão no alto. Acende o
palco. Walcimar e Berenice, 16 anos, ele saindo da barca, ela entrando. Se
veem.)

Sargento Evilázio – Intervalo de 15 minutos.

Segundo Ato

Sargento Evilázio – 1961.

Walcimar –
Oi. (Pausa) é... quer uma ajuda pra descer a bagagem?
Berenice –
Não precisa.
Walcimar –
Não precisa... Cê tá indo?

Berenice (irônica) –
Parece.
Walcimar (divertido) –
Eu tô chegando. Cê tá indo eu tô chegando, cê...

Berenice (continuando a ironia) –


Perspicaz...
Walcimar –
A gente se conhece?
Berenice –
Acho que não.

61
Walcimar –
Eu acho que sim.
Berenice –
Cê tá me confundindo.
Walcimar –
Acho que eu sonhei com você.
Berenice –
Paquera ridícula, ein?
Walcimar –
Não é uma paquera. Ou é.

(Pausa.)

Berenice –
Posso embarcar?

Walcimar –
Ah, claro. Claro que pode. Você querendo embarcar e eu aqui,
falando, falando, falando...

(Eles trocam de lugar. Ela desce e ele sobe.)

Walcimar –
Cê volta?
Berenice –
Não.
Walcimar –
Não vai passar as férias aqui?
Berenice –
Vou pra Salvador.
Walcimar –
Bahia!
Berenice –
É.
Walcimar –
Vai com o namorado?
Berenice –
Com umas amigas.

62
(Pausa.)

Walcimar –
Salvador é lindo demais né.

Berenice –
Salvador é muito lindo.

Walcimar –
Nossa, lindo, lindo. Salvador... Não conheço, mas dizem. Não quis ficar
aqui na Ilha?

Berenice –
Tinha combinado já. Só vim passar dois dias porque eu não aguento
ficar longe daqui muito tempo.

Walcimar –
Eu sei o que é isso. Qual o seu nome?

Berenice –
Berenice.

Walcimar –
Berenice. “Walcimar e Berenice convidam para a sua cerimônia de
casamento a ser realizada na Ilha Grande, na praia de Lopez Mendes no dia... Qual o dia
é melhor pra você?

Berenice–
Walcimar?! Acho que não vai ficar bem no convite.

Walcimar –
Se quiser eu troco, mas é que todos os homens da minha família
têm Wal no nome. Waldeci, Walcimar, Waldoclei, Walcinei, Waldinei. Tem um que tem
até dois no mesmo nome. O tio Walcival. Verdade, juro. Aqui na Ilha é assim.

Berenice –
Cê é daqui?
Walcimar –
Nasci aqui. Mas moro em São Paulo desde oito anos de idade. E você?

63
Berenice –
Morei aqui por três anos. Mas sou do Rio.

(Pausa.)

Walcimar –
Não tem medo de fazer a travessia à noite?
Berenice –
Não sou muito de medos.
(Pausa.)

Walcimar –
Nem de escuro?
Berenice –
Não.
Walcimar –
Lobisomem?
Berenice –
Mm.

Walcimar –
Preso no mato, cobra, boi da cara preta? Cais?
Berenice –
Cais? Que bicho é esse?
Walcimar –
Cais. Eu tenho medo de cais. Desse cais.

(apito do barco)

Walcimar –
Deixa eu te dizer uma coisa. Você...Deixa eu dizer. Eu digo e você vai
embora. Essa é a primeira vez que eu piso na Ilha desde que eu fui embora. Essa,
agora, hoje. Aqui. E você... você é a primeira pessoa que eu vejo. Se você fizesse idéia
do que isso...

Berenice –
Faz quanto tempo que você foi embora?

64
Walcimar –
1953. Oito anos

(Apito do barco. Berenice começa a rir.)

Walcimar –
Que cê tá rindo?
Berenice –
Eu cheguei em 53.

(Pausa.)

Walcimar –
Vai ver a mesma barca que te trouxe foi a que me levou embora.
Berenice –
E a gente se viu nesse momento. Que nem agora.
Walcimar –
De passagem.

(apito do barco)

Walcimar –
Porque cê veio morar aqui?
Berenice –
Meu pai foi comandante do presídio, nessa época. E você, porque foi
embora?

Walcimar –
Meu pai era chefe desegurança do presídio. Foi assassinado.
Berenice –
Nossa, eu lembro. Quando a gente chegou aqui na ilha só se falava...
Puxa, que chato ter tocado nesse assunto.
Walcimar –
Sem problema. Oito anos já.
Berenice –
E você foi embora por causa disso?
Walcimar –

65
Minha mãe. Não conseguiu mais viver nesse lugar.
Berenice –
Eu você tá voltando hoje?
Walcimar –
Minha mãe não queria que eu viesse. Ela nunca mais pôs os pés aqui.

(Apito do barco)
Walcimar –
Pena que cê teja indo embora.
Berenice –
Pena.
Walcimar –
Me dá um beijo?

Berenice (rindo) –
Como assim?

Walcimar –
Pode ser que você não volte. Pode ser que eu nunca mais volte. Ou que a
ilha afunde. Que o cais me... E a gente nunca mais se encontre.

Berenice –
O mundo é pequeno.

Walcimar –
Mas cheio de paredes. E a gente não voa. (Pausa) ainda.

(Apito do barco. Ela toma a iniciativa. Sai do barco. Beijam-se. Ela entra de
novo. O barco parte.)

Sargento Evilázio - Walcimar e Berenice

Berenice –
Boa volta.
Walcimar –
Boa partida.

Sargento Evilázio – Hora dos suspiros.

66
(A barca parte.)

Sargento Evilázio – 1971. Dez verões depois de terem se conhecido no cais. Na hora
dos amantes insones e do vôo cego dos morcegos Ele faz a pergunta.

Walcimar –
Sim ou não?
Berenice –
Não.
Walcimar –
Você não tem esse direito. Não tem.
Berenice –
Eu tenho. A vida é minha.
Walcimar –
Não é. Não tem. Não é sua. E eu? E o seu filho?
Berenice –
Ele vai entender.
Walcimar –
Entender o que? O que você quer que ele entenda?
Berenice –
Que não precisa esse exagero todo. Eu explico a ele.
Walcimar –
Você? Quando? (Pausa) ele só tem seis anos.

Berenice –
Eu espero ele crescer e explico. (Pausa) o que não pode é pensar do jeito
que você está pensando.
Walcimar –
Como você quer que eu pense?
Berenice –
Que você acredite. Que me apoie. O médico de Minas tem razão.
Walcimar –
Puta charlatão, meu.
Berenice –
Charlatão?
Walcimar –
Vá pa merda.
Berenice –

67
Não fala assim comigo.
Walcimar –
Vá pa merda, Berenice.
Berenice –
Você nunca mais na sua vida você fale assim comigo.
Walcimar –
Eu vou pra casa.
Berenice –
Cala a boca.
Walcimar –
Eu vou.

Berenice –
Cala a boca. Vai ficar aqui. Cala a boca.

Walcimar (explode) –
Que merda isso. Que merda, meu Deus...

Berenice –
Eu pego a barca amanhã e você nunca mais vai me ver, Walcimar. Eu
pego essa barca e você nunca mais...

Walcimar –
Pega a barca. Que diferença faz? Pega essa porra.
Berenice –
Tudo bem. Amanhã eu pego a barca.
Walcimar –
Foda-se.
Berenice –
Foda-se.

(Longa pausa. Ninguém se mexe.)

Walcimar –
Berenice... Parece que você não viu os exames, não falou com os
médicos. Todos, todos dizem a mesma coisa: tem tirar o outro seio também, pronto. É
chato, é ruim, mas é o que ser feito.

68
Berenice –
Olha, Walcimar, isso é assunto encerrado. Se você quiser me apoiar eu
te agradeço, se não... Pode pegar a barca.·.
Walcimar –
Por que meu Deus? Por quê?

(Silêncio. Os dois ficam ali.)

Berenice –
Vamos pensar em coisas boas, no nosso filho, nesse lugar... Você se
lembra do que aconteceu na noite que a gente fez amor pela primeira vez?

Walcimar –
Aconteceu tanta coisa.

Berenice –
Quando você tocou o meu seio. Você chorou, Walcimar. Eu achei que
tinha acontecido alguma coisa e você disse...
Walcimar –
Você acreditou?
(Pausa.)

Berenice –
Você disse que era o dia mais feliz da sua vida.
Walcimar –
Você se lembra de ter visto alguma lágrima nos meus olhos.
Berenice –
Eu vi.
Walcimar –
Não viu. Achou que viu, mas não viu porque não tinha. Eu falava isso
pra todas as meninas. Depois elas faziam amor comigo. Sempre dava certo.

Berenice –
É mentira.

Walcimar –

69
A Ziete tá aqui na Ilha. Pergunta a ela o que aconteceu na noite que
a gente fez amor? Se eu não chorei? Pergunta pra Patrícia. Melhor. Pergunta pra Andréia
Polaka o que eu disse a ela na noite que você pegou a gente no cais. Pergunta.

(Pausa. Os olhos dela começam a marejar.)

Berenice –
Idiota.

(Ele vai embora. Ela o intercepta. Começa a bater nele. Ele não se defende.
Logo ela começa a beijá-lo desesperadamente. A princípio ele não cede. Súbito
começa a chorar. Sem controle sobre si, começa a despi-la ali mesmo. A luz
baixa no começo do sexo.)

(Bonecos. Berenice está sentada no cais numa cadeira de praia com o pequeno
no colo. Walcimar chega. Olha pra ela. Senta-se. Os dois olham o mar.)

Sargento Evilázio – 1965.Hora da luz da Lua esculpindo os corpos.

Andreia Polaka –
Aqui não.

Walcimar –
Porque não?

Andreia Polaka –
Walcimar, para. Não. Para. Paraaa!

Walcimar –
Por que? Só me diz isso. Por que?

Andreia Polaka –
Pode chegar alguém.

Walcimar –
Nesse breu. Não tem lua. Não vai chegar ninguém. Eu te imploro. Só
a cabecinha.

70
Andreia Polaka (rindo) –
Qué isso?
Walcimar –
Só a cabecinha, eu juro. Eu só encosto. Só pra eu sentir. Vem.
Andreia Polaka –
Aqui, não.
Walcimar –
Onde?
Andreia Polaka –
Na barraca.
Walcimar –
O Serginho ta lá, linda. A namorada dele chegou. Tá lá.
Andreia Polaka –
Então, nada feito.
Walcimar –
Polakinha, não faz isso comigo. Olha aqui como é que eu tô. Põe a
mão aqui. Olha.

Andreia Polaka –
Para.
Walcimar –
Só um bocadinho. O que é que custa?
Andreia Polaka –
Para de fazer essa cara de menino pidão. Cê acha que vai
conseguir alguma coisa assim?
Walcimar –
Sabe o que é? É que você é linda demais. Eu fico louco com você.

Andreia Polaka –
E a Berenice?
Walcimar –
Que que tem?

Andreia Polaka –
Não é tua namorada?
Walcimar –
Claro que não, meu amor. A gente só...

71
Andreia Polaka –
Para de ser mentiroso. Todo mundo sabe.
Walcimar –
Eu te juro. A gente conversou e achou melhor... Sem
compromisso. É melhor pros dois. Ela também... Eu juro.
Andreia Polaka –
Quem jura. Mente.
Walcimar –
Se eu fosse namorado dela, cê acha que eu ia tá aqui?
Andreia Polaka –
Claro, cê fica com todo mundo.

Walcimar –
Amor, eu tô apaixonado por você. Quando eu te vi saltando da
barca...
Andreia Polaka –
Ai que mentira, você fala isso pra todo mundo. Aí, amanhã...
Walcimar –
Amanhã é outro dia. Pode ser que eu esteja morto no Vietnã.
Andreia Polaka –
Que burro. O Vietnã tá longe pra caramba.
Walcimar –
Vamo curtir essa noite. Vem. Deixa eu encostar a cabecinha.
Andreia Polaka –
Não. Põe atrás.

Walcimar (num susto) –


O quê?

Andreia Polaka –
Põe atrás. Cê acha que eu nasci ontem. Só a cabecinha? Eu pisco
o olho e você me tira o cabaço. Não senhor. Vem. Põe aqui, mas devagar que essa porra
dói.

(Surge Berenice.)

Berenice –

72
Oi, Polaka.
Andreia Polaka –
Berenice.
Berenice –
Cê esqueceu do nosso encontro, Walcimar?
Walcimar –
Putz grila, Berê. Eu achei que... Nossa.

Andreia Polaka –
Berenice, eu...
Berenice –
Cala a boca, você.
Andreia Polaka –
Não é nada disso que você ta pensando.
Berenice –
Cala a boca.
Andreia Polaka –
Ele me disse que vocês tinham terminado!
Berenice (tentando não estourar com ela) –
Você não tá vendo o papel ridículo que eu
tô fazendo? Se você não tem respeito pelo namorado das suas amigas, podia ter pelo
menos um pouco de compaixão. Me deixa aqui com a minha vergonha e vai viver com
essa merda dessa culpa. Vai.

(Ela vai. Longa pausa.)

Berenice –
Uma vagabunda! Mas linda…
Walcimar –
Eu não sei o que dizer.
Berenice –
Os seios mais desejados da Ilha.
Walcimar –
Eu te amo.
Berenice –
Como eu sou estúpida de achar que...
Walcimar –
Meu amor, olha...

73
Berenice –
Não me chame assim. Não me toca. Não toca. Não toca no meu corpo!
Walcimar –
Que merda que eu fiz. Cêé a mulher da minha vida, Berê. Que que eu
posso fazer pra me desculpar?
Berenice –
Me leva pra casa. Tá escuro, eu saí sem facho-laite.
Walcimar –
Se eu passar o resto das férias pedindo desculpas a você, você me
perdoa?

Berenice –
Cala a boca, Walcimar.
Walcimar –
Se eu passasse o resto da minha vida pedindo desculpas?
Berenice –
Eu estou grávida.
Walcimar –
O quê?
Berenice –
Eu to grávida. Ilumina aqui.

(Walcimar, como boneco. encosta a cabeça no ombro de Berenice)

Sargento Evilázio –1965.

Bonifácio –
Bem-vindos a Ilha Grande.

Sargento Evilázio – Um verão depois do casamento que fez a vila do Abraão dançar e
cantar por dois dias ele retorna ao lar que escolheu pra viver em seu vai e vem de maré.

(Um belíssimo sol de começo de manhã. Chega o Sargento Evilázio com o


Walcimar 20 anos. Ele desembarca. Em seguida, desembarca Bonifácio.)

Bonifácio –
Walcimar, meu filho.

74
Walcimar –
Seu Bonifácio. Que mar, ein? Eu nem falei com o senhor no barco que eu vi
que a coisa estava pesada.

Bonifácio –
O Sargento Evilázio é um senhor barco. Não tem tempo feio com ele.

Walcimar –
É mesmo.

Bonifácio –
Tem uma coisa que eu queria te falar. Tudo bem contigo, meu filho? É
verdade que vocês vão se mudar pra cá?

Walcimar –
Como é que o senhor soube?

Bonifácio –
Tá vendo aquela poita ali? É com ela que você tem que ter cuidado. É
ela que ouve tudo o que se diz aqui na ilha.

Walcimar –
Poxa, impressionante, a gente tomou essa decisão há dois dias. A gente
quer que o nosso filho cresça aqui.

Bonifácio –
Pois então eu quero te dar um presente de casamento.
Walcimar –
Mas o senhor já deu aquele jogo de copos.
Bonifácio –
Aquilo foi uma lembrança, eu te disse que era só uma lembrança. Não te
esqueças que eu o seu pai éramos como irmãos.
Walcimar –
Eu sei, seu Bonifácio. Eu sei disso.
Bonifácio –
Pois então, eu quero que vocês morem na casa da Princesinha?
Walcimar –
Na casa da Princesinha, mas... Como assim?

75
Bonifácio –
É minha, aquela casa.
Walcimar –
Eu não sabia.

Bonifácio –
Pois é, eu e a Marlei adquirimos quando o finado Teotônio loteou o
terreno entre os filhos. E tá lá fechada. Eu conversei com a Marlei, e realmente
gostaríamos muito que vocês fossem morar lá.

Walcimar –
Seu Bonifácio, eu não sei o que dizer. Eu não posso aceitar. Eu nem tenho
como pagar o senhor. Eu nem terminei a faculdade. A gente tinha pensado numa coisa
bem mais modesta.
Bonifácio –
Não tens que pagar nada, vão morando. No dia que estiveres bem, com
dinheiro sobrando, faz o seguinte: termina a reforma que infelizmente não deu pra fazer
tudo. Constrói um rancho no terreno, pra guardar um barquinho.

Walcimar –
Seu Bonifácio... Eu, nossa. (Emociona-se.)

Bonifácio –
Deixa disso, rapaz. E olha. Vai pensando em alguma coisa que a gente
possa fazer por esse lugar.

Walcimar –
Como assim?

Bonifácio –
A minha primeira esposa, que Deus a guarde, ela me fez um pedido que...
Enfim. Antes tarde do que nunca. Pensa em alguma coisa que a gente possa fazer pra
melhorar a vida dessa gente. Esse lugar me deu tudo que eu tenho, apesar te também
ter me tirado a coisa mais importante que eu já tive.

Walcimar –

76
Falta uma escola nesse lugar, seu Bonifácio. Uma escola de segundo grau.
Isso pra começar. (Sonhador) por que o que aVila do Abraão precisava mesmo... O
senhor sabe aquele terreno do lado da fábrica de sardinha?

Bonifácio –
É do Sacadura. Ele nunca falou em vender, mas se fizer uma boa
proposta... Porque o terreno?

Walcimar –
Acho que ali seria um bom lugar pra construir o hospital do Abraão.

1968

Sargento Evilázio – Três verões depois de ter ouvido de seu marido a idéia de trazer
uma escola e um hospital para o Abraão, Ela 23 anos está no cais. Tem um paletó na
mão. Na hora em que o sol tinge os corpos, Ele chega.

Berenice 23 anos–
Paixão o que aconteceu? Por que cê veio nessa barca velha?

Walcimar 23 anos –
O Sargento Evilázio tá no Estaleiro. Não vai dar tempo de passar em
casa?

Berenice –
Não. Todos em frente à escola, em silêncio esperando o professor
Walcimar para cortar o laço.
Walcimar –
E o Walciano?
Berenice –
Teve febrinha essa noite.
Walcimar –
Jura?
Berenice –
Mas já passou, pai. Ta dormindo. Dormindo. Lindo. Dormindo.
Assim... Dormindo.
Walcimar –
Saudade. Ah! Me diz uma coisa, eles pintaram os batentes?

77
Berenice –
Pintaram.
Walcimar –
De que cor?
Berenice –
Azul.
Walcimar –
Mas porra, era amarelo, eu falei. Quem foi que mandou?

Berenice –
O seu Bonifácio. Eu falei, mas ele disse que depois se entedia com
você. Mas tá linda a escola. O azul... Lindo. Ele...
Walcimar –
Cadê ele?
Berenice –
Ele quem? Tá lá. Mas todo mundo quer mesmo é você. Eles sabem que
quem fez tudo foi você.
Walcimar –
Para de ser mentirosa.
Berenice –
Mentirosa eu?

Walcimar –
Você. Você é a rainha da construção. Os trabalhadores só faltam
levantar uma estátua pra você no pátio do colégio. O seu Bonifácio baba quando você
passa.

Berenice –
Para.
Walcimar –
É verdade. E você vem me dizer que eles estão esperando por mim?
Cara de pau.
Berenice –
Todo mundo ama você, meu herói.

Walcimar –
Herói, eu?
Berenice –

78
Você. Você, o verdadeiro herói. Herói. O herói da própria vida.
Walcimar –
Que teoria é essa?

Berenice –
O que você fez por esse lugar depois do que aconteceu... Vencer a si
próprio. Isso é o mais difícil de tudo e você é o meu herói e eu sou a mulher mais feliz
do planeta porque sou casada com você e tenho um filho seu que agora vai poder
estudar aqui porque a sua escola tá linda porque a janela é azul e parece o céu e eu
quero que a gente vá correndo pra lá porque tem um repórter de Angra querendo falar
com o Herói e o velho acha que uma reportagem é tudo que a gente precisa pra
prefeitura bancar o projeto do hospital então eu quero que a gente vá correndo pra lá
pra inaugurar a escola porque depois eu quero fazer amor com você dentro do barco
como a gente sempre faz como no dia que a gente fez o nosso filho...

Walcimar –
Cê tomou o ácido todo?
Berenice –
Guardei metade. Abre a boca.

(Ele abre. Ela coloca-lhe o ácido em baixo da língua.).

Berenice –
Tem Champanhe. Seu Bonifácio comprou Champanhe. E o madame
Satã tá cozinhando uma peixada! Vai ter peixe com banana na casa do madame Satã!
Ai!
Walcimar –
O que foi?
Berenice –
Uma dor aqui (indica o lado do seio) Acho que foi a pancada que eu
dei no armário.
Walcimar –
Cê não passou nada?
Berenice –
Passei,a pomadinha da sua mãe.

Walcimar –
Ah, então descansa. Aquilo cura tudo.

79
Sargento Evilázio – 1992. Quatro verões antes de partir como seu pai, como seu avô,
o homem, 26 anos, ouve mais uma história. É a hora das luzes nos bares, dos violões
tocando para os estrangeiros e dos paulistas gritando “truco"!

(Walciano e Juciara no cais. Conversam e bebem cachaça.)

Juciara –
O que mais você lembra da sua mãe?
Walciano –
Pouca coisa.
Juciara –
O quê?
Walciano –
Um cheiro, um cheiro de mato.
Juciara –
Sua mãe era muito bonita. Um tipo muito raro de beleza.
Walciano –
Acho que capim-limão. Perfume de capim-limão misturado com cheiro
de peixe. De sardinhas.
Juciara –
Das sardinhas que caíam no cais no descarregamento dos barcos
pesqueiros. É o cheiro da minha infância, também.
Walciano –
Lembro de uns cabelos longos. Pretos e longos. Eu tinha seis anos
quando ela morreu. Cê tinha o quê...?
Juciara –
Não adianta, Walciano. Você nunca vai saber a minha idade.
Walciano –
Como você pode saber essas histórias todas. Os detalhes. (Pausa) você vê
fantasmas? (Pausa) você é um fantasma? Uma bruxa?

(Ela o beija.)

Juciara –
O que que você acha?

(Ele a beija.)

80
Juciara –
Sua mãe tinha uma luz rara. Dessas que só se encontram em pessoas
com hora marcada. (Pausa) devem ter dito muita besteira sobre sua mãe.

Walciano (adernando levemente enquanto fala) –


Meu pai fala só da escola que eles
fizeram. É a única coisa que eu consigo tirar do meu pai, nos raros momentos em que a
gente conversa. A escola de segundo grau aqui do Abraão que eles fizeram junto com o
seu Bonifácio. Eles depois queriam fazer um hospital, mas não sei porque não
conseguiram, meu, isso ele não diz. Você sabe? (Pausa) a vovó falava muito da beleza,
da luz, da alegria da minha mãe. Ela nunca entendeu como uma pessoa assim pode
morrer de câncer no seio.
Juciara –
Não disse?

(Pausa.)

Walciano –
Minha mãe não morreu de câncer no seio?

Juciara –
Sua mãe morreu de amor, Walciano.

Sargento Evilázio –1966.

(música de igreja)

Sargento Evilázio – Quatro verões antes, no interior do barco, o pai, a mãe, os


padrinhos e os convidados conversam e se protegem da chuva que invade a festa. A
hora seria a dos maiôs secos de sal e dos corpos suados com embrulhos de compras,
mas é a hora da promiscuidade das águas.

(Interior do Sargento Evilázio, Walcimar 21 anos, Berenice 21 anos, com o


pequeno no colo. Chove. Roupas de domingo, molhadas. Seu Bonifácio 44 anos,
sua nova mulher, o padre, e convidados, todos molhados.)

Padre Silas –
Podemos então começar a cerimônia?

81
Walcimar –
Ele dormiu.
Berenice –
Pode.
Walcimar –
Tem certeza que está seco?
PadreSilas –
Os padrinhos?
Berenice –
Sequinho.
Bonifácio –
Aqui.
Padre Silas –
Bom, eu continuo dizendo que é um pouco estranho.
Berenice –
Choveu, o que podemos fazer?
Walcimar –
Ele já entendeu.
Berenice –
Era no cais, padre. Mas está chovendo.
Padre Silas –
Porque então não fomos pra igreja que é o local indicado por Deus para
seus santos sacramentos?
Berenice –
Nós temos uma história com esse cais e com esse barco, padre. Se
não quer batizar, tchau.
Walcimar –
Eu já expliquei a ele, paixão.
Padre Silas –
Bem, eu na verdade não quero saber o que vocês fizeram ou
deixaram de fazer nesse barco. Eu estou preocupado é com a hora da minha missa que
os fieis não tem nada a ver com isso. Podemos começar.
Berenice –
Esse padre está começando a me encher.
Bonifácio –
Podemos.
Walcimar –
Fala baixo.

82
Padre Silas –
Estamos aqui, aos 31 de dezembro de 1966, neste local
...improvisado...
Berenice –
Mas diante dos olhos do senhor.
Walcimar –
Chiuu.
Padre Silas –
Conforme eu ia dizer, diante dos olhos do senhor para batizar
Walciano dos Santos Moreira. Eu peço que os padrinhos se aproximem. Bonifácio Da
Conceição e Marlei da Conceição Bastos, vocês estão conscientes das funções que neste
momento a santa igreja atribui a vocês através do elo indissolúvel com essa criança?
Bonifácio –
Sim.
Padre Silas –
Muito bem, eu peço que aproximem a criança dessa também
improvisada pia batismal. Mais perto, por favor. Aqui. Walciano dos Santos Moreira eu te
batizo em nome de Deus, nosso senhor.
Walcimar –
Nem acordou.
Bonifácio –
Como ele é calminho.
Berenice –
Tem intimidade com as águas.
Padre Silas –
Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Amém. Está
encerrada a cerimônia.
Berenice –
Só isso?
Walcimar –
Deixa, Berê.
Berenice –
Isso até eu faço.
Walcimar –
Ele está com pressa. O que importa é que o menino está batizado, e no
lugar que a gente queria.
Berenice –
Vem, meu filho.

83
Bonifácio –
Eu vou levar todo mundo pra um passeio até a enseada das estrelas.
Porque não vem com a gente padre?
Padre Silas –
Infelizmente não vai ser possível, seu Bonifácio está na hora da
missa, o atraso foi grande. E além do mais eu não posso concordar com a idéia de
batizar o menino num barco que carrega presidiários. Se eu aceitei isso, foi somente
devido a um pedido pessoal seu, a quem a paróquia deve tantos favores. Com licença.
Berenice –
Já vai tarde.

(O padre hesita, mas não responde à ofensa.)

Berenice –
Aos olhos de Deus, todos são iguais, presos e padres. (O padre segue
seu caminho) desculpa, mas isso me tirou do sério. (Para o padre, alto) Jesus
também foi preso, lembra?
Walcimar –
Calma, meu amor, ele está na função dele. Sabe como é a igreja.
Berenice(num resmungo) –
Crucificam os presos e depois ficam aí chorando por
quase dois mil anos. Fariseu!
Marlei –
Tem caipirinha aqui!
Bonifácio –
Eu vou dar partida no barco.
Marlei –
Quem vai querer caipirinha?

(Todos fazem suas respectivas ações enquanto o barco canta)

Marlei –
Caipirinha!
Walcimar –
Acordou. Ele acordou.

(Comemoração.)

84
Marlei –
Como ele olha intrigado pra todo mundo.
Walcimar –
Filho, esses são os amigos do papai e da mamãe. Esse barco é o
Sargento Evilázio.
Berenice –
Aqui que você foi batizado, mal e porcamente, por um padre
preconceituoso.
Walcimar –
Berê...
Berenice –
Com o nome de... Aqui a gente tem que fazer uma pausa pra
explicar o seu nome.
Walcimar –
Ih...
Berenice –
Ih, o quê. O nosso filho tem o direito de saber porque ele se chama
Walciano.
Walcimar –
Não falei nada. Só falei “ih”. “Ih” quer dizer o quê?
Berenice –
Eu queria que o seu nome fosse Jorge. Sem “Wal”. Só Jorge. Acontece
que a família do seu pai, principalmente a sua vó, que não pode estar aqui hoje, acha
que homem tem que ter Wal no nome, senão...

Walcimar –
Vai demorar?
Berenice –
Tô acabando.
Walcimar –
Ah, bom.
Berenice –
Então o seu pai teve a idéia brilhante de fazer uma junção. O Jorge com
o Wal, que daria Jorval.
Walcimar –
Eu acho bonito, Jorval.
Berenice –

85
Jorval, bonito. É, bonito. Jorval. Muito bonito. O problema é que parece
com jornal. Seu pai e eu, com medo que alguém pudesse confundir você com algum
periódico resolvemos fazer outro tipo de junção. Wal com alguma palavra que lembrasse
o mar. Pensamos em Walcimar Júnior.

Walcimar –
Sua mãe pensou. Walcimar Júnior eu acho ridículo.

Berenice –
O fato é que também não soava bem. Então, seu pai e eu chegamos
finalmente a um acordo e te demos o oceano como nome. Wal do oceano. Walciano.
(Pro Walcimar) cê quer falar alguma coisa?

Walcimar –
Bunitinha, você.
Berenice –
Filho, já te contei a história do seu nome, já te apresentei às pessoas,
já te apresentei ao barco. Só falta uma coisa: Esse, filho, esse... É o mar.

(O barco navega no mar de ondas grandes.).

Sargento Evilázio –1972. Seis verões depois. Hora da clarividência. Dos acertos de
contas. E da volúpia surda dos amantes cegos.

Walcimar 27 anos –
Vem
Berenice 27 anos–
Deixa disso, paixão. Eu consigo andar sozinha.

Sargento Evilázio –Seis verões depois. Hora da clarividência. Dos acertos de contas. E
da volúpia surda dos amantes cegos.

Berenice –
Pronto.
Walcimar –
Porque cê quis vir aqui?
Berenice –

86
Não é reveillon? Quero ver o mar. (Pausa) quero ver o barco, o cais.
Quero estar com você.
Walcimar –
Eu só não queria que você se cansasse. Amanhã...
Berenice –
Eu não estou cansada. Pelo contrario. Só um pouco de dor.

(Olha em torno.)

Walcimar –
O analgésico.
Berenice –
Aqui? Era só o que faltava, ir presa por causa do analgésico.
Walcimar –
Prefiro ir preso do que ver você com dor.

(Tira um baseado do bolso. Acende. Fumam.)

Walcimar –
Tantas histórias.
Berenice –
Tantas.
(Tempo.)

Walcimar –
Tem uma coisa que eu nunca te disse. Quando você foi a primeira
vez pra mesa de operação eu tive medo de nunca mais desejar você.
Berenice –
Walcimar, agora... Isso?
Walcimar –
Deixa eu falar. Eu preciso. Eu tive medo de não querer uma mulher
com um seio só. É horrível, mas foi o que eu senti. Por isso não estava lá quando você
acordou da cirurgia. Depois que a gente voltou pra nossa ilha e você começou a se
recuperar esse medo foi passando. No dia que você quis fazer amor comigo e pediu pra
eu tocar em você, você estava chorando. Aí eu entendi que você é que estava com
medo, como uma criança abandonada e que eu te desejava, desejava como nunca. Eu
me arrependo de ter te pedido pra você abandonar o projeto do hospital porque eu sei
que sem você ele nunca vai sair do papel. Você que é a inspiração do coroa. De todos.

87
Você. Eu sabia disso, mas eu queria você só pra mim. Ciúme, egoísmo e um amor
desesperado. Que só cresce.

(Olham.)

Berenice –
Olha as nuvens refletidas no mar... Na última vez que fomos a São
Paulo, quando o avião subiu acima das nuvens, eu me senti como aqui no cais. Amanhã
vou viajar sobre as nuvens com o meu amor. Hoje estou viajando sobre as nuvens com
o meu amor.

(Longa pausa. Fumam.)

Walcimar –
Porque você não quis tirar o outro seio?
(Olham.)

Berenice –
Medo de ficar feia. E você não me querer mais.

(Ele faz de tudo para conter a emoção.Cena paralela. Em boneco, ele 18 anos
antes, está de mãos dadas com a mãe. Carregam malas grandes. Na barca a
menina chega com o pai. Também trazem malas.)

1953

Walcimar Menino 8 anos –


Mãe, pra onde a gente vai?
Mãe de Walcimar –
Tem uma amiga da mamãe em São Paulo. A gente vai morar
lá por um tempo.

Walcimar Menino –
E a nossa casa.
Mãe de Walcimar –
A gente vai vender.
Walcimar Menino –
Lá tem mar?
__________

88
Berenice Menina 8 anos –
Pai, quanto tempo a gente vai ficar morando aqui?
Pai de Berenice –
O tempo que eu for comandante do presídio, filha.
Berenice Menina –
Mas e se eu não gostar daqui.
Pai de Berenice –
Eu mando soltar todos os presos do presídio e a gente vai viver
onde você quiser.
Berenice Menina –
Jura?
Mãe de Walcimar –
Ajuda a menina a sair do barco, Walcimar.

(Walcimar menino ajuda Berenice menina a sair da barca do mesmo modo que
irá ajudá-la a entrar 8 anos depois.)

Pai de Berenice –
Agradece o menino, Berenice.
Berenice Menina –
Agradecida.
Walcimar Menino –
Não tem de que.

(Walcimar entra num desses barquinhos de artesanato e parte. Navega nele em


volta do cais enquanto Berenice vai caminhando com o pai)

1972

Walcimar (com o olhar perdido) –


Os destinos que se cruzam nas embarcações
sofrem o desespero do eterno desencontro. Um sempre parte quando o outro está
chegando.

Sargento Evilázio –1961. Hora das mulheres dos guardas contando pras mulheres dos
pescadores o final feliz da última novela do rádio.

Walcimar –

89
Você voltou?
Berenice –
Eu... Voltei.
Walcimar –
O que aconteceu?
Berenice –
Nada. Muita gente. Lugar de turismo ...
Walcimar –
Meu... Não acredito nisso. Eu devo tá sonhando.
Berenice –
Por que?
Walcimar –
Eu tava aqui esperando você.
Berenice –
Mentira.
Walcimar –
Juro por tudo quanto e mais sagrado.
Berenice –
Desde que eu fui? Cê ficou aqui?
Walcimar –
Não, claro que eu não fiquei aqui o tempo todo. Eu fui comer, dormir,
essas coisas, mas fora isso eu fiquei aqui. Aqui. Olhando pra lá, pra lá de onde a barca
vem. Olhando e pensando assim: Volta menina dos olhos d’água.
Berenice –
Eu não voltei por causa de você.
Walcimar –
Voltou porque?
Berenice –
Eu já falei tava muito cheio, quente, mosquito, um monte de turista e
uns caras idiotas. Olha, na verdade eu nem lembrava de você.

Walcimar –
Eu não tenho mais medo daqui.
Berenice –
Essa história...
Walcimar –
Escuta. Senta e escuta. Por favor. Depois cê chega. Só ouve. Eu
preciso contar isso e tem que ser pra você e tem que ser agora e tem que ser aqui.

90
Berenice –
Você é sempre assim? “Ouve agora! Senta aí! Me dá um beijo!” Nunca
lhe passou pela cabeça que...
Walcimar –
Eu tinha sete anos. Adorava pescar. Saía da escola, terminava o almoço
que a minha mãe tinha deixado no fogão, trazia a marmita pra ela, levava lá no presídio
pro meu pai e aí ficava livre. Quase sempre pegava minha linha, a lata com os anzóis e
vinha pro cais. Naquele dia eu tava aqui. Nesse lugar. Não tinha pescado nada ainda. Já
era quase cinco horas. O sol já estava sumindo atrás do morro. Eu tava ansioso pra
pegar alguma coisa. Logo ia tocar o apito da fábrica e eu queria ter um peixe pra minha
mãe ver que eu era brabo que nem meu pai. Que nem meu pai. E aquela era a hora do
robalo. Olhei pra vila, vi uma voadeirinha chegando. Era o meu pai. Ele tinha uma
voadeirinha chamada Paciência que era uma merda de lancha. E ele deu o nome porque
tinha que ter uma puta paciência pra fazer o motor funcionar. (Ela ri de leve) ele veio
vindo. Passou encostado. Eu fiquei puto. Isso espantava os peixes e ele sabia disso. Ele
passou e ainda me tirou. Me chamou de matador de Cocoroca. Eu fiquei vermelho de
raiva. Nesse momento tocou o apito da fábrica de sardinha. Porra, minha mãe ia sair e
eu ainda não tinha pego nada. Comecei a puxar a linha. Ali tava muito mexido. Eu ia
jogar do outro lado. Quando eu tava trazendo a linha eu senti a fisgada. Parei tudo e
fiquei imóvel com a linha parada. Então Tchummmmmmmm. Esticou. Foi uma puta
briga. Era um robalo de mais de dois kilos. Eu era pequeno. Aquilo era um monstro.
Quando eu consegui trazer ele pra cima, o meu coração batia doido. Tirei o anzol e olhei
pra fábrica pra ver se via a minha mãe, mas já tinha saído todo mundo. Eu quase chorei
de raiva. O sol estava começando a sumir. Aí eu pensei na cena todinha. Eu iachegar em
casa meio puto. Com cara de mau. De repente ia pegar o peixe e perguntar pro meu pai
quem era pescador de Cocoroca. Pensei isso e enchi o peito de ar. Olhei para o canto, a
paciência estava na poita e meu pai estava na barraca do Pernambuco tomando a
cachaçinha dele do final da tarde. Tinha um sujeito andando na praia naquela direção.
Era o Ozório, um sargento, subordinado do meu pai. Aí eu comecei a colocar a isca no
anzol pra aproveitar a sorte. Joguei a linha no mar, e fiquei ali, esperando. Olhei pra
vila. O vôlei estava pra começar. Olhei pra fábrica, as portas estavam abertas. A
mulherada da limpeza já estava esfregando o chão. Nesse momento ouvi o disparo. Era
um som que eu nunca tinha ouvido. Minha reação foi olhar pro céu. Parecia trovão. Era
um som que eu nunca tinha ouvido. Aí eu lembrei do Osório e olhei direto pra onde
estava o meu pai. Havia um corpo caído. O Ozório vinha voltando com uma arma na
mão. De repente entrou para o mato. Aí começou uma confusão de pessoas correndo
atrás dele. Eu só entendi que tinham matado meu pai quando apareceu minha mãe
gritando. Meu pai, que sempre sonhou com a neve, morreu numa tarde quente de

91
verão, com a boca cheia de areia. As mulheres seguravam a minha mãe. Ela parecia que
queria ir até lá, mas não deixaram. Eu via tudo, não conseguia me mexer dali. Vi tirarem
o corpo, vi as pessoas me procurando, vi quando começaram a ficar nervosas porque
ninguém me encontrava. Vi a noite começando a entrar. E vi quando a minha mãe veio
vindo decidida nessa direção. Senti uma falta de ar muito grande quando ela me apertou
desesperada nos braços. E vi o cais se afastando de mim, no colo da minha mãe, o meu
peixe se afastando. Eu pensei em pedir pra minha mãe parar pra que eu pegasse o
peixe. Aí lembrei que não tinha mais pra quem mostrar.

(Longo silêncio.)

Berenice –
Porque você me contou isso.
Walcimar –
Porque esse lugar era isso pra mim. Um lugar de mortes. Então surgiu
você e a gente se beijou e eu passei a vir pra cá esperar você e ele deixou de ser o lugar
das mortes. A agora você chegou. Mas disse que... Tudo bem, se não quiser ficar
comigo... Tudo bem. Normal. Juro. O que importa é que...
Berenice –
Olha aqui seu burro, eu não voltei da Bahia por causa dos turistas. Eu
voltei porque aquele beijo que a gente deu me roubou o sossego. Eu não consegui fazer
mais nada. Eu voltei porque eu tô apaixonada.
Walcimar –
Olha. Já é ano novo.

(Começam a se beijar. Ele pega no peito dela. De repente, começa a chorar.)

Berenice –
O que foi? O que você tem? Diz pra mim. O que foi? Foi uma coisa que eu
fiz?

Walcimar (Rindo e chorando ao mesmo tempo)–


Não. É que esse é o momento mais feliz da
minha vida.

Berenice –
Eu preciso de você dentro de mim. E tem que ser no barco. E tem
que ser agora.

92
Walcimar –
Vem.

(Eles entram no barco.)


Sargento Evilázio – Por aqui.

Sargento Evilázio - Walciano e Juciara.1994.À noite no cais, ele está tentnado dizer algo. Ela
está começando a entender o próprio destino. Hora dos olhares fixos, das imagens
turvas e das mãos crispadas.

Juciara –
Quem é ela?
Walciano–
Não é uma mulher.
Juciara –
É a tua mulher?
Walciano –
Não.
Juciara –
Cê ta apaixonado e não é pela tua mulher nem é por outra mulher?

Walciano – (faz não com a cabeça)

Juciara –
Puts, cê virou gay? Ta apaixonado por um cara?
Walciano –
Também não é um cara.
Juciara –
Se não é uma mulher, não é um cara, então...
Walciano –
É um barco.
Juciara –
Um barco?
Walciano –
Um barco.
Juciara –
Peraí. Deixa eu sentar. Eu sabia que você era doido, mas essa agora eu

93
não pesquei. Você tá apaixonado por um barco.
Walciano –
Estou.
(1971)

(Barulho de barco. Walciano pega o boneco e corre para o final do cais.


Berenice chega assustada atrás dele.)

(Chega Berenice 26 anos.)

Berenice –
Filho! Filho! Que susto! Que susto que você deu na sua mãe.
Quantas vezes eu já te falei que eu não quero você sozinho aqui no cais. Entendeu?
Você entendeu?

Walciano –
Entendi.

Berenice –
Se você acordar no meio da noite pode chamar a mamãe. É pra
chamar (abraça ele). Cê veio ver o barquinho? O Barquinho... Mas não pode meu
filho, não pode!
Walciano –
O barquinho navegando lá longe no canal.
Berenice –
Você ouviu ele de novo?
Walciano –
A noite inteirinha, aqui no meu ouvido.
Berenice –
Noite boa... Fresca.

(Ele faz que sim com a cabeça.)

Berenice –
Sabe o que a mamãe andou pensando e descobriu quem é o barquinho
que passa lá longe no canal, enquanto o Walciano tenta dormir.

Walciano –

94
Quem ?
Berenice –
O Sargento Evilázio.
(som de barco)

Walciano –
Mas ele tá ali, parado.
Berenice –
Pois é. Ele só navegava quando você está dormindo pra cuidar do
seu sono e pros monstros da noite não virem te assustar. (faz cócegas nele). Só
que quando você acorda, ele para, ele não precisa cuidar mais de ninguém.

Walciano –
Quer dizer que eu nunca vou conseguir ver o barquinho navegando
lá longe no canal?

Berenice –
Ele só navega quando você está dormindo. Senão ele para e fica ali.
Olhando. Num parece que ele tá olhando pra gente? (Vaga) Talvez tentando
entender um pouco disso tudo. (Pausa) Vem, agora vamos dormir.

Walciano –
Vamos.

(Ela vai saindo. Ele sussurra.)

Walciano –
Mãe, será que se a gente olhar bem rápido a gente consegue pega
o barquinho indo lá pro canal?

Berenice –
Vamos tentar?
Walciano –
Vamos!
Berenice e Walciano –
Um dois três, foi.

(Eles viram-se de sopetão para o mar e olham para o barco. Walciano

95
boneco desmaia).

Berenice –
Walciano!? Não brinca assim com a sua mãe! Walciano? Walciano
o que foi? Filho você... Desmaiou? Walciano! Walciano!

1994

Juciara –
Um barco?
Walciano –
Um barco.
Juciara –
Veio pra morar comigo? Dois anos, achei que fosse demorar mais.
Walciano –
Você tinha razão.
Sargento Evilázio – 1991. Primeira luz do dia. Hora da mata acordando. Quatro verões
antes de ver partir o homem que tanto esperou, Ela chega ao cais. Ele, 25 anos, está ali,
escrevendo.

(No cais, o primeiro sol revela Walciano, 25 anosescrevendo. Chega Juciara,


idade indefinida.)

Juciara –
Oi.

Walciano –
Oi

Juciara –
Vai fazer um dia lindo.

Walciano –
Vai.

Juciara –
Olhando o mar?

Walciano –

96
Olhando.

Juciara –
Gosta desse lugar.

Walciano –
Gosto. (vira-se para ela)

Juciara -
Atrapalho você? Quer ficar sozinho?

Walciano -
Não, eu tava indo.

Juciara –
Ah, atrapalhei. Deixa que eu vou.

Walciano –
Não. Eu preciso dormir, mesmo.

Juciara –
Cê virou a noite aqui.

Walciano –
Ahhh (boceja)

Juciara –
Eu vi. Qué uma goiaba? Tá fresquinha, acabei de subir no pé.

(Ela joga uma goiaba para ele)

Juciara –
Tava estudando?

Walciano –
Tava.
Juciara -
No cais. Teu pai?

97
Walciano –
Viajando.
Juciara –
Dizem que o seu Walcimar agora é homem importante. Vive
navegando.

Walciano –
Desculpa, a gente se conhece?

Juciara –
Você é o Walciano e o seu pai é o seu Walcimar.

Walciano –
Quem é você?
Juciara –
Minha mãe é a Mercedes da venda.

Walciano –
Ce é filha da dona Mercedes?

Juciara –
Sou.

Walciano –
Caramba.

Juciara –
Juciara, não lembra?

Walciano –
Ce é neta da Dona Magnólia.
Juciara –
Sou.
Walciano –
Pô a gente é quase parente.
Juciara –
Mas nem conheci minha avó. Minha mãe ainda era pequena quando
ela... Tomou a barca.

98
Walciano –
Cê tá morando aqui?

Juciara (sorrindo)–
Nunca saí. Nunca pretendo sair. E tenho raiva de quem sai. Você
ainda tá em São Paulo?

Walciano –
(mostra o braço branco. Ela ri)

Juciara –
Com o seu pai?

Walciano –
Sozinho. Meu pai não existe.

Juciara –
Como assim?

Walciano –
Meu… meu pai? Desde que a gente foi pra São Paulo que ele começou a
trampar como um maluco. Ganhou grana como consultor de empresas, comprou um
veleiro e foi. Hoje é um puta velejador famoso. Vive saindo foto dele em tudo quanto é
revista náutica. Eu passei a minha infância entre colégios e empregadas, vendo meu pai
uma vez por ano.

Juciara –
Que chato.

Walciano –
Normal. Pelo menos ele me deu todos os livros que eu precisei ler.

Juciara –
Que faz um médico aqui? Cê tinha que estar num hospital, Cuidando de
doentes.

Walciano –
Cê sabe inclusive que eu sou médico.

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Juciara –
Sei também que você passou a infância achando que um barquinho
navegava no canal pra tomar conta de você enquanto você dormia e que você decidiu
ser médico no dia em que descobriram que esse barulho era por causa daquela doença...
Aquela com nome difícil...

Walciano –
Neurinoma do acústico.
(Pausa)

Juciara –
Sei de tanta coisa... Que cê tá escrevendo?

Walciano –
Minha tese de mestrado.

Juciara –
Olha que bacana. E sobre o que que é?

Walciano –
Saneamento básico, esgoto, doenças.

Juciara –
Eita, então cê tá escrevendo a tese no lugar certo. É só olhar pro lado aí
pra cê ver.

Walciano –
Isso daqui cresceu muito rápido.

Juciara –
Muito.
Walciano –
São as pousadas.
Juciara –
Eu tenho uma pousada. Essa em frente ao cais, onde era a casa da minha
avó. Água Doce. É minha.

(Pausa constrangida.)

100
Walciano –
Meu, desculpe, que furo.
Juciara –
Não, eu acho que você tem razão. Na minha pousada tem tratamento
de esgoto, mas eu conheço muito pousadeiro que joga o esgoto nas barras. E não
querem nem saber de fazer obra. O pessoal aqui tem a cabeça muito pequena.

Walciano –
A saúde nesse lugar é uma catástrofe.
Juciara –
É veudade.
Walciano –
Falta um hospital. (Pausa) posso te fazer uma pergunta pessoal?

Juciara –
Rapaz, cê acabou de me conhecer e já quer fazer uma pergunta
pessoal.

Walciano –
Desculpe.

Juciara –
Faz. Eu gosto de perguntas pessoais.

Walciano –
Você conhece a historia da sua avó?

Juciara –
Conheço.

Walciano –
Há muito tempo que eu ouço histórias sobre isso. Muita controvérsia.
Ela morreu tomando soda cáustica, não foi?

Juciara –
Foi.

Walciano –
Você sabe por quê?

101
Juciara –
Porque soda cáustica mata, ora pinóia.
Walciano –
Normal, é Hidróxido de Sódio obtido por células do diafragma. Se
ingerido é mortal, eu perguntei por que ela morreu?

Juciara –
Eu entendi o que você perguntou. Fiz uma piada. Meu. Você não tem
muito senso de humor. Minha vó se matou por causa do seu avô.

Walciano –
O que?

Juciara –
Nunca tinha ouvido falar disso?

Walciano –
Não.
Juciara –
Minha vó se apaixonou por um preso. Teu avô descobriu. Chantageou.
Ela não teve saída. Sabe que cê lembra um pouco o seu avô?

Walciano –
Magina!
Juciara –
Eu também sou meio parecida com a minha avó.
Walciano –
Agora você se enganou legal. Eu não tenho nada a ver como meu avô.
Nem fisicamente nem no temperamento. Nada. Eu nunca encostei um dedo em
ninguém. Nunca briguei. Nunca. E meu avô... putz.

Juciara (sorindo)–
Seu avô era muito sensual.

Walciano –
Como você sabe de tudo isso?

Juciara –

102
A sua mulher tá aí com você?

Walciano –
Não.

Juciara –
Então aparece aqui, hoje. É reveillon. Aparece aqui à meia noite,
nesse lugar. Que eu te dou um presente e te ensino umas coisas.

Walciano –
Cê é direta...

Juciara –
Te incomoda?

Walciano –
Em absoluto. Cê me conta sobre minha mãe?
Juciara –
Te conto toda a tua história.
Walciano –
Minha história...
Juciara –
Aposto que você não sabe toda a tua história.
Walciano –
O que eu sei sobre a minha vida começa em São Paulo. Não tenho
passado.
Juciara –
Eu te conto quem você é, mas aos poucos. Como nas mil e uma noites.
Você já foi à praia preta à noite?
Walciano –
Não.
Juciara –
Vamos hoje. Mas não esquece de trazer camisinha. Filhos não estão
nos meus planos.

Sargento Evilázio - 1992. Um verão antes de descobrir que está apaixonado por um
barco Ele, 26 anos, está de malas prontas de novo. É a hora das coragens efêmeras.

103
Juciara –
Ei, pra onde você vai?

Walciano –
Embora.
Juciara –
Por que? Aconteceu alguma coisa?
Walciano –
Nasceu minha filha.
Juciara –
Como?
Walciano –
Era minha sogra no telefone. Tá no hospital. A Lara teve um
descolamento, a bolsa estourou. Nasceu prematuro. Eu vou embora.
Juciara –
Mas tá bem?
Walciano –
Tá. Tá bem.
Juciara –
Então porque você tá assim?
Walciano –
Porque eu tô aqui sozinho enquanto minha mulher e minha filha tão
lá, precisando de mim.
Juciara –
Obrigada pelo sozinho.
Walciano –
Vou embora. Não volto mais.
Juciara –
O que?
Walciano –
Tô indo pa Sampa, meu. E não volto mais. Entendeu?
Juciara –
Entendi.
Walciano –
Ok.
Juciara –
Você é engraçado. Sempre que vem pra cá faz questão de ficar comigo
na pousada. Dorme comigo. Me come que nem um animal, em silêncio e triste. Passa as

104
noites em claro nesse cais, olhando pro mar, pra esse barco velho e escrevendo. Não me
dá nada a não ser um monte de grosserias. Toda mulher precisa de uma migalha de
carinho que seja seu burro.
Walciano –
É isso que eu tê dizendo Ju. Eu não te amo. Entendeu. Eu não te
amo.

Juciara –
Quem falou em amor? Eu tô falando de migalhas.
Walciano –
Olha, Ju, desculpa. Desculpa a grosseria. Eu… eu quero acabar, tá
bom? Minha filha nasceu. Nasceu. E eu quero me acalmar. Quero ficar com elas. Eu já
tinha te dito isso.

Juciara –
Tinha.
Walciano –
Você foi, puta… maravilhosa pra mim, maravilhosa, mas agora acabou.
Normal?
Juciara –
Uma coisa que me impressiona em você é a sua burrice. Um médico devia
ser uma coisa inteligente, mas você é um burro que não enxerga um nada na frente
dessa napa grande que você tem nomeio da cara.

Walciano –
Como assim, meu?
Juciara –
Meu… Você… É meu. Só meu. Entenda isso. Não ama sua mulher, não
vai amar sua filha. Não vai. Pode se iludir que vai ser um bom pai, que vai levar uma
vida comum. "Normal". De maridinho que volta pra casa do trabalho e encontra a
mulherzinha… Pode ir. Vai. Eu soube que você era meu no dia que me contaram da
morte da vovó. Eu sabia que quando nos encontrássemos, ficaríamos presos um ao
outro, entre grades, olhando o mar, como na época do presídio. Pode ir e quando você
voltar vai dizer: “você tinha razão”. (Vai saindo. Para) A porta da pousada vai estar
sempre aberta. Só não demora muito. Porque o tempo é muito cruel com as mulheres. E
eu não queria que você me encontrasse feia.

Sargento Evilázio – 1997. Na hora dos barcos de passagem Ela espera. Parada. Do

105
cais que se move, Ela vê o navio que se aproxima, pra em seguida ver o homem em sua
capa de grande velejador.

Walcimar 52 anos -
É essa a mala?
Juciara -
É
Walcimar -
Você sabia que eu vinha?
Juciara -
Sabia.
Walcimar -
Como?
Juciara -
Eu vi o seu barco da janela da pousada.
Walcimar -
Juciara, eu sei que já falaram com você. Mais de uma vez. Mas eu
queria… Pessoalmente.

Juciara -
Eu já disse tudo o que sabia.

Walcimar -
Como pode uma pessoa desaparecer assim? Ele não disse nada? Nada?

Juciara -
Nada.
Walcimar -
Me disseram que… Desculpa perguntar, mas vocês dois...
Juciara -
Éramos amantes.
Walcimar -
Há muito tempo?
Juciara -
Muito
Walcimar -
E é verdade que nos últimos meses o meu filho não saia desse cais?
Ficava aqui, dia e noite?

106
Juciara -
Ele estava apaixonado.
Walcimar -
Por você?

(Silêncio. Ele pega a mala e vai saindo.)

Juciara -
É reveilon. O senhor não quer passar o reveilon aqui? É meu convidado
na pousada.

Walcimar -
Obrigado. (Olhando o relógio náutico) Estou de passagem. (Para
si) Só de passagem. É tarde. E esse lugar, esse cais… Eu não... Obrigada... (Vai
saindo.)

Juciara -
Vá em paz.
Walcimar -
Porque você está me dizendo isso?
Juciara -
Por causa do reveilon passado.
(Silêncio.)

Walcimar (defendendo-se)-
Eu sei que eu falei pra ele que eu passaria o
reveilon aqui, mas era Uma expedição patrocinada. Muito dinheiro envolvido. Meses de
preparação. Eu tentei adiar, mas eu não consegui adiar. Tentei, mas… Não consegui.

Juciara -
Antes de tomar veneno e morrer minha avó, escreveu uma carta ao
meu avô que terminava dizendo: "Não somos donos de nós mesmos." Toda a sua família
é infeliz em terra, seu Walcimar. Se não embarcar, seca. O Walciano embarcou. Vá em
paz.

Walcimar-
Era uma expedição patrocinada... eu tentei adiar, mas eu não
consegui. ...eu sei que eu falei que eu ia ficar... mas eu não.....esse lugar...esse cais...

107
Sargento Evilázio - 1994.

Walciano –
Vem.
Juciara –
Cê tá doido?
Walciano –
Vem.
Juciara –
Mas o que você quer.
Walciano –
Transar no barco.
Juciara –
A essa hora? Nunca.
Walciano –
Por que isso agora?
Juciara –
São quatro e meia da tarde. Se a gente transar no barco, o Abraão
inteiro vai ver, seu maluco.

Walciano –
Ah, normal, meu. Como se…
Juciara –
São quatro e meia da tarde e você tá beubo. Cê não tem vergonha? Você é
um médico, Walciano. Foi pra isso que você veio morar aqui?

Walciano –
Posso tar feliz?
Juciara –
Cê não tá feliz. Cê tá beubo. Você fica falando mal do seu pai, mas olha
o que ele fez? Se esse lugar hoje tem uma escola decente é por causado seu pai. E por
pouco, muito pouco mesmo que não teria também um hospital. Mas você, um médico.
Um médico...
Walciano –
Vai ficar fazendo sermão eu vou lá pa dona Cizelda tomar mais uma.
Vou pá lá… (Pausa) Conta mais uma história.
Juciara –
Acabou.

108
Walciano –
Como?
Juciara –
Acabou. Ontem contei a última. Acabou. (Pausa) daqui pra frente eu
não sei. (Pausa) daqui pra frente é o que você quiser. (Pausa) no dia em que você
voltou depois de dois anos dizendo que tava apaixonado pelo barco eu achei… Você fica
dizendo que eu sou bruxa que adivinho o futuro, mas o futuro… É uma coisa que escapa.
Mas nesse dia, apesar de achar você meio maluco, eu senti que você vinha pra fazer
uma coisa realmente grande. Uma coisa que era sua. Só sua. Quando cê falou do barco,
achei até que você queria montar um hospital no barco. Sei lá. Uma coisa assim maluca,
mas maravilhosa. E eu tava muito feliz de poder te ajudar nisso, uma coisa incrível que
eu nem sabia o que era, mas... Mas agora Walciano, olhando pra você…

Walciano –
Eu te amo!
Juciara –
O que?
Walciano –
Eu te amo!
Juciara –
Cê pode me falar o que tá acontecendo.
Walciano –
Você acabou de me dar a idéia da minha vida. E eu te amo.

Sargento Evilázio –1994. Pouco depois do presídio ter sido desativado, o barco está
atracado. Sem função. Tem limo e cracas no casco. Está só. Dois funcionários do Salva-
mar chegam ao cais. Carregam uma geladeira velha com uma bóia. É você.

Rosimeri –
Eu?
Sargento Evilázio –
Você.

(Ela vai fazer a cena. Surgem os funcionários carregando a Poita Rosiméri. Ela
tem um balão de gás hélio amarrado ao pescoço.)

Neival –
Segura firme, Valnei.

109
Valnei –
Porra, Neival, isso daqui é pesado pra caralho.
Neival –
De quando é essa geladeira?
Valnei –
Foi da minha avó. Tem mar de cinquenta ano.
Neival –
Ma porque a gente não fez isso de dia, Valnei?

Valnei –
Viadagem, Neival. Essa porra de lei ambiental. Tão dizeno que vão murtá
quem joga coisa no mar.

Neival –
E como a rente vamo fazer poita pos barco?
Valnei –
Vai ter que fazer com alguma coisas que não polua.

Neival –
Porra, todo mundo sabe que a melhor coisa pra fazer poita é geladeira
velha, Valnei. Ela enferruja, a corda não escapa.
Valnei –
As pessoa devia fazer as leis pra ajudar e não pa atrapalhar.
Neival –
Isso é coisa de emaconhado.
Valnei –
Quem é emaranhado?
Neival –
O Zizin, da associação. Ou tu num sabia?
Os dois –
Um, dois, tês, foi.

(Jogam a poita no mar.)

Valnei –
Emaconhado, Neival?
Neival –
Será que essa poita guenta? O Sargento Evilázio?

110
Valnei –
Emaconhado...
Neival –
Se não guentar, mair melhor até. O sudoeste leva ele e aí poupa o
trabalho da gente afundar.

Valnei –
Eles não iam consertar, Neival?

Neival –
Disseram que ia, mar até hoje...

Valnei –
Podiam consertar. Andei tanto nele. Era um senhor barco.

Neival –
Eu também, mas tá veio. Agora que desativaru o presídio ele num serve
mais é pa nada. É uma carcaça veia. Melhor mermo é afundar. Rumbora.

Valnei –
Emaconhado... Tu tem ceuteza, Neival?

Neival –
Peugunta a dona Tildinha.

(Saem.)

Sargento Evilázio – No mar, a poita e o barco conversam pela primeira vez.

Rosiméri –
Oi.
Sargento Evilázio –
Oi.
Rosiméri –
Quem é você?
Sargento Evilázio –
Sargento Evilázio. E você?
Rosimeri –
Eu?

111
Sargento Evilázio –
Você.
Rosimeri –
Estou aqui.
Sargento Evilázio –
Não tem um nome?
Rosimeri –
Eu?
Sargento Evilázio –
Você.
Rosimeri –
Não sei.

Sargento Evilázio –
Temos que arranjar um, onde já se viu uma poita sem
nome?

Rosimeri –
É verdade. Onde já se viu? Mas o que é uma poita?
Sargento Evilázio –
Uma bóia amarrada a uma geladeira velha.
Rosimeri –
E pra que serve uma poita?
Sargento Evilázio –
Pra segurar os barcos que não estão atracados.
Rosimeri –
O que são barcos?

Sargento Evilázio –
Eu sou um barco.
Rosimeri –
Entendi.
Sargento Evilázio –
Precisamos arranjar um nome. Que tal Rosiméri?
Rosimeri –
Rosiméri?
Sargento Evilázio –
O nome.

112
Rosimeri –
Rosiméri. É bom.
Sargento Evilázio –
Ou Marineide.
Rosimeri –
Também.
Sargento Evilázio –
Rosiméri. É um bom nome.
Rosimeri –
Está uma noite quente.
Sargento Evilázio –
Está.
Rosimeri –
Quente.
Sargento Evilázio –
Mas pode esfriar.
Rosimeri –
Pode.
Sargento Evilázio –
O céu esta aberto.
Rosimeri –
Está.
Sargento Evilázio –
Sem nuvens.
Rosimeri –
Tem razão.

(Pausa. Suspiram.)

Rosimeri –
Sabe de uma coisa.
Sargento Evilázio –
O que?
Rosimeri –
Tenho a impressão de que fomos feitos um para o outro.

Sargento Evilázio – 1995.

113
Walciano 29 anos –
Seu Bonifácio, eu queria me desculpar com o senhor por causa de
ontem. O senhor estava ali sozinho lendo eu não percebi. Não achei que fosse incomodar
é... é sobre o projeto.

Bonifácio 73 anos –
Qual que é o problema?
Walciano -
Vão afundar o barco.
Bonifácio –
Eu soube.
Walciano –
Eu queria explicar melhor pro senhor o projeto.
Bonifácio–
Eu li o projeto... Eu não acho...
Walciano –
Um hospital no Sargento Evilázio, um micro-hospital.
Padrinho essa ilha é enorme, são quase 90 praias, mais de 30 vilarejos. O que o senhor
e o meu pai queriam fazer não ia dar conta tem que ser um hospital móvel, que
viagem... Porra padrinho... Derem a ordem pra afundar... Eu não sei o que aconteceu
tava tudo assinado, de repente do nada... A gente não pode deixar. Esse barco é a
história da ilha. Já imaginou o bem que isso não vai trazer pra esse lugar.
Bonifácio –
Eu sei meu filho, mas já tem posto de saúde aqui no Abraão.

Walciano –
Um posto de saúde sem a menor estrutura. Olha só padrinho a idéia
é reformar o barco todo, tudo, e transformar em uma unidade móvel até com um
laboratório de analises clinicas. Porra dá pra botar, hoje em dia dá. Padrinho, as pessoas
que moram do outro lado da ilha? Qualquer coisa mais séria elas morrem porque tem
que anda um dia ou então pega, seis horas de baleeira num mar pesado desses. Porra e
o Sargento Evilázio enfrenta qualquer mar o senhor sabe disso melhor do que ninguém.
Já imaginou? Poder atender o povoado de Provetá, do Aventureiro...

Bonifácio –
Eu sei filho, eu li o projeto. Eu li. Eu não acho viável.·.

Walciano –

114
Como não?

Bonifácio –
Já é difícil arrumar médico pro posto de saúde aqui do
Abraão. Quem é que vai querer trabalhar num barco?

Walciano –
Eu!
Bonifácio –
Você? Você é casado, a tua mulher ta lá em São Paulo, a tua
vida ta lá em São Paulo. Isso aqui não é lugar procê não. O pessoal aqui fala demais,
comenta tudo

Walciano –
Padrinho, isso é um problema meu. O senhor só tem que usar
sua influência.

Bonifácio–
Não te esqueças de que você é um médico casado e a tua
mulher ta lá em São Paulo.

Walciano –
Foi o senhor quem parou o projeto na prefeitura?

Bonifácio –
Esse barco ta velho já deu o que tinha que dá.

Walciano –
Padrinho, não me interessa saber quem parou o projeto. Não
me interessa. Eu só te peço pelo amor que o senhor tem ou teve na sua vida. Eu nunca
te pedi nada, nunca. E pra mim é muito importante fazer esse hospital que o senhor e o
meu pai, que a minha mãe não teve. Padrinho, esse barco é a história da ilha, é a minha
história, é a sua história. Eu fui batizado nesse barco lembra? A minha mãe chegou à
ilha trazida nesse barco a gente não pode deixar que um barco desse vá pro fundo do
mar padrinho.

Bonifácio–
Eu sei filho, mas é um projeto muito caro. Quem é que vai

115
querer colocar dinheiro numa carcaça velha?

Walciano –
A prefeitura de Angra, a associação dos moradores, os donos
das pousadas, o meu dinheiro o seu. Padrinho, o que importa é ajudar. A ordem do
naufrágio já foi dada, tem que parar esse negócio porra.

Bonifácio–
Tá bom, eu vou pensar.
Walciano –
Mas não dá tempo porra!
Bonifácio–
Calma menino. Que descontrole é esse? Desse jeito não se
consegue nada.

Walciano –
Cê não ta entendendo caralho. É nessa semana porra! Vão
afundar nessa semana , caralho!

Bonifácio–
Eu não vou falar com você nesse tom

Walciano –
Foi o senhor que parou o projeto na prefeitura. Eu sei que foi. O
senhor não tem coração seu Bonifácio.

Bonifácio–
Tenho muito mais do que você pensa menino.

Walciano –
Não tem, não tem. O senhor teve, o senhor teve, o senhor abriu a
escola com o meu pai. O senhor teve. Agora é um puta velho egoísta pra caralho,
egoísta e filho da puta.

Bonifácio–
Cala a boca seu merdinha. Eu te proíbo de voltar nesse ilha.

(Walciano dá três tapas na cara de Bonifácio.)

116
Bonifácio–
Igualzinho ao seu avô. Igualzinho ao seu avô.

(pausa)

Bonifácio–
Vai embora daqui. Eu nunca mais quero ver você se metendo com
ninguém da minha família. E tem mais: fui eu que parei a merda desse projeto na
prefeitura.

1995

Sargento Evilázio -
Um verão depois de afundarem o barco…
Rosimeri -
Que barco?

Sargento Evilázio -
Eu.
Rosimeri -
Você. Afundaram você?

Sargento Evilázio -
Afundaram. Um verão depois de afundarem o barco. Pai e
filho tentam conversar. Falta pouco para o final da história.

Walciano –
Pra onde?
Walcimar –
Antártida. Continente Antártico. Dois meses de expedição
Walciano –
Porque parou aqui?

Walcimar –
Por sua causa. Sua mulher está muito preocupada com você.

Walciano –

117
Nos separamos.

Walcimar –
Todos na verdade. Sua vó. Diz que você nem atende mais os
telefonemas, não responde mais os recados. Você recebe os recados aqui na pousada?

Walciano –
Alguns. Ando muito ocupado, só isso. Diz pra vó que tá tudo bem.

Walcimar –
Como tudo bem? A sua vida. Você está jogando fora, meu filho.
Uma carreira brilhante. Terceiro lugar no vestibular. Mestrado em... por que você
desistiu do doutorado? E porque não aceitou nenhuma proposta de trabalho? A Lara me
disse que o HC te procurou pra integrar uma equipe de... Não me recordo. Ela disse,
mas eu não me recordo. É verdade? Fala pra mim. É verdade isso?

Walciano –
Eles queriam que eu trabalhasse de segunda a segunda entre
paredes.

Walcimar –
E o hospital daqui? Porque você não leva adiante essa idéia. É uma
idéia ótima. Um hospital móvel. Ótima. Como não pensamos nisso na época?

Walciano –
Afundaram o barquinho.

Walcimar –
Olha, meu filho. Eu tenho uma proposta. Uma proposta pra te fazer. Eu... Eu sempre
tentei ser um bom pai pra você. Toda minha vida eu lutei pra que nada te faltasse e
acho que, bom.. Acho que não me saí mal. Olha, o meu antigo barco, eu não vendi
ainda. Não vendi. Não é um dinheiro que eu possa abrir mão assim, mas... O que você
acha?

Walciano –
De que?

Walcimar –
De montar o hospital. Eu também quero ajudar. Te ajudar, meu

118
filho. A sua mãe estava trabalhando no hospital quando partiu. Eu acho essa sua idéia
genial. É um barco de 65 pés. Bem maior inclusive que esses barquinhos que faziam a
travessia aqui. Eu... Eu faço uma doação. Dou a você pra você fazer esse hospital. A
hora que der, a prefeitura de Angra me ressarce, sei lá. Então? O que me diz?

Walciano –
O senhor está indo para a Antártida.

Walcimar –
Estou. Mas porque…

Walciano –
O vovô morreu sonhando com a neve. Matou a mulher que amava e
morreu sonhando com a neve.

Walcimar –
Nunca se provou nada. (Com irritação) essas coisas já estão
enterradas, meu filho. Você escutou o que eu disse? Escutou?

Walciano –
Somos iguais, pai. Eu, você, o vovô. A gente não consegue amar
sem destruir.

Walcimar –
Não entendo o que você quer dizer.

Walciano –
O vovô amava aquela mulher. Com um amor de criança. E matou.
Não por despeito ou ciúme. Por amor. Só por amor. Assim como você e a mamãe
viveram desse mesmo amor homicida. Vocês construiram uma escola, mas depois disso
morreram. Inutilmente. Ela, de amor. O senhor, de saudade. E eu... Eu podia ter salvo o
barquinho. Só precisava de calma. Só de calma.

Walcimar –
Existe uma coisa que é o destino, meu filho. Eu acredito em destino.
Senão quem poderia explicar? Você não respondeu a minha pergunta. O barco. O que
você acha da idéia?

Walciano –

119
Esquece, Walcimar.

Walcimar -
Vem comigo, então. Pra Antártida. Pega a tua mala. Tem uma cabine
vazia. Sempre tem. São dois meses. Vamo, pega a mala. A tripulação tá esperando. Só
paramos por sua causa. Tenho certeza de que todos vão adorar conhecer meu filho. Dois
meses juntos. Que tal? Tudo pago pela editora. Que mamata, ein? Bora! Pega a mala!
Vamo navegar, filho!

Walciano –
Fica.
Walcimar –
O quê?
Walciano –
Fica comigo. Aqui. Um tempo.
Walcimar –
Aqui? No cais?
Walciano –
Sou um homem a deriva e o senhor é um grande navegador. E é
meu pai. Fica aqui comigo. Passa o reveilon aqui. Pela primeira vez desde que a mamãe
tomou a barca. Fica aqui comigo. No cais. Quem sabe isso não muda tudo. Tudo.

(Longo silêncio)

Walcimar –
Tá certo. Tá certo. Vou avisar a tripulação que vamos passar o reveilon
aqui. Essa merda de expedição pode esperar um pouco. É meu filho, porra! Só nós dois.
Rindo e contando histórias. Combinado?
Walciano (esboçando um sorriso de menino)–
Combinado.
Walcimar –
Vou avisar a tripulação. Onde vamos cear?
Walciano –
Aqui no cais.
Walcimar –
Tá certo. Eu já volto. Filho.

120
(Walcimar sai. Grande pausa em que Walciano espera.)

Rosiméri –
Está olhando de novo.
SargentoEvilázio–
É verdade.

Rosiméri –
Toda noite a mesma coisa. Há quanto tempo?

Sargento Evilázio –
Nem sei.

Rosiméri –
Todos vão embora e ele fica ali.

Sargento Evilázio –
Olhando.
Rosiméri –
Olhando.

Sargento Evilázio -
Hora em que os homens se lavam de suas imperfeições.

Juciara –
Tem certeza?
Walciano 30 anos –
Absoluta.
Juciara –
Sabia que ia acontecer. Não pensei que fosse assim.

Walciano –
Achou que seria como?

Juciara –
Esqueci que você poderia ter sido um poeta.

Walciano –
Se alguém conseguir chegar até você , não diga nada sobre esse

121
momento. Não dê imagens. A ninguém. E deixe a mala na pousada até alguém vir
buscar.

Juciara –
Deixarei.

Walciano –
Vou sentir saudades de você.

Juciara –
É bom ouvir isso.

Walciano –
Reze pela minha mãe e pela sua avó.
Juciara –
Eu rezo todos os dias.

Walciano –
Estou com medo.

Juciara –
Não tenha.

Walciano –
Quando estourarem os fogos já quero estar longe.

(Silêncio.)

Juciara –
Logo será outro ano.

Walciano –
Outra vida.

(Ele vai descendo as escadas do cais.)

Walciano –
Tudo recomeça nos sacrifícios. (Mergulha.) Nada, nada como o
abraço das águas frias.

122
(Ela vai voltando pra casa.)

Rosimeri –
Epílogo.

(Estouram os fogos. É reveilon. Em boneco vai passado de mão em mão como


se estivesse a deriva, levado pela maré. Por fim, chega às mãos do barco. Saem
os dois. Em seguida os atores. A poita fica só no palco. Vai até o painel e
escreve Sargento Evilázio e Rosimeri . Sobe no palco)

Rosiméri -
Sabe, existem certas coisas sobre a vida que eu não compreendo.
(Pausa) por mais que eu tente entender, isso me escapa. (Pausa) são coisas que a
principio parecem normais, mas quando você para pra olhar percebe que aquilo é muito
estranho. Você não acha? (Pausa) coisas que simplesmente... Escapam. Você tenta
pegar, e escorre. (Pausa) entende onde eu quero chegar? (Pausa) Por exemplo:
Porque nunca saímos do lugar? É uma pergunta que precisa ser feita. Porque não saímos
do lugar. Estamos sempre parados. Temos a sensação de estar em movimento por causa
dos ventos. E do humor das águas. Eles nos jogam pra lá, pra cá, parece que estamos
nos mexendo, mas no fundo não saímos do lugar. É muito estranho, você não acha?
(Pausa) Sabe, conversar com você é uma coisa que aquece a gente. (Pausa) porque
às vezes a gente tem dúvidas sobre as coisas. É normal. Em algumas horas do dia. Mas
aí a gente conversa e isso... Aquece a gente. (Pausa) que bom. (Pausa) isso é muito
Bom. (Pausa) como tudo é bom! (Pausa) você não acha?

(Retorna o Sargento Evilázio.)

Sargento Evilázio -
Eu acho. Vou contar uma piada.
Rosiméri -
Conta, conta. Adoro as suas piadas. São de rolar de rir.

Sargento Evilázio -
Um barco vinha navegando em alto mar.
Rosiméri -
Um barco em alto mar, que engraçado, continua.

123
Sargento Evilázio -
Um barco vinha navegando em alto mar quando de repente
avistou uma ilha.
Rosiméri -
A ilha do tesouro.

Sargento Evilázio -
Não
Rosiméri -
A ilha perdida.

Sargento Evilázio -
Não. O mestre do barco parou os motores. Ele disse. Oh,
uma ilha. O contramestre disse. De fato, é uma ilha. Ele disse o que faremos? O
contramestre disse. Vamos saltar. Ele então contou um, dois três e deu um salto. No
mesmo lugar.

(Pausa. Silêncio. De repente a poita entende a piada e explode numa


gargalhada.)

Rosiméri -
Saltou, no mesmo lugar. O mestre... Que mestre! Saltou... Muito boa.
Muito boa. Conta de novo.

Sargento Evilázio -
Um barco vinha navegando em alto mar quando de repente
avistou uma ilha.

Rosiméri -
A ilha da alegria?

Sargento Evilázio -
Não
Rosiméri -
A ilha do desespero?

Sargento Evilázio -
Não. O mestre do barco parou os motores e disse. Oh, uma
ilha. O contramestre disse. De fato, é uma ilha. Ele disse: O que faremos? O

124
contramestre disse: Vamos saltar. O mestre então contou um, dois três e deu um salto.
No mesmo lugar.

(Pausa. Silêncio. De repente a poita explode na gargalhada.)

Rosiméri -
Saltou, no mesmo lugar. Muito boa. Muito boa. Conta de novo.

Sargento Evilázio -
Um barco vinha navegando em alto mar quando de
repente avistou uma ilha.

Rosiméri -
A ilha que não sai do lugar?

Sargento Evilázio -
Não
Rosiméri -
A ilha que salta?

Sargento Evilázio -
O mestre do barco parou os motores e disse. Oh, uma ilha.
O contramestre disse. De fato, é uma ilha. Ele disse: O que faremos? O contramestre
disse: Vamos saltar. O mestre então contou um, dois três e deu um salto. No mesmo
lugar.

(A poita se contorce de tanto rir. O Sargento Evilázio ri junto.)

Walciano escreve no quadro-

Da Indiferença das Embarcações

Rosiméri -
Conta de novo.

Sargento Evilázio -
Um barco...

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(A luz vai apagando sobre as risadas dos dois.).

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