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E sbo ç o de Uma

DOGMÁTICA

KARL BARTH

2006
Capa: Tradução:
Eduardo de Proença Paulo Zacarias
Revisão: Diagramação:
Alceu Lourenço Z -P M teh ®

ISBN: 85-86671-69-X

Título Original: Esquisse d ' Une Dogmatique - 1 9 4 6

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Sumário

I. In tro d u ç ã o : A Tarefa da D o g m á tic a ................................................ 7

II. Crer É Ter C o n fia n ç a ............................................................................ 15

III. Crer S ig n ifica C o n h e c e r...................................................................... 25

IV. Crer É C onfessar a Sua Fé................................................................... 33


V. Deus Nos Lugares A ltís s im o s ............................................................ 43

VI. Deus, O Pai.............................................................................................. 53

VII. O Deus T o d o -P o d e ro s o ...................................................................... 59

VIII. O Deus C ria d o r...................................................................................... 65

IX. O Céu e a T e rra ...................................................................................... 79

X. Jesus C ris to ............................................................................................. 89

XI. O S alvad or e o Servo de D eus.......................................................... 101


XII. O F ilho Ú n ic o de D e us........................................................................ 115

XIII. Nosso S e n h o r........................................................................................ 123

XIV. O M is té rio e o M ila g re d o N atal....................................................... 133


XV. S o fre u ........................................................................................................ 143

XVI. Sob P ô n cio Pilatos................................................................................ 153

XVII. Foi C ru c ific a d o , M o rto e S e p ulta do,


Desceu ao In fe rn o ................................................................................. 161

XVIII. A o T e rc e iro Dia Ressurgiu dos M o rto s ........................................... 171

XIX. A s c e n d e u aos Céus, e Está A ssen tado

A D ire ita de Deus Pai T o d o -P o d e ro s o ............................................. 177

XX A V in d a de Jesus C risto, O J u iz ......................................................... 185


XXI. C re io n o E s p írito S a n to ......................................................................... 197
XXII. A Ig re ja , Sua U n id a d e , S a n tid a d e e U n iv e rs a lid a d e .................... 203

XXIII. O P e rd ã o d o s P ecados.......................................................................... 215

XXIV. A R e ssurreição d o C o rp o e a V ida E terna..................................... 221


Introdução:
A Tarefa da D ogm ática

A dogm ática é a ciência pela qual a Igreja, no nível dos co­


nhecimentos que possui, justifica para si m esm a o conteúdo
de sua pregação.

Trata-se de u m a disciplina crítica, q u e r dizer, in s ­


ta u ra d a seg u n d o a n o r m a da Sagrada E scritu ra e seg u n d o
os fu n d a m e n to s das C onfissões de Fé.
A d o g m á tica é u m a ciência. Em tod as as épocas,
te m se refletido, falado e escrito in te rm in a v e lm e n te sobre
aquilo que se deve e n te n d e r p o r ciência e não p o d e m o s
ab o rd a r esse p ro b lem a c o n te n ta n d o -n o s co m u m a s im ­
ples alusão. D arei u m a definição de ciência q u e c e r ta ­
m e n te é discutível, m as que p o d e servir de p o n to de
p a r tid a p a ra nossa exposição. E n te n d e m o s p o r ciência
u m ensaio de co m p reen são e de representação, u m a
b u sca e u m en sin am en to relacionados a u m o bjeto e a
u m a atividade d eterm in a d o s. N e n h u m esforço desse gê­
nero p o d e ter a pretensão de ser algo m ais do qu e u m a
ten tativ a e, ao dizerm os isso acerca da p ró p ria ciência,
não fazem os n a d a mais que s u b lin h a r sua d u p la natureza:
ela é pro visória e lim itada. N os centro s o n d e a ciência é,
de m a n e ira precisa, en carad a com a m a io r seriedade, n ão
se cria n e n h u m a ilusão acerca do que o h o m e m p o d e fa­
zer: ele n ão está envolvido em u m projeto em que se com -
8 - Esboço de um a D ogm ática

b in a m a m ais alta sab ed o ria e a m ais refin a d a arte, po is a


ciência caída do céu, a ciência absoluta, n ão existe.
A d o g m á tic a cristã é, ta m b é m ela, u m ensaio, u m a
te n tativ a de c o m p re e n s ã o e de representação; u m a te n t a ­
tiva de ver, e n te n d e r e fixar d e te r m in a d o s fatos p a ra
reu n i-lo s e o rg anizá-los sob a fo rm a de e n s in a m e n to .
E m cada ciência e n c o n tra m -s e associad os o estu d o
do objeto e sua aplicação a u m cam p o de atividade, pois,
n e n h u m a ciência se red u z à teoria p u r a o u s o m e n te à p r á ­
tica; a te o ria está sem p re a c o m p a n h a d a d a p rática que
dela se origina. T am b é m a d o g m á tica se oferece a n ó s em
seu d u p lo m o v im e n to : ela é pesquisa e e n s in a m e n to , lig a­
dos a u m objeto e a u m a atividade.
O sujeito d a d o g m á tic a é a Igreja cristã. O sujeito de
u m a ciência n ão p o d e ser o u tro senão aquele qu e m a n ­
tém , co m o objeto e a atividade co n sid era d o s, relações de
p re s e n ç a e de fam iliaridade. N ão é, p o rta n to , u m a r e d u ­
ção la m e n ta v e lm e n te lim itativa que im p o m o s à d o g m á ­
tica e n q u a n to ciência q u a n d o afirm am os: o sujeito de tal
ciência é a Igreja. A Igreja é o lugar, a c o m u n id a d e à qual
são c o n fia d o s o objeto e a atividade p ró p rio s d a d o g m á ­
tica, isto é, a pregação do Evangelho. Q u a n d o diz em o s
qu e a Igreja é o sujeito da dog m ática, e n te n d e m o s que
desde o in sta n te em que algu ém se o c u p e de d o g m á tica ,
seja p a ra ap ren d ê -la, seja p a ra ensiná-la, esse alg u ém se
e n c o n tra d e n tro do am b ien te da Igreja. A quele q u e q u eira
fazer dog m á tica , c o lo can d o -se c o n s c ie n te m e n te fora d a
Igreja, deve esp erar que o objeto da d o g m á tic a lhe p e r m a ­
neça e stra n h o , e de m a n e ira n e n h u m a se s u r p r e e n d e r ao
ficar p e rd id o logo nos p rim e iro s passos, ou ao p arec er
u m d estruidor.
E m d og m á tica , c o m o em o u tro s assuntos, deve exis­
tir fam iliarid ad e entre o sujeito da ciência e o objeto que
ele estud a, e esse c o n h e c im e n to ín tim o te m aqui p o r o b ­
jeto a vid a d a Igreja. Isso não significa q ue a d o g m á tic a
A Tarefa da D ogm ática - 9

po ssa se c o n te n ta r em re to m a r e relacionar elem en to s d e ­


finidos pela a u to rid ad e eclesiástica em te m p o s antigos ou
recentes, de sorte que não teríam o s que fazer n a d a mais
que rep etir suas prescrições. A p ró p ria d o g m á tic a católica
co n sid era sua tarefa diferentem ente.
Ao dizer que a Igreja é o sujeito da do g m á tica , in sis­
tim o s em apenas u m a exigência: aquele que se o cu p e
dessa ciência, seja com o m estre, seja c o m o discípulo,
deve aceitar a responsabilidade de se situar n o p la n o da
Igreja cristã e d a ob ra que ela desenvolve; é u m a co n d ição
sine qua non. M as que não haja m a l-en te n d id o s: trata-se
de u m a livre p articipação na ob ra d a Igreja, de u m a res­
ponsab ilid ad e, assu m id a pelo cristão nesse d o m ín io p a r ­
ticular.
A ciência d o g m ática é u m m eio pelo q ual a Igreja
justifica p ara si m e sm a o c o n teú d o de sua pregação, no
nível dos conhecimentos que ela possui.
D ep ois do que acabam os de dizer acerca d a ciência,
p o d e r-s e -ia objetar que ela vai p o r si m esm a. M as alg u ­
m as co ncepções relativas à d o g m ática m e o b rig a m a r e p e ­
tir que, de fo rm a algum a, ela é u m a ciência caída do céu
sobre a terra. Seria co m p leta m en te m aravilhoso, dir-se-á,
se existisse sem elh an te dogm ática, caída do céu, absoluta.
A isso não se p o d e re sp o n d e r o u tra coisa senão: sim, se
fôssem os anjos!
Mas, p o r v o n ta d e de Deus, nós não so m o s anjos e
assim é b o m que d isp o n h a m o s de u m a d o g m á tic a h u ­
m a n a e terrestre. A Igreja cristã não está n o céu, m as na
te rra e n o tem po; aind a que seja u m d o m de D eus, ela é
u m d o m inserido nas realidades h u m a n a s e terrestres e o
que se passa d en tro da Igreja co rresp o n d e a essas re a lid a ­
des.
A Igreja cristã vive n a te rra e n a história, g u a rd iã do
b o m depósito (2Tm 1.14), que D eus lhe confiou. G erenci-
a d o ra desse b e m precioso, ela segue seu c a m in h o através
10 - Esboço cie um a D ogm ática

da h istória, n a força e n a fraqueza, n a fidelidade e in f id e ­


lidade, n a inteligência ou in c o m p re e n s ã o do que lhe é r e ­
velado.

A h istó ria desse m u n d o se estabelece e se d ese n ro la


em h istó rias relativas à n atu re za e à cultura, aos h áb ito s e
às religiões, às artes e às ciências, às socied ades e aos E s ta ­
dos. D e n tr o dessa rede, a Igreja te m ta m b é m sua h istória,
u m a h is tó ria h u m a n a e terrestre, e essa é a razã o pela qual
n ão se p o d e co n testar in te ira m e n te o q ue G o e th e disse a
seu respeito: ela foi de ép oca em ép o ca u m a c o n fu s ã o de
erros e de violências. Se form os sinceros, n ó s cristãos, d e ­
v em os c o n c o r d a r que a h istó ria da Igreja n ão te m c a m i­
n h a d o d ife re n te m e n te d a h istó ria d o m u n d o . E dessa
m a n e ir a nos é d a d a a o p o r tu n id a d e de falar m o d e s ta e
h u m ild e m e n te d a Igreja e da o b ra eclesiástica q ue d e s e n ­
v o lvem os aq u i sob a fo rm a d e do gm ática.

A d o g m á tic a n ão p o d e c u m p rir seu papel se não


p e r m a n e c e r ligada às atuais circ u n stân cias d a Igreja. A
Igreja está co n scien te de seus limites, já q u e ela se sabe
responsável pelo d ep ó sito que deve a d m in is tra r e c o n s e r ­
var, e q u e é d e v e d o ra em relação ao ú n ic o b o m D eu s que
lhe c o n fio u esse bem . Ela n u n c a será capaz de realizá-la
perfeitam en te; ao co n trá rio , a d o g m á tic a cristã p e r m a n e ­
cerá s em p re co m o u m co n ju n to de reflexões, de p esqu isas
e de descrições relativas, passíveis de erros. Ela te n d e r á a
u m saber m e lh o r; o u tro s virão depois de nós, e aquele
que é fiel n o seu tra b a lh o espera que esses p e n s e m e d i ­
gam m e lh o r aquilo que nós te n ta m o s p e n s a r e dizer.
Hoje, d ev em o s fazer no sso tra b a lh o com m o d é s tia e t r a n ­
qü ilidade, p o n d o em jog o os c o n h e c im e n to s de q u e d is ­
p o m o s. N ão será exigido de nós m ais do q ue recebem os.
S em elh an tes ao servo fiel n o p o u c o (M t 25.23), n ã o nos
la m e n ta m o s a respeito deste pouco. N ão n os é exigido
n a d a além d a nossa fidelidade.
A T arefa da D ogm ática - 11

A d o g m á tic a com o ciência é c h a m a d a p a ra justificar


o co n te ú d o d a pregação da Igreja cristã. N ão haveria n e ­
n h u m a dog m ática, se a tarefa p rim o rd ia l da Igreja não
fosse a de a n u n c ia r o Evangelho, de d ar te s te m u n h o da
Palavra p ro n u n c ia d a p o r Deus. Esse d ev er sem p re u r ­
gente, esse p ro b lem a colocado p ara a Igreja d esde as o r i­
gens - o p ro b lem a do ensinam ento, d a d o u trin a , do
te stem u n h o , d a pregação - p e rm a n e c e co m o a questão,
não para o teólogo ou para o p asto r apenas, m as p a ra a
Igreja toda: o que realm ente tem o s a dizer nós, os c ris ­
tãos?
Pois a Igreja, sem dúvida n e n h u m a , deve ser u m lu ­
gar o n d e ressoa u m a palavra que se dirige ao m u n d o . A s ­
sim, u m a vez que a m issão da Igreja é a n u n c ia r a Palavra
revelada p o r D eus, missão que é, ao m e sm o te m p o , u m a
obra h u m a n a , desde o com eço surge a necessid ade de
co n stitu ir-se u m a teologia, ou isso que d e n o m in a m o s ,
desde o século XVII, de dogm ática.
Existe e m teologia u m p ro b lem a de fo n tes (de o n d e
v em a palavra?) e é a disciplina c h a m a d a exegese qu e está
e n ca rre g ad a de fornecer a resposta. P or o u tro lado, é p r e ­
ciso satisfazer-se à questão com o: e stu d ar a fo rm a e a c o n ­
dução da pregação confiada à Igreja; estam o s agora no
te rre n o da teologia prática. Entre as duas, existe a d o g m á ­
tica ou teologia sistemática. A d o g m ática não p e r g u n ta a
respeito de o n d e vem a m e nsag em cristã, n e m co m o se
concretiza, m as apresenta u m a questão: o que te m o s p ara
m e d ita r e p a ra pensar?
Essa questão surgiu, fique b e m en ten d id o , tão logo
as E scrituras nos e n sin ara m on de está a fonte, e ela vem
a c o m p a n h a d a pela p reo cu pação p e r m a n e n te de n ão ficar
nas declarações teóricas, mas de fazer ressoar co n cre ta-
m e n te essa m e n sa g e m no m u n d o . Falando p re c isa m e n te a
p a rtir d a dogm ática, deve ficar claro que a teologia n ão é,
p o r u m lado, u m m ero historicism o, m as u m a H istó ria
12 - Esboço de um a D ogm ática

válida, q u e p e n e tr a a realidade presente, aqui e agora. Por


o u tro lado, a pregação não se deve d e g e n e ra r e m m e ra
técnica.
D e fato, em n ossos dias, a questão de qual deve ser o
c o n te ú d o d a m e n sa g e m cristã é m ais p r e m e n te do qu e
n u n c a antes. Todavia, deve-se s u b lin h a r b e m qu e esse
p ro b le m a n ão p o d e ser resolvido p o r u m re c u rs o ex clu­
sivo da exegese o u da teologia prática. É necessário que
haja u m a dog m ática. Q u a n to à história da Igreja, q u e se
p o d e r ia c o m e te r o erro de desprezar, eu devo acre sce n tar
que sua fu n ção é enciclopédica: ela tem a h o n r a de ser
c o n s ta n te m e n te req u isitad a e o c u p a u m p o s to legítim o
d e n tro do e n s in a m e n to cristão.
A d o g m á tic a é u m a disciplina crítica. N ão se trata,
pois, c o m o se a c re d ito u n u m a ou n o u tr a época, de se
p r e n d e r a q u a isq u e r fórm ulas teológicas, antigas ou n o ­
vas, e de se crer qu e tu d o está feito. Pois, se existe u m a
disciplina crítica que se deva re m e te r sem cessar ao p r o ­
pósito de sua obra, essa é ju s ta m e n te a d o g m á tica , e x te ri­
o r m e n te d e te r m in a d a pelo fato de que a p reg aç ão da
Igreja está sem p re a m e açad a p o r erros. A d o g m á tic a é a
verificação d a d o u tr in a e da pregação da Igreja; longe de
c o n s titu ir u m ex am e arbitrário, f u n d a d o so bre u m c rité ­
rio escolhid o livrem ente, é à Igreja que ela vai p e r g u n ta r
sob qual p o n to de vista n o rm a tiv o ela dev erá se colocar.
P raticam e n te, é pela escala da Sagrada Escritura, A n tig o e
N ovo T estam en tos, qu e a d o g m á tica avalia a p reg ação da
Igreja. A S agrada E scritu ra é o d o c u m e n to de base que
tange ao mais ín tim o da vida da Igreja, o d o c u m e n to da
E pifania da P alavra de D eus n a p essoa de Jesus Cristo.
Fora desse d o c u m e n to , nós não te m o s n a d a e, o n d e a
Igreja está viva, ela deve sem p re de novo se d eix ar ju lg ar a
si p ró p ria s e g u n d o esse critério. N ão se p o d e tr a ta r de
d o g m á tic a sem qu e esse critério p e r m a n e ç a p re s e n te e
deve-se, sem cessar, voltar à questão do te ste m u n h o . N ão
A Tarefa da D ogm ática - 13

aquele do m e u espírito e do m e u coração, m as aquele dos


apóstolos e dos profetas en q u a n to te s te m u n h o do p ró p rio
Deus. U m a d o g m ática que aban d o n a sse esse critério n ão
seria u m a d o g m á tica objetiva.
N ós in d icam o s na tese que abre o capítulo: segundo
os fu n d a m e n to s de suas Confissões de Fé. A S agrada E s c ri­
tu ra e as Confissões de fé não estão em u m p la n o id ê n ­
tico. R eservam os à Bíblia u m a estim a e u m a m o r q ue não
tem os, no m e sm o grau, pela tradição, n e m m e sm o pelos
m ais valiosos de seus elementos. N e n h u m a C on fissão de
Fé d a ta n d o da R eform a ou da época atual p o d e, da
m e sm a m a n e ira que as Escrituras, elevar-se à p rete n sã o
de solicitar o respeito da Igreja.
M as isso não retira n ad a do fato de que a Igreja es­
cuta e aprecia o te ste m u n h o de seus Pais. Então, m e sm o
que nós não e n co n trem o s nele a Palavra de D eus com o
em Jeremias ou em Paulo, ele tem p a ra nós u m sig nifi­
cado elevado. O b ed ecen d o ao m a n d a m e n to “h o n r a teu
pai e tu a m ã e”, nós não nos recusarem os a respeitar, seja
na pregação, seja na elaboração científica da do gm ática,
as afirm ações de nossos Pais. D iferen tem en te das E s c ritu ­
ras, as C onfissões não têm au to rid ad e que obrigue, m as
devem os, todavia, levá-las seriam en te em co n sid era ção e
lhes a trib u ir u m a au to rid ad e relativa.
M u n id a desse critério, a d o g m ática se lança de m a ­
neira crítica à sua tarefa que é justificar o c o n te ú d o da
pregação cristã e da ligação subsistente en tre a m e n sa g e m
que a Igreja deveria publicar e aquela que ela tra n s m ite de
fato. O d o g m a é p ara nós a reprodu ção , a restituição, pela
Igreja, da Palavra de D eus que lhe foi an u n ciada.
A Igreja deve se interrogar in c essan tem e n te acerca
do grau de correlação, de c o rresp o n d ên cia, en tre o
d o g m a e a m e n sag e m que ela proclam a. O objetivo é,
pois, m u ito simples: trata-se de sem pre e lab o rar m e lh o r a
pregação d a Igreja. O aperfeiçoam ento, a precisão, o
14 - Esboço de um a Dogm ática

ap ro fu n d a m e n to do que é en sinad o n a n ossa Igreja, são


obras pró p rias de D eus, m as que re q u e re m u m esforço do
h o m e m . U m a parte desse esforço é re p re s e n ta d a pela
dogm ática.

Falarem os de do gm ática de u m a fo rm a elementar,


obrigado s que som os, no curso deste breve sem estre de
verão, a nos co n te n ta r com u m esboço. Desse m o d o , t o ­
m a re m o s com o fio c o n d u to r u m texto clássico, o Símbolo
dos Apóstolos.'

N ão existe m é to d o obrigatório que seja im p o sto de


a n tem ão à d o g m ática cristã. C ada u m é livre, n o m o ­
m e n to em que vai a b o rd a r esses assuntos, p a ra escolher
seg u n d o seu saber e sua consciência o e n c a m in h a m e n to
que lhe parec er b o m . É verdade que no d e c o rre r dos sé­
culos foi en g e n d ra d o u m p ro c e d im e n to que se to rn aria,
de alg u m m o d o , usual; ele consiste em r e to m a r em g r a n ­
des linhas o plan o do p e n s a m e n to cristão: D eus Pai, Filho
e Espírito Santo. Isso deu lugar a desenv olvim entos e x tre ­
m a m e n te variados que não cessam de se entrecruzar.

Aqui, ainda, nós tem o s a escolha. In d o pelo mais


simples, nos deterem o s na Confissão de fé que to d o s v o ­
cês co n h ec em , que é repetida n o culto to d o do m ing o.
D eixarem o s de lado os pro blem as históricos. Vocês sa­
b e m que o te rm o apostólico deve ser p o sto entre aspas:
esse texto n ão foi redigido pelos apóstolos; n o seu teor
atual, ele re m o n ta ao século III e te m sua o rigem em u m a
fó rm u la c o n h ec id a e reconh ecid a pela c o m u n id a d e de
Roma. Em seguida, foi divulgado d e n tro d a Igreja, q ue o
to m o u p o r u m a declaração fu n d am e n tal. P o rtanto , não é
sem razão que nós o co nsideram os u m clássico.

1. N. Do Ed.: As confissões e credo s históricos d o cristianismo sã o comu-


m ente d e n o m i n a d o s Símbolos d e fé; o auto r c o n sta n te m e n te fará refe­
rência a o Credo Apostólico a p e n a s c o m o o sím bolo.
■ I 1 f

Crer E Ter Confiança

A C o nfissão com eça p o r essas duas palavras c a r r e ­


gadas de significação: “eu creio”. Tudo o q u e nós te ría m o s
a dizer p a ra justificar a tarefa que n o s a g u a rd a é c o m a n ­
d a d o p o r esse p reâm b u lo . C o m e ç a re m o s p o r três teses,
que se aplicam à essência da fé.

A f é cristã é o do m do encontro que torna os h o m en s livres


para escutar a Palavra da graça, p r o n u n ­
ciada p o r D eus em Jesus Cristo, de m aneira
tal que eles se atêm às promessas e aos
m a n d a m e n to s dessa Palavra, apesar de tudo,
de u m a vez p o r todas, exclusiva e totalmente.

V im os que a fé cristã, a m e n sa g e m d a Igreja, c o n s ti­


tui o f u n d a m e n to e o objeto d a d og m ática. M as de que se
trata? D a q u ilo e m que crêem os cristãos e d a m a n e ir a
c o m o eles crêem . N a prática, n ão se p o d e s e p a ra r a fo rm a
subjetiva da fé, fid e s qua creditur, d a pregação, pois essa
p regação im plica n ecessariam en te n a p re s e n ç a de h o ­
m e n s q ue e s c u ta ra m e rece b eram o Evangelho; h o m e n s
que, ju n to s, fo ram evangelizados. M as o fato de a c r e d ita r ­
m os p o d e ser desde logo c o n sid e ra d o c o m o s e c u n d á rio
16 - Esboço tíc um a Dogm ática

em relação ao que existe de m a io r e de au têntico n a p r e ­


gação, ao que crê o cristão, isto é, o co n te ú d o de sua fé; e
ao que d ev em os anunciar, isto é, o objeto d a C o n fissão de
Fé: creio em D eus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
A ling uagem p o p u la r d e n o m in a a C onfissão de Fé
de “C re d o ” e essa expressão deve ao m e n o s n o s fazer
c o m p re e n d e r o que nós acreditam os. D e n tro d a fé cristã
trata-se, de u m a m a n e ira decisiva, de u m encontro.
Creio “e m ...” diz a Confissão. Tudo d e p e n d e desse
“e m ...” desse objeto de fé on d e vive nossa fé subjetiva. É
notável que, à p arte desta in tro d u ção “creio ...”, o C red o
não diz n a d a do aspecto subjetivo da fé. N ão foi b o m
q u a n d o os cristãos inv erteram esta relação, faland o m u ito
sobre suas ações e sobre a em oção de e x p e rim e n ta r aquilo
que oco rre no in terio r do h o m e m , e n q u a n to p e r m a n e ­
ciam m u d o s sobre o que devem os crer.
Ao silenciar sobre o lado subjetivo d a fé p a ra falar
de seu aspecto objetivo, o C redo se co n c e n tra n aq u ilo que
p a ra nós é essencial, no que devem os ser, fazer e viver.
A qui igualm ente é válida a palavra: “aquele q ue q u iser
salvar sua vida, perdê-la-á, mas aquele que tiver p e rd id o a
sua vida p o r m in h a causa, salva-la-á” (M t 16.25). Aquele
que quiser salvar e con servar a subjetividade perdê-la-á,
m as aquele que a a b a n d o n a r pela p reo cu p a ção c o m a o b ­
jetividade, reencontra-la-á. Eu creio: efetivam ente é m i ­
n h a experiência, u m a experiência h u m a n a e u m fato,
u m a fo rm a de nossa existência de h o m en s.
M as esse “creio” se realiza em u m e n c o n tro c o m al­
g u ém que n ão é u m ser h u m a n o , m as D eus, o Pai, o Filho
e o Espírito Santo. E no instante em que creio eu m e sinto
co m p leta m en te p reen c h id o e to m a d o pelo objeto de m i ­
n h a fé; o que m e interessa não é mais “eu com m i n h a fé”,
m as aquele em que eu creio. Q u a n d o eu p en so nele e olho
C rer É T er C onfiança - 17

p a ra ele, então sinto que tu d o vai m e lh o r p a ra m im .


“Creio e m ...”, credo in..., significa: n ão estou m ais só.
Nós, os h o m e n s, em nosso esp lend or e nossa m iséria, não
estam o s mais sós. D eus vem ao n osso e n c o n tro e ele v em
a nós co m o nosso S enho r e nosso M estre. N os b o n s e nos
m aus dias, em nosso d esreg ram ento ou nossa h o n e s ti­
dade, vivem os, agim os e sofrem os nessa posição de r e e n ­
contro. Eu não estou só. D eus vem ao m e u en co ntro. Em
todas as circunstâncias, eu estou co m ele. Eis o que sig n i­
fica creio em D eus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Esse en c o n tro com D eus é o en c o n tro co m a palavra


da graça qu e D eus p ro n u n c io u em Jesus Cristo. A fé fala
de D eus Pai, Filho e Espírito Santo c o m o daqu ele que
vem ao nosso encontro, com o objeto de n o ssa fé. Ela
afirm a esse D eus que é U no em si, qu e foi p a ra n ós o
D eus ú n ic o e que foi de novo p ara a e te rn id a d e n os t e m ­
pos em que se realizou sua v ontade de am or, seu a m o r
gratuito e in con dicional pelo h o m e m , p o r to d o s os h o ­
m ens, co n fo rm e a sua graça.

C o nfessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é dizer


que D eus é o D eus da graça. Isso im plica em qu e nós não
p o d e m o s p ro v o car a c o m u n h ã o co m ele: nós n ão a c r ia ­
m o s e não criarem os jamais. A ssim com o n ó s n ão fize­
m o s p o r m e re c e r que ele seja nosso D eus, n ão tem o s
n e n h u m a p retensão de fazer valer n e n h u m direito sobre
ele. É ele, em sua b o n d a d e to talm en te gratuita, em sua li­
b e rd a d e so berana, que desejou ser o D eus do h o m e m ,
nosso Deus. E isso ele nos diz. Q u a n d o D eus diz: m in h a
graça está sobre vós, eis a Palavra de D eus, o conceito
central de to d o o p e n s a m e n to cristão. A Palavra de D eus
é a Palavra de sua graça.
18 - Ksboço cíc um a D ogm ática

E se vocês p e rg u n ta re m : o n d e e scu ta m o s essa P a la ­


vra de D eus? Eu não posso fazer o u tra coisa sen ão
m a n d á -lo s de volta ao p ró p rio D eus que nos d e u a o u v ir a
sua Palavra. R efiro -m e ao coração d a C o nfissão de Fé, ao
s e g u n d o artig o do Sím bolo2: a Palavra da graça, n a qual
D eus nos en c o n tra , é Jesus Cristo, v erd ad e iro D eus e v e r ­
d ad eiro h o m e m , E m anuel, D eu s conosco.
A fé cristã é o en c o n tro co m esse “E m a n u e l”, co m Je­
sus C risto e, nele, co m a Palavra viva de D eus. Q u a n d o
c h a m a m o s a S agrada E scritu ra de Palavra de D eu s (nós a
n o m e a m o s assim p o r que é b e m o q ue ela é), p e n s a m o s
na E scritu ra c o m o te s te m u n h o d a d o pelos pro fetas e p e ­
los ap óstolos à ú n ic a Palavra de D eus, p e n s a m o s n o ju d e u
Jesus, qu e é o C risto de D e u s 3, no sso S e n h o r e n o sso Rei
p a ra sem pre.
Q u a n d o co nfessam os isso, ao o u s a rm o s c h a m a r a
pregação d a Igreja de Palavra de D eus, isso deve ser e n ­
te n d id o co m o o a n ú n c io de Jesus Cristo, d aq u ele q ue é
v erd ad e iro D eus e verd ad e iro h o m e m p a ra n o ssa salva­
ção. É nele qu e D eus v em ao nosso en co ntro. Q u a n d o d i ­
zem os: creio em D eus, significa c o n cre tam e n te: creio no
S e n h o r Jesus Cristo.
Eu falei desse en c o n tro co m o de u m dom . É o e n ­
c o n tro pelo q ual os h o m e n s se torn am livres p a ra escu ta r
a P alavra de D eus. O d o m e a libertação são u m a só e a
m e s m a coisa. O d o m é o d o m de vima lib erd ad e, da
g ra n d e lib e rd a d e n a qual estão c o m p re e n d id a s to d a s as
o u tras liberdades. P a rtin d o desse pon to , desejo chegar, no
d e c o rre r deste curso, a fazer co m que vocês e x p e r i m e n ­
te m de novo essa palavra de liberdade, que te m sido

2. Vide n ota n XXX.


3. N. d o T.: Cristo c m grego significa “ungido", logo: o Ungido de Deus.
C rer É T er C onfiança - 19

usad a de m a n e ira tão abusiva e que p erm a n e c e , co ntu do ,


c o m o a mais no b re das palavras.
A lib erdade é o gran de d o m de D eus, o d o m do e n ­
co n tro co m ele. P or quê u m dom ? E p o r quê, p re c isa ­
m ente, o d o m da liberdade? É que o en c o n tro de qu e fala
o C redo não se p ro d u z p o r coisa algum a. Ele n ão re p o u s a
em u m a possibilidade ou u m a iniciativa h u m a n a , e m u m a
capacid ad e que nós, os h o m en s, te ríam o s de e n c o n tra r
D eus, de ou vir sua Palavra. Caso qu iséssem o s e x a m in a r
do que é que som os capazes, nós nos esforçaríam o s em
vão p o r e n c o n tra r q u alq u er coisa que p ud esse ser n o m e ­
ada c o m o u m a disposição para ouvir a Palavra de D eus. É
o im en so p o d e r de D eus que e n tra em jogo, sem que nós
o b u scássem os p o r coisa algum a, e que to r n a possível o
que p a ra n ós é impossível. É u m d o m de D eus, liv rem en te
c o n ce d id o e sem q u alq u er preparação de n ossa parte, se
e n c o n tra m o s a D eus e em nosso en c o n tro co m ele o u v i­
m os sua Palavra.
A C onfissão do Pai, do Filho e d o E spírito Santo fala
em seus três artigo s4 de u m a realidade e de u m a o b ra a b ­
so lu ta m en te novas, inacessíveis e inco m preensív eis a nós
outros, h o m en s. E co m o essa realidade e essa o b ra de
D eus Pai, Filho e Espírito Santo são p a ra n ó s u m a graça
de D eus, é ain d a u m a nova graça que nossos olhos e o u v i­
dos estejam abertos p ara ele. A qui a C onfissão está fa­
la n d o do m istério de D eus e nós ficam os ex atam ente
d e n tro desse m istério no m o m e n to em q ue ele se ilu m in a
p a ra nós, no m o m e n to em que nos to r n a m o s livres p a ra
recon hecê-lo e p a ra viver nele. “Eu creio”, disse Lutero,
“que não é n e m p o r m in h a razão n e m p o r m in h a s forças
que eu posso crer em Jesus Cristo e chegar a ele”. Eu creio,
é a expressão de u m co n h ec im e n to pela fé, p o r m eio da

4. Vide nota n XXX.


20 - Esboço de um a D ogm ática

qual eu sei que D eus n ão se deixa c o n h e c e r a n ão ser p o r


ele m esm o .
E se po sso re p e tir isto com fé, isso significa qu e eu
louvo e ag rad eço pelo fato de que D eu s o Pai, o Filho e o
Espírito Santo é o q ue é e faz que ele faz, e revelou-se p a ra
m im , d e s tin o u -se p a ra m im e m e d e s tin o u p a ra ele. Eu
d o u graças p o r te r sido c h a m a d o e escolhido, p o r te r u m
S e n h o r qu e m e lib e rto u p a ra ele. É daí que p a r te a m in h a
fé. O que q u e r q ue eu faça, n o m o m e n to e m q u e eu creio,
não te m a m e n o r im p o rtân cia. M as, o essencial é saber
p a ra o q ue eu fui convidado, e em vista do qu e fui lib e r­
ta d o p o r aquele que p o d e realizar isso que eu n ão p o sso
n e m iniciar e n e m te rm in ar. E stou fazendo u so do d o m
através do q ual o p ró p rio D eus se deu a m im . Respiro; e
do ra v a n te respiro feliz e livre d e n tro d a lib e rd a d e qu e eu
n e m conq uistei, n e m p ro curei, n e m e n c o n tre i d e n tro de
m im , m as que m e foi d a d a p o r D eus q u a n d o ele veio a
m im . T rata-se d a lib erd ad e de escu ta r a P alavra d a graça
de m a n e ir a tal que o h o m e m possa se ater a essa Palavra e
que a co n sid ere co m o d ig n a de fé.
O m u n d o de hoje está repleto de palavras e s ab em o s
o que significa u m a inflação de palavras, q u a n d o elas p e r ­
d e m o seu valo r e cessam de ser reco nh ecidas. Mas
q u a n d o se crê n o Evangelho, a Palavra re e n c o n tr a seu
crédito e se faz o uvir de tal m a n e ira que aquele q ue a es­
c u ta r n ão m ais lhe p ossa escapar. Pelo Evangelho, a P a la ­
vra recebe seu sentido e se im p õ e c o m o Palavra. Essa
Palavra m arav ilh o sa, n a qual crê a fé, é a P alavra de D eus,
Jesus C risto, e m q u e m D eus a n u n c io u aos h o m e n s a sua
Palavra, de u m a vez p o r todas.
É assim que crer significa ter confiança. A co n fia n ça
é o. ato pelo q ual u m h o m e m se a b a n d o n a à fidelidade de
u m o utro , de q u e m con hece a aquiescência e do qual
aceita as exigências. “Eu creio” significa “te n h o confi-
C rer É T er C onfiança - 21

ança”. N ão é mais em m im m e sm o que devo te r confiança;


não necessito mais de m e justificar, de m e desculpar, de
m e salvar, de preserv ar a m im m esm o. Esse esforço t e r r í­
vel do h o m e m p ara se m a n te r a si m e sm o e p a ra se a tri­
b u ir u m a razão a si m esm o, esse esforço se to rn a u m
esforço sem sentido. Eu creio, não em m im , m as em D eus
Pai, Filho e Espírito Santo. T orna-se sup érflua e cad u c a a
confiança que se atribu ía às instituições que se acreditava
serem dignas, àquelas pretensas âncoras às quais era n e ­
cessário se agarrar. Supérflua e caduca ig u a lm en te se
to r n a a con fiança atribu íd a a certas d ivindades erguidas,
h o n ra d a s e invocadas pelos h o m e n s e m to d o s os tem po s.
Q u a lq u e r que seja o n o m e que se lhes dê, Idéias ou
P otências do D estino, elas c o n tin u a m sen d o as instâncias
às quais nos entregam os. A fé nos libera d a co n fia n ça que
atrib u ím o s a tais divindades e do te m o r qu e elas nos in s ­
p iram , e elim ina as decepções das quais elas são a fonte.
D evem os ser livres p ara ter confiança naq uele q ue m erece
nossa confiança; ser livres p ara p e rm a n e c e r m o s ligados
àquele que é fiel e que assim perm a n ece, c o n tra ria m e n te a
tod as as outras instâncias. De nossa parte, n ós n ão s e re ­
m o s jam ais fiéis. Nossa rota está sem ea d a p o r nossas in fi­
delidades ao p ró x im o e ocorre o m e sm o co m as
divindades deste m u n d o . Elas não m a n tê m as suas p r o ­
messas; assim, n u n c a há nelas a v erd ad eira p az e luz.
N ão existe fidelidade a não ser em Deus. A fé é a
co nfiança que p erm ite que nos m a n te n h a m o s nele, nas
suas p ro m essas e nos seus m a n d a m e n to s. M a n te r-se em
D eus é a b a n d o n a r-s e a essa certeza e vivê-la: D eus está
aqui p a ra m im . Tal é a pro m essa que D eus n os faz: eu es­
to u aqui, p a ra ti.
M as essa pro m essa está a c o m p a n h a d a p o r u m m a n ­
d am ento. Eu n ão mais m e deixarei co n d u z ir p o r m e u s
p ró p rio s p e n s a m e n to s ou seg und o m e u b el-p razer; eu r e ­
cebi de D eus u m a o rd e m pela qual devo m e c o n d u z ir du-
22 - Ksboço dc um a D ogm ática

rante to d a m i n h a existência terrestre. O C re d o é sem p re


Evangelho, é a Boa N ova de D eus p a r a os h o m e n s, desse
E m an uel, D eus conosco, D eus v in d o à nós; s im u lta n e a ­
m e n te e n ece ssariam en te, é u m a lei. O Evangelho e a Lei
n ão d e v e m ser sep arados, co n stitu e m u m a ú n ic a e n tid a d e
no in te rio r da qual o Evangelho é a coisa p r im o r d ia l e a
Lei p e r m a n e c e c o n tid a n a Boa Nova. Visto q u e D eu s é
p a ra nós, n o s é p e r m itid o ser p a ra ele. Visto qu e ele se
oferece a nós, nós devem os, p o r re c o n h e c im e n to , d a r a
ele o p o u c o qu e te m o s para dar.
A g arrar-se a D eus, p o rtan to , sem p re significa: re c e ­
b er tu d o de D eus e p ô r tu d o a seu serviço. E isso, a des­
peito de tudo, de u m a vez p o r todas, exclusivam ente e
totalmente.
É em relação a essas d e te rm in a ç õ e s q u e a fé c o m o
c o n fia n ça deve ser ain d a caracterizada. E deve-se e s ta b e ­
lecer que n a fé isso se tra ta de u m a possib ilidade, n ão de
u m a obrigação, pois desde o instan te em que se idealiza a
fé, s u b estim a-se a sua grandeza. Essa g ra n d e z a n ão reside
no fato de que sejam os c h a m a d o s a c u m p r i r algo de e x ­
tra o rd in á rio , que u ltrap assa ria as nossas forças. A fé é, s o ­
b retu d o , u m a liberdade, u m a perm issão. A quele que crê
na Palavra de D eu s deve p o d e r nela se ag a rra r a p esar de
tu d o aq uilo q u e se op õ e a essa Palavra. N ão se crê “p o r
causa de” o u “b asead o em ”, m as se é d e s p e r ta d o p a ra a fé
a despeito de tudo.
P e n s e m nos h o m e n s da Bíblia. Eles n ão se to r n a r a m
crentes p o r causa de u m a d e m o n stra ç ã o qu alqu er, de u m a
prova; m as u m belo dia eles se v ira m colo cado s e m u m a
situação que lhes p e rm itia crer e que lhes ob rigav a a crer,
a despeito de tudo. F ora de sua Palavra, D eus n os está
oculto, m as ele se revela em Jesus Cristo. Se nós p a ssa m o s
em frente a ele sem o ver, não d ev em o s nos a d m ir a r de
não e n c o n tra r a D eus, de ir dos erros às d ecep ções, de ver
o m u n d o repleto de trevas. Se acreditam o s, d ev em o s crer,
C rer É T er C onfiança - 23

apesar de tudo, no D eus oculto e, no fato de q ue ele está


oculto, está o apelo necessário p ara nos le m b ra r de nossa
lim itação h u m a n a . N ós não acred itam o s ap o iad o s em
nossa razão ou em nossos pró p rio s recursos. Todo crente
au tên tico sabe disso bem .
O m a io r o bstáculo à fé é sim plesm ente essa etern a
p resu n ção e ta m b é m essa angústia que sub sistem no
no sso coração. N ós não am am o s viver pela graça; h á s e m ­
pre em nós alg um a coisa que se insurge v io len tam en te
c o n tra a graça. N ós não am am o s receber a graça, nós
am aríam o s, no m áxim o, atribuí-la a nós m esm os. A vida
h u m a n a é feita desse vai-e-vem en tre o o rg u lh o e o d eses­
pero, que apenas a fé p o d e eliminar. Se c o n ta r consigo
m esm o, o h o m e m não p o d e chegar a ela, u m a vez que não
p o d e m o s, nós m esm os, nos libertar do o rg u lh o e d a a n ­
gústia. Se form os libertos é graças a u m a ação que n ão d e ­
p e n d e de nós.
Q u a n d o se tenta co n d e n sa r tu d o o que rep resen ta
essa força de oposição e de contradição, te m -se u m a vaga
idéia do que a Bíblia q u er dizer q u a n d o fala do Diabo.
“D eus o disse v e rd ad e iram e n te?” (G n 3.1). A Palavra de
D eus é verdadeira? Q u a n d o se crê, desp reza-se esse D i­
abo. M as crer não é u m ato de heroism o. G u a r d e m o - n o s
de fazer de Lutero u m herói. Lutero jam ais se co n sid ero u
co m o tal, m as ele sabia de u m a coisa: se d ev em os c o m b a ­
ter, a fro n ta r o inimigo, é ju s ta m e n te a título de u m a p o s ­
sibilidade atribuída, de u m a perm issão, de u m a lib erd ad e
recebida n a mais p ro fu n d a hu m ild ad e.
E star na fé: trata-se de u m a decisão to m a d a de um a
vez p o r todas. A fé n ão é u m a op inião que se p o d e r ia t r o ­
car p o r u m a outra. Aquele que crê apenas d u r a n te u m
te m p o n ão sabe o que é a fé, pois crer supõ e u m a relação
d efinitivam ente estável. Estar na fé: trata-se de D eus e do
que ele fez p o r nós de u m a vez p o r todas. Isso n ão evita,
p o r certo, que o c o rra m en fraq u ec im e n to s da fé. Mas,
24 - Esboço de um a D ogm ática

c o n s id e ra d a em relação ao seu objeto, a fé é u m a coisa d e ­


finitiva. A quele que acre d ito u u m a vez, crê p a ra sem pre.
N ão se assu stem co m o q ue digo aqui, m as o c o n s id e re m
co m o u m convite. P or certo, p o d e m -s e c o m e te r e n g an o s
o u duvidar, m as q u e m acre d ito u u m a vez, de a lg u m a m a ­
neira, p o r ta u m character indelebilis: p o d e asseg urar-se
em p e n s a m e n to que está salvo. É preciso a c o n s e lh a r aos
qu e d ev em c o m b a te r a in c re d u lid a d e qu e n ã o levem
m u ito a sério essa m e s m a in c redulid ade. N a d a além d a fé
deve ser levado a sério e se tem os u m a fé s e m e lh a n te a
u m grão de m o s ta r d a (M t 13.31) é o suficiente p a r a q ue o
D iabo te n h a p e rd id o a p artida.

E m terceiro lu g a r5, fé está rela cio n ad a a n ó s nos


a g a rra rm o s exclusivam ente a D eus. E xclusiv am ente p o r ­
que D eu s é A quele que é fiel. Existe ta m b é m u m a fideli­
d a d e h u m a n a que te m sua origem e m D eus e que deve
in c e ss a n te m e n te nos alegrar e nos fortalecer. M as o f u n ­
d a m e n to dessa fidelidade é sem p re a fidelidade de D eus.
A fé é a lib erd ad e de se confiar to ta lm e n te ap en a s nele,
sola gratia et sola fide. Isso não im plica, de m a n e ir a n e ­
n h u m a , u m e m p o b re c im e n to d a vida h u m a n a ; ao c o n t r á ­
rio, to d a s as riquezas de D eus assim n os são atribu íd as.
Para te rm in a r, d ev em o s nos ag a rra r totalm ente à P a ­
lavra de D eus. A fé não co n ce rn e a u m seto r p a r tic u la r da
vida d e n o m in a d o religioso, ela se aplica à existência em
sua to talid ade, à exterior com o à interior, à c o rp o ra l
c o m o à espiritual, às zonas so m brias c o m o às claras. D e ­
v em os n os c o n fia r a D eus, seja em relação a n ó s m e sm o s,
seja e m no sso c o m p o rta m e n to n o interesse d o o u tro , da
h u m a n id a d e inteira; em relação ao to d o d a v id a e da
m o rte. Ser livre p a ra u m a con fiança assim d efin id a é ter
fé.

.5. N. d o Ed.: A primeira e a s e g u n d a considera çõe s, (1) a despeito de tudo,


e (2) de um a v e z p o r todas, foram expostas nos parágrafos anteriores.
Crer Significa Conhecer

A f é cristã é a iluminação da razão que p erm ite aos h o ­


m ens a liberdade de viver na verdade de
Jesus Cristo e, p o r esse m esm o
caminho, de conhecer, sem risco de errar,
o sentido de sua vida, bem como a causa e o f i m
de tudo o que existe.

P o de ser que vocês fiquem su rp resos em ver a razão


in terv ir aqui. É de m a n e ira in tencional que faço uso desse
conceito. Vale a p e n a le m b rar que o fam o so conselho:
“despreza a razão e a ciência, essa su p re m a alavanca do
h o m e m ”, n ão vem de u m profeta, mas do M efisto de G oe-
the. C ristãos e teólogos têm sido sem pre m u ito m al in s p i­
rad o s q u an d o , p o r entusiasm o ou em n o m e de suas
concepções particulares, acre d itara m que d ev iam se ali­
n h a r d e n tro do cam p o dos adversários d a razão. A cim a
da Igreja cristã, re s u m in d o a revelação e a o b ra de D eus,
e n c o n tra -se a Palavra.6 “A Palavra se fez c a rn e ”. O logos
(qu er dizer o verbo, a razão, a palavra) se fez h o m e m . A
pregação d a Igreja é u m discurso que, m u ito longe de ser

6. Em grego, o logos, q u e significa tam b é m a razao. (N.do T.da ed.


francesa).
26 - Esboço de um a D ogm ática

acidental, arbitrário , caótico ou ininteligível, p r e te n d e ser


verdadeiro e p r o c u ra se im p o r c o m o tal c o n tra a falsi­
dade. N ão aceitem os a b a n d o n a r essa po sição p e r fe ita ­
m e n te clara! A palavra que a Igreja te m a v o caç ão p a ra
p reg ar não é a v erd ad e em u m sen tido p rovisório, s e c u n ­
dário, m as no sentido p rim e iro e forte do te rm o ; tra ta -se
do logos qu e se m a n ifesta e se revela n a razão d o h o m e m ,
no seu e n te n d im e n to , co m to d a a sua significação e em
to d a a sua verdade. A pregação cristã está ligada ao logos,
à ratio, à razão, fonte da revelação n a qual o h o m e m c o m
suas faculd ades racionais pode, em seguida, se r e e n c o n ­
trar. Pregação e teologia n a d a tê m a ver c o m a v e r b o r r a ­
gia, o falar e m línguas ou a p ro p a g a n d a , in c ap az de
s u ste n ta r suas asseverações. N ós co n h e c e m o s b e m esse
gênero de discursos edificantes, p ro ferid o s c o m m u ita
elo q u ên cia e ênfase, m as que - é m u ito claro! - n ão resis­
te m à sim ples q u estão no to can te à v erd a d e do q ue a fir­
m a m . O C re d o cristão assenta-se e m u m c o n h e c im e n to .
P or to d a a p a rte o n d e ele é p r o n u n c ia d o e confessado, ele
não faz m ais qu e criar esse c o n h ec im e n to . A fé cristã não
é, de m a n e ir a n e n h u m a , irracional, an ti-ra c io n a l o u su-
p ra-racio n al. B em en ten d id a, ela é, ao c o n trá rio , racional.
A Igreja que recita o C red o e que se ap resen ta co m a p r e ­
tensão in a u d ita de pregar, de a n u n c ia r a b o a nova, p o d e
fazê-lo p o r q u e ela entendeu, c o m p re e n d e u a lg u m a co isa7
e p o rq u e ela deseja sim p lesm en te que isso seja c o m p r e e n ­
dido, p e rc e b id o p o r outros. N ão se p o d e c o n s id e ra r c o m o
felizes as épocas em que, n a h istó ria da Igreja, a teologia e
a d o g m á tic a p e n s a r a m p o d e r sep arar a gnosis d a pistis, o
c o n h e c im e n to d a fé. A fé b e m c o m p re e n d id a é c o n h e c i­

7. Em a le m ã o Vermmft (razão) vem de uernehm en (c o m p r e e n d e r ,


en te nd er, p e r c e b e r ) , assim c o m o e n te n d im e n to , e m francês, vem d e en te nd er.
(N. do T. d a ed. francesa).
C rer Significa C onhecer - 27

m ento, o ato pelo qual se crê é ta m b é m u m ato de c o n h e ­


cim ento. C rer significa conhecer.

D itas essas coisas, p o d e m o s estabelecer que a fé


cristã c o m p o rta u m a iluminação da razão. A fé cristã tem
u m objeto preciso do qual fala o Credo: é D eus, o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. A p a rtic u la rid a d e desse objeto, a
p a rtic u la rid a d e de Deus, o Pai, o Filho e o E spírito Santo
é, segu ram ente, a de p e rm a n e c e r im perceptível ao h o ­
m e m en tregu e a seus próp rio s m eios de c o n h ec im e n to .
P ara p e rm itir que o h o m e m o perceba, é necessário n a d a
m e n o s que a interv enção do p ró p rio D eus a g in d o com
plena lib erdad e e d ecid ind o so b eran am en te. E n treg u e às
suas p ró p ria s forças, o h o m e m p o d erá, n o m á x im o , se­
g u n d o o grau de suas faculdades naturais, de seu e n t e n d i­
m e n to e de sua intuição, reco n h e cer a existência de u m
ser su prem o, absoluto, de u m a po tê n cia superior, de u m a
en tid ad e que d o m in a to d a a realidade. M as tal d e s c o b e rta
não te m n e n h u m a relação com o p ró p rio Deus. Ela é
fru to das intuições e das possibilidades - lim ites do p e n ­
sam en to e do esforço do h o m e m , que p od e, co m certeza,
im a g in a r u m ser su p rem o sem que, apesar disso, te n h a
e n c o n tra d o Deus. D escobre-se e c o n h ec e-se D eus
q u a n d o ele se dá a conhecer a si mesmo, d e n tro da sua i n ­
teira liberdade. C hegarem os mais tarde a falar de D eus,
de seu ser e de sua natureza, m as desde já d evem os esp e­
cificar b e m que ele p erm a n ece sen do sem p re aquele que
se d á a co n h ec er em sua livre revelação e não u m ser i m a ­
gin a d o pelo h o m e m e ao qual este ú ltim o cola u m a e ti­
q u eta “D eu s”. A lin h a divisória entre o v erd ad e iro D eus e
os falsos deuses se estabelece já claram en te a p a r ti r do
p ro b lem a do co nhecim ento. C o n h e c e r D eus não se inclui
no q u a d ro das possibilidades discutíveis. D eus é o c o n ­
te ú d o e a so m a de to d a a realidade tal c o m o esta se revela
para nós. O co n h e c im e n to de D eus o co rre desde que efe-
28 - Esboço de um a D ogm ática

tiv a m e n te ele fale, d esde que ele se apresente ao h o m e m


de tal fo rm a q ue o h o m e m não p ossa d eix ar de vê-lo e
ouvi-lo, d esd e que, n u m a situação e m que n ão p o ssu i
m ais o c o n tro le e n a qual ele se to r n a u m e n ig m a p a ra si
m e sm o , o h o m e m se vê colocado d ia n te do fato qu e vive
co m D eus e D eus co m ele, p o rq u e D eus se a g r a d o u disto.
P ara que ele te n h a c o n h e c im e n to de D eus, é necessário
que te n h a revelação divina, sen d o o h o m e m e n sin ad o , es­
clarecido e p e rs u a d id o pela in terv en ção do p ró p rio D eus.
C o m e ç a m o s p o r dizer que a fé cristã n asceu de u m e n ­
contro. P o d e m o s precisar a coisa d iz e n d o q ue a fé cristã e
o c o n h e c im e n to que se po ssa ter existem d esd e q u e a R a ­
zão divina, o Logos de D eus, dirige sua lei ao seio d a r a ­
zão h u m a n a , sen d o esta, seg u n d o sua n atu reza, o b rig a d a
a se c o n f o r m a r a essa lei.

É d e n tro desse evento que o h o m e m chega ao v e r d a ­


deiro co n h e c im e n to , pois, a p a r tir do fato de que D eus
o c u p a seu p e n s a m e n to , seus sen tim en to s e seus sentido s,
o h o m e m e sua razão são revelados a si m e sm o s. A revela­
ção de D eu s ao h o m e m é, pois, ao m e sm o te m p o u m a r e ­
velação d a v e rd a d e ira n atu re za do h o m e m , que
p e r m a n e c e incapaz de p ro v o car o evento qu e o ilu m in a e
do qual ap en a s D eus é o autor. Pode D eus ser co n h ec id o ?
Sim, D eus p o d e ser co n h e c id o p o rq u e ele se d á a c o n h e ­
cer e n ão p o d e ser co n h e c id o senão p o r ele m e sm o . Esse
evento confere ao h o m e m a liberdade, a capacidade, o p o ­
d er de c o n h e c e r D eus - a coisa p e r m a n e c e n d o e m si u m
m istério. O c o n h e c im e n to de D eus é u m c o n h e c im e n to
a b s o lu ta m e n te d e te rm in a d o e criad o pelo seu objeto, isto
é, pelo p ró p rio Deus. M as isso é p recisa m en te o q ue é u m
c o n h e c im e n to au tên tico e, no sentid o m ais p r o f u n d o da
palavra, u m c o n h e c im e n to livre. C e r ta m e n te ele p e r m a ­
nece u m c o n h e c im e n to relativo, e n c e rra d o n o s lim ites da
criatura. E é p a ra seu sujeito que ele se satisfaz m u ito p a r ­
C rer Significa C onhecer - 29

tic u la rm e n te de falar do tesouro que carreg a m o s d e n tro


dos vasos de b a rro (2Co 4.7). N ossos conceitos são i m ­
p ró p rio s p a ra co n ter esse tesouro. É im possível n ão ver
que nesse clim a to d a form a de org u lh o está excluída
desde logo. O h o m e m p erm a n ece send o o que é, i m p o ­
tente, sua razão estand o subm issa aos lim ites d o estad o da
criatura. M as é nesse q u a d ro que co nv ém a D eus se reve­
lar. E acontece que aqui, igualm ente, é e stan d o louco que
o h o m e m se to r n a sábio, é sendo p e q u e n o que se to rn a
grand e, e que D eus se revela eficaz o n d e o h o m e m se re ­
vela im p o te n te ( I C o 1.25; 3.18). “M in h a graça te basta!
Pois a m in h a po tê n cia se realiza n a tu a fraqueza” (2Co.
12.9). Esta palavra se aplica ta m b é m ao p ro b le m a do c o ­
nh ecim en to .

S egun do a tese fo rm u lad a no com eço deste capítulo,


a fé cristã é a ilum inação da razão que nos d á a lib erdade
de viver d e n tro da verdade de Jesus Cristo. É essencial
para a inteligência da fé cristã c o m p re e n d e r que a v erd ad e
de Jesus C risto e o co n h ec im e n to dessa v erd ad e referem -
se à vida. Assim, isso não significa que, p o r essa razão,
deva-se a b a n d o n a r a idéia de que a fé é u m c o n h e c im e n to
p a ra co nsiderá-la com o u m c o n h e c im e n to obscuro, u m a
experiên cia ou u m a intuição irracional. A fé é v e r d a d e ir a ­
m e n te u m conh ecim en to , ela está ligada ao logos de D eus
e, p o r conseguinte, constitui algo in te ira m e n te lógico. A
verdade de Jesus Cristo é, no sentid o m ais rig oroso d a p a ­
lavra, u m a verd ade objetiva. Seu p o n to de p artid a , a res­
surreição de Jesus é, segu ndo os d ad o s do N ovo
Testam ento, u m fato que se p ro d u z iu n o te m p o e n o es­
paço. Os apóstolos não se c o n te n ta ra m em descrev er e
d efen d e r u m a experiência p u ra m e n te interior. Eles fala­
ram do que v iram co m seus olhos, do que o u v ira m com
seus ouvidos e do que to c a ra m co m suas m ãos. A ssim a
v erdade de Jesus Cristo en tra no q u a d ro de u m a reflexão
30 - Esboço de um a D ogm ática

h u m a n a a b s o lu ta m e n te clara, lógica e livre, p re c isa m e n te


p o r q u e ligada a seu objeto. Mas - n ão se p a re m o s as d uas
coisas - essa v erd ad e diz respeito à vida. A qu ilo q ue se
c h a m a ciência, o saber, n ão saberia o suficiente e m si p a ra
d escrev er essa verdade. P ara p o d e r c o m p re e n d e r ao que
isso rem ete, é necessário voltar p rin c ip a lm e n te ã n o ção
de s a b e d o ria p ró p ria do A ntigo Testam ento, à sophia dos
gregos, à sapientia dos latinos. Sapientia se d istin g u e de
scientia, sa b e d o ria de ciência, n o qu e ela im p lica e m u m
sab er e m in e n te m e n te prático que eng loba a to ta lid a d e da
existência h u m a n a . A sab ed o ria é o saber que n o s p e rm ite
viver de fato e m u m a situação que é a nossa; ela u n e a
p rática e a teoria. O segredo da sua eficácia é qu e ela é
aplicável de im e d ia to e governa nossa existência c o m o
u m a luz sobre o no sso c a m in h o (SI 119.105). N ão u m a
luz qualquer, oferecida p a ra nossa estupefação o u p a ra
nossas reflexões, n ão u m a luz que ofereça a ocasião p a ra
fazer fogos de artifício - m e sm o q u a n d o se trate das m ais
sábias reflexões filosóficas! - , m as a luz que, m u ito s im ­
plesm ente, ilu m in a nosso cam in h o , nossas palavras e
no ssos atos, q ue b rilh a sobre nossos dias de saú d e e sobre
no ssos dias de d oen ça, sobre n o ssa p o b re z a e sob re n ossa
riqueza; que nos a c o m p a n h a q u a n d o a c re d ita m o s ver
co m clareza, b e m c o m o q u a n d o nos d e s e n c a m in h a m o s .
Essa luz q ue n ão cessa de estar aqui q u a n d o tu d o se e x tin ­
gue e a m o r te n o s sobrevêm .

C o n h e c im e n to cristão significa viver n a verdade de


Jesus Cristo. É nele que te m o s a vida, o m o v im e n to e o ser
(At 17.28), a fim de que p o ssa m o s ser nele, p o r ele e p a ra
ele (R m 11.36). Esse c o n h e c im e n to coincide, pois, a b s o ­
lu ta m e n te co m o qu e d e n o m in a m o s a c o n fia n ça e m D eus
e e m sua Palavra. N ão nos deix em o s im o b ilizar q u a n d o
nos é p ro p o s to distinguir, separar, nessa m a téria. N ão
existe co n fia n ç a real, sólida, autêntica, v ito rio sa e m D eus
C rer Significa C onhecer - 31

e em sua Palavra que não seja basead a n a v erd a d e de


D eus e de sua Palavra, co m o não existe c o n h e c im e n to
cristão, de teologia, de confissão de fé e m e s m o de v e r ­
d ad e bíblica que não p o rte ao m e sm o te m p o o cará ter de
v erdade viva e real. É preciso que u m a e ou tra, confiança
e c o n h ec im e n to , vida e fé, sejam in c essan tem e n te v erifi­
cadas, co ntrolad as e co nfirm adas u m a pela outra.

E é precisam ente p o rq u e nos é d a d o viver co m o


cristãos na v erdade de Jesus Cristo, à luz do c o n h e c i­
m e n to de D eus que ilum ina nossa razão, q ue p o d e m o s
co n h ec er co m convicção o verd ad eiro sen tid o de nossa
vida, assim com o a razão de ser e o objetivo de tu d o o que
existe. D aí o alarg am ento pro digioso de n osso ho rizonte:
c o m p re e n d e r d en tro de sua verdade o objeto d a fé é, n e m
m ais n e m m eno s, to rn ar-se capaz de c o n h e c e r todas as
coisas, q u er dizer, a si m esm o, o h o m e m , o m u n d o e a t o ­
talidade do cosm os. A v erdade de Jesus C risto n ão é u m a
v erd ad e entre outras, pois ela é a v erd ad e de D eus, a
p rim a veritas, e é ao m e sm o te m p o a ultim a veritas. N ão
crio u D eus to das as coisas em Jesus C risto (Cl 1.16), nós
m e sm o s aí com preendido s? N ão existim os sen ão nele,
q u er o saibam os ou não, e o universo inteiro n ão existe
senão nele, su stentado pela sua Palavra potente. O c o n h e ­
cer é co n h ec er todas as coisas. Ser to c ad o e to m a d o pelo
seu Espírito é ser co n d uzido p a ra d e n tro de toda a ver­
dade (Jo 16.13). C rer em Deus e conh ecê-lo to rn a , pois,
im possível a questão do sentido da vida. Ao crer eu vejo o
sentido da m in h a vida, o sentido do m e u estad o de c ria ­
tura, da m in h a in div idualid ad e co m seus lim ites e seu c a ­
ráter falível, trib u tário a cada instante d o p ecado, m as
ta m b é m do auxílio que D eus m e concede ao in te rv ir sem
cessar em m e u favor, apesar de m im e sem n e n h u m m é ­
rito de m i n h a parte. Em tu d o isso eu co n h eç o e identifico
a tarefa que m e é atribuída, a esperança q ue a a c o m p a n h a
32 - Ksboço de um a D ogm ática

em razão d a graça n a qual vivo, a realid ade d a g lória que


m e está p ro m e tid a e n a qual eu já estou s e c re ta m e n te e n ­
volvido aqui e agora, co m to d a a fraq u eza da m i n h a c o n ­
dição presente. C re r é re c o n h e c e r que tal é p re c isa m e n te
o s en tid o de m i n h a vida.
O C re d o a firm a que D eus é a razão de ser e o o b je ­
tivo de tu d o que existe. A razão de ser e o objetivo do u n i ­
verso é Jesus Cristo. Eis o in a u d ito em to d o esse assunto: a
fé cristã, que im plica essa con fian ça total e m D eu s e em
sua Palavra, esse c o n h e c im e n to ín tim o e p r o f u n d o d a r a ­
zão de ser e do objetivo de todas as coisas; assim o h o ­
m e m vive, a d espeito de tu d o que possa ser dito ao
co n trá rio , nessa paz que su p era to d o e n te n d im e n to (Fp
4.7) e que, nisso m esm o , é a luz que ilu m in a n o sso e n t e n ­
d im ento.
Crer É Confessar a Sua Fé

A f é cristã é a decisão que dá aos hom ens a liberdade de d e­


clarar publicam ente sua confiança na
Palavra de Deus e seu conhecimento
de Jesus Cristo, tanto na linguagem da Igreja,
como na linguagem do mundo, e sobretudo pelas ações
e atitudes subseqüentes.

A fé cristã é u m a decisão, esse é o n o sso p o n to de


p a r tid a neste q u a rto capítulo. C e rta m e n te a fé é u m a c o n ­
te cim e n to d e n tro do m istério da relação en tre D eus e o
h o m e m , a co n tecim en to que m anifesta a lib erd ad e da qual
D eus faz uso em direção ao h o m e m , ao m e sm o te m p o em
que lhe oferece essa m e sm a liberdade. M as isso n ão ex ­
clui, b em ao contrário, que a fé se tra d u z a p o r u m a h is tó ­
ria, q u e r dizer, que o h o m e m que crê seja levado a agir
através do tem po.
A fé é o m istério de D eus que irro m p e em n osso
m u n d o : ela m anifesta a liberdade de D eus e a liberd ade
do h o m e m em ação. Se ela não se tra d u z ir p o r n e n h u m
fato - visível e audível - não é fé. Ao falar de D eus, o Pai,
o Filho e o Espírito Santo, o C red o q u e r significar qu e o
p ró p rio D eus em sua essência, em sua vida p ro fu n d a , não
é u m D eus passivo, inativo, u m D eus m o rto , m as q ue ele
34 - Esboço de um a D ogm ática

existe e m u m a relação in tern a, em u m m o v im e n to que se


po de, co m fu n d a m e n to , descrever c o m o u m a h istória,
u m devir.
D eu s não está acim a d a história. Ele p ró p rio é a h is ­
tória. P or to d a a e tern id ad e, co n ce b eu e m si m e s m o u m
p ro p ó s ito do qual a C onfissão de Fé e x p rim e lin h as gerais
e que n ossos p a is8 d e n o m in a r a m d ecre to da criação, da
aliança e d a salvação. Esse p ro p ó s ito D eu s ex ecu tou, de
u m a vez p o r todas, sobre o p la n o da h is tó ria n a o b ra e na
m e n sa g e m de Jesus Cristo, as quais te s te m u n h a co n cre ta-
m e n te o q u a r to artigo do S ím b olo9: “p a d e c e u sob P ô ncio
Pilatos, foi crucificado, m o rto e s e p u lta d o ...”.
A fé é o qu e co rresp o n d e, p o r p a rte do h o m e m , a
essa existência e a essa ação de Deus. Seu ob jeto é esse
D eus h istó rico em sua essência e seu p ro p ó s ito visa, p õ e
em m o v im e n to e realiza a história. U m a fé que n ão seja
ela m e s m a h istó ria n ão é m ais a fé cristã, p e r d e u o seu o b ­
jeto.
A au tên tic a fé cristã d e te r m in a sem p re u m f e n ô ­
m e n o histórico: a aparição, en tre os h o m e n s de u m a
m e s m a é p o c a e de tod as as épocas, de u m a c o m u n id a d e ,
de u m a reunião, de u m a co m u n h ã o . M as ao m e s m o
te m p o ela suscita n o p ró p rio seio dessa c o m u n id a d e u m a
pregação, u m a m e n sa g e m d irigida ao exterior, e m direção
ao m u n d o de fora. U m a luz se ace n d e e “ela ilu m in a a t o ­
dos os que estão d e n tro d a casa” (M t 5.15). E m sum a: a fé
d á n a s c im e n to e v ida a u m a c o m u n id a d e cuja v o caç ão é a
de estar no e p a ra o m u n d o ; e é Israel qu e surge n o m eio
dos povos, e é a Igreja que se reú ne, a c o m u n h ã o dos s a n ­
tos, to d o s os que co n s titu e m o co rp o de Cristo. N ã o que

8. N. d o Ed.: As primeiras g e raç ões d o s Reformadores, q u e sistematizaram


estas doutrinas.
9. Vide nota n 1.
C rer É Confessar a Sua Fé - 35

Israel e a Igreja sejam u m fim em si m e sm o s, pois estão


aqui u n ic a m e n te p a ra significar a v in d a do s e rv id o r que
D eus suscitou p a ra todos.
H á a história, p o rtan to , e aqui é o lugar de falar
dessa co rre sp o n d ê n c ia entre a ação do h o m e m e a ob ra
que D eus realizou na livre decisão da sua graça. Essa h is ­
tó ria é possível desde que o h o m e m resp o n d a, q u e r dizer,
obedeça.
A fé é obediência e não adesão passiva. O b e d e c e r é
escolher. Escolher a fé e não a incred ulidad e, decidir-se
pela co nfiança co n tra a dúvida, pelo c o n h e c im e n to c o n ­
tra a ignorância. C rer é fazer u m a escolha e n tre a fé e o
que não é ela, o erro e a superstição. A fé é o ato de o b e d i­
ência e de decisão pelo qual o h o m e m se apresenta a D eus
c o m o D eus o exige. Esse ato im plica q ue se deixe de ser
n e u tro face a face co m Deus, que se a b a n d o n e essa atitud e
de indiferença e de irrespo nsab ilidade que im p e d e to d a
decisão verdadeira; que se deixe, enfim , seu p ró p rio u n i ­
verso p ara o u sar escolher e se ligar ab e rta m e n te , p u b lic a ­
m ente. U m a fé que p e rm a n e ç a algo privado, que n ão se
m anifeste p a ra o exterior, não será m ais do q ue u m a i n ­
cred u lid ad e escondida, u m a falsa fé, u m a superstição.
Pois a fé que te m p o r objeto Deus, o Pai, o Filho e o E sp í­
rito Santo não p o d e não se m an ifestar pub licam ente.
D issem o s que “a fé cristã é a decisão qu e d á aos h o ­
m e n s a lib erd ad e de declarar p u b licam e n te sua co nfiança
na Palavra de D eu s”. A resp onsabilidade púb lica q ue o
cristão assu m e im plica que ele recebeu o direito, a p e r ­
missão; q u e r dizer que ele conhece u m a eviden te liber­
dade. À lib erdad e de crer e de conhecer, so m a-se aquela
de se engajar. Impossível separar u m a d a outra. U m a c o n ­
fiança em D eus que p re te n d a viver sem c o n h ec im e n to ,
não seria verdadeira. E o h o m e m tra n s b o rd a n te de c o n fi­
ança e de co n h e c im e n to que não se sinta livre p a ra de-
36 - Rsboço de um a D ogm ática

clará-los p u b licam e n te, m erece que dele se diga “sua


co n fia n ça e seu c o n h e c im e n to não valem n a d a ! ” O p r ó ­
prio D eus, tal co m o o confessa a Igreja, n ão é aquele que,
longe de p e r m a n e c e r oculto e de q u e re r existir p a ra si
m e sm o , saiu do seu m istério e da sua m a jestad e divina
pa ra d escer e se m a n ifestar d e n tro da sua criação? N ão é
aquele qu e se desvela, que se m ostra?

Q u a n d o se crê nele, não se p o d e ter es c o n d id o s a


graça, o am or, a consolação e a luz que v êm dele, n e m
g u a rd a r p a ra si a con fiança que se p õ e n a sua P alavra e o
c o n h e c im e n to qu e se te m dele.

É im possível que as palavras e os atos do cren te p e r ­


m a n e ç a m palavras neu tras, atos que n ão se c o m p r o m e ­
tam . D esd e que exista a fé, a glória de D eus (do xa , gloria)
deve n e c e ssa ria m e n te b rilh a r sobre a terra. Se a glória de
D eus não se m a n ifesta de u m a m a n e ira ou de o u tra, se ela
p o d e ser o b sc u re c id a ou d e fo rm a d a p o r n o ssa p r ó p ria s a ­
b e d o ria o u p o r nossa fraqueza, deve-se c o n clu ir q ue a fé
está ausen te e qu e a consolação e a luz que D eus c o n ce d e
não fo ram recebidas de fato. A glória de D eu s e n tra no
co sm o s e seu n o m e é santificado sobre a te rr a to d a vez
que aos seres h u m a n o s é dad o crer, to d a vez qu e se re ú n e
e se p õ e e m m a rc h a o povo, a c o m u n id a d e de D eus.

A fé d á ao h o m e m , tal co m o ele é, co m to d o s os seus


limites e sua im p otência, em to d a a sua p erd iç ã o e to d a a
sua lo u c u ra , a lib erd ad e real para fazer re s p la n d e c e r a
glória e a h o n r a de D eus, de refletir sua luz in c o m p aráv el
sobre a terra. N ão nos é exigido mais do que isso, m a s isso
nos é exigido. Essa liberd ad e de te s te m u n h a r p u b lic a ­
m e n te sobre a nossa co nfiança na Palavra de D eu s e sobre
no sso c o n h e c im e n to d a v erd ad e que está em Jesus Cristo,
isso é o que n os te rm o s d a Igreja se c h a m a confessar sua
fé.
C rer É Confessar a Sua Fe - 37

C o nfessar sua fé é declarar p u b licam e n te n a lin g u a ­


gem d a Igreja, mas é ta m b é m te s te m u n h a r através de d e ­
cisões profan as e, sobretudo, pelas ações e atitudes
conseqüentes. Tem os aqui, parece-m e, as três fo rm as a b ­
so lu ta m en te inseparáveis - impossíveis de se o p o r u m a s
às outras e que devem ser vistas sem pre ao m e sm o te m p o
- do te s te m u n h o cristão, que é em si m e sm o u m a das m a ­
nifestações essenciais da fé. As explicações que se seg u em
fo rm am , p o rtan to , u m to d o indivisível.

1»A fé nos dá a liberdade de afirm ar p u b licam e n te


nossa co nfian ça e nosso conh ecim en to , na linguagem p r ó ­
pria da Igreja. O qu e q u erem o s dizer com isso? A igreja
teve e te m sua linguagem p ara ela em todas as épocas. É
assim. N o desenvolvim ento histórico, ela possui sua h is ­
tó ria particular, sua p ró p ria via. Ao confessar sua fé, não
p o d e abstrair essa história. Ela vive em u m con texto h is ­
tórico ab so lu tam en te preciso que não cessará de lhe i m ­
p o r u m a d e te rm in a d a linguagem . Assim, a fé cristã - e o
te s te m u n h o público dessa fé -n e c e s s a ria m e n te extrairá
seu m o d o de expressão da Bíblia, das línguas da Bíblia, o
grego e o hebraico, e das trad uçõ es que tê m sido feitas, as­
sim com o d a tradição da Igreja, das form as de p e n s a ­
m ento, conceitos e idéias que a Igreja utilizo u no d e c o rre r
dos séculos p a ra formular, adquirir, d efen d e r e d esen v o l­
ver seus conhecim en tos. Existe u m a lin g u ag em p ró p ria
da Igreja. É n orm al. O u se m o s ch am á-la p o r seu n o m e: o
“dialeto de C anaã”. N e n h u m cristão, ch a m a d o a confessar
a fé, q u e r dizer, ch a m a d o para fazer b rilh a r e x te rn a m e n te
a luz que está acesa nele, p o d e rá fazê-lo sem utilizar essa
linguagem , que é a sua. Vejamos as coisas co m o elas são:
d esde que se to rn e necessário ex p rim ir co m precisão as
coisas da fé, desde que se deva falar de n o ssa co n fia n ça
em Deus, em sua Palavra no que ela tem , p o r assim dizer,
38 - Ksboço dc um a D ogm ática

de específico - e nós dev em o s b em re c o n h e c e r q u e isso é


terrivelmente necessário p ara que os p ro b le m a s se to r n e m
claros - dev em o s de saída falar o dialeto de C anaã! Te­
n h a m o s essa coragem! Pois certas direções, certos c o n s e ­
lhos e certas exortações n ão p o d e m ser c o m u n ic a d o s aos
o u tro s senão nesse “dialeto”. N ão é n ecessário ser delicado
d em ais nesse assunto, n e m m e d ir excessivam ente as p a l a ­
vras. “Eu creio”, d izem os freq ü en tem en te, “m as m i n h a fé
é algo tão ín tim o e pessoal que estipulei p a ra m i m m e s m o
u m a regra de evitar citar a m ín im a palavra bíblica, e que
sinto u m forte em b a ra ç o ao p ro n u n c ia r até m e s m o o
n o m e de D eus, isso sem falar de Jesus Cristo, de seu s a n ­
gue ou do Espírito S anto...” Eu resp o n d o : “C a ro am igo,
a d m ito que p o ssa ter u m a fé p ro fu n d a , cu id e s o m e n te de
to rn a r-s e capaz de declará-la p ublicam ente! C aso c o n t r á ­
rio, esse p u d o r de sen tim en to s que reclam a p o d e r ia
m u ito b e m não ser m ais do que o m e d o d is s im u la d o de
ter de sair de seu estado de n e u tra lid a d e interior. P en se!”
Sem d úvida, u m a vez que a Igreja não ousa con fessar sua
fé na lin g u ag em q ue é a sua, ela ad q u ire o h áb ito de não
confessar coisa n e n h u m a ! Torna-se, então, u m a c o m u n i ­
d a d e silenciosa, senão m ud a. A fé, d esd e que existe, le­
v an ta im e d ia ta m e n te a questão: não se deve, a leg rem en te
e sem tem or, falar a lin guagem d a Bíblia, e x p rim ir-s e
c o m o fez a Igreja no passado e co m o deve fazer hoje?
F orte pela lib e rd a d e e seg u ran ça qu e são suas, a fé n ão
deixa de suscitar, p o r to d a a p a rte e sem pre, s e m e lh a n te
lin g u ag em p a ra o lou vo r e a glória de Deus.

2»Mas isso ain d a não p o d e c o n s titu ir to d o o te ste ­


m u n h o da Igreja. C on fessar significa a in d a m ais. G u a r ­
d e m o -n o s de p e n s a r que a confissão de fé n ã o é m ais do
que u m a coisa espiritual, reserv ad a ex clu siv am ente ao
d o m ín io d a Igreja e co n sistin d o sim p le sm e n te e m d ar
Crer K Confessar a Sua Fé - 39

u m a certa extensão à sua m ensagem . A v e rd a d e ira m o l­


d u ra da Igreja é o m u n d o , com o se p o d e n o ta r já à p r i ­
m eira vista a p a rtir do fato que, d e n tro de u m a aldeia ou
d e n tro de u m a cidade, o tem plo o cu p a seu lug ar ao lado
da escola, do cin em a e da estação. A lin g u a g e m falada
pela Igreja não p o d e ria ter u m p ro p ó sito em si m esm a. É
necessário perceb er que a Igreja está v e rd a d e ira m e n te
aqui p ara o m u n d o ; é preciso que a luz brilhe nas trevas
(Jo 1.5). A ssim com o Cristo não veio p a ra ser servido,
m as p a ra servir, não é conveniente que os cristãos exis­
ta m sim plesm ente p ara eles m esm os. Q u e r dizer que a fé,
que se m anifesta ex terio rm en te com o u m a co n fia n ça e
co m o u m co n h ecim ento, d e te rm in a certas decisões no
século e que, p o r co n stitu ir u m te ste m u n h o claro e a u tê n ­
tico, ela deva p o d e r se tra d u z ir p erfeitam en te n a lin g u a ­
gem do S enh or T o d o -M u n d o , do h o m e m d a rua, enfim ,
n a lín gu a daqueles que não têm n e m o hábito de ler a Bí­
blia n e m o de cantar os cânticos, e de q u e m os m eios de
expressão e os centros de interesse são a b s o lu ta m e n te d i ­
ferentes. É p a ra o m u n d o que C risto enviou seus d is c íp u ­
los e é no m u n d o que nós vivemos. N e n h u m de nós é
apenas cristão; to d o s som os ao m e sm o te m p o cidadãos
desse m u n d o . O m e sm o vale p ara nossas decisões cristãs,
p ara a tra d u ç ã o de nosso te ste m u n h o n a língu a de q u a l­
q u e r um . A confissão de fé, com efeito, p re te n d e se ap li­
car à v ida tal qual ela é, às circun stâncias de nossa
existência q u o tid ia n a com todas as questões teóricas ou
práticas que ela nos propõe. Se n ossa fé é real, ela deve
n ecessariam en te e n tra r na nossa vida. Em sua fo rm a p u ­
ra m e n te eclesiástica, o te ste m u n h o cristão co rre sem p re o
risco de fazer crer que o crente considere seu cred o co m o
algo pessoal e privad o e que, no m u n d o tal co m o é, são
o u tras as verd ad es que têm valor. O m u n d o vive sobre
esse m a l-e n te n d id o e considera o cristian ism o c o m o u m a
40 - Esboço de um a D ogm ática

agradável “m a g ia” p e rte n c e n te ao “d o m ín io religioso”,


ce rta m e n te respeitável, m as que n ão co n v ém m e x e r e
tu d o está dito! M as esse m a l-e n te n d id o p o d e m u ito b e m
existir e n tre os p ró p rio s cristãos d ispo stos de b o m g rad o
a fazer da fé seu objetivo, co m a co n d ição de n ã o m e x er
co m ela jam ais. N ão é de o n te m que se te n ta a p re s e n ta r o
p ro b le m a das relações en tre a Igreja e o m u n d o c o m o u m
p ro b le m a de b o a vizin hança, cada u m p e r m a n e c e n d o
p ru d e n te m e n t e nas posições c u id a d o sa m e n te p rep arad a s,
a despeito de algu m as escaram u ças que p o s s a m aco n te c e r
nos p o sto s avançados. A Igreja n ão p o d e c o n s id e ra r esse
“aco rd o de cavalheiros” c o m o definitivo. D e seu p o n to de
vista u m a só coisa conta: que seu te s te m u n h o p o ssa re s ­
soar ig u a lm en te n o seio d a sociedad e que a cerca, dessa
vez não n o dialeto de Canaã, m as n a lin g u a g e m m ais s ó ­
b ria e m e n o s eclesiástica que o m u n d o c o s tu m a falar.
Trata-se, p a ra a Igreja, de tra d u z ir sua m e n sa g e m n o es­
tilo dos jo rn ais, p o r exemplo. Trata-se de repetir, de u m a
m a n e ir a profana, o que diz em o s co m as palavras e a li n ­
g u ag em d a Igreja. O cristão n ão deverá tem er, p o rta n to ,
usar de u m a fala p o u c o “edificante”. Se ele se se n tir in c a ­
paz, qu e se p e r g u n te se o que se diz d e n tro da Igreja é
sem p re edificante! N ós co n h e c e m o s b e m esse ja rg ã o p a s ­
toral e clerical que p a ra as pessoas de fora, p r o d u z o efeito
do chinês! T o m em o s cu id ad o de n ão n os iso la rm o s e de
não re c e a rm o s falar claro ao m u n d o . U m exem plo: em
1933, n u m e ro s o s fo ram aqueles que n a A le m a n h a s o u b e ­
ra m confessar e viver sua fé de u m a m a n e ir a p r o f u n d a e
autêntica, e nós lo u v a m o s a D eus p o r isso; infelizm ente,
esses te s te m u n h o s fo ram de algu m a m a n e ir a b lo q u e a d o s
pela lin g u ag em que servia p ara form ulá-los. N ão se sou be
traduzir, então, em decisões políticas, o q ue estava exce­
le n te m e n te expresso n a língua da Igreja; caso c o n trá rio , a
Igreja evangélica desse país veria claram en te que ela deve-
C rer É Confessar a Sua Fé - 41

ria d izer n ão ao n acional-socialism o e isso desde o c o ­


meço. E foi assim, então, que não houve, sob a fo rm a
in te ira m e n te profana, a verdadeira confissão de fé. Im a g i­
n e m o s o que teria acontecido se a Igreja tivesse sabido
fo rm u la r em te rm o s políticos suas convicções espirituais!
Ela não foi capaz e as conseqüências estão d iante de n o s ­
sos olhos. U m segun do exemplo: hoje, igualm ente, exis­
tem m anifestações de fé cristã séria, autêntica. Estou
p e rs u a d id o de que os aco ntecim en to s atuais elevaram
ta n to a fom e e a sede da Palavra de D eus, que a Igreja está
a p o n to de viver u m m o m e n to im p o rtan te. M as n ão é s u ­
ficiente que ela se limite a se corrigir, a se co n so lid a r a si
p ró p ria e que os cristãos p e rm a n e ç a m u m a vez m ais en tre
eles. Em verdade, hoje é indispensável fazer teologia co m
u m a con sag ração m u ito maior. Mas, oxalá p o ssa m o s ver e
c o m p re e n d e r m e lh o r do que h á p o u c o te m p o a n ecessi­
d ad e de se tra d u z ir em decisões e em to m a d a s de p o s i­
ções políticas o que se passa no seio da Igreja! U m a Igreja
evangélica que p re te n d a hoje p e rm a n e c e r m u d a sobre a
questão da culpabilidade que os aco n tecim en to s que a c a ­
b am o s de viver levantam , ou que sim p lesm en te a c re d i­
tasse p o d e r negligenciá-la, q u a n d o esta exige u m a
resposta em razão m e sm o do futuro, se co n d en a ria, d esde
o princípio, à esterilidade. D a m e sm a form a, u m a Igreja
que não c o m p re e n d a sua vocação em relação às pessoas
em aflição, e para a qual o en sin am en to e a pregação não
c o rr e s p o n d a m aos p roblem as levantados pela situação
atual, u m a Igreja que não se p o n h a in te ira m e n te n o t r a ­
balho de re s p o n d e r à u rgência dessa tarefa esm agad ora,
celebrará o seu p ró p rio funeral. Oxalá cada cristão in d iv i­
d u a lm e n te possa ver claram ente o que sua fé implica: e n ­
q u an to ela n ão passa de u m a espécie de agradável to rre de
m a rfim que o dispensa de p e n sa r em o u trem , e n q u a n to
ela lhe oferece u m tipo de álibi fácil e faz dele u m ser du-
42 - Esboço de um a D ogm ática

pio, ela n ão é autêntica. Por o u tro lado, não se p o d e de


m a n e ira n e n h u m a viver d e n tro de u m a to rre de m arfim !
O h o m e m é u m to d o e não p o d e v e rd a d e ira m e n te existir
senão c o m o u m todo.

3»R ecordem os en fim a ú ltim a frase de n o ssa tese


inicial: pelas ações e atitudes subseqüentes. É in te n c io n a l­
m e n te qu e falo n u m terceiro ponto, d is tin to d o p re c e ­
dente. D e que serviria a u m h o m e m falar e confessar sua
fé na lin g u a g e m mais forte q ue p ud esse existir, se não
ho uvesse a caridade? C onfessar sua fé, te ste m u n h a r, é u m
ato e s tre ita m e n te ligado à vida. C re r é ser c h a m a d o para
arriscar-se. T u do d e p e n d e disso.
Deus Nos Lugares
Altíssimos

Segundo a Sagrada Escritura, Deus é aquele que está


presente, vive, age e se dá a conhecer para nós
pela obra que ele determ inou e realizou em
Jesus Cristo na liberdade de seu amor, ele o Único.

O Sím bolo dos Apóstolos, que nos serve de p o n to


de p artid a, abre-se com as seguintes palavras: creio em
Deus. N ós p ro n u n c ia m o s assim o conceito maior, o te rm o
decisivo do qual o C redo cristão não é m ais do q ue a ex ­
plicação e o desenvolvim ento. D eus é o objeto d a fé de que
falam os nas nossas últim as aulas. É, s u m a ria m e n te fa­
lando, o co n te ú d o da pregação da Igreja. C o n tu d o , o co rre
que D eus parece ser, de u m a m a n e ira ou de o u tra, u m a
realidade fam iliar a todas as religiões e a to das as filoso­
fias.
A ntes de prosseguir, é necessário, pois, d e te r m o - n o s
u m in stante p ara p e rg u n ta r a nós m esm os: qu e relação
existe e n tre a palavra “D eus”, no sen tido e m que a e m ­
prega a fé cristã, e naquele que esse n o m e en co b re em t o ­
das as religiões e filosofias de todos os povos e de to d a s as
épocas?
V am os esclarecer a significação h abitual desse v o c á ­
bu lo fora da fé cristã. Q u a n d o o h o m e m fala de D eus, da
44 - F.sboço de unia D ogm ática

n a tu re z a o u d a essência divina, p re te n d e tr a d u z ir o s e n ti­


m e n to de no stalg ia e de d eso rien tação que ele e x p e r i­
m e n ta c o m to d o s os seus sem elhantes e qu e o e m p u r r a
p a ra p r o c u r a r u m a u n id a d e en tre os seres, u m a razão de
ser p a ra sua existência e u m sentido p a ra o universo. Ele
p e n s a n a existência e n a n atu re za de u m ser em u m a rela­
ção m ais ou m e n o s co erente co m a e s to n tean te d iv e rsi­
dad e de f e n ô m e n o s e que deveria c o n s id e ra r c o m o a
essência s u p re m a que regula e d o m in a to d a a realidade.
E, se la n ç a m o s agora u m olhar sobre esse vasto c a m p o de
pesquisas, o n d e se dá livre curso à n ostalgia e às h ip ó teses
h u m a n a s , n o ssa p rim e ira im p ressão é a de u m a facu ldade
de inv enção in fin ita m e n te diversa, que se co nju ga co m
to d a s as arb itra rie d a d e s e todas as fantasias.
D e fato, e n c o n tr a m o - n o s diante de u m a m o n t a n h a
de incertezas e de con tradiçõ es. Q u a n d o , pois, falam os de
D eus n a m o ld u r a d a fé cristã, devem os te r em m e n te que
nós n ão estam o s a cre sce n tan d o mais u m a n o ç ã o a tod as
aquelas que já existem no inventário religioso d a h u m a n i ­
dade. D eus, s e g u n d o a fé cristã, n ão é m ais u m D eus entre
os o utros. Ele n ão p e rte n c e ao p a n te ã o d a p ie d a d e h u ­
m a n a e d a e n g e n h o s id a d e religiosa.
P o rtan to , não é u m a questão de se p o s tu la r n o seio
da n a tu re z a h u m a n a a existência de u m a te n d ê n c ia u n i ­
versal e in a ta ao divino, de u m conceito geral de D eu s que
englob aria, n u m d a d o m o m e n to , o que c re m o s e c o n fe s­
sam o s q u a n d o falam os de D eus e n q u a n to cristãos, de tal
sorte que n ossa fé seria u m a fé entre outras, u m caso p a r ­
ticu lar d e n tro de u m a regra geral. U m Pai d a Igreja disse
co m razão: D eus non est in genere - D eus n ão p e rte n c e a
n e n h u m gênero!
Q u a n d o falam os de “D eu s”, nós, cristãos, p o d e m o s e
d ev em o s claram en te nos d ar co n ta que esse te rm o s ig n i­
fica de im ed iato o “to ta lm e n te O u tr o ” e qu e esta m o s ver-
Deus N os Lugares Altíssimos - 45

d a d e ira m e n te libertos da p esada m o ld u r a das buscas, das


hipóteses, das im aginações, das ilusões e das especulações
h u m a n a s. N ão é questão, não mais, de se p e n s a r que o h o ­
m e m em b u sca do divino p oderia, enfim , depois de m u ito
sofrim en to, alcançar u m degrau de c o n h e c im e n to tal que
coincidisse p raticam en te com o c o n teú d o da fé cristã.
O D eus que a fé cristã confessa não é, à m a n e ir a dos
deuses deste m u n d o , u m ser que se e n c o n tra ou se i n ­
venta, u m a d ivindade que se oferece ao h o m e m ao té r ­
m in o de seus esforços; ele não é o coroam ento, seja ele o
m ais perfeito, de u m a p ro c u ra que p u d é s s e m o s iniciar
sem m ais n a d a e alcançar p o r nós m esm os.
É o D eus que, ao contrário, o cu p a já e sem re to r n o o
lugar de tu d o aquilo que os h o m e n s c o s tu m a v a m c h a m a r
“D eus” e, que, excluindo de im ediato todas as d em ais p r e ­
senças, exceto a sua, reivindica o privilégio de ser dele s o ­
m e n te a verdade. Se não se co m p re e n d e isso, p e rm a n e c e -
se incapaz de e n te n d e r aquilo que a Igreja q u e r dizer
q u a n d o confessa: creio em Deus. Trata-se aqui de u m e n ­
c o n tro do h o m e m com a realidade a qual ele p e rm a n e c e
para sem pre incapaz de bu scar e e n c o n tra r p o r si m esm o.
“O que o olho não viu, o que o ouvido n ão e scu to u e o
que não subiu ao coração do h o m e m , D eus o revelou aos
qu e o a m a m ” ( l C o 2.9). Assim se ex p rim e o apóstolo
Paulo a respeito dessa realidade. E não se p o d e falar d ife­
rentem ente.
D eus, no sentido da fé cristã, te m u m a existência
a b s o lu tam en te diferente daquilo que h a b itu a lm e n te se
c h a m a o divino. Sua natureza é, p o rtan to , to ta lm e n te d is ­
tin ta daqu ela dos seres que se ch am av am “d eu ses”. N ós r e ­
su m im o s tu d o o que se p o d e dizer a respeito de D eus,
seg u n d o a fé cristã, na expressão: Deus nos lugares altíssi-
4 6 - Esboço de um a D ogm ática

mos. Ela se e n c o n tra , c o m o vocês sabem , nas n arrativ as


do N atal (Lc 2.14). É esta p e q u e n a frase “n o s lugares altís­
sim o s”, in excelsis, q ue eu q u ero te n ta r explicar agora.
“N os lugares altíssim os” significa sim p le sm e n te , d e ­
pois do qu e aca b am o s de dizer: D eus está acim a de nós,
acim a de to d a s as nossas intuições, de to d o s os no sso s es­
forços, de to d o s os n o ssos sen tim en to s, sejam eles os mais
sublim es, acim a de to d o s os p ro d u to s de n o sso espírito,
sejam eles os m ais adm iráveis. E isso significa, e m s e ­
guida, c o m o já vim os, qu e D eus n ão d e p o sita coisa al­
g u m a de sua razão de ser em nós m e sm o s e que ele não
c o r r e s p o n d e a n e n h u m a disposição ou p o ssib ilid ad e de
no ssa natureza, m as qu e ele não existe e n e m te m reali­
dade, sen ão em si m esm o. C o m o tal, ele n ão se revela a
nós através de no ssa p ro c u ra , nossas d esco b ertas, nossos
s e n tim e n to s e nossos p en sam e n to s, m as ex clusivam en te
p o r ele m esm o .
É p re c isa m e n te esse D eus que está s e n ta d o n o s lu g a ­
res altíssim os qu e se to r n o u tal p a r a o h o m e m , se deu, se
fez c o n h e c e r a si. D eu s nos lugares altíssim os n ão s ig n i­
fica, p o rta n to , qu e ele n ão te m n a d a a ver conosco , q u e ele
não nos co n ce rn e, que ele p e rm a n e c e e te r n a m e n te e s tr a ­
nho, m as, s e g u n d o a fé cristã, isso q u e r dizer, ao c o n t r á ­
rio, q ue ele veio, d esceu até nós, qu e ele se to r n o u n osso
D eus. É o D eu s que afirm a e prova sua a u te n tic id ad e,
aquele qu e n ossa m ã o n ão p o d e c o n ter e que, p re c is a ­
m e n te p o r essa razão, to m o u - n o s pela m ã o ; aquele que,
n u m a palavra, é o ú n ic o que m erece o n o m e de D eus, à
diferença de to d a as div in d ad es in v e n tad as e que, r a d ic a l­
m e n te d is tin to de tu d o o que existe, está c o n tu d o ligado a
nós. Q u a n d o diz em o s com o S ím bolo dos A póstolos:
Creio e m D eus, é esse D eus q ue nós estam o s con fessando.
T en tarem o s agora fo rm u la r de u m a m a n e ir a m ais
precisa o qu e acaba de ser dito. S eg u n d o a Sagrada Escri-
D eus N os Lugares Altíssimos - 47

tura, D eus é u m ser presente, vivo, atu an te e que se faz c o ­


nhecer. Por essa definição, as coisas se to r n a m m u ito
diferentes do que seriam se eu tentasse sim p lesm en te
ap resen tar a vocês alguns conceitos relativos a u m ser s u ­
p re m o e infinito. Nesse caso eu estaria fazendo e s p e c u la ­
ção. Mais eu não convido vocês a fazer especulação, pois é
u m m é to d o vicioso, u m a vez que, longe de c o n d u z ir a
D eus, esse m é to d o não p o d e senão nos levar a d esign ar
sob esse n o m e u m a realidade que não é ele. D eus está
presente no A ntigo e no N ovo Testam ento que falam dele.
E a definição cristã de D eus consiste sim p lesm en te em d i­
zer: esses livros falam dele, p o rta n to escutem os o q ue eles
estão nos dizendo. Aquilo que se p o d e ver e e n te n d e r nas
E scrituras é Deus.

O b se rv em o s bem : a Bíblia, A ntigo e N ovo Testa­


m en tos, não co n tém jam ais a m e n o r tentativa de provar
Deus. S em elhantes tentativas não existem senão fora da
Bíblia e p o r to d a parte o n d e se esquece co m q u e m se está
lid an d o q u a n d o se fala de Deus. Elas são fam iliares p a ra
vocês: consistem em p o stu la r a existência de u m ser p e r ­
feito a p a rtir do p ró p rio fato de que tu d o o qu e existe é
im perfeito; afirm ar que a o rd e m geral do m u n d o p r e s s u ­
p õ e u m a p o tê n cia o rd en ad o ra; p a rtir de no ssa c o n s c iê n ­
cia m o ral p a ra afirm ar a existência de u m ser su prem o ,
etc. N ão te n h o a inten ção de sair em g u e rra c o n tra essas
diversas “provas” d a existência de D eus. N ão sei se vocês
se dão con ta de im ediato do que elas têm , ao m e sm o
tem po, de frágil e de trágico. A p licando-se aos deuses fa­
m iliares a esse m u n d o , elas são perfeitam en te aceitáveis e,
se eu tivesse de entretê-los com essas div ind ad es, n ão d e i­
xaria de reco rrer às cinco fam osas provas da existência de
Deus. A Bíblia não conhece esse gênero de d em o n stração :
48 - Ksboço dc um a D ogm ática

p a ra ela, D eu s não tem necessidade de ser prov ad o. Ele é


q u e m , de u m a e x tre m id a d e a ou tra, prova-se p o r si
mesmo: eis-m e, diz ele, e a p a r tir do fato que eu existo,
vivo e ajo, to rn a -s e inútil p ro v ar a m i n h a existência. É
co m relação a essa d e m o n stra ç ã o que D eu s d á de si
m e s m o qu e falam os profetas e os apóstolos. Im possível
falar de D eus de m a n e ir a diferente d e n tro d a Igreja. D eus
não te m n e n h u m a necessidade de nossas provas. A quele
que se c h a m a D eus, na Sagrada E scritura é insondável, o
que q u e r dizer qu e ele não p o d e ser d e s c o b e rto p o r n i n ­
guém . Q u a n d o se trata dele n a Bíblia e ele é referid o co m
u m a g ra n d e fam iliaridade, mais p ró x im o de n ó s do que
nós m e s m o s jam ais serem os e mais real que to d a o u tra
realidade, isso n ão oco rre p o r ser d a d o a certo s h o m e n s
p a rtic u la r m e n te religiosos a po ssib ilidade de alcançá-lo,
m as p o r q u e ele se revelou, ele, o D eus oculto.

D isso resulta que não apenas nós não p o d e m o s d e s ­


co b rir e p ro v a r D eus, mas ain d a que ele nos p e r m a n e c e
incompreensível. A Bíblia n u n c a bu sca d e fin ir D eus, vale
dizer, fazer co m q ue ele se encaixe em no ssos conceitos;
mas, q u a n d o ela p r o n u n c ia seu n om e, afirm a sem cessar
u m sujeito que vive, que age, que se faz c o n h e c e r p o r si
m esm o , ao co n trá rio da en tid ad e d efin id a pelos filósofos
c o m o u m ser su p rem o , infinito, lo n g ín q u o e p a ira n d o s o ­
bre o universo. A Bíblia co n ta D eus, relata o qu e ele fez, a
h istó ria m u ito precisa realizada neste m u n d o e n tre os h o ­
m e n s p o r aquele que se assenta nos lugares altíssim os. Ela
assinala a significação e o alcance dessa ação, dessa h is tó ­
ria e é assim que prova a existência de D eus e descreve
sua n atureza. C o n h e c im e n to de D eus, s e g u n d o a Bíblia e
se g u n d o a confissão de fé da Igreja é, pois, c o n h e c im e n to
da sua presen ça, de sua vida, de sua ação, de sua revelação
Deus N os Lugares Altíssimos - 49

n a o b ra que ele realizou. Assim, a Bíblia não é u m livro de


filosofia, mas u m livro de história, o livro dos p o d e ro s o s
atos de D eus, n o qual D eus se faz c o n h ec id o de nós.
1»A Escritura descreve u m a obra: a o b ra d a criação.
D eus faz su rg ir ao seu lado u m a realidade o u tra, distin ta
dele, “a criatura”, sem necessidade, n a lib erd ad e de seu
p o d e r absoluto e n a s u p e ra b u n d â n c ia de seu amor.
2«U m a aliança se estabeleceu entre ele e u m a de
suas criaturas, entre D eus e o h o m e m . Existe aqui, ainda,
u m a coisa incom preensível: p o r que essa aliança entre
D eus e o h o m e m , esse h o m e m de q u em a Bíblia afirm a de
u m a p o n ta a o u tra que é u m ingrato, u m rebelde, u m p e ­
cador? A pesar disso, sem querer levar isso em co n ta e se
ab sten d o de endireitar a situação, D eus se d á a si m e sm o
à sua criatura. E o faz, to rn a n d o -s e o D eus de u m p e ­
q u en o povo desprezado do O rien te M édio, Israel. Faz
isso, to rn a n d o -s e u m m e m b ro desse povo, u m a crian ça e,
finalm ente, m o rren d o .
3»Enfim - m as tu d o isso não é mais que u m a única
e m esm a o bra - , existe a redenção, a revelação d a in ten ção
de D eus que am a n a liberdade, no que c o n c e rn e ao h o ­
m e m e ao m u n d o , o an iq u ilam en to de tu d o aquilo que se
op õ e a essa intenção, a m anifestação de novos céus e da
nova terra. Tudo isso, u m n o m e o significa e exprim e, Je­
sus Cristo, o h o m e m em q u e m o p ró p rio D eus se fez visí­
vel e to rn o u -s e ação sobre a terra; Jesus Cristo, o objetivo
da h istó ria de Israel, em q u em a Igreja co m eça e te rm in a ,
chave da revelação, da redenção e da nov a criação. T oda a
ob ra de D eus está co ntid a nessa ún ica e m e s m a pessoa.
Falar de D eus, seg und o a Sagrada E scritura, é n ece ssaria­
m e n te falar de Jesus Cristo.
É d e n tro dessa ob ra da criação, da aliança e d a re ­
d en ção que D eus está presente, vive, age e se faz c o n h e ­
50 - Esboço de um a D ogm ática

cer. N ão é p e rm itid o fazer-se abstração dessa o b ra


q u a n d o se q u e r sab er algo da existência e d a essência de
D eus. D eus e m p essoa está presente nessa o b ra e é p re c i­
s a m e n te o sujeito dela. Ele age n a lib erd ad e de seu amor.
C e r ta m e n te a p alavra lib erd ad e e a palavra a m o r são c o n ­
v enientes q u a n d o se tra ta de cara cterizar o qu e ele faz e o
que ele é. M as deve-se to m a r c u id a d o p a ra não se cair de
novo do co n c re to n o abstrato, da h istó ria nas idéias. Eu
teria m e d o de dizer: D eus é liberdade ou D eus é amor, se
b e m que esta se g u n d a fó rm u la seja bíblica ( l j o 4.8). N ós
ig n o ra m o s o que seja o am or, nós ig n o ra m o s o que seja a
lib erdad e, m as D eus é am or, D eus é liberdade. É dele que
te m o s qu e a p r e n d e r sobre u m a e sobre outro. Ele é aquele
que a m a n a liberdade. É com o tal q ue se m a n ifesta n a
ob ra da criação, da aliança e d a redenção. E aq u i é q u e v e ­
m o s em qu e consiste o am or: essa n ecessidad e d o o u tro
c o m o tal, o D eu s ú n ic o d eix an d o de ser só p a r a se u n ir
to ta lm e n te à p esso a do outro. Tal é o am or, o livre a m o r
de Deus.

M e s m o sem a criação, D eus não está só. Ele n ão n e ­


cessita dela e c o n tu d o ele a am a. Esse a m o r n ão p o d e ser
co n ce b id o sen ão d e n tro do ab soluto da lib e rd a d e divina.
O a m o r de D eus consiste nisso: que D eus o Pai a m a o Fi­
lho que é, ele m esm o , Deus. Sua o b ra n ão é m ais do que a
m an ifestaç ão do m istério do seu ser ín tim o o n d e tu d o é
a m o r e liberdade.

Q u e m sabe agora p o ssa m o s c o m p re e n d e r m e lh o r o


sen tid o do no sso título: D eus nos lugares altíssim os. É
p o r q u e D eus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo n a o b ra
que ele realizou em Jesus Cristo, que ele está p re c isa ­
m e n te nos lugares altíssimos. Ele, cuja n a tu re z a consiste
Deus Nos Lugares Altíssimos - 51

em se abaixar; ele, cuja existência se m a n ifesta n o ato de


descer ao fu n d o do abismo; ele, o m ise rico rd io so que se
dá à sua criatu ra a p o n to de p a rtilh a r a sua d eca d ên cia
m ais p ro fu n d a , é ele o D eus altíssimo. Ele o é, n ão apesar
disso, em v irtu d e de u m p aradox o s u rp re e n d e n te , m as
devido ao fato m e sm o de que ele se abaixe assim. É nesse
livre a m o r que ele está acim a de tudo. Ver e m D eu s u m a
o u tra g ra n d e z a é não ter c o m p re e n d id o q ue ele é “to ta l­
m e n te O u tr o ”, é, com o os pagãos, b u scar D eus n a in fin i­
dade. Mas ele difere to talm en te da idéia que fazem os de
nossos “deuses” h u m a n o s. Ele ch am a Abraão, c o n d u z u m
povo m iserável através do deserto, recusa, p o r séculos i n ­
teiros, deixar-se d esco n ce rtar pela infidelidade e d e s o b e ­
diência desse povo, aceita se to r n a r u m h u m ild e recém -
nascido no estábulo de Belém e m o rr e r n o Gólgota. Ele é
o S e n h o r teu Deus. Vocês c o m p re e n d e m o que significa o
m o n o te ís m o p ara a fé cristã? D eus não q u e r saber n a d a
dessa m a n ia de unidade! D eixem os de lado essa m a n ia do
n ú m e ro u m e c o m p re e n d a m o s que D eu s é o sujeito ao
m e sm o te m p o ú nico e abso lu tam ente distin to de tu d o o
que existe, radicalm ente diferente das d iv in d ad es r id íc u ­
las im ag in ad a s pelos hom ens. Q u a n d o se c o m p re e n d e
isso, não se p o d e deixar de rir deles, c o m o o faz a Bíblia.
A qui o n d e o verd adeiro D eus é recon hecido, os ídolos se
d e s m a n c h a m na p o eira e só ele p erm a n ece. “Eu sou o Se­
n h o r teu D e u s ... tu não terás outros deuses d ia n te d a m i ­
n h a face” (Ex 20.2-3). Isso q u er dizer: tu n ão podes ter
o u tro s deuses. Tudo o que se c h a m a “d eu s” ao lad o dele
não é mais que o reflexo da nostalgia d o e n tia que está i n ­
c u b ad a no coração do h o m e m co m desastrosas c o n s e q ü ­
ências. Nessa perspectiva, o segu ndo m a n d a m e n t o se
52 - Esboço de urna D ogm ática

to r n a m u ito claro ta m b ém : “tu n ão farás im a g e m e n t a ­


lhada, n e m n e n h u m a rep re se n ta ç ã o ... tu n ão te p r o s tr a ­
rás d ia n te deles e tu não os serv irás!”. T a m b é m é
c o m p le ta m e n te falso p o s tu la r aqui u m conceito filosófico
sobre a invisibilidade de D eus, assim c o m o ver aí u m a e x ­
pressão típica da m e n ta lid a d e israelita. O p r ó p rio D eu s já
fez tu d o p a ra se ap resen tar ele m e sm o a nós. C o m o o h o ­
m e m p o d e r ia q u e re r representá-lo? D izem o s a p ro p ó s ito
disso que a arte cristã é c e rta m e n te m o v id a pelas m e lh o ­
res in ten çõ es do m u n d o , m as im p o ten te, p o r q u e D eu s já
nos d eu a sua im ag em . Q u a n d o se c o m p re e n d e v e r d a d e i­
r a m e n te que D eus está nos lugares altíssim os, n ão se p o d e
mais q u e re r rep resen tá-lo q u e r seja p o r p e n s a m e n to s ,
q u e r seja p o r im agens.
Deus O Pai

O único Deus verdadeiro é p or natureza e pela eternidade o


Pai, origem de seu Filho e, unido a ele, origem do
Espírito Santo. Em virtude dessa m aneira
de ser, ele é, pela graça, o Pai
de todos os homens, que ele cham a em seu Filho
e pelo Espírito Santo para serem seus filhos.

O D eus único, o Altíssimo, é u m Pai. D esd e que


p r o n u n c ia m o s essa palavra, desde que, co m o p rim e iro
artigo do Símbolo, nós dizem os D eus, o Pai, d ev em o s
logo n os le m b ra r do seg un do artigo: D eus é o Filho, e do
terceiro: ele é o Espírito Santo. Os três artigos do Sím bolo
nos falam a cada vez do m esmo Deus. N ão existem aqui
três divindades, não h á em D eus divisão, r u p tu ra . Longe
de afirm ar três tipos de “D eus”, a Trindade fala, pelo c o n ­
trário, e stritam e n te de u m ún ico e m e sm o D eus. É assim
q u e a Igreja te m in terp reta d o sem pre e a p ró p ria E s c ri­
tu ra não nos diz n ad a de diferente. A T rin d a d e cessa de
ser u m a c o n stru çã o teórica desde que se q u eira n ão s e p a ­
rar os três artigos do C redo e reco n h e cer qu e o te m a n e s ­
ses três artigos trata do m e sm o D eus c ria n d o o m u n d o ,
in te rv in d o com Jesus Cristo e agindo pelo Espírito Santo,
e não de três d e p a rta m e n to s divinos que tê m cad a u m seu
54 - Esboço de um a D ogm ática

“d ire to r ”! N ós tra ta m o s co m u m a só e m e s m a o b ra do
ú n ic o e m e s m o D eus, m as esta o b ra é, ela m e sm a, u m m o ­
vimento. Pois o D eus em q u e m a cre d itam o s n ã o é u m
D eus m o rto , n e m u m D eus solitário, m as, se n d o in te ir a ­
m e n te o Único, ele não fica, co n tu d o , só em si m e sm o , r e ­
co lh ido e m sua m ajestad e divina: a o b ra que ele realiza,
na qual ele nos e n c o n tra e que nos p e rm ite con hecê-lo , é
u m a ação d in â m ic a e viva, p o r n a tu re z a e p a ra a e t e r n i­
dade; e p a ra nós que vivem os no te m p o da su a graça, ele é
o D eus único em suas três m aneiras de ser. A Igreja antiga
afirm a: D eu s é u m só em três pessoas. Se te m -s e em co n ta
a significação que esse ú ltim o conceito re c o b ria p a r a ela,
a Igreja antiga fo rn eceu aqui u m a definição inatacável.
C o m efeito, e m latim e em grego, “pessoa” q u e r d iz er e x a ­
ta m e n te aquilo que tentei in d icar pela expressão “m a n e ira
de s e r”. Hoje, o te rm o p essoa evoca p a ra nós, q u ase que
irresistivelm ente, a idéia de u m a in d ividualidad e. E, nessa
acepção, ela não é m u ito co nveniente p a ra e x p rim ir o ser
de D eu s Pai, o Filho e o Espírito Santo. C alvino disse em
alg u m lugar, n ão sem ironia, que não era p e r m itid o r e ­
p re s e n ta r o D eu s trin itá rio à m a n e ira da m a io ria dos p i n ­
tores que se c o n te n ta m em m o s tr a r sobre a tela três
“figuras e s tra n h a s ”. Isso não te m n a d a a ver c o m a T r in ­
dade. Q u a n d o a Igreja cristã fala do D eus trin itá rio , p r e ­
te n d e dizer q ue ele é ao m e sm o te m p o e ta m b é m o Pai
que é o Filho e o Espírito Santo. Trata-se, p o r ta n to , p o r
três vezes do ú n ic o e m e s m o D eus, de suas três m a n e ira s
de ser, de sua T rin d a d e de Pai, de Filho e de Espírito
Santo; tal ele é n o s lugares altíssim os e tal ele é em sua r e ­
velação.

É necessário, pois, desde o co m eço p recisa r que,


a fir m a n d o que D eus, o Pai, é “n osso Pai”, estam o s d i ­
ze n d o u m a coisa válida e justa, c o r re s p o n d e n d o à sua n a ­
tureza m ais p ro fu n d a , e te rn a m e n te v erdadeira. D eus é o
Deus O Pai - 55

Pai. D o m e sm o m o d o com o q u a n d o falam os do Filho e


do Espírito Santo. Esse n o m e de Pai, d a d o a D eus, n ão é
acidental, u m título provisório que nós a trib u ím o s a ele
p en san d o : “p o rq u e nós sabem os p o r ex p eriên cia o q ue é
vim pai h u m a n o , é b e m natu ra l que nós te n h a m o s apli­
cado a D eus essa idéia; mas fica b e m e n te n d id o qu e ela
não te m n e n h u m a ligação com a real n a tu re z a de D eus,
que é in teiram en te outra. D izer que D eus é u m Pai, n ão
te m p o r ta n to valor exceto pela ligação co m sua revelação,
pela ligação conosco. O que D eus é p o r si m esm o , n a e te r­
nid ade, ig no ram os. Todavia, agrad a-lhe deixar seu m is té ­
rio e é assim que, para nós, ele é o Pai”. Falar desse m o d o é
não ver fin alm en te o que esse n o m e nos tra z de verdade.
Q u a n d o as Escrituras e a Confissão de Fé c h a m a m de Pai
a D eus, elas q u e re m dizer que é assim antes de tudo,
desde o princípio. É o Pai em si m esm o , p o r n a tu re z a e
pela ete rn id a d e e, em seguida, a p a rtir daí, ele é o nosso
Pai, o Pai de suas criaturas. N ão há, pois, qu e co m eçar
u m a p a te rn id a d e h u m a n a e, em seguida, p o r analogia,
u m a p rete n sa p atern id ad e divina. O co n trá rio é que é
correto: a v erd ad e ira p aternidade, a p a te rn id a d e autêntica
e p rim eira, está em D eus e é ela q ue fu n d a to d a s as nossas
p a te rn id a d e s h u m a n as. A p a te rn id a d e divina é aquela da
qual p ro c e d e m todas as outras. A epístola aos Efésios diz:
“é dele que tira seu n o m e to d a família - em grego p a triá -
no céu e sobre a terra” (Ef 3.14-15). E stam os b e m d e n tro
da verdade, a verdad e p rim eira e fu n d a m e n ta l q u a n d o ,
nessa perspectiv a radical, re co n h e cem o s D eus co m o
nosso Pai e nos ch am am o s de seus filhos. F alan do de
Deus, o Pai, nós e x p rim im o s u m a p rim e ira m a n e ir a de
ser de D eus, que co n diciona u m a segunda, diferente, m as
que lhe é co n tu d o aplicável, já que lhe p e rte n c e p r o p r ia ­
m ente. D eus é D eus sendo u m Pai, o Pai de seu Filho, em
q u e m ele estabelece e define de novo, p o r si m e sm o , sua
56 - Esboço de um a D ogm ática

q u a lid a d e de D eus. D izem os b e m que ele estabelece e d e ­


fine, n ão qu e a crio u - o Filho foi e n g e n d ra d o e n ão c r i­
ado! Todavia, essa relação e n tre o Pai e o Filho n ão esgota
ain d a o m isté rio de D eus, sua n atu re za p ro fu n d a , além
de, p o r o u tro lado, n ão am eaçar a u n id a d e divina. A c o n ­
tece qu e o conjunto Pai e Filho a firm a u m a te rc eira vez
essa u n id a d e n a p resen ça do Espírito Santo. D e D eu s o
Pai e de D eus o Filho, p ro c e d e o Espírito Santo. Spiritus
que proced.it a Patre Filioque. É isso que ja m ais c o m p r e e n ­
d e ra m c o m p le ta m e n te os infelizes re p re s e n ta n te s d a
Igreja do O riente: o Pai e o Filho selan do sua u n id a d e no
E spírito S anto que a realiza. O Espírito Santo foi c h a ­
m a d o , às vezes, de v ín c u lo da caridade, vin c u lu m carita-
tis. N ão é apesar de, m as p o r causa da p re s e n ç a e m D eus
do Pai e do Filho que existe u n id a d e. D eus é D eu s ao se
estabelecer e m si m e sm o e p o r si m e sm o c o m o D eus, ao
m e s m o te m p o d iferente e id êntico a si m e s m o e m sua d i ­
vin dad e. E é assim q ue ele n ão está só em si m e sm o . Em
si, p o rq u e é o D eu s trinitário , existindo a v id a e m to d a a
sua riqueza, a ação e a c o m u n h ã o em to d a a sua p le n i­
tude. Ele é o m o v im e n to e o repouso. N ós p o d e m o s c o m ­
p r e e n d e r assim tu d o o que ele é p o r nós: o C r ia d o r qu e se
dá a n ós em Jesus C risto e nos u n e a ele pelo Espírito
Santo; é a o b ra de sua livre graça, a superabundância de
sua p le n itu d e. S u p e ra b u n d â n c ia m ise ric o rd io s a e g r a ­
tuita! D eus n ão q u e r p e r m a n e c e r o que ele é em si m e s m o
e p o r si m e sm o ; aquele cuja presen ça p re e n c h e a e t e r n i­
d ad e q u e r ser para nós. Q u e D eus, n a p le n itu d e de sua p a ­
te rn id a d e eternal, p o r p u ra graça, - n ão p o r q u e é seu
“ofício” - q u e ira ta m b é m ser nosso Pai, é u m a v e rd a d e s o ­
bre a qual n ão te m o s n e n h u m a influência. P o rq u e ele é o
Pai eterno, to d a sua o b ra não p o d e deixar de levar sua
m arca. Se ele cria, se ele faz nascer seres que, ao co n trá rio
de seu Filho, são d istintos dele, se ele aceita existir p a ra
D eus O Pai - 57

eles, isso n ão p o d e significar o u tra coisa que: ele q u e r nos


fazer p a rtic ip a r de sua vida, “a fim de que nos to rn e m o s
p articip an tes da natu reza divina” (2Pe 1.4). Ao c h a m a r ­
m o s D eus de no sso Pai, nós não d izem os o u tr a coisa. A
nós é p e rm itid o dar-lhe o n o m e que ele se d á a si m e sm o
em seu Filho. Em si m esm o, o h o m e m não é u m filho,
m as u m a cria tu ra de Deus, fa c tu s et non genitus! Essa c r i­
atura, o h o m e m , está sob to do s os aspectos em revolta
a b e rta co n tra ele, u m sem -D eus e, c o n tu d o , D eus o
ch am a de seu filho. Se p o d em o s, nós m e sm o s, n os c h a ­
m a r de seus filhos, é u n ic am en te p o r causa do ato de sua
livre graça, p o r causa de seu aviltam ento e de sua m is e r i­
córdia, apesar de nós, p o r que ele é o Pai e nos d á o p o d e r
de p a rtic ip a r de sua vida. Nós som os seus filhos em seu
Filho e pelo Espírito Santo e, p o rtan to , não p o rq u e haja
u m a relação direta entre D eus e nós, m as p o r q u e D eus
n os faz participar, a p a rtir de seu p ró p rio m o v im en to , de
sua n atureza, de sua vida e de seu ser. É assim q ue o b o m
g rad o e a vo n ta d e de Deus, o p ró p rio m istério d a sua es­
sência divina, o m istério da sua relação c o m seu Filho,
c o n têm , de fato, a chave da sua relação conosco; e que
nele, seu Filho, p o d e m o s nos c h a m a r seus filhos pelo E s­
p írito Santo, q u er dizer, pelo m e sm o vínculo de caridade
que u n e o Pai e o Filho. É nessa terceira m a n e ira de ser de
Deus, o Espírito Santo, que se acha co n tid a n ossa vocação
seg u n d o a m e sm a e eternal decisão do Pai. O qu e D eus é e
faz em seu Filho, co ncern e d iretam e n te a você, vale p ara
você e lhe beneficia. O que é verdadeiro n a etern id ad e, no
p ró p rio Deus, to rn a-se verdadeiro aqui e agora n o tem po.
D e que se trata? N em mais n e m m e n o s q ue de u m a repeti­
ção d a vida divina, repetição que nós não p o d e m o s n e m
provocar, n e m suprim ir, que o p ró p rio D eu s suscita no
m u n d o que ele criou, vale dizer, fora dele. G lória a D eus
nos lugares altíssimos! É isso que estam o s d iz en d o
58 - Iisboço de um a D ogm ática

q u a n d o c h a m a m o s D eus de nosso Pai. M as p o r q u e ele


não é o Pai som ente, m as ta m b é m o Filho - vale dizer,
D eus c o n o sco - , d ev em os acrescentar ta m b é m : “p az s o ­
bre a te rra e n tre os h o m e n s que ele q u e r b e m ”.
O Deus Todo-Poderoso

O que distingue a potência de Deus da fraq ueza, o que a


eleva acima de todos os outros poderes e o que
a opõe vitoriosamente à “força em si”,
é que ela é a potência do direito
decorrente do a m or que ele f e z brilhar
em Jesus Cristo. E m conseqüência, a potência
de D eus contém, qualifica e delimita todo o dom ínio do
possível e do m ina absolutamente o conjunto do real.

Pelo adjetivo “T o d o -p o d ero so ”, o S ím b o lo 10 e n u n c ia


u m a q u alid ad e de Deus, u m a perfeição daq uele que ele
d e n o m in a D eus, o Pai. É a ún ica que ele m e n cio n a. Mais
tarde, q u a n d o se te n to u falar de D eus de u m a m a n e ira
sistem ática e descrever o seu ser h ouve m e n o s concisão.
Falou-se de sua asseidade (isto é, de seu ser e n q u a n to d e ­
p e n d e n te de n a d a além de si m esm o), de sua in fin itu d e
no te m p o e no espaço, de sua etern id ade. A crescentou-se,
em seguida, sua santid ad e e sua justiça, sua m ise ric ó rd ia
e sua paciência. É preciso p restar m u ita atenção q u a n d o
se aplicam assim a D eus os conceitos h u m a n o s: eles não
p o d e m ser justificáveis, exceto a título indicativo, sem a

10. Vide nota n°. 1.


60 - Esboço de um a D ogm ática

p re te n sã o de c o m p re e n d e r o ser do p ró p rio D eus. P o rq u e


D eus é inco m preensível. N ão se trata, p o r con seg u in te, de
definir, p o r exem plo, sua san tid ad e ou sua b o n d a d e a p a r ­
tir das idéias que te m o s de santid ad e ou de b o n d a d e ; es­
ses dois atrib u to s não p o d e m ser d efin id o s a n ão ser a
p a r tir do p ró p rio D eus, d aqu ilo que ele é. Ele é o Senhor,
ele é a verdade. É in d ire ta e s e c u n d a ria m e n te q ue sua p a ­
lavra p o d e ser re to m a d a p o r lábios h u m a n o s. N o lug ar e
na posição de to d a s as qualificações que p o d e m ser u tili­
zadas p a ra descrever a n atu re za de D eus, o S ím b olo dos
A póstolos n ão usa m ais que u m a ú n ic a palavra: o adjetivo
T o d o -p o d e ro s o , s erv in d o co m o qualificativo p a ra o s u b s ­
tantivo “Pai”. Essas duas palavras dev em ser in te rp re ta d a s
u m a pela outra: o Pai é o T o d o -P o d ero so , o T o d o -P o d e -
roso é o Pai.

D eu s é T o d o -p o d ero so . Isso significa, a princípio:


ele é potência. P otên cia q u er dizer poder, recu rso, v i r t u a ­
lidade e m relação a u m a d a d a realidade. T o d a realid ad e
dada, d e te r m in a d a e subsistente p re s s u p õ e u m p o d e r
fu n d ad o r. A respeito de D eus nos é dito que ele te m esse
p o d e r de criar, de d eterm in a r, de m a n te r; m ais, qu e ele
te m o n ip o tê n c ia , isto é, que ele te m tudo e m sua m ã o e
constitu i a m e d id a do c o n ju n to do real e do possível. N ão
existe realid ad e da qual ele não seja ao m e sm o te m p o a
p ossibilidade. N a d a de possibilidade, n a d a de p o d e r s u s ­
cetível de lim ita r o u de im p e d ir sua ação. Ele p o d e tu d o o
que quer. P od er-se-ia, então, ta m b é m descrev er a p o t ê n ­
cia de D eus c o m o a expressão de sua liberd ade. D eu s é
a b s o lu ta m e n te livre. Isso im plica a etern id ad e, a u b iq ü i­
d a d e e a infinitu de. Ele te m a p o tê n cia sobre to d a a cadeia
de possíveis c o n te ú d o s no te m p o e no espaço e dos quais
ele é o f u n d a m e n to e a m ed id a. Ele é sem limites. Tudo
isso a filosofia p ressente co rretam en te, m as nós estam os
a in d a m u ito longe da realidade que im plica esse conceito
O Deus T od o-P o dcro so - 61

de o n ip o tên cia divina. Existem m u ito s fe n ô m e n o s aos


quais facilm ente se p restam os atribu tos d a p o tê n c ia ou
da o n ip o tên cia divina e que não tê m n e n h u m a ligação
com a o n ip o tên cia de Deus. C o n serv arem o s, então, as d e ­
finições gerais.
N ossa tese inicial indica três graus: a p o tê n c ia de
D eus se distin gue da fraqueza, ela ultrapassa to d o s os o u ­
tros p o d eres e ela se opõe, v itorio sam en te, à “força e m si”.

A po tê n cia de D eus se distingue de todas as fo r m a s


de fra qu eza . A fraqueza pode, com efeito, d is p o r de u m a
certa p o tê n cia e o im possível de u m a certa m a rg e m de
possibilidade. Mas D eus não é de n e n h u m a m a n e ir a fraco
nesse sentido, sua potên cia é real, efetiva. Ele n ão p o d e
ser aquele que n a d a p o d e ria n em aquele que n ão p o d e r ia
tudo, m as ele se distingue de todas as ou tras p otências
p o rq u e ele pode tu d o o que ele quer. Falar de im p o tê n c ia
de D eus é m u ito sim plesm ente ter esq uecid o qu e se fala
dele. R ep resentar-se D eus com o u m p e rs o n a g e m lo n g ín ­
quo, fora do m u n d o , é com certeza ter m u d a d o de objeto,
é im a g in a r u m ser qualquer, fraco e im p otente. D eu s não
te m n a d a de u m a som bra, de u m fan tasm a inofensivo; ele
é o co n trá rio da im potência.

Essa p otência de D eus ultrapassa todos os outros p o ­


deres. Esses o utros poderes ou potências exercem sobre
nós u m a pressão a p are n tem e n te m u ito m ais forte do que
o p ró p rio Deus. Eles parecem ser as ún icas coisas reais.
C o n tu d o , D eus não faz parte das potên cias deste m u n d o ,
ele n e m m e sm o é a mais alta, m as ele as u ltrapassa in fin i­
tam en te, ele é o Rei dos reis, o S enho r dos senh ores, cujo
p o d e r n a d a lim ita n e m condiciona. D e sorte que todas es­
sas ou tras potências, que com o tais existem certam en te,
e n c o n tra m -s e p o r definição sob seus pés. Elas n ão s a b e ­
riam lhe fazer concorrência.
62 - Esboço de um a D ogm ática

E eis o ú ltim o p onto, que é o m ais im p o r ta n te p o r ­


que o m ais suscetível de d a r lugar a to d a so rte de c o n f u ­
sões: D eus não é a “força em si”. É m u ito s e d u to r im a g in a r
D eu s c o m o a so m a de tod as as po tê n cias re u n id a s, de
fazê-lo, n o se n tid o n e u tro e abstrato, u m s in ô n im o d o ser,
da lib erdade, do poder, da força em si. Seria D eus, d e n tro
dessa perspectiva, a “c o n d en saç ão ” daqu ilo que os latinos
c h a m a v a m p o te n tia ? C o n s ta ta m o s que se te m falado
dessa m a n e ir a co m m u ita freqüência e que é e x tr e m a ­
m e n te te n ta d o r p a ra o espírito co n sid e ra r a p o tê n c ia em
si c o m o u m d o m ín io sagrado, c o m o a v e rd a d e ú ltim a e a
chave do m isté rio do ser. Q u e m não se le m b ra de H itler
falando de D eus e c h a m a n d o -o de “T o d o -P o d e ro s o ”?
O ra, o “T o d o -P o d e ro s o ” não é D eus e n ão é o caso de se
p a r tir da idéia de o n ip o tê n c ia p a ra se d efin ir D eus. Falar
de “T o d o -P o d e ro s o ” é expor-se ao terrível p erig o de p a s ­
sar ao largo de Deus. Invo car ao “T o d o -P o d e ro s o ” o u “a
p o tê n c ia em si” é ab rir o abism o, liberar o caos, c h a m a r o
diabo. N ão h á p recisa m en te m e lh o r d efinição d o d iabo
do q ue a que consiste em im a g in a r u m p o d e r e m si, n e u ­
tro, in d e p e n d e n te , soberano. É isso que a Bíblia c h a m a de
caos, o to h u w a b o h u 11 qu e D eus a b a n d o n o u e rejeitou
q u a n d o c rio u os céus e a terra. A antítese de D eus, o p e ­
rigo q ue n ão cessa de am eaçar sua criação, é p re c isa m e n te
esse ataque, essa ofensiva im possível do livre-arbítrio, da
p o tê n c ia em si, b u s c a n d o se im p o r e d o m i n a r c o m o tal.
D esd e que a p o tê n c ia em si reivin dique a h o n r a e o re s ­
peito, d esd e qu e ela e n te n d a ser a u to rid a d e e d ita r o d i ­
reito, estam o s em face da “revolução do n iilism o ”. A

11. N. d o T.: Em h e b raico no original. Tohuw abohu é a e x p ressão q u e se e n ­


c o n tra no s e g u n d o versículo do Gênesis e refere-se à situ aç ão d a terra
no princípio d a su a criação, p o d e n d o ser traduzida po r vazia e vaga,
c o n fo rm e a Bíblia d e Jerusalém, ou m e s m o po r o de se rto e o vazio
n u m a tra d u ç ã o mais literal.
O Deus T odo-P oderoso - 63

p o tê n cia em si não é o u tra coisa senão o n a d a e q u a n d o


ela se desencad eia e b usca se im p o r é a revolução e n ão a
o rd e m que ela traz. A p otência em si é o mal, o fim de
tudo. Ela te m co n tra si a po tência de D eus, a ú n ic a que é
verdadeira. A p o tê n cia de D eus n ão so m en te a ultrapassa,
m as ain d a é contra ela. D eus diz não à revolução d o n ii­
lismo. M as é u m não vitorioso, ou seja, a in terv en ção de
D eus p ro v o ca o m e sm o fen ô m en o que o sol d issip an d o a
b ru m a : a p o tê n cia em si p erde to d o o seu p o d e r e to d a
sua realidade. D esde o instante em que ela é d e s m a s c a ­
ra d a em to d o o seu horror, ela é p riv ad a do respeito que
se lhe m anifestou. Os dem ô n io s fogem. D eus e a p o tê n c ia
em si se excluem m u tu am en te. D eus significa o possível, a
po tê n cia em si, o impossível.
M as em que m e d id a D eus se opõe à força em si, em
que m e d id a ultrapassa tod os os o u tros p o d e re s e em que
m e d id a se distingue de todas as form as d a im p o tên cia? A
Sagrada E scritura n u n c a fala da p o tê n cia de D eus, de suas
m anifestações e de suas vitórias, se p a ra n d o -a do direito.
A p o tê n cia de D eus é, de u m p o n to a outro, u m a p o tê n cia
de direito. Ela é, não potentia, m as potestas, vale dizer, p o ­
tência legítim a, fu n d a d a no direito.
M as o que é o direito? R eto m an d o o q ue já foi dito,
p o d e m o s afirm ar que a p o tê n cia de D eus é a do direito
p o rq u e ela é a o n ip o tên cia de Deus, o Pai. V am os le m b ra r
aqui c o m o falam os do vínculo que u n e o Pai e o Filho,
dessa v ida de D eus que, longe de ser solidão é, ao c o n t r á ­
rio, m o v im en to , m u d a n ça, c o m u n h ã o íntim a. P ortan to , a
o n ip o tên cia de D eus é, co n fo rm e o direito, a p o tê n c ia d a ­
quele que, em si m esm o, é o amor. Tudo o que am eaça o
a m o r - a solidão e a afirm ação de si m e sm o - constitui
u m a injustiça e p e rm a n e c e sem p o d e r real. D eus o re ­
nega. O que ele aprova é a ordem co n fo rm e a que rein a
nele m e sm o entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A p o ­
64 - Esboço de um a D ogm ática

tência de D eus é u m a p o tê n cia de ordem. A p o tê n c ia de


D eus é boa, santa, justa, m iserico rd io sa, paciente. P or
fim, o qu e d is tin g u e a p o tê n c ia de D eus d a im p o tê n c ia é
que aq uela é a do D eu s trinitário.

Essa p o tê n c ia é a do a m o r que foi ilu m in a d o e re v e ­


lado livrem ente e m Jesus Cristo. É, pois, a in d a a obra de
D eus q ue nos vai servir de critério do possível e do real. O
c o n te ú d o de to d o poder, de to d a v irtu alid ad e, de to d a li­
b erd ad e , coin cide ex atam e n te co m o que D eus é e faz. A
p o tê n c ia de D eu s não é u m a p o tê n c ia n eu tra , a n ô n im a ;
p e d ir a ele, p o r exem plo, que faça com que dois e dois se­
ja m cinco é infantil e sem prop ósito, p o rq u e atrás de
questões desse gênero se escon de p recisa m en te u m a idéia
a bstrata do “p o d e r ”. E u m a p o tê n cia suscetível de m e n tir
cessaria de ser real. Ela não seria m ais que im p o tê n c ia ,
p o tê n c ia de negação, p re te n d e n d o d is p o r de tu d o s e ­
g u n d o a sua vontade. Ela não te m n a d a a ver c o m D eus,
vale dizer, c o m a p o tê n c ia real. A p o tê n c ia d e D eu s é u m a
p o tê n c ia a u tê n tica ; com o tal, ela está acim a de tudo. “Eu
sou o D eu s T o d o -p o d e ro so , a n d a em m i n h a p re s e n ç a e sê
íntegro” (G n 17.1). É esse “Eu” que define o D eu s T odo-
p o d e ro s o e, p o rta n to , a p ró p ria o n ipotência. “Todo p o d e r
m e foi d a d o no céu e sobre a te rra” (M t 28.18). É a ele, Je­
sus Cristo, que to d o o p o d e r foi dado. É p o r ta n to n a obra
de seu Filho que a o n ip o tê n c ia de D eu s se to r n a visível e
viva, e n q u a n to p o tê n c ia salutar e boa. E é desse m o d o que
D eu s é o co n teú d o , a definição e a lim itação de to d o s os
possíveis; tra n s c e n d e n te no sentid o em que ele d o m in a
a b s o lu ta m e n te o co n ju n to do real; im a n e n te n o sentido
em que ele h a b ita to d a fo rm a do real - ele, o Sujeito
e te rn o que p r o n u n c ia sua Palavra e realiza a sua o b ra s e ­
g u n d o seu desejo de a m o r e p a ra o no sso bem .
O Deus Criador

Em se fa z e n d o hom em , Deus m anifestou e atestou que ele


não quer existir unicamente para si nem fic a r
solitário. Para o m u ndo distinto dele, ele
concede propriam ente a realidade, a
liberdade e um a maneira de ser.
Sua Palavra é a força que an im a todo
ente criado. Deus suscita, m a n té m e dirige
toda criatura para que ela manifeste sua glória,
da qual o h o m em é chamado a ser a testem unha ativa
pela sua posição no centro da criação.

Creio em Deus, o Pai T o d o -p o d ero so , criador do


céu e da terra. Q u a n d o nós a b o rd a m o s esse p o n to de
C red o cristão, nós não saberíam os suficien tem en te nos
d ar co nta de que nos e n co n tram o s aqui, igualm ente, face
ao mistério da fé, que im plica na in terv en ção da revelação
divina c o m o ún ic a garantia de nossos c o n h ec im e n to s. O
p rim e iro artigo do Símbolo, não é u m a espécie de átrio
dos gentios, u m tipo de área de e n te n d im e n to p relim inar,
o n d e cristãos, judeus e pagãos, crentes e n ão -cren tes, p u ­
d essem se e n c o n tra r e reco nh ecer co m u m a certa u n a n i ­
m id a d e a existência de u m D eus criador. A significação
dessa ú ltim a expressão, como, p o r o u tro lado, aquela da
66 - Esboço de um a D ogm ática

p ró p ria criação, p e rm a n e c e tão m isterio sa p a r a nós, h o ­


m ens, q u a n to to das as o utras afirm ações d o C redo. N ão
nos é m u ito m ais fácil crer n o D eus c ria d o r do q u e crer
n a co n ce p ção de Jesus C risto pelo E spírito S anto e no
n a s c im e n to virginal. É falso p re te n d e r que a d eclaração
relativa a D eus cria d o r nos seria p o r assim dizer, d ir e t a ­
m e n te acessível e qu e apenas o c o n te ú d o do s e g u n d o a r ­
tigo necessitaria de u m a revelação especial. E n c o n tr a m o -
nos, ao co n trá rio , n os dois casos, colocad os d ia n te do
m istério de D eus e sua obra, e h á ap en a s u m a ú n ic a e
m e s m a ab o rd ag e m .
C o m efeito, o Sím bolo não fala do m u n d o ou, em
to d o o caso, ele não o cita senão de p assagem q u a n d o
m e n c io n a o céu e a terra. N ão está dito: “Eu creio no
m u n d o c ria d o ”, n e m m esm o: “Eu creio n a o b ra d a c r ia ­
ção”. Está dito: “Eu creio em Deus, o criador”. E tu d o o que
está a firm a d o a respeito d a criação, d e p e n d e desse ú n ic o
e m e sm o sujeito divino. É sem p re a m e s m a regra: D eu s é
o sujeito agente, to d o o resto é predicado. A qui, co m o
alhures, to d a a ênfase se apóia no c o n h e c im e n to de D eus
cuja o b ra n ão p o d e ser c o m p re e n d id a senão a po sterio r, a
p a r tir do sujeito criador.
O C re d o fala do D eus criador e, e m c o n seq ü ên c ia,
fala de sua obra, a criação do céu e d a terra. P o r p o u c o
que nós sejam os sérios, v em o s claram en te que n ã o se
trata aqui de u m d o m ín io , de alg u m a m a n e ira , acessível à
reflexão ou à intuição h u m a n a . As ciências n atu ra is p o ­
d e m excitar n ossa im ag in aç ão e n ossa sede de sab er ao
nos p r o p o r diversas teorias p a ra a evolução, ao fazer d a n ­
çar d ia n te dos no ssos olhos os m ilh õ es de an os n o d e c o r ­
rer dos quais o u n iv e rso se teria f o rm a d o p o u c o a p o u co ;
m as q u a n d o elas te riam co n seg uido ch eg ar à o rig e m do
m u n d o tal c o m o é? C o n tin u id a d e é b a s ta n te d iferente
deste co m eço absoluto, com o qual os con ceito s de C ria-
O D eus C riador - 67

d o r e de criação se relacionam . C e rta m e n te é u m erro c a ­


pital falar de u m mito da criação. O m ito p o d e, no
m á xim o, co n stitu ir u m paralelo à ciência exata, pois a sua
função ta m b é m consiste em p e n sa r no que é e será s e m ­
pre.

O m ito trata dos pro blem as inevitáveis e e te rn o s c o ­


locados p a ra o h o m e m de todas as épocas pela existência
da vida e da m o rte, do s o n h a r e d o acordar, d o n a s c i­
m e n to e d a m orte, do dia e da noite, do a m a n h e c e r e do
entardecer, etc. Tais são os tem as do mito. O m ito c o n s i­
dera o m u n d o , p o r assim dizer, a p a rtir de seus limites,
m as trata-se do m u n d o já existente. N ão existe m ito da
criação pela simples razão de que a criação co m o tal, p e r ­
m an ece inacessível ao mito. É assim, p o r exem plo, c o m o
m ito b ab ilónico da criação, onde estam os claram en te t r a ­
ta n d o co m u m m ito sobre crescim ento e decad ên cia, que
n ão tem conexão alg um a co m Gênesis 1 e 2. Pode-se, no
m á x im o , afirm ar que o texto de G ênesis c o n se rv o u a l­
guns traços mitológicos. Mas a m a n e ira pela qual a Bíblia
os utiliza é sem paralelo na m itologia. Se tiv erm o s de dar
u m n o m e ao relato bíblico ou classificá-lo d e n tro de u m
gênero literário, po d e-se falar de saga.

E m Gênesis 1 e 2, a Bíblia fala de aco n te c im e n to s


que escap am ao nosso co n h e c im e n to histórico. M as ela
está falando co m base em u m conhecimento e se r e m e ­
te n d o a u m a história. A característica dos relatos bíblicos
da criação é que eles estão estreitam ente ligados à história
de Israel, vale dizer, à história da ação de D eus d e s e n c a d e ­
ada pela sua aliança com o h o m e m . S eg u n d o o A ntigo
T estam ento, essa histó ria com eça já c o m a criação do céu
e d a terra. Os dois relatos da criação são, u m e outro , ex ­
p ressam en te ligados ao te m a de to d o o A n tig o Testa­
m ento: o p rim e iro m o s tra a aliança n a in stitu ição do
68 - Esboço de um a D ogm ática

Shabat; o s e g u n d o a m o s tra co m o continuação d a o b ra de


criação.

É im possível s e p a ra r o c o n h e c im e n to do C r ia d o r e
de sua o b ra d a ação de que o h o m e m é o objeto d a p arte
de D eus. É s o m e n te q u a n d o nos é a p re s e n ta d a a in t e r v e n ­
ção o p e r a d a em n osso favor p o r D eus em Jesus Cristo,
que p o d e m o s c o n h e c e r a pessoa do C r ia d o r e o s en tid o
de sua obra. A criação é a analogia te m p o ra l, d is tin ta de
D eus, do qu e se passa no p ró p rio D eus, vale dizer, do
m istério e m v irtu d e do qual ele é o Pai de seu Filho. O
m u n d o n ão é Filho de D eus, ele n ão é “e n g e n d r a d o ”, m ais
criado. C o n tu d o , a ação de D eus co m o c ria d o r s o m e n te
p o d e ser c o m p re e n d id a , do p o n to de vista da fé cristã,
co m o u m eco, u m reflexo, u m a im ag em p ro v in d a da re la ­
ção in te rn a e p r o fu n d a que existe entre D eus, o Pai e
D eus, o Filho. E é a razão pela qual o S ím bolo dos A p ó s ­
tolos atrib u i a o b ra da criação ao Pai. Isso n ão significa
que ap en a s o Pai seja o criador, m as não deixa de s u b li­
n h a r essa analogia e n tre a criação e a relação viva q ue u n e
o pai e o Filho. O c o n h e c im e n to da criação é o c o n h e c i­
m e n to de D eus e, p o r con seqü ên cia, conhecim ento de fé,
no s en tid o m ais rigoroso e mais exclusivo. Ela n ão é u m a
espécie de a n te c â m a ra on d e a teologia n a tu ra l p u d esse ter
livre curso. C o m o p re te n d e ría m o s re c o n h e c e r a e x istê n ­
cia do Pai se ele não nos tivesse sido revelado de a n te m ã o
em seu Filho? N ós não sab ería m o s ex tra ir a idéia de u m
D eus c ria d o r a p a r tir da existência do m u n d o c o m o tal,
em to d a a sua diversidade. O m u n d o tal c o m o é, c o m t o ­
dos os seus pesares e alegrias, jam ais p o d e r á ser p a ra nós
mais do que u m espelho obscuro, mais que u m a ocasião
de e x p rim ir n osso o tim is m o ou nosso p essim ism o ; ele
p e rm a n e c e in capaz de nos fornecer o m í n im o c o n h e c i­
m e n to do D eus criador. Ao co ntrário, cada vez que o h o ­
m e m quis p a r tir das coisas criadas - o céu estrelado
O Deus C riador - 69

acim a dele, sua p ró p ria im agem no fu n d o de si m e sm o -


para atingir a verdade, ele não conseguiu m ais do que i n ­
v en tar u m ídolo. Se D eus p o d e ser c o n h ec id o para, e m se­
guida, ser reco n h e cid o d en tro da criação que se to rn a
assim u m canto de louvor ã sua glória, é p o rq u e ele não
p o d e ser b u scad o e e n c o n tra d o em o u tro lugar que não
naqu ele o n d e ele está realmente: em Jesus Cristo. Pela e n ­
carnação, D eus to rn o u m anifesto e d ign o de fé o fato de
que ele é o C ria d o r do m u n d o . N ão h á dois tipos de rev e­
lação.

O artigo do C redo que fala do C ria d o r e de sua o bra


q u er afirm ar que D eus não existe p ara ele m esm o , m as
que ele fez surgir u m a realidade distin ta e diferente de si,
o m undo. De onde o sabemos? N ão te m o s já to d o s nos
p e rg u n ta d o se to d o esse universo que nos ro d eia n ão se­
ria mais do que, finalm ente, u m a aparência, u m sonho?
N ão aconteceu a vocês de, p o r vezes, e x p e rim e n ta re m
u m a dú vida absolu tam en te radical - não a p ro p ó s ito de
D eus, o que seria u m a bobagem ! - m as a p ro p ó s ito d a r e ­
alidade da existência de vocês? De se p e r g u n ta r se a vossa
vida inteira não seria u m a ilusão e se o que nós c h a m a ­
m os de real não seria n ad a mais do que “o Véu de
19
M aya”, isto é, irreal? E p en sar que a ú n ic a coisa que nos
resta a fazer é deixar de s o n h a r o mais ráp ido possível a
fim de e n tra r no “n irvan a” de o n d e saímos? A afirm ação
da criação é o op osto dessa atitude de desespero. D e on d e
p o d e m o s saber, com to d a a verdade, q ue u m a tal atitu d e é
absurda, que a vida não é u m sonho, m as u m a realidade,
que eu sou eu m e sm o e que o m u n d o existe? A fé cristã
não con hece senão u m a resposta: ela afirm a co m o se­
g u n d o artigo do Símbolo, que foi do agrado de D eu s tor-

12. N. tio Ecl.: Na filosofia indiana, Véu de Maya designa a própria realidade,
co n sid era d a ilusória.
70 - Hsboço de um a D ogm ática

n ar-se u m h o m e m , que em Jesus C risto n ós lid a m o s com


o p ró p r io D eus, o C ria d o r feito criatura, c o m D eu s que
viveu co m o to d o s nós n a m o ld u r a de n o sso te m p o e de
no sso espaço, entre nós, em tal lugar, em u m a tal época.
Se isso é justo, se é b e m v erd ad e que D eu s estava em
C risto e se esse ax io m a do qual tu d o d e p e n d e n ão é u m
logro, en tão existe u m lugar o n d e p o d e m o s e n c o n tr a r e
c o n h e c e r a criatura. C o m efeito, se é exato que o C r ia d o r
se to r n o u ele m e sm o criatura, se D eus se fez h o m e m - e o
c o n h e c im e n to cristão com eça co m essa a firm ação - Jesus
C risto nos en tre g a o segredo do C r ia d o r e de sua obra, o
segredo d a n atu re za, e esse é o co n te ú d o do p r im e ir o a r ­
tigo. A p a r tir do fato de que D eus se fez h o m e m , n ão é
m ais possível colocar em dú vida a existência d a criatura.
Q u a n d o o lh a m o s p a ra Jesus C risto e c o m p re e n d e m o s que
ele viveu n o ssa vida, aqui, essa existência nos é anun ciada
c o m o P alavra de Deus; essa Palavra c o n c e rn e ao C riad or,
ela c o n c e rn e à sua o b ra e à p arte m ais s u r p r e e n d e n te
dessa obra: o h o m e m .

S eg u n d o a fé cristã, o m istério da criação n ão reside,


em p rim e iro lugar, co m o o p e n s a m aqueles que os salm os
c h a m a m os “in sensato s” (SI 14.1), n a q u estão relativa à
existência de u m a causa p rim e ira que se c h a m a r ia D eus,
pois, na in te rp re ta ç ã o cristã, não p o d e r ía m o s p r e s s u p o r a
existência do m u n d o p a ra se p e rg u n ta r e m s eg u id a se p o ­
d e ria existir ta m b é m u m Deus. M as n osso ú n ic o p o n to de
p a r tid a é D eus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E é d a q u i
qu e surge, e m seguida, o g ran d e p ro b le m a cristão! Seria
v erd a d e q ue D eus não deseja ser u m D eu s p a ra si, m as
q u e c h a m a o m u n d o p a ra u m a existência in d e p e n d e n te ,
de tal so rte qu e nós existimos co m o seres d istin to s ao lado
e fora dele? A q u i está o enigm a. Aquele qu e busca, m e s m o
qu e u m p o uco, c o n h e c e r D eus, c o m p re e n d ê -lo e c o n t e m ­
plá-lo tal c o m o ele se revela a nós “nos lugares altíssim o s”,
O D eus C riador - 71

no seu m istério, n a sua onipotência, na sua trin d a d e , não


p o d e deixar de se su rp re e n d e r ao co n statar que nós exis­
tim os e que o m u n d o existe fora e ao lado dele. D eus não
tem n e n h u m a necessidade de nós, ele não te m n e n h u m a
necessidade do universo, do céu e d a terra. Ele m e s m o é
sua p ró p ria riqueza. Ele possui a p le n itu d e da vida, ele
d e té m to d a a glória, to d a beleza, to d a b o n d a d e , to d a s a n ­
tidade. Ele é auto-suficiente. Ele vive da sua p r ó p r ia b e a ti­
tude. P or que, então, o m u n d o ? Tudo é p le n a m e n te nele, o
D eus vivo. C o m o po d e ele ter algum a coisa ao lado dele,
alg u m a coisa da qual não necessita? Tal é o e n ig m a d a c r i­
ação. E eis a resposta da d o u trin a d a criação: D eus, que
não tem n e n h u m a necessidade de nós, criou o céu e a
terra, m e crio u a m im m esm o, “sem que eu fosse digno,
pela sua p u r a b o n d a d e e m isericórdia paternal. Eu devo,
p o r to d o s esses benefícios, bend izê-lo e re n d e r-lh e g r a ­
ças, servi-lo e obedecê-lo. É isso que eu creio f ir m e ­
m e n te ”. Vocês c o m p re en d em , através dessas palavras de
Lutero, o a tu rd im e n to do crente em face d a criação, este
m a ra v ilh a m e n to diante da b o n d a d e de D eus, q ue não
q u e r ficar solitário, m as deseja que ao lado dele, u m a o u ­
tra realidad e exista?

A criação é u m a graça: d iante de u m a tal afirm ação


se q u ereria p o d e r ficar imóvel no m edo, n o tr e m o r e no
co n h ec im e n to . D eus confere a esse que n ão é ele o p riv i­
légio de existir e lhe concede u m a realidade p ró p ria, u m a
m a n e ira de ser e u m a liberdade. A existência d a criatura,
ao lado de Deus, tal é o grande enigm a, tal é o m ilagre i n ­
com preensível, a questão fu n d a m e n ta l à qual n o s é p e ­
did o e p e r m itid o responder, tal é o verdadeiro p ro b lem a
existencial, radicalm en te distinto do en g an o so e seguro
problem a: existe u m Deus? Q ue exista u m universo, eis o
inaudito, eis o milagre d a graça de Deus. N ão é p a ra nós
u m p e rp é tu o m otivo de atu rd im e n to o ser e o ver os se­
72 - Esboço de unia D ogm ática

res? Eu posso existir, o m u n d o p o d e existir, ain d a q u e seja­


m os, u m e outro, distin to s de D eus, a in d a que n o s n ão
sejam os D eus, n e m um , n e m o outro. O D eu s altíssim o, o
D eus triú n o , o D eus T o d o -p o d ero so , o Pai, n ão é u m t i ­
rano, ele concede o ser ao que não é ele, ele o deixa ser;
mais, ele lhe d á o ser. N ós existim os, o céu e a te rra exis­
te m na sua p re te n sa in finitud e, p o r q u e D eus c o n ce d e
existência. Tal é a g ra n d e afirm ação desse p r im e ir o artigo.

M as d izer que D eus co ncede o ser ao m u n d o , lhe d á


a sua realidade, sua m a n e ira de ser e sua liberdade, s ig n i­
fica p recisa m en te, c o n tra as afirm ações reiterad as do
p an teísm o , que o m u n d o não é Deus. As coisas são tais
que nós n ão so m o s D eus, m as que estam o s p e r p e t u a ­
m e n te exp ostos à te n taçã o p ern ic io sa de “q u e re r ser com o
D e u s ”. D o m e sm o m od o, n ão é o caso de seg uir as e s p e ­
culações da gn ose antiga ou nova, a firm a n d o q ue o q ue a
Bíblia d e n o m in a o Filho de Deus, n a d a m ais é, e m d e f in i­
tivo, do q ue o m u n d o criado, ou que o universo é, p o r es­
sência, gerado p o r Deus. N ão se tra ta ain d a de c o n s id e ra r
o m u n d o co m o u m a em anação de D eus, com p aráv el a u m
rio qu e teria sua fonte nele. Nesse caso, n ão se p o d e ria
mais falar de criação, m as so m en te de u m m o v im e n to v i­
tal, saído de D eus e e x p rim in d o seu ser. C ria ção significa
o u tra coisa, u m a realidade diferente de Deus. E n fim , o
m u n d o n ão deve ser c o m p re e n d id o c o m o u m a sim ples
m anifestação de D eus, o qual n ão seria, fin alm en te, m ais
do que u m a idéia. D eus, que é o ú n ic o real, o ú n ic o e s s e n ­
cial e o ú n ic o livre, é u m a coisa, o céu e a terra, o h o m e m
e o u n iv e rso sen d o outra, que não deve ser c o n fu n d id a
co m D eu s, m as que não existe senão p o r D eus. Essa reali­
d ad e diferen te não é, pois, au tô n o m a: n ão existe de u m
lado, o m u n d o e de outro, D eus, c o m o duas realidades i n ­
d e p e n d e n te s, D eu s não sen d o p a ra nós m ais do q ue u m a
d iv in d a d e d istan te e ausente, de sorte qu e h av eria dois
O Deus C riador - 73

reinos, dois m u n d o s separados: de u m lado, o m u n d o ,


co m sua p ró p ria e s tru tu ra e leis e, de outro, e m alg u m lu ­
gar mais longe, Deus, seu reino e seu u n iv erso p ró prios,
se p re s ta n d o às nossas mais ricas descrições, nos ofere­
cen d o m e sm o u m a via de acesso n a qual o h o m e m p o d e ­
ria ser co n sid era d o “em m a rc h a” em direção aos cum es.
O m u n d o assim co m p re e n d id o n ão seria a criação de
Deus, n ão lhe p e rte n c e ria in teiram en te n e m estaria f u n ­
d a m e n ta d o nele.

Não; o que D eus confere ao m u n d o é a realid ad e de


criatura, a n atureza da criatura, e a lib erd ad e de criatura,
u m a existência a p ro p ria d a à criação, o m u n d o . O m u n d o
n ão é u m a aparência, o m u n d o existe, m as existe e n ­
q u a n to criatura. É-lhe p e rm itid o existir ao lado de Deus.
A realidade que D eus lhe confere, rep o u sa sobre u m a cre-
atio ex-nihilo, sobre u m a criação a p a rtir do n ad a. D eus
faz surgir u m a realidade diferente dele aqui o n d e n ão h a ­
via nada, n e n h u m a m atéria p rim eira. Se existe u m u n i ­
verso, se nós m e sm o s existimos pela ú n ic a o p eraç ão da
graça divina, não p o d e m o s nos esquecer u m só instan te
que n a o rig em de nossa existência e da existência do u n i ­
verso, h á não so m en te u m a ação, m as u m a criação de
Deus. T udo o que existe fora de D eus p e rm a n e c e c o n s ta n ­
te m e n te su b traíd o p o r ele ao nada. A m a n e ir a de ser que
D eus co ncede à criatu ra significa ser d e n tro do te m p o e
d e n tro do espaço; o fato de p ossu ir u m co m eço e u m fim,
de vir a ser p a ra cessar de ser. Para to d a criatura, h á u m
te m p o em que ela não era aind a e u m te m p o em que ela
não será mais. Há, p o rtan to , u m a p lu ralid ad e de seres. H á
o p assado e o presente, o im ediato e o distante. D e n tro da
passagem de vim p a ra outro, o m u n d o e n c o n tra suas duas
dim ensões: o te m p o e o espaço. D eus é eterno. Isso não
q u er dizer que não h á nele o tem po, m as que trata-se de
u m te m p o diferente do nosso que, fin alm en te, n ão é
74 - Esboço de um a D ogm ática

n u n c a u m v erd ad e iro p resen te e para o qual o espaço sig­


nifica sem p re separação. Para D eus, o te m p o e o espaço
são livres de lim ites sem os quais p a ra nós eles p e r m a n e ­
cem im pensáveis. D eus é o Senhor do te m p o e do espaço.
A p a r ti r do fato que ele é a o rigem dessas duas fo rm a s da
realidade, ele escapa à lim itação e à im perfeição in s e p a r á ­
veis d o estad o de criatura.
E nfim , a lib erd ad e que D eus dá à c ria tu ra significa:
existe u m a con tin gência, u m a po ssibilidad e de ação da
criatu ra, vale dizer, u m a liberdade de decisão, u m certo
p o d e r de ser. Mas essa liberdade não p o d e ser m ais do
q u e aqu ela p ró p ria ao estado de c ria tu ra q ue q u e r q u e nós
n ão te n h a m o s n o ssa realidade em nós m e s m o s e q u e nós
sejam os ligados fo rm a lm e n te às categorias d o te m p o e do
espaço. Visto qu e essa lib erd ad e é real, ela é lim itad a, de
u m a p a r te pelas leis que regem o u n iv e rso e, de o u tr a
parte, pela s o b e ra n ia de Deus. Pois nós n ão s o m o s v e r d a ­
d e ira m e n te livres a n ão ser p o rq u e D eus, o C riad or, é, ele
m esm o , in fin ita m e n te livre. Toda lib erd ad e h u m a n a n ão é
m ais q ue u m reflexo im perfeito da lib erd ad e divina.
A c ria tu ra está a m e açad a pela p o ssib ilid ad e - ex clu ­
ída p a ra D eu s e p a r a ele so m en te - do na da e d a ruína.
Ela n ão p o d e p r e te n d e r subsistir em sua m a n e ir a de ser a
m e n o s q u e D eu s o queira. Caso c o n trá rio h av erá p o r t o ­
d os os lados a irru p ç ã o do caos. P or si m e sm a , a c ria tu ra
não saberia n e m sub sistir n e m escapar ao caos. E a lib e r ­
d a d e d e decisão tal qual D eus a confere ao h o m e m , n ão é
a de e sco lh e r en tre o b e m e o mal. O h o m e m n ã o é, no
p e n s a m e n to de D eus, o asno d e B uridan. C o m efeito, o
m al n ão e n tra n o q u a d ro das possibilid ades p ró p ria s às
c ria tu ras de D eus. A lib erdade de decisão d a d a ao h o ­
m e m , consiste e m lib erd ad e p ara escolher o ú n ic o Ser a
q u e m a c ria tu ra de D eus p o d e escolher, em lo u v a r A quele
q u e a criou, em c u m p r ir a sua v o n ta d e - isso significa: li-
O D eus C riador - 75

b e rd a d e de obedecer. Mas trata-se de decisão e m liber­


dade. E é aqui que aparece o perigo. Se aco ntece de a
cria tu ra fazer u m o u tro uso de sua lib erd ad e que n ão o
ún ico uso possível, se ela p re te n d e r sair de seu papel e de
sua realidade, vale dizer “p eca r”, se sep arar de D eus e de si
m esm a, ela n ão p o d e ria mais do que cair, n a seq ü ên cia de
sua d eso b ed iê n cia - sua q u ed a send o co in cid en te co m a
im po ssibilidade m e sm a dessa desobediên cia, co m essa
eventu alidade para sem pre excluída da p ró p ria criação! A
p a rtir de então, ela não p o d e mais estar d e n tro do espaço
e do te m p o a não ser p ara sua desgraça, sua existência no
q u a d ro do passado, do presente e do fu tu ro sign ificand o a
infelicidade. É a q u ed a d e n tro do nada. P o d eria ser dife­
rente? Se a b o rd o esse tem a, é u n ic a m e n te p a ra m o s tra r
que esse vasto d o m ín io que nós c h a m a m o s o m al, a
m o rte, o pecado, o diabo e o inferno, não é criação de
Deus, mas, ao contrário, é o que está excluído pela p r ó ­
pria criação, aquilo p ara o que D eus diz não. E se existe
u m a realidade do mal, não p o d e ser senão esta realidad e
ao m e sm o te m p o excluída e negada, à q ual D eus vo ltou as
costas e que tran sp ô s ao criar o m u n d o e ao criá-lo b o m .
“E D eus viu tu d o o que havia criado, e eis que isso era
m u ito b o m ”. O mal não foi criado p o r D eus e n ão p o ssu i a
q u alid ad e de criatura; se se desejar a q u a lq u e r preço d e ­
fini-lo ev itan d o u m a fórm ula p u ra m e n te negativa, deverá
ser dito que ele n ad a mais é que a p o tê n c ia do ser que
surge sob o efeito do “não” pelo q ual D eus b a r r a a ro ta ao
nada!

N ão nos é p e rm itid o b uscar trevas o n d e tu d o é luz.


D eus é o Pai da luz. U m a vez que nos p o m o s a falar de u m
Deus absconditus caím os n a idolatria. É D eus, o C riado r,
que co n ce d e à criatu ra seu ser. E tu d o o que é, tu d o o que
te m realidade, não existe fora da graça de Deus.
76 - Esboço de um a D ogm ática

A P alavra de D eus é a força qu e p e rm ite a to d a s as


criatu ras serem o que elas são. D eus as criou , as g o v ern a e
as m a n tê m p a ra serv ir de teatro à sua glória. A esse r e s ­
peito, eu go staria ain d a de precisar alguns p o n to s c o n c e r ­
nentes ao fu n d a m e n t o e o f i m da criação, os quais são, em
definitivo, u m a só e a m e sm a coisa.

O fu n d a m e n t o da criação é a graça de D eus. Q u e


exista u m a graça de D eus é o que se im p õ e a n ó s de u m a
m a n e ira viva e efetiva em sua Palavra. N o m o m e n to em
que D eu s fala e falou d e n tro da h istó ria de Israel, e m Je­
sus C risto e d e n tro d a sua Igreja, no m o m e n to e m q u e diz
sua Palavra hoje e q ue a dirá a m a n h ã , a criação foi, é, e
será. O q u e existe n ão existe p o r si m esm o , m as pela P a la ­
vra de D eu s, p o r causa dessa Palavra, d e n tro d o se n tid o e
em c o n fo rm id a d e à in ten ção dessa Palavra. D eus s u p o rta
todas as coisas, ta pan ta , pela sua Palavra (H b 1.2; cf. Jo
1.1 ss e Cl 1). Tudo foi criado p o r ele, p o r causa dele. A
P alavra de D eus, tal co m o está atestada n a S agrada E s c ri­
tura, a h istó ria de Israel, de Jesus C risto e de sua Igreja, eis
o que está p rim e iro n a o rd e m das realidades; o m u n d o
com to d a s suas luzes e som bras, seus ab ism o s e seus
cum es, v em em segundo. É pela Palavra que o m u n d o é.
Q u e reviravolta de to d o s os nossos h áb ito s de pensar!
N ão n o s d eix em o s p e r tu r b a r pela d ific u ld a d e qu e p ossa
su rg ir p a ra nós p o r causa de no ssa c o n ce p ção h ab itu al do
tem po! O m u n d o veio a existir, foi criado e é c arreg a d o
pela crian ça n ascid a n a m a n je d o u ra de Belém; pelo h o ­
m e m que m o r r e u n a cruz do G ólgota e ressuscitou n o t e r ­
ceiro dia. Tal é a P alavra cria d o ra da o rig em de tu d o o que
existe. É aqu i que se e n c o n tra o sentido, o fu n d a m e n to da
criação, e é p o r isso que a Bíblia se abre c o m as palavras:
“N o princípio, D eus criou os céus e a terra. E D eus disse:
“Q u e h a ja ...” D esde as p rim e ira s palavras desse e s tra n h o
p rim e iro cap ítulo d a Escritura, D eus fala essa lin g u a g e m
O D eus C riad or - 77

atordoante! Q u e não se veja aí u m a palavra m ágica, o p e ­


ra n d o u m a espécie de en ca n ta m e n to universal, m as, a n ­
tes, que se siga palavra a palavra o texto bíblico que nos
m o s tr a c o m o tu d o surgiu dessa Palavra q ue estava no
princípio: a luz, o céu e a terra, as plantas e os an im ais e,
p o r fim, o h o m e m .

Se nos p e rg u n ta rm o s agora qual é o objetivo d a c r i­


ação, a quais fins c o rre s p o n d e m o universo, o céu, a te rra
e to d a s as o utras criaturas, eu não co n h eç o senão u m a
resposta: tu d o isso deve servir de teatro à glória de Deus.
Q ue D eus seja glorificado, tal é o sen tido de to d a a reali­
dade. Doxa, gloria, vem de u m verbo que significa s im ­
plesm ente: ser desvelado, manifesto. D eus quis se to r n a r
visível d e n tro do universo e, nessa perspectiva, a criação é
u m ato p le n a m e n te significativo: “Eis que tu d o era m u ito
b o m ”. A despeito de todas as objeções que p o s sa m ser le ­
v an tad as co n tra a realidade do m u n d o , sua excelência
consiste indiscutivelm ente no fato que ele é c h a m a d o
p ara ser o teatro da glória de Deus, e o h o m e m , a ser a
te s te m u n h a dessa m e sm a glória. N ão nos é p e r m itid o
procurar, antes de tudo, con hecer o que é o b o m em si
para em seguida protestar q u a n d o co n sta ta m o s que o
m u n d o não co rresp o n d e a essa definição. O u n iv erso é
b o m p o r causa do objetivo pelo qual D eus o criou. “Tea­
tro da glória de Deus, theatrum gloriae D e í\ diz Calvino.
D e sua parte, o h o m e m ad m itid o no seio desse c o n ce rto
de louvores é u m a te stem u n h a, u m a te s te m u n h a ativa e
não passiva, no sentido de que ele deve c o n ta r o que viu.
Tal é a n atu re za do h o m e m , tal é sua faculdade essencial:
ser te s te m u n h a das obras de Deus. E tal p ro p ó s ito de
D eus o “justifica” p o r ter criado o m u n d o .
O Céu e a Terra

O céu é a p a r te da criação incompreensível para o h o m em ,


a terra é a que ele po de compreender.
O próprio h o m em é a criatura posta
no limite do céu e da terra.
A aliança entre D eus e o h o m em
dá o seu sentido e seu objetivo, seu fu n d a m e n to
e seu valor ao céu e à terra bem como a toda criatura.

O Sím bolo fala do “C ria d o r do céu e da terra”. Essas


duas grandezas to m ad as isoladam ente e n o seu co nju nto,
p o d e m ser co nsid eradas co m o objeto daquilo q ue se c o n ­
vém c h a m a r d o u tr in a cristã d a criação. C o n tu d o , elas não
saberiam co in cid ir co m u m a imagem do universo q u a l­
q u e r que seja, saída da reflexão h u m a n a m e s m o que se
deva reco n h e cer que nelas se refletem alguns elem entos
de u m a antiga cosmologia. N ão é o papel d a S agrada Es­
critura, n e m o d a fé cristã que nos o c u p a neste m o m e n to ,
elabo rar ou d efen d e r u m a ou o u tra rep resen tação precisa
do m u n d o . A fé não é, de m a n e ira n e n h u m a , ligada a u m a
certa im a g e m do universo, antiga o u m o d e rn a . N u m e r o ­
sas são as teorias cosm ológicas que se e n c o n tra m n o seu
c am in h o , n o cu rso dos séculos. E os cristãos estiveram
sem p re m u ito m al aconselhados q u a n d o a c re d ita ra m de-
80 - Esboço de um a D ogm ática

ver c o n s id e ra r u m ou o u tro sistem a c o m o a expressão


a d e q u a d a do p e n s a m e n to da Igreja a p ro p ó s ito d a criação
e n c a ra d a sem referência à Palavra de D eus. A fé cristã é
a b s o lu ta m e n te livre em relação a todas as cosm olo gias
que p o s sa m existir, o que significa: livre e m relação a t o ­
das as tentativ as de explicação do real c o n d u z id a s se­
g u n d o o c ritério e com os recu rso s das co rren tes
científicas que p r e d o m in e m em u m o u o u tro m o m e n to
da história. E n q u a n to cristãos, nós n ão s a b e ría m o s ace i­
ta r d eix ar-n o s alien ar p o r u m a teoria desse gênero, não
im p o r ta qual, seja antiga ou, ao con trário, que te n h a t o ­
d os os atrativos da novidade. S obretudo, n ão te m o s o d i ­
reito de ligar a causa d a Igreja a u m a ou o u tr a concepção
do m und o. U m a concepção do m u n d o im p lica algo m ais
do que u m a sim ples im ag em do m u n d o , n o se n tid o em
qu e ela s u b e n te n d a u m a certa in te rp re ta ç ã o filosófica e
m etafísica do h o m e m . O xalá a Igreja e os cristãos n ão
q u e ira m se d eix ar levar p o r esse te rre n o tão p e r ig o s a ­
m e n te v iz in h o d a “esfera religiosa”! A Bíblia, n o q ue ela
tem de decisivo, o Evangelho de Jesus Cristo, n ão n o s diz,
em n e n h u m lugar que tem o s de a d o ta r essa o u aq uela
c o n ce p ção de m u n d o . Toda tentativa de c o m p re e n d e r o
real a p a r ti r de nós m e sm o s, de b u scar chegar ao fu n d o
da realid ad e p a ra chegar a u m sistem a de m u n d o c o m ou
sem D eus, é u m e m p re e n d im e n to do qual estam o s d e f in i­
tiv am en te d isp e n sa d o s e n q u a n to cristãos. Se a c o n te c e r de
vocês e n c o n tra re m tal tentativa, m e sm o cristã, eu os
aco n selh o a c o lo carem -n a , sem hesitar, en tre parênteses.
N o atual clim a intelectual d a A le m a n h a , essa ad v ertên cia
m erece ser d a d a du as vezes em lugar de um a! C o m efeito,
o te rm o “c o n ce p ção de m u n d o ” (W eltan sch au u n g ) n ão
existe em n e n h u m o u tro id io m a além d o alem ão, c o m o
ta m b é m o te rm o “Blitzkrieg”, e q u a n d o os anglo-saxões,
p o r exem plo, deseja m em pregá-lo, eles se d e p a r a m c o m a
O C éu c a Terra - 81

im po ssibilidade de en c o n tra r u m equivalente exato em


sua p ró p ria língua e d evem se lim itar a transcrevê-lo!

É im pressio nan te que o co n te ú d o d a criação seja d e ­


sig nado pela expressão “o céu e a te rra”. “N o princípio,
D eus c rio u os céus e a te rr a ...” O C redo não faz, p o rta n to ,
n a d a m ais do que re to m a r essa afirm ação co m a qual se
abre a Bíblia. É -no s perm itido , contudo , p e r g u n ta r se os
dois conceitos “o céu e a terra” são c o m p le ta m e n te a d e ­
q u ad o s ao seu objeto, isto é, à descrição d a criação. E m
seu Pequeno Catecismo, Lutero te n to u resolver a d ificu l­
dade, dizendo: “Eu creio que D eus m e criou assim c o m o a
todas as o u tras cria tu ra s...” Ele substituiu, assim, o céu e
a te rra pelo h o m em e m uito p a rtic u la rm e n te , pelo “eu ”.
Essa alteração ou, se quiserm os, essa ligeira co rreção do
C redo é ce rta m e n te legítima. Pois ela ta m b é m n o s rem e te
'a c ria tu ra da qual fala essencialm ente o Símbolo, a saber:
o h o m e m . Mas então p o rq u e a confissão de fé p ro c e d e d i ­
ferentem ente, p o rq u e ela fala do céu e d a te rra e n ão do
h o m e m ? D eve-se seguir Lutero ou deve-se, talvez, ver
nessa om issão do C redo a prova de que ele co n sid e ra o
h o m e m em u m a altura tal que não vê n e n h u m a n ecessi­
d ad e de m encioná-lo? N ão dev eríam o s sim p lesm en te
c o m p re e n d e r que, ao falar, com o faz, do céu e d a terra, o
Sím bolo está d esig n an d o de u m a m a n e ira p ro fu n d a m e n te
original o quadro natu ral que acontece de ser o do h o ­
m em ? A om issão do h o m e m não co n stitu iria aq u i u m a
m a n e ira m u ito significativa de falar indiretam ente dele? O
céu e a te rra definem u m cenário d estin ad o a u m a ação
m u ito precisa e da qual, em nosso p o n to de vista, o h o ­
m e m o c u p a o centro. N ão teríam o s nós aqui, u m a d e s c ri­
ção da criação precisam ente em fu nção do h o m e m ? Em
to d o s os casos, fica e n ten d id o que o céu e a te rra n ão
co n s titu e m realidades in d e p en d en te s que se p o d e r ia m
c o m p re e n d e r e explicar p o r si m esm as, m as que, co m a
82 - Ksboço de um a D ogm ática

presen ça significativa do h o m e m no seu centro, o co sm o s


p ro v é m de Deus, p e rte n c e a D eus e deve ser c o n s id e ra d o
d e n tro d a p e rsp ectiv a do S ím bolo c o m o a s o m a de to d a a
realid ad e cria d a e m relação co m a v o n ta d e e a ação div i­
nas. É aq u i que aparece a diferença f u n d a m e n ta l q u e s e ­
p a ra q u a lq u e r o u tra co nce p ção de m u n d o d o p o n to de
vista d a S agrada E scritu ra e da fé cristã. T oda c o n ce p ção
de m u n d o im plica que se to m e seu p o n to de p a r tid a do
existente co m o sen d o ele m e sm o a sua p r ó p r ia razão de
ser, p a ra alcan çar g r a d u a lm e n te a idéia d a d iv in d ad e; a
E scritura, ao co n trá rio , fala do céu e da terra, p o r ta n t o do
h o m e m , u n ic a m e n te no q u a d ro de u m a relação: “Eu creio
em Deus, criador do céu e da terra”. O genitivo m o s tr a
claram en te que acreditam o s, não n a criação, m a s em
D eus, o C riador.

O céu é a p a rte da criação incompreensível p a r a o


h o m e m , a te rra é a p arte que é compreensível p a r a ele. I n ­
cluo aq ui o que o C red o N iceno fala c o m o invisibilia e vi-
sibilia. Tentei tra d u z ir essas duas expressões “coisas
visíveis” e “coisas invisíveis” pelos te rm o s “c o m p re e n s í­
vel” e “in c o m p reen sív e l”. Q u a n d o a E scritu ra - d a qual r e ­
to m a m o s aqui a te rm in o lo g ia - fala do céu, ela n ã o q u e r
dizer sim p le s m e n te aquilo que te m o s o c o s tu m e de n o ­
m e a r assim , o céu atm osférico e m e s m o estratosférico,
m as u m a realidad e criada, que d o m in a a b s o lu ta m e n te o
nosso “céu ” p u ra m e n te físico. O h o m e m d a a n tig ü id a d e e,
p a rtic u la rm e n te , o h ab itan te do O rie n te P ró x im o r e p r e ­
sentava o m u n d o visível c o m o in te ira m e n te re c o b e rto p o r
u m a e n o r m e a b ó b a d a c h a m a d a fir m a m e n to . Essa a b ó ­
b a d a constituía, em relação ao h o m e m , o c o m e ç o do d o ­
m ín io celeste, invisível. A cim a do f ir m a m e n to se
en c o n tra v a u m im en so oceano, sep arad o d a te rra pelo f ir­
m a m e n to . A lém desse oceano, enfim , h av eria o p ró p rio
céu, o v erd ad e iro céu, f o rm a n d o o trono de Deus. Se estou
O C é u e a T e rra -8 3

d a n d o esses detalhes, é u n ic am en te p a ra m o s tr a r a re p r e ­
sentação e m algum tipo “cosm ológico” que se e n c o n tra
p o r d etrá s do conceito bíblico de “céu”. Trata-se de u m a
realidade que se o p õ e ao h o m e m e o d o m in a a b s o lu ta ­
m ente, m as que, ela ta m b ém , está n a o rd e m das coisas cri­
adas. Tudo o que está além do que escapa ao h o m e m e se
o p õ e a ele, assu stan d o -o e exaltando -o alte rn a d a m e n te ,
n ão deve ser c o n fu n d id o co m Deus. A p resen ça do in i n ­
teligível acim a de nós não é, de m a n e ira n e n h u m a , a p r e ­
sença do p ró p rio Deus: é a p resen ça do céu,
sim plesm ente. C h am á-lo D eus é d iv inizar a criatu ra, da
m e sm a m a n e ira que o assim ch a m a d o “h o m e m p r i m i ­
tivo”, que a d o ra o sol. São m u ito n u m e ro s o s os filósofos
que, nesse sentido, re n d e ra m culto à criatura. O lim ite
im p o sto à nossa inteligência não passa en tre D eu s e nós,
ele passa entre o que o Símbolo ch am a de céu e de terra.
Existe, no seio do m u n d o criado, essa realidade qu e c o n s ti­
tui p a ra nós u m p u ro m istério: o céu. Se ela n ão é o p r ó ­
p rio D eus, ela faz parte de sua criação. O b se rv e m o s, de
passagem , que o fato m e sm o de ser u m a c ria tu ra c o m ­
p o r ta em si u m p ro fu n d o m istério, o m istério do ser,
fonte incessante de te rro r e de alegria. É de m a n e ir a h o ­
nesta que os filósofos e os poetas de to d o s os te m p o s p r o ­
c u ra ra m ex p rim ir esse m istério. É -n o s p e rm itid o ,
e n q u a n to cristãos, igualm ente, saber essas coisas, c o n h e ­
cer os altos e baixos d a existência h u m a n a ; sim, a v id a tal
c o m o é c o m p o rta já to d a sorte de m istérios e feliz o h o ­
m e m que sabe “que h á mais coisas entre o céu e a te rr a do
que p o d e s o n h a r nossa vã filosofia!” A criação possui,
pois, u m a e s tru tu ra celeste, m isterio sa p a ra o h o m e m ,
m as q ue n ão representa, contud o, n a d a a te m e r n e m a v e ­
n e ra r co m o algo de divino. N ós estam os p o sto s e m u m
m u n d o qu e c o m p o rta essa realidade; essa d im e n s ã o do
céu nos lem bra, sem cessar, sob a fo rm a de p aráb o la, u m a
84 - Esboço de um a D ogm ática

p resen ça c o m p le ta m e n te diferente, a de D eus, o C r ia d o r


do céu e d a terra, de tal m a n eira, co n tu d o , q ue n ão c o n ­
fu n d a m o s jam ais o signo co m a coisa significada.

N o lado o p o sto do céu, a p a rte s u p e rio r d a criação,


se e n c o n tra a terra, o m u n d o de baixo, cujo c o n te ú d o nos
é com preensível. É a p a rte da criação situ a d a n o in te rio r
do lim ite que circu nscreve o d o m ín io o n d e nós p o d e m o s
ver, ouvir, sentir, pensar, contem plar, n o sen tid o m ais a m ­
plo. É to d a essa esfera, su b m e tid a ao p o d e r do h o m e m , aí
c o m p re e n d id o o m u n d o da inteligência e d a intuição, que
o S ím bolo c h a m a de terra. N o in terio r dessa m o l d u r a t e r ­
restre, p o r o u tro lado, está c o m p re e n d id o aquilo qu e o fi­
lósofo d e n o m in a o d o m ín io da razão e das idéias. N esta
p a rte in ferio r se p o d e d iscern ir ig u a lm en te as diferenças
de valor, p o r exem plo, entre os objetos sensíveis e os o b je ­
tos inteligíveis, m as eles p e r m a n e c e m lim itad o s a esse
m u n d o . É dessa m e s m a esfera terrestre q ue o h o m e m tira
sua origem : D eus fo rm a o h o m e m d a p o e ira d a te rr a (G n
2.7). O m u n d o do h o m e m , o teatro de sua existência e de
sua h istó ria ao m e sm o te m p o que o de seu fim n a tu ra l
(“re to rn a rá s ao p ó ”), tal é a terra. Se o h o m e m possui,
c o n tu d o , u m a o u tra o rig em e u m o u tro fim que n ão esse,
é u n ic a m e n te p o r causa d a aliança, in stitu íd a p o r D eus
en tre ele e sua criatura. É, pois, falar da graça, q u a n d o v e ­
m os n o h o m e m m ais do que u m ser terren o , de q u e m a
te rra é o lugar n atu ra l e o céu é o limite. N ã o existe
m u n d o h u m a n o in abstracto. O h o m e m estaria e n g a ­
n a n d o a si m e sm o , re c u sa n d o -se a re c o n h e c e r q u e esse
m u n d o que ele c o m p re e n d e , se acha lim ita d o p o r u m o u ­
tro m u n d o que ele n ão c o m p re en d e. N ós d ev em o s estar
ag rad e cid o s p o r q u e sem p re existiram poetas, crianças e
ta m b é m filósofos p a ra fazer sensível a existência deste li­
m ite superior. Esse m u n d o terrestre n ão é r e a lm e n te m ais
que u m aspecto da criação. C o n tu d o , não mais q ue o céu,
O Céu e a T erra - 85

a te rra n ão saberia nos d ar posse sobre o d o m ín io de


Deus; é isso o que nos ensinam os dois p rim e iro s m a n d a ­
m entos: “Tu não farás im ag em entalh ad a, n e m n e n h u m a
o u tra rep resen tação das coisas que existem n o alto dos
céus e em baixo sobre a te rr a ...” N ão h á n e n h u m a p o t ê n ­
cia sobre a te rra ou acim a no céu que m ere ça n o sso te m o r
ou nosso amor.
O p ró p rio h o m e m é u m a criatu ra situada no limite
do céu e da terra, ele está sobre a te rra e sob o céu. Ele é o
ser capaz de c o m p re e n d e r seu m eio n atural, o m u n d o
aqui em baixo; é-lhe p e rm itid o ter a posse sobre ele pelos
seus sentidos e pela sua inteligência, n u m a palavra, d o ­
m iná-lo: “Eis que tu tens tu d o p o sto sob seus pés!” (SI
8.6). É, d e n tro do q u a d ro que lhe é pró prio , o ser livre p o r
excelência. M as ele p e rm a n e c e colocado sob o céu: face à
face co m os invisibilia, as coisas invisíveis, in c o m p r e e n s í­
veis e inacessíveis à sua razão, ele p e rm a n e c e a b s o lu ta ­
m e n te im p o te n te e d ependente. O h o m e m to m a
v e rd a d e ira m e n te consciência de sua co n d ição de cria tu ra
terrestre n a m e sm a m e d id a em que ele reco n h e ce sua ig ­
n o râ n c ia no que co n cern e ao m u n d o celeste. Parece que,
no lim ite que é o seu, ele te n h a p o r fu n ção in d ic a r o
m u n d o do alto e o de baixo, de ser u m signo de seu p r ó ­
prio destino, em função de u m a relação que u ltrap assa i n ­
fin itam en te essa que é figurada pelo com plexo céu-terra.
O h o m e m é, no q u a d ro da criação, o lugar o n d e a cria tu ra
se realiza co m p leta m en te n a sup eração de si m e sm a. O
h o m e m é o ser capaz de dar livrem ente a D eu s o louv or
que lhe é devido.
Nós não teríam os, contudo, dito n a d a ainda, se não
acrescentássem os logo que é a aliança entre D eus e o h o ­
m e m que d á seu sentido e sua finalidade, seu fu n d a m e n to
e seu valor ao céu, à terra, assim com o a to d a criatura. D i ­
z en d o isso, p arecem o s forçar u m p o u c o o c o n te ú d o o b je ­
86 - lisboço de um a D ogm ática

tivo do p rim e iro artigo do Símbolo. M as isso n ão é m ais


do que u m a aparência. Pois m e n c io n a r a aliança de D eus
e do h o m e m , é falar de Jesus Cristo. Essa aliança n ão é u m
e lem en to secu n d ário , so b rep o sto de alg u m a m a n e ira , ela
coincide, de fato, co m a p ró p ria criação. D esd e que o
criou, D eu s c o m e ç o u a se o c u p a r do h o m e m . Pois tu d o o
que existe está a tal p o n to s u b o rd in a d o à existência do
h o m e m que nisso já se p o d e ler a in ten ção de D eus, tal
c o m o ela se m a n ifestará efetivam ente n o m isté rio d a ali­
ança em Jesus Cristo. P or co nseqüência, não s o m e n te essa
aliança co incid e co m a criação, mas, ainda, ela a p rece d e
no tem p o. A ntes d a criação do m u n d o , antes d a e x istê n ­
cia do céu e d a terra, h á a decisão, o decreto de D eu s a f ir­
m a n d o sua v o n ta d e de c o m u n h ã o co m o h o m e m , tal
co m o ela se realizou de u m a m a n e ira in c o m p reen sív e l e
p erfeita em Jesus Cristo. T am bém , q u a n d o p r o c u r a m o s a
razão de ser e o objetivo de tu d o o que existe é, de im e d i­
ato, dessa aliança en tre D eus e o h o m e m que d ev em o s
nos lem brar.

Se v o ltam o s agora à criação tal c o m o te n ta m o s d e s ­


crevê-la ao falarm o s do céu e da terra, co m a p re s e n ç a do
h o m e m no lim ite desses dois g ran d es d o m ín io s , c e r t a ­
m e n te n o s será lícito afirm ar, sem p arec er m u ito te m e r á ­
rio e sem qu e nos acu sem de ceder à especulação, que
existe a m e s m a relação entre o céu e a te rra e e n tre D eu s e
o h o m e m n o seio da aliança, de tal sorte que o sim ples ato
da criação constitu i e m si u m signo ú n ic o e decisivo, o
signo d o desejo e tern o de Deus. C oexistência e e n c o n tro
do alto e do baixo, do inteligível e do ininteligível, do fi­
nito e do infinito, eis a criação. Isso tu d o é o m u n d o . O u,
a p a r tir do fato m e s m o de que esse m u n d o c o m p o r t a efe­
tiv am en te u m alto e u m baixo que n ão cessam de se o por;
do fato de que, d e n tro de cada u m de n o ssos suspiros,
d e n tro de cada u m de nossos p e n s a m e n to s , d e n tro de
O Ccu e a T erra - 87

cada u m a de nossas experiências de viventes, o céu e a


te rra estão sem pre presentes, se co n fro n ta m , se a tra e m e
se rep elem sem cessar de fo rm ar u m todo, nós c o n s titu í­
m os, pela nossa simples existência de criaturas, u m signo,
u m a d e m o n stra ç ã o e u m a pro m essa da d estin ação final
de to d a a criação: esse encontro, essa in tim id a d e , essa c o ­
m u n h ã o e, em Jesus Cristo, essa unidade p erfeita do C r ia ­
d o r e da criatura.
X Jesus Cristo

O objeto e o centro da f é cristã é a Palavra idêntica à


ação pela qual Deus, p o r toda a eternidade,
decidiu para nosso bem se tornar
h o m e m em Jesus Cristo, tornou-se e fetiv a m e n te
no tem po e o fica rá pelos séculos dos séculos.
A obra do Filho pressupõe, assim,
a do Pai e implica a do Espírito Santo.

C o m este capítulo, ab o rd arem o s o centro m e s m o da


C onfissão de fé, com o se p o d e julgar já ao p rim e iro golpe
de olhos pelo lugar considerável que o c u p a o s e g u n d o a r ­
tigo. Existe, aqui, mais que u m a questão de redação. Já n a
in tro d u ção , q u a n d o se trato u da fé e em nossa p rim e ira
parte, q u a n d o falamos de Deus, o Pai T o d o -p o d e ro so ,
C ria d o r do céu e da terra, não fizem os mais qu e re m e te r
c o n s ta n te m e n te a esse centro. N ossa explicação do p r i ­
m eiro artigo teria carecido to talm en te de p e rtin ê n c ia se
não o tivéssem os in cessantem ente apoiado, p o r a n te c ip a ­
ção, no segundo. Este ultimo, não é s im p lesm en te a se­
qüên cia do p rim e iro e o prefácio do terceiro, m a s sim a
fonte lu m in o s a que esclarece u m e outro. H isto ric am en te,
aliás, p ro v o u -se que o C redo cristão p ro v ém de u m texto
prim itiv o m ais c u rto e m e sm o de u m a fo rm u la efetiva­
90 - Esboço de um a D ogm ática

m e n te breve, que coincide, q u a n to ao essencial, c o m o


c o n te ú d o do atual seg u n d o artigo. S upõe-se m e s m o que a
confissão de fé da Igreja p rim itiv a era c o n s titu íd a p o r es­
tas sim ples palavras: “Jesus C risto (é) o S e n h o r ”. O p r i ­
m e iro e o s e g u n d o artigos n ão te riam sido a cre sce n tad o s
senão m ais ta rd e a esse núcleo central. O p ro cesso h is tó ­
rico n ão se d eveu ao simples acaso. M e s m o de u m p o n to
de vista p u r a m e n te objetivo, não é sem significação o fato
de saber qu e o seg u n d o artigo é h is to ric a m e n te a fonte
dos outros. É cristão aquele que confessa o Cristo. E u m a
confissão de fé cristã te m p o r objeto Jesus Cristo, o Se­
nhor.
É a p a r t i r d esse c e n tro decisivo, e c o m o u m a e x ­
p licaçã o c o m p le m e n ta r , q ue se deve c o m p r e e n d e r as
a fir m a ç õ e s d o S ím b o lo relativas a D eu s, o Pai, e a D eus,
o E s p írito Santo. Os te ó lo g o s cristão s fiz e ra m u m a m á
e sco lh a c ad a vez qu e p r o c u r a r a m e d ific a r d i r e t a m e n te e
n o a b s tr a to u m a te o lo g ia do D eu s cria d o r, a p e s a r de
to d o o re s p e ito e s e rie d a d e c o m q ue eles se e m p e n h a ­
ra m nisso.
O m e s m o deve ser dito so b re aq u eles q u e t e n t a ­
ra m p a r t i r de u m a te o lo g ia do te rc e iro artigo , de u m a
te o lo g ia do E spírito, d a e x p e riê n c ia e s p iritu a l, p o r o p o ­
sição à do D e u s criad or. P o d e r -s e -ia talvez e n c o n t r a r
u m a e x p licaç ão d a te o lo g ia m o d e r n a , tal c o m o a e n ­
te n d e S c h le ie rm a c h e r, n o fato de q u e a p a r t i r de c e rta s
p re m is s a s p r ó p r ia s dos séculos X V II e X V III, ela te ria
se to r n a d o u n ic a m e n t e u m a te o lo g ia d o te rc e iro artig o ;
ao d e c la r a r- s e do E s p írito Santo, ela se a c r e d ita v a a u t o ­
riz a d a , sem se d a r c o n ta de que o te rc e iro a rtig o n ã o é
m ais q u e u m a ex p licaç ão do seg u n d o , u m a m a n e i r a de
p re c is a r o q u e Jesus C ris to sign ifica p a r a nós. É a p a r t i r
de Jesus C ris to s o m e n te qu e nós p o d e m o s t e n ta r v er e
c o m p r e e n d e r do que se trata, d e n t r o da ó tica cristã,
Jesus C risto - 91

q u a n d o a b o rd a m o s o g r a n d e p ro b le m a - q u e n ã o deix a
de nos a t u r d i r e que só p o d e m o s f o r m u la r c o r r e n d o os
m ais graves riscos de e r r a r - da relação e n tre D eu s e o
h o m e m . T em os ap en a s u m a re s p o s ta p a r a esse p r o ­
blem a: Jesus Cristo.

D essa m a n e ira , n ão p o d e m o s c o m p r e e n d e r a r e la ­
ção e n tre a criação, a c ria tu ra, a ex istên cia, de u m a
p a rte , e a Igreja, a red en ç ão , D eus, de o u tr a , p a r t i n d o
de u m a v e r d a d e geral ou dos d a d o s da H is tó ria das re li­
giões, m a s u n ic a m e n te a p a r ti r d a relação que e x p r im e
a p e s s o a de Jesus C risto. É nele que n o s d is c e r n i m o s o
qu e significa: D eus acim a do h o m e m ( T ° artig o ) e D eu s
com o h o m e m (3o artigo). É p o rq u e o s e g u n d o artig o , a
cristo lo g ia, é a p e d r a de to q u e de to d o c o n h e c im e n to de
D eus, n o s e n tid o cristão da palavra, o c rité rio de to d a
teologia. “D iz e -m e q ual é a tu a c ris to lo g ia q u e eu te d i ­
rei q u e m tu és”. E aqui que os c a m in h o s se s e p a r a m , é
aq u i qu e se p re c isa m as relações e n tre a te o lo g ia e a fi­
losofia, e n tre o c o n h e c im e n to de D eu s e o c o n h e c i­
m e n to do h o m e m , e n tre a revelação e a razão, e n tre o
E v an g e lh o e a Lei, e n tre a v e rd a d e d iv in a e a v e rd a d e
h u m a n a , e n tre o d o m ín io da alm a e o do c o rp o , e n tre a
fé cristã e a política.

É aq u i que tu d o se to r n a b rilh a n te o u o b sc u ro ,
claro ou confuso. N ós estam o s n o cen tro . E, p o r m ais
fora de alcance, m isterio so , difícil q ue p o s sa n o s p a r e ­
cer esse cen tro , p o d e m o s a firm a r sem m e d o : d o r a v a n te
tu d o se t o r n a e x tre m a m e n te sim ples, e lem en tar, i n f a n ­
til. Sim, n o m o m e n to m e sm o em que, c o m o p ro fe s s o r
de te o lo g ia sistem ática, m e u dever é g r ita r a vocês:
“A tenção! Isso é sério: ou b e m fazem o s c iên cia o u b e m
ca ím o s nas piores b o b a g e n s !” a c o n tece q u e m e vejo e n ­
tre vocês c o m o u m m o n i to r de escola d o m in ic a l d ia n te
92 - Esboço cic um a D ogm ática

de seus p e q u e n o s alu n o s, co m u m a m e n s a g e m q u e u m
g a ro to de q u a tr o a n o s p o d e r ia já c o m p re e n d e r : “E m u m
m u n d o p e r d id o , C ris to d esceu - C ris tã o s, reju b ilai-
v o s!”
O c e n tr o de qu e fala m o s é a Palavra que a tu a ou,
se p r e f e r irm o s , a ação da Palavra de D eus. D e s d e logo,
te n h o de c h a m a r a ate n ç ã o de vocês p a r a o fato d e q ue
nesse c e n tr o vivo d a fé cristã, a o p o s iç ã o tã o f re q ü e n te
e n tre p a la v ra e ação, d o u t r i n a e vida, n ã o te m n e n h u m
sen tid o . Pois a Palavra, logos, aq u i se id e n tific a c o m a
o b ra, ergon, Verbum c o in c id e c o m opus. P o r tr a t a r - s e de
D eu s e d o p r ó p r io c o ra ç ã o da n o s sa fé, essas d ife re n ç a s
q u e nos p a r e c e m tã o in te re s sa n te s e essen ciais são, n ão
a p e n a s s u p é rflu a s , m a s a in d a p e r f e ita m e n te a b s u rd a s .
D eu s fala, D e u s age, D eu s o c u p a o c e n tro de tu d o : a
v e r d a d e se t r a d u z em ato, o ato se m a n if e s ta c o m a força
da v e rd a d e . A P alavra é ação, u m a ação tal q u e é, ela
m e s m a P alavra, revelação.
Q u a n d o p r o n u n c ia m o s o n o m e C ris to n ã o é o
sim p les s u p o r te v e rb a l de u m a r e a lid a d e s u p e r io r (o
p la to n is m o n ão in te r v é m aqui!). T rata-se, sob esse
n o m e e sob esse título, da sua pessoa m e sm o . N ão de
u m a p e s s o a fo r tu ita , de u m “fato h is tó r ic o a c i d e n ta l”
c o m o e n t e n d e Lessing, p o r exem plo. As v e rd a d e s e t e r ­
nas d a razão, eis o tip o de fato h is tó r ic o “a c i d e n ta l” ! A s ­
sim , o n o m e de Jesus C ris to n ão serve p a r a d e s ig n a r u m
p r o d u to da história h u m a n a . Os h o m e n s s e m p r e a c r e d i ­
ta ra m te r feito u m a g r a n d e d e s c o b e r ta q u a n d o c o n s e ­
g u ir a m d e m o n s t r a r q u e Jesus C ris to n ã o p o d ia d e ix a r
de ser o p o n to c u l m in a n t e de to d a h is tó ria . A c h a d o m e ­
d ío c re , n a v erd ad e ! M e s m o a h is tó r ia do p o v o de Israel
n ã o s a b e ria se p r e s ta r a u m a tal d e m o n s tr a ç ã o . C e r t a ­
m e n te , a posteriori, é lícito e m e s m o n e c e s s á rio a firm a r:
nesse h o m e m , nesse povo, a h is tó r ia se realizou...; m as
Jesus C risto - 93

ela o fez s e g u in d o u m a lin h a a b s o lu ta m e n te n o v a e e s ­


c a n d a lo s a do p o n to de vista dos fatos h istó rico s! L o u ­
c u ra p a r a os gregos, e s cân d a lo p a ra os ju d e u s! ( l C o
1.23) E nfim , o n o m e de Jesus C ris to n ã o e s c o n d e u m
p o stu la d o do h o m e m , não d esig n a o p r o d u to de seus
desejo s m ais n o b re s n e m o tip o de r e d e n t o r c r ia d o pela
sua in q u ie tu d e . O h o m e m n e m é cap az de r e c o n h e c e r
p o r si m e s m o sua in q u ie tu d e e seu peca d o . É -lh e n e c e s ­
sário p r im e ir o c o n h e c e r Jesus C risto: é e m su a luz que
nós v e m o s a luz que n os revela no ssas p r ó p r ia s trevas.
T odo c o n h e c im e n to que m e re ç a esse n o m e , s e g u n d o a
fé cristã, p ro v é m do c o n h e c im e n to de Jesus C risto.
M e s m o o p rim e ir o artig o a d q u ire u m s e n tid o i n ­
te ir a m e n te no vo q u a n d o o lem os sob a p e r s p e c tiv a d a fé
em Jesus C risto. Ele confessa o D eu s c r ia d o r do céu e da
te rra , o D eu s etern o , inacessível, o cu lto, i n c o m p r e e n s í ­
vel, cujo m is té r io d o m in a a b s o lu ta m e n te m e s m o aquele
do m u n d o celeste. E eis que o s e g u n d o a rtig o co nfessa
u m a v e r d a d e a p a r e n te m e n te c o n tra d itó r ia , e m to d o s os
casos c o m p le ta m e n te insólita, da q u al s o m e n te o c o n ­
te ú d o do p r im e ir o é que nos dá a d im e n s ã o d o c a rá te r
p a r a d o x a l e enig m ático : D eu s to m a u m a fo rm a , u m
n o m e ressoa, u m ser h u m a n o to m a o lu g a r d o A ltíssim o
d ia n te de nós! D eu s T o d o - p o d e ro s o p a re c e te r p e r d id o
sua o n ip o tê n c ia .
N ó s falam os de sua e te rn id a d e , de sua u b iq ü id a d e .
E eis-n o s m e rg u lh a d o s n o te m p o , em face de u m ev en to
te m p o r a l e localizado, de u m a c o n te c im e n to p a r ti c u la r
n a tr a m a da h is tó ria h u m a n a , de u m fato cujo c o n te x to
é o c o m e ç o de n o ssa era em u m lugar b a s ta n te d e fin id o
no globo te rre stre . D epois de D eus, o Pai, tal c o m o o
con fessa o p r im e ir o artigo, o m e s m o D eu s p r o v in d o da
m is te rio s a u n id a d e de seu ser, se a p re s e n ta sob a fig u ra
do Filho. D o rav an te , D eus é esse O utro nele m esm o, ao
94 - Esboço de um a D ogm ática

m e s m o t e m p o id ê n tic o e d istin to . Ao p a s s o q u e o p r i ­
m e iro a rtig o d o S ím b o lo descrev e o C r ia d o r c o m o o a b ­
s o lu ta m e n te d is tin to de tu d o o qu e existe, e a c r ia tu r a
c o m o s o m a de to d o s os seres d is tin to s d o ser d e D eu s, o
s e g u n d o significa: o C r ia d o r se t o r n o u ele m e s m o c r i a ­
tu ra . Ele, o D e u s e te rn o , to r n o u - s e n ã o a s o m a de to d a s
as c r ia tu r a s , m a s sim u m a c ria tu ra.
Ele que, p o r to d a a e te rn id a d e , d e c id iu p a r a n o s so
b e m t o r n a r - s e h o m e m e m Jesus C risto , t o r n o u - s e h o ­
m e m e fe tiv a m e n te n o te m p o e p e r m a n e c e r á s e n d o p e ­
los sécu lo s d o s séculos. Eis Jesus C risto . Já m e o c o r r e u
de c ita r o n o m e d a r o m a n c is ta in g lesa D o r o t h y L.
Sayers que, c o m o se diz, v o lto u -se p a r a a te o lo g ia c o m
u m in te re s se notável. E m u m p e q u e n o escrito , ela m o s ­
tr a o c a r á te r in sólito, “in te re s s a n te ”, in a u d ito d e ssa n o ­
v idade: D e u s se fez h o m e m . I m a g in e -s e , u m b e lo dia,
n a p r im e ir a p á g in a de u m jo rn al! Sim, tr a t a - s e d e u m a
n o v id a d e v e r d a d e ir a m e n te s e n s a c io n a l q u e relega to d a s
as o u tr a s à ú ltim a página! É esse fato, a b s o lu t a m e n t e
p e r tu r b a d o r , in c o m p a r á v e l e ú n ic o em seu g ê n e ro , q u e
c o n s titu i o c e n tr o d o cris tia n is m o .
O c o m p le x o D e u s - h o m e m c e d e u lu g a r a to d a
s o rte de c o m b in a ç õ e s , e m to d a s as é p o c a s d a h is tó ria .
P o r ex em p lo , a m ito lo g ia c o n h e c e a id é ia d a e n c a r n a ­
ção. O q u e d is tin g u e a m e n s a g e m cristã d a m ito lo g ia ,
q u a l q u e r q u e seja é que, p a ra esta ú ltim a , a e n c a r n a ç ã o
é, n o fu n d o , a ex p re s s ã o de u m a id éia geral, de u m a v e r ­
d a d e u n iv e rsa l. O m ito c o n tin u a d o m i n a d o p elo r it m o
dos f e n ô m e n o s , a su cessão d o dia e d a n oite, d a p r i m a ­
v era e d o in v e rn o , da v id a e d a m o r te ; p a ra o m ito , a r e ­
a lid a d e te m u m c a rá te r in te m p o r a l, in fin ito . O
E v a n g e lh o de Jesus C ris to n ã o te m n a d a e m c o m u m
c o m o m ito . Ele se d is tin g u e , já de u m p o n t o de vista
fo rm al, p elo fato de que se in s c re v e u p le n a m e n t e d e n -
Jesus C risto - 95

tr o d a h istó ria: ele a firm a qu e n a ex istên cia de tal h o ­


m e m p a rtic u la r, D eus se e n c a r n o u de tal m a n e ir a q ue a
ex istên cia desse h o m e m e a de D eus são u m a só e
m e s m a coisa. A m e n s a g e m cristã está, n esse p o n to de
vista, p le n a m e n te in s e rid a n a tr a m a d a h is tó ria . É p r e ­
ciso c o n s id e ra r-s e e m co n ju n to , n o m e s m o m o m e n to , a
e te r n id a d e e o te m p o , D eus e o h o m e m , p a r a c o m p r e ­
e n d e r o q ue r e a lm e n te significa o n o m e de Jesus C risto!
Jesus C ris to é a realid a d e da aliança e n tre D e u s e o h o ­
m e m . É a p e n a s re fe rin d o -s e a ele q u e p o d e m o s falar,
c o m o p r im e ir o artigo, de D eus n o s lug ares altíssim o s,
p o r q u e e n tã o n ó s c o n h e c e m o s o h o m e m pela alian ça
qu e o liga a Deus: em sua p esso a co n c re ta , e n q u a n t o ele
é esse m e s m o h o m e m . D a m e s m a m a n e ir a , q u a n d o o
te rc e iro a rtig o n o s fala de D eus n o h o m e m , de D eu s
tr a b a lh a n d o p o r nós e em nós, p o d e r ia se tr a t a r aq u i de
u m a id eologia, de u m a lição de e n tu sia s m o , de u m a
d e s c riç ã o d a v id a in te r io r do h o m e m , de suas e x p e r i ê n ­
cias e de suas aspirações, da p ro je ç ã o do q u e se p assa
em n ó s q u a n to a u m a d iv in d a d e im a g in á r ia q u e se
c h a m a E sp írito Santo. M as q u a n d o o b s e r v a m o s a a li­
an ça q u e D eu s re a lm e n te co n clu iu co n osco, h o m e n s ,
s a b e m o s q ue n ão se tr a ta disso. N os é lícito falar co m
s e g u r a n ç a da realid a d e do E sp írito Santo, e m razã o
m e s m o dessa aliança que p ro c la m a q ue D eus, p a r a t o ­
dos os h o m e n s , se fez h o m e m e m Jesus C risto.

“Ó h o m e m , é p a ra te u b e m q ue D eu s se e n c a r n o u
e é te u sa n g u e que co rre nas veias do Filho de D e u s ”. Tal
é a m e n s a g e m do Natal. N ós te n ta m o s m a r c a r os três
aspectos. P r im e ir a m e n te o a c o n te c im e n to h is tó ric o : o
te m p o qu e é o nosso, p o ssu i u m c e n tro q u e se c o n s titu i
n a chave; c o m to d a s as suas c o n tra d iç õ e s , seus c u m e s e
seus abism os, n ossa h is tó ria se vê c o lo c a d a d e n t r o de
u m a d e t e r m in a d a relação co m D eus. N o c e n tr o de
96 - Esboço de um a D ogm ática

n o s s o te m p o está esse a c o n te c im e n to decisivo: D e u s se


fez h o m e m p a r a n o s s o b e m . M as o c a rá te r ú n ic o desse
a c o n te c im e n to , n o s o b rig a a r e c o n h e c e r q u e ele n ã o p o ­
d e r ia ser u m sim p les acid en te , u m fato h is tó r ic o e n tre
o u tro s . S o m o s le v ad o s a vê-lo c o m o o a c o n tecim en to
p o r ex ce lên cia d e s e ja d o p o r D e u s p o r to d a a e t e r n i ­
dade. Sob esse s e g u n d o asp ecto , a m e n s a g e m d o N atal
n o s re m e te ao p r im e ir o a rtig o do S ím b olo ; ela a f ir m a o
v ín c u lo e n tre a c ria ç ã o e a re d e n ç ã o . N o s é possível,
d esd e logo, p e n s a r n o D e u s c r ia d o r cuja e x istê n c ia p r e ­
cede a b s o lu ta m e n te a das suas c ria tu ra s , fa z e n d o a b s ­
tra ç ã o d a su a v o n ta d e tal c o m o ela se c u m p r e e se
m a n if e s ta n o c u rs o da h is tó ria . A v o n ta d e e t e r n a de
D eu s é in s e p a rá v e l dessa fo rm a te m p o ra l. M e s m o do
p o n to de v ista d a e te r n id a d e , n ão h á o u tr o D e u s além
desse cu ja v o n ta d e se e n c a r n o u d e n t r o d o a c o n t e c i ­
m e n to h is tó r ic o de sua ação e de sua Palavra. T u d o isso
n ã o te m n a d a a ver c o m a esp ecu lação . A p r e g a ç ã o de
Jesus C ris to n ão é u m a v e rd a d e e n tre o u tra s . É a v er­
dade. N o ss o p e n s a m e n to , u m a vez o r ie n t a d o p a r a D eus,
n ã o p o d e fazer a b s tr a ç ã o do n o m e de Jesus C risto . E n ­
fim, h á o te rc e iro a s p e c to da m e n s a g e m d o N atal, “D e u s
q u e e m t o d a a e te r n id a d e d ecid iu , p a r a o n o s s o b e m ,
to r n a r - s e h o m e m em Jesus C risto, o p e r m a n e c e r á p elos
sécu lo s d o s s é c u lo s ”. O fato cie seu c a rá te r h is tó ric o , o
fato q ue ela se m a n if e s to u n o q u a d r o d o e s p a ç o e d o
te m p o , a alia n ç a ou se p re fe r irm o s , a u n id a d e de D e u s e
do h o m e m , n ã o é u m a v e rd a d e p assag eira . Jesus C ris to
é o rei cujo re in o n ã o te rá fim. “Jesus C ris to é o m e s m o
hoje, o n te m , e t e r n a m e n t e ” (H b 13.8). Tal é n o s s a s i t u a ­
ção d ia n te de D eus. Ele n os ro d e ia v e r d a d e ir a m e n te p o r
to d o s os lado s, e m Jesus C risto. Im p o s s ív e l e s c a p a r-s e -
lhe. Im p o ssív el ta m b é m s u c u m b i r d e n t r o d o n a d a . I n ­
v o c a r Jesus C ris to é se c o m p r o m e te r so b re u m c a m in h o
Jesus C risto - 97

seguro. “Eu so u o c a m in h o , a v e rd a d e e a v id a ” (Jo


14.6). T rata-se de u m c a m in h o que atra v essa os te m p o s
e cujo c e n tro é o p r ó p r io Jesus C risto; a o r ig e m desse
c a m in h o n ã o se p e r d e n a n o ite da h is tó ria , ela c o r r e s ­
p o n d e e x a ta m e n te ao que é. E nfim , esse c a m in h o n ã o
c o n d u z à esc u rid ã o , pois que to d o o f u tu r o d ia n te de
n ó s p o r ta esse m e s m o n o m e: Jesus C risto. Jesus C ris to é
o q u e foi, o que é e o que vem , co m o o e x p r im e o fim do
s e g u n d o artig o: ““De o n d e v irá p a ra ju lg a r os vivos e os
m o r t o s ”. Ele é o Alfa e o Ô m e g a (Ap. 1.8), o p r in c íp io e
o fim. Q u a n d o p o d e m o s , com o S ím bolo, c o n fe s s a r o
n o m e de Jesus C risto, isso significa qu e n ó s e n c o n t r a ­
m o s A qu ele que, m e s m o se o ig n o r a r m o s , n o s te m i n ­
te ir a m e n te d e n tro de sua mão.

T u d o isso, nós o d issem os, é “p a ra n o s s o b e m ”. É


p reciso su b lin h a r. A aliança de D eu s, sua rev elação em
Jesus C risto , n ão é s im p le s m e n te u m m ilag re, u m m i s ­
té rio in te re ssa n te , d ig n o de no ssa m ais séria atenção.
C la ro que é isso ta m b é m , m as co m certe z a n ã o te re m o s
c o m p r e e n d id o n a d a se n ós im a g in a m o s p o d e r fazer
disso u m o bjeto de p u r a c o n te m p la ç ã o in telec tu al.
M e s m o qu e p r e te n d a se a p o ia r n o N ovo T e s ta m e n to i n ­
teiro e d a r lu g a r aos m ais belos d is c u rs o s , o c o n h e c i­
m e n to p u ro , a gnose, seria ap en a s u m b r o n z e que
ressoa, u m cím b a lo que retine. A p a la v ra de M elan -
c h to n é c o m p le ta m e n te ju sta (Loci com m u nes, 1521), a
d e s p e ito do uso abusivo que se te m feito n a te o lo g ia
m o d e r n a : Hoc est C hristum cognoscere, beneficia Christi
cognoscere. E m p articu la r, o e rro de R itschl e de sua e s ­
cola co n s is tiu em r e p u d ia r c o m p le ta m e n te o m is té rio
da e n c a r n a ç ã o p a ra a p re s e n ta r o C risto u n ic a m e n t e sob
o a s p e c to de u m ser excepcional, de q u e m o h o m e m
p o d e o b te r certo s b en efício s n o s e n tid o em q u e eles r e ­
p r e s e n ta m p a ra ele u m certo “v a lo r ”. O ra, n ã o se p o d e
98 - Esboço dc um a D ogm ática

falar a b s tr a t a m e n te dos b e n e fíc io s de C risto . É p re c iso


c o n h e c ê - lo s c o n c r e ta m e n te p a ra p o d e r r e c o n h e c ê - lo s .
Se existe b en efício , ele está ú n ic a e e x c lu s iv a m e n te
d e n t r o desse fato d a revelação: D eu s se fez h o m e m , ele
se fez h o m e m p a r a o n o s so b em . A ssim s o m o s a u x ilia ­
dos. A p a r t i r do fato de q ue esse ato de D e u s foi feito
p a r a nós, seu r e in o j á está aqui. P r o n u n c ia r o n o m e de
Jesus C ris to é r e c o n h e c e r que a lg u é m se o c u p a de n ó s e
q u e n ó s n ã o e s ta m o s p e rd id o s . Jesus C ris to é a salv ação
do h o m e m a p e s a r de tu d o o que p o s sa e n s o m b r a r sua
vida, in clu sive o m a l qu e p r o v é m dele m e s m o . N ão
existe n e n h u m m a l que já n ão esteja m u d a d o e m b e m
pelo e v e n to d a e n c a r n a ç ã o de D eus. F in a lm e n te , n a d a
m ais resta a fazer d o q ue r e d e s c o b r ir sem cessar que
isto é assim . N o ss a vida n ão é m a is u m s o m b r io
e n ig m a. N ó s v iv e m o s p a r a A qu ele que, d e s d e an tes do
n o s s o n a s c im e n to , foi m is e r ic o r d io s o p a r a c o n o s c o . Se
é v e r d a d e q u e n ó s v iv e m o s lon ge de D eu s, se é v e r d a d e
que n ó s s o m o s in im ig o s e rebeldes, a in d a é v e r d a d e qu e
D eu s n o s p r e p a r o u o c a m in h o da re c o n c ilia ç ã o m u ito
an tes q u e e n tr á s s e m o s em lu ta c o n tra ele. E se é v e rd a d e
que, a r e s p e ito de seu d is ta n c ia m e n to de D eus, o h o ­
m e m n ã o p o d e ser c o n s id e r a d o m ais q u e u m ser d e s e s ­
p e r a d a m e n t e p e r d id o , é a in d a i n f i n ita m e n te m a is
v e rd a d e ir o q u e D eu s agiu, age e ag irá p o r n ó s de tal
so rte q u e ele te rá , p a ra t o d a p e rd iç ã o , u m a salvação
p r e p a r a d a . Tal é a fé p a r a a q u a l s o m o s c h a m a d o s na
Igreja, p e lo E s p írito Santo.
A c o n te c e q u e to d o s os n o s so s m o tiv o s de q ueixa,
m a s t a m b é m tu d o a q u ilo de qu e p o s s a m o s ser a c u s a d o s
c o m razão, to d o s os s u sp iro s d o s h o m e n s , to d a s as suas
la m e n ta ç õ e s e seus d e s e s p e ro s - dos quais n ã o c o n t e s ­
ta m o s a le g itim id a d e - se d is ti n g u e m r a d ic a lm e n te de
to d a s as fo rm a s de a m a r g u r a n o segu in te: é que, re d u z i-
Jesus C risto - 99

dos ao n o s so p ap el de a cu sad o s ou de a c u s a d o re s , n o s sa
força p a ra p r o te s ta r reside no fato de q u e n o s r e c o n h e ­
cem o s c o m o objetos da misericórdia divina. É u n i c a ­
m e n te q u a n d o n o s é d a d o m e d ir a p r o f u n d id a d e d o q ue
D eu s fez p o r n ó s que p o d e m o s to m a r c o n s c iê n c ia da
n o s sa m isé ria. Pois q u e m c o n h ec e a real m is é r ia d o h o ­
m e m s en ão aquele que co n h e c e a a u tê n tic a m i s e r i c ó r ­
dia de D eus?
A o b ra do Filho p re s s u p õ e a d o Pai e im p lic a a do
E sp írito S anto co m o co n s e q ü ê n c ia . O p r im e ir o artig o
in d ic a a o rigem , o te rc eiro a fin a lid a d e de n o s sa m a rc h a .
O s e g u n d o é o cam inho o n d e nos é d a d o a n d a r pela fé e
que e s te n d e d ia n te de nós a o b ra de D eu s e m to d a a sua
p le n itu d e .
O Salvador e o Servo
de Deus

O no m e de Jesus e seu título, o Cristo, designam a pessoa e


a obra do hom em , objeto de escolha divina,
em q uem se encontra manifesta e cumprida, a missão p r o ­
fética, sacerdotal e real do povo de Israel.

O seg u n d o artigo do Símbolo se abre p o r dois te r ­


m o s de o rig em estrangeira e que c o m a n d a m to d o o seu
conteú do : Jesus Cristo. O p rim eiro é u m n o m e p ró p rio
que desig na u m ind ivídu o em particular, o s e g u n d o é u m
título que caracteriza a sua função. Ao p r o n u n c ia rm o s
esse n o m e e esse título, “Jesus, o C risto”, so m os colocados
de im ed iato n o contexto da história e da linguagem do
povo de Israel. Eis, pois, b em delim itado o assu n to que
vai nos o c u p a r agora: Jesus, nascido em Israel, esse h o ­
m e m p a rtic u la r cuja função precisa consiste e m m a n ife s ­
ta r e c u m p rir o ser e a missão desse povo. D esd e o início,
as coisas a s s u m e m u m a fisionom ia m u ito p articular, a
p a rtir do fato de que o n o m e “Jesus” p e rte n c e à t e r m i n o ­
logia hebraica: Jesus é, com efeito, o equivalente de Josué,
vim n o m e que se en c o n tra com m u ita freq ü ên cia n o A n ­
tigo Testam ento, e, n o ta d a m e n te nvim caso, com vim certo
relevo. E m troca, o título “Cristo” é de o rig em grega ou,
mais exatam ente, a trad u ç ão do te rm o h ebraico “M essias”
102 - Hsboço de um a D ogm ática

qu e q u e r dizer: o ungido. Acontece, pois, que o co m plexo


“Jesus C risto ” já é, p o r si m esm o , o indício de u m certo
m o v im e n to histórico. Q u e u m ju d e u , q ue u m israelita,
que u m h e b re u de n o m e Jesus seja o C risto, eis o qu e já
co n stitu i u m certo corte d a história, de u m a h is tó ria que
passa através de u m p e q u e n o povo, Israel, p a r a e m e rg ir
en tre os gregos, vale dizer, n o m u n d o . N ão se p o d e d is s o ­
ciar o n o m e de Jesus C risto p a ra rete r s o m e n te u m de
seus c o m p o n e n te s . Jesus C risto n ão seria m ais ele m e s m o
se n ão estivesse, em sua pessoa, o Cristo, o r iu n d o de Is­
rael, id êntico ao ju d e u Jesus. Inversam en te, o ju d e u Jesus
não seria ele m e sm o se não existisse, n a sua fun ção , o
C risto de D eus, atestando no seio dos p ov os e n o coração
da h u m a n id a d e , o m istério e o alcance d a v ocação de Is­
rael. P ara p o d e r c o m p re e n d e r to d a a significação do
n o m e de Jesus Cristo, é preciso co n sid erá -lo s e m p re co m
essa d u p la significação p a rtic u la r e universal. U m a vez
que se esq ueça de u m em favor de ou tro, aco n tece q ue se
estará falando, n a realidade, de algu m outro.

O n o m e p ró p rio de Jesus significa literalm en te:


“Yahvé (o D eus de Israel) ajuda!” O título de C risto, de
Messias, servia p a ra designar, entre os ju d e u s d o te m p o
de Jesus, o h o m e m dos últim o s tem p os, e s p e ra d o p o r Is­
rael e d e sig n a d o p a ra fazer b rilh a r aos olhos de to d o s a
glória de D eus, ao m e sm o te m p o o cu lta e p ro m e tid a a seu
povo. D esig nav a o h o m e m c h a m a d o p a ra lib e rta r os j u ­
deus d a m isé ria e d a opressão e que, ele m e s m o o r iu n d o
de Israel, devia rein a r sobre os povos. E q u a n d o Jesus de
N azaré aparece e prega, q u an d o , saído de u m h u m ild e v i­
larejo d a Galiléia, ele em erge em p le n a h is tó ria de Israel -
essa h istó ria de que, d esde sem pre, Jerusalém parece te r o
dever de a n u n c ia r a realização - nós a p r e n d e m o s que, sob
essa m iste rio s a figura, n a pessoa do filho de José, é o es­
p e r a d o Messias, o h o m e m dos últim o s te m p o s q u e está
O Salvador e o Servo de D eus - 103

aqui; é c o m o tal que Jesus se apresenta e é co m o tal que é


reconhecido. A contece que, entre to d o s os q ue p o rta v a m
o n o m e de Jesus (D eus ajuda, Salvador), m u ito c o m u m na
época, só u m concretiza em sua pessoa, p o rq u e tal é do
ag rado de D eus, a realização da p ro m essa divina. E, ao
m e sm o tem p o, essa realização c o n ce rn e ao d e stin o de Is­
rael, e m a rc a a realização e a revelação de sua vocação es­
pecífica no seio da história universal p a ra to d o s os povos,
p a ra o c o n ju n to da h u m a n id ad e. É significativo que a
Igreja p rim itiv a não te n h a falado de Jesus, o Messias, mas
sim de Jesus Cristo: é a p o rta ab erta p a ra o m u n d o . C o n ­
tudo, o n o m e ju d e u de Jesus perm a n ece, a te sta n d o qu e é
de Israel que a salvação se estende p a ra o m u n d o inteiro.

Talvez vocês achem estran h o que eu insista dessa


m a n e ira no n o m e de Jesus e no seu título. É que, n o povo
de Israel, co m o de resto em to d a antigü id ad e, os n o m e s e
os títulos n ão tin h a m , com o é o caso hoje, u m cará ter p u ­
ra m e n te exterio r e fortuito. Assim, o n o m e e o título de
Jesus C risto e x p rim e m realm ente algo, eles c o n stitu em ,
no sentid o m ais concreto, u m a revelação. N ão é, pois,
questão de ver aí u m simples signo exterior, u m c h a m a ­
m ento, u m o rn a m e n to arbitrário. L em b re m o -n o s , é o
anjo que declara a Maria: “Tu lhe darás o n o m e de Jesus”
(D eus ajuda, Salvador, Soter em grego!) (M t 1.21), D a
m e sm a m a n eira, o título “Cristo”, longe de ser u m a a d j u n ­
ção acidental, p erte n ce ao h o m e m que ele desig na em v ir ­
tu d e de u m a necessidade interna. É im possível dissociá-lo
do n o m e q ue o qualifica; ao contrário, deve-se d iz er que o
h o m e m que p o r ta esse n o m e é feito p a ra p o r ta r esse tí­
tulo. N ão se tra ta de u m a dualid ad e entre o n o m e de u m
p e rs o n a g e m e sua vocação. É desde o n a s c im e n to qu e Je­
sus foi c o ro ad o co m o título de Cristo, de sorte qu e sua
pessoa não existe sem seu título, n e m seu título existe
sem a sua pessoa. Ele é o Josué p o r excelência, o D eus
104 - Esboço de um a D ogm ática

“que ajuda” p o rq u e foi escolhido p a ra realizar a o b ra e a


função do Cristo o servo de D eus, o r iu n d o de Israel, n o
seu ofício profético, sacerdotal e real.
É preciso q ue nos d e te n h a m o s aqui p a ra s u b lin h a r a
im p o r tâ n c ia do fato de que é d e n tro d a p esso a c o n c re ta
d o h o m e m Jesus C risto que se realiza e se m a n ife sta a
m issão específica desse povo único qu e é o p o v o de Israel,
o povo ju d eu . Cristo, o servo de D eus p a ra to d a s as n a ­
ções, e Israel, o povo do qual é o riu n d o , n ão p o d e m ser
separado s; são duas grand ezas ligadas in d isso lu v e lm e n te
pelo te m p o e pela etern id ad e. Israel n ã o é n a d a sem Jesus
C risto e, in v e rsam en te , Jesus C risto n ão seria Jesus C risto
sem Israel. P o rtan to , é preciso que co m e c e m o s p o r o lh a r
Israel p a ra p o d e r m o s ter u m a visão c o rre ta de Jesus
Cristo.
Israel, o povo d o A ntigo T estam ento, é o p ovo da
aliança. Sua h istó ria é a da aliança que D eu s co nclui co m
ele sob fo rm as sem p re renovadas. É n o co ntex to de Israel
que esse conceito insólito de u m a aliança e n tre D eu s e o
h o m e m nasce e se e n c o n tra em seu v erd ad e iro lugar. E é
p o r q u e essa aliança é a de D eus com o p ovo de Israel que
não se p o d e c o n fu n d i-la com u m a idéia filosófica, u m a
idéia geral. Longe de se rm o s solicitados p o r u m a idéia,
com efeito, e n c o n tra m o - n o s po stos d ian te do fato de que
D eu s c h a m o u A braão n o m eio dos povos p a ra se ligar a
ele e à sua “p o s te r id a d e ” (G n 17.7). Toda a h is tó ria do
A ntig o T estam en to e, p o r conseguinte, to d a a h is tó ria do
povo de Israel, coincide ex atam ente co m a d a aliança de
D eus c o m o seu povo, desse povo co m esse D eu s que se
c h a m a Yahvé. T end o reco n h e cid o que a fé cristã se dirige
a to d o s os povos e que o D eus que ela p rega é o D eus do
m u n d o inteiro, nós não devem os nos esq u ece r que o
p o n to de p a rtid a dessa m e n sa g e m universal, e n g lo b a n d o
to d o s os h o m e n s, é u m a ação p a rtic u la r de D eus, ação in-
O Salvador e o Servo de Deus - 105

sólita e que nos parece terrivelm ente arb itrária pela qual
ele se to rn a o D eus de Abraão, de Isaac e de Jacó. D e sorte
que a p e d r a de to q u e de to d a ação de D eus en tre os h o ­
m e n s deve ser sem pre de novo esta ação p a rtic u la r do
D eus de A braão, de Isaac e de Jacó. O povo de Israel, tal
co m o aparece no A ntigo Testam ento, o c h a m a d o povo
eleito, p o sto à parte, co m todos os seus en g an o s e to d a s as
suas fraquezas, objeto incessante do a m o r e da m is e r ic ó r ­
dia de D eus, m as ta m b é m dos seus ju lg am en to s m ais r a ­
dicais, é a figura histórica da livre graça de D eu s p a ra
to d o s nós. Mas n ão se trata som ente de u m fato histórico:
a livre graça de D eus b rilh a n d o sobre Israel, sobre os j u ­
deus, não é u m a coisa q ue os cristãos de hoje, o riu n d o s
do pag an ism o , p o ssa m co nsiderar com u m certo desliga­
m e n to sob o pretexto de que ela não lhes diz respeito. De
fato, nós não estam os “livres” da h istó ria de Israel! U m
cristão que dissociasse co m p leta m en te a Igreja d a S in a­
goga m o s tra ria com isso que ele não c o m p re e n d e u n e m
u m a , n e m outra. Por to d a parte o n d e se p r e te n d e u ergu er
u m m u ro en tre a Igreja e o povo jud eu, a c o m u n id a d e
cristã se viu d ire ta m e n te am eaçada. Pois essa é to d a a r e a ­
lidade da revelação divina que assim se renega im p lic ita ­
m ente; desde então, p o r p o u co que tal filosofia ou tal
ideologia v e n h a a se im por, assiste-se ao ad v en to de u m
cristian ism o do tipo helénico, g erm â n ico o u outro. (R e­
co n h ec em o s, a esse respeito, que existe desde h á m u ito
te m p o u m “cristian ism o helvético” que não vale n a d a
mais que seu equivalente germânico!).

Vocês co n h e c e m o episódio que e x p rim e m ais p e r ­


feitam ente o significado do povo judeu? F rederico II u m
dia p e d iu a seu m edico pessoal, o suíço Z i m m e r m a n n ,
origin ário de Brugg, n a Argóvia: “D iga-m e, Z i m m e r ­
m a n n , você p o d e m e dar u m a só prova a favor d a ex istên ­
cia de D eu s?” E o ou tro responde: “Senhor, os Judeus!”
106 - Esboço de um a D ogm ática

Ele quis d iz er c o m isso: caso se q u eira u m a p ro v a a b s o lu ­


ta m e n te visível, evidente p ara to d o s e irrefutável d a exis­
tência de D eus, é p a ra os ju d e u s que se deve olhar. Pois, é
u m fato, os Judeus existem ain d a hoje. Às cen ten as, as p e ­
q u e n a s nações do O rien te P ró x im o d e sa p a re c e ra m da
cena histórica, to d a s as antigas tribos de o rig e m sem ítica
se d is p e rs a ra m o u d esap arec eram n a m a ssa d os o u tro s
povos; só, d e n tre todos, esse p e q u e n o pov o subsistiu. E
q u a n d o se fala de sem itism o o u de a n ti-s e m itis m o , é
nesse p e q u e n o p ov o que se pensa, m ira c u lo s a m e n te p r e ­
servado, co m as p a rtic u la rid a d e s físicas e in telectuais que
o fazem re c o n h e c id o e nas quais se baseia p a ra a f ir m a r de
q u a lq u e r um : “É u m n ã o -a ria n o , u m m eio, u m q u a r to de
n ã o -a r ia n o ”! Sim, caso se deseje a b s o lu ta m e n te u m a
prova d a existência de D eus, não se deve b u s c a r m ais
longe! Pois, n a p esso a de u m ju d e u é u m testem unh o que
nós e n c o n tra m o s , o te s te m u n h o d a aliança de D eu s co m
A braão, Isaac e Jacó e, pois, co m nós todos! M e s m o q u e m
não c o m p re e n d a a Bíblia p o d e aqui literalm en te ver u m a
le m b ran ça.
E n ã o v êem vocês n o que reside to d o o v e rd a d e iro
alcance teológico, to d a a significação intelectual e e s p iri­
tual disso q u e foi o m o v im e n to do N acio n a l-so cialism o ?
N ão é n o fato de que ele foi, d esde o com eço, v io le n ta ­
m e n te an ti-s e m ita , n ão é precisa m en te d e n tro d a n itidez
d e m o n ía c a co m a qual a firm o u sem cessar: o Judeu, eis o
inim igo? Sim, sem n e n h u m a dúvida, o in im ig o de u m a tal
e m p re sa n ão p o d e r ia ser o u tro qu e n ão o ju d e u . Pois é no
seio d o po vo ju d e u que se co nserv ou, viva e real, até este
dia, a revelação de D eus no que ele tem de ú n ic o e e s c a n ­
daloso p a ra a razão.
Foi Jesus, o Cristo, o Salvador e o Servo de D eus,
q u e m c u m p r iu e to r n o u m an ifesta a m issão d o p ovo de
Israel, foi ele q u e m realizou a aliança selada e n tre D eu s e
O Salvador e o Servo de Deus - 107

Abraão. Assim, q u a n d o a Igreja declara sua fé nele, re c o ­


n h ece -o c o m o o Salvador e o Servo de D eus p a ra n ó s e
para to d o s os ho m e n s, incluída a im en sa m u ltid ã o dos
que não têm n e n h u m vínculo direto co m o povo de Israel,
ela o faz não apesar do fato de que Jesus foi u m ju d e u
(com o se existisse nisso alg um a coisa de infam ante!).
N em se p o d e r ia ta m b é m dizer que, depois de tud o, se Je­
sus C risto é judeu, é p o r u m simples acaso h istórico e que
ele p o d e r ia m u ito b e m te r nascido de u m o u tro povo. Isso
seria u m e rro grave. A rigor devem os ao c o n trá rio afir­
m a r qu e esse Jesus Cristo que nós, cristãos, o riu n d o s do
pag an ism o, c h a m a m o s nosso Salvador e em q u e m s a u d a ­
m o s a realização da o bra de D eus p a ra nós, foi necessaria­
m ente u m Judeu. É impossível passar ao largo desse fato,
inseparável d a m anifestação concreta de D eus, de sua r e ­
velação. Jesus C risto é, com efeito, ao m e sm o te m p o a r e ­
alização da aliança de D eus com A braão, Isaac e Jacó e a
realidade desta aliança - e não o in v e n to r de u m a idéia a
respeito desta o u daquela fo rm a de aliança - cuja realiza­
ção e realidad e é a razão de ser e o objetivo de to d a a c ria ­
ção, vale dizer, de tu d o o que existe em distinção a Deus.
O p ro b le m a de Israel é, send o inseparável do p ro b le m a de
Cristo, o problem a da existência. O h o m e m que te m v e r­
g o n h a de Israel tem v ergo nha de Jesus C risto e, p o r isto
m esm o , de sua p ró p ria existência.

Eu m e p e rm iti s u b lin h a r a existência dessa questão


em razão m e sm o do caráter fu n d a m e n ta lm e n te a n ti-s e ­
m ita do N acional-socialism o. N ão é p o r acaso, co m
efeito, que aqui m e sm o na A lem anha, nós p u d e m o s e s c u ­
ta r o fam oso slogan: Judá, eis o inimigo. É possível, b e m
e n ten d id o , lançar sem elhante slogan, certas c irc u n s tâ n ­
cias p o d e m m e sm o to rn a r a coisa necessária, m as que se
preste aten ção então ao que se faz! A tacar Judá é atacar
em sua base a p ró p ria obra de D eus e sua revelação sem
108 - Esboço de um a D ogm ática

as quais m u ito s im p lesm en te n ão existe n ad a. Sim, é a


p r ó p ria o b ra de D eu s e to d a sua revelação qu e fo ra m p o s ­
tas em q u estão pelo que se passo u n a A le m a n h a sob o
reino do N acio n a l-so cialism o e de seu a n ti-s e m itis m o r a ­
dical; e isso n ão s o m e n te n o plano das idéias e das teorias,
m as d e n tro d a p r ó p r ia vida, no p la n o dos a c o n te c im e n to s
q u o tid ian o s. C e r ta m e n te p o d e -s e a f irm a r q ue u m tal
conflito fosse inevitável, m as então que n ão se fique a t u r ­
d id o pela m a n e ir a c o m o ele te rm in o u . U m po vo - e esse
era o o u tro aspecto do N acio n a l-so cialism o - q ue se d e ­
clara eleito e se ap resen ta pelo critério ab soluto de to d a
verdade, acaba p o r se chocar, cedo o u tarde, c o m o v e r d a ­
deiro p ov o eleito. Já essa simples p rete n sã o co n stitu iu , a n ­
tes m e sm o que fosse questão de an ti-sem itism o , u m a
negação radical de Israel, vale dizer, de Jesus C risto e, fi­
n alm en te , do p ró p rio D eus. O a n ti-s e m itis m o é u m a
f o rm a de ateísm o ao lado do qual o ateísm o c o rre n te tal
c o m o se e n c o n tra , p o r exemplo, n a Rússia, é u m a coisa
b e m an ó d in a . Pois o ateísm o n a base do a n ti-s e m itis m o
toca e m realidades, q u e r seus iniciadores e seus r e p r e s e n ­
tantes estejam conscientes disto o u não. Logo ele se vê em
conflito co m o p ró p rio Cristo. T eolo gicam ente fala n d o -
não faço p olítica aqui - sem elhante e m p re sa devia n e c e s ­
s a ria m e n te eco a r e se d esm o ron ar. H á aqu i u m a ro ch a
c o n tra a qual vêm se q u e b ra r to d o s os assaltos d o h o m e m ,
p o r m ais p o te n te s que eles sejam. Pois a m issão d o povo
de Israel, sua vocação profética, sacerdotal e real é i d ê n ­
tica à v o n ta d e de D eus e à sua obra de salvação tais co m o
se a c h a m c u m p rid a s e m anifestadas em Jesus Cristo.

M as qual é, então, ju s ta m e n te essa missão de Israel


que p re s s u p õ e to d a a Bíblia q u a n d o ela fala da escolha
desse povo, de seu caráter único, de sua existência à
parte? Ela consiste em rep resen tar D eus no seio d a h u m a ­
nidade. Israel só existe na m e d id a em que c o m p le ta essa
O Salvador e o Servo de D eus - 109

m issão temível: ser u m a c o m u n id ad e, u m povo, u m a h u ­


m a n id a d e a serviço de D eus no m u n d o . N ão é, pois, p ara
sua p ró p ria glória n em para satisfazer seu o rg u lh o n a c io ­
nal que esse povo foi posto à parte, m as sim p a ra os o u ­
tros povos, para ser seu servo. Ele é o m a n d a tá r io de D eus
sobre a terra. Está en carregado de a n u n c ia r a sua palavra:
essa é a sua m issão profética. Ao m e sm o te m p o ele deve
te s te m u n h a r p o r to d a a sua existência que D eus não se li­
m ita a falar, m as que interv ém ele m e sm o e se sacrifica:
essa é a sua m issão sacerdotal. Enfim , através de sua i m ­
p o tê n cia política, precisam ente, ele deve atestar en tre os
povos a so b eran ia de D eus sobre tod os os h o m e n s: essa é
sua m issão real. A h u m a n id a d e necessita desse triplo te s­
te m u n h o . É essa m issão p articu la r de Israel, sob seus três
aspectos, que o A ntigo T estam ento q u er colocar sob n o s ­
sos olhos q u a n d o celebra a fidelidade de D eus a esse p e ­
q u e n o povo cuja existência está c o n s ta n te m e n te
salvaguardada. Sua missão profética aparece m ais p a r t i ­
cu la rm e n te através de certos p erso nagen s cujo p ro tótip o,
depois de A braão, é Moisés, o f u n d a d o r da u n id a d e israe­
lita, ao qual su cedem essas figuras tão e s p a n to s a m e n te d i ­
versas que são os profetas. Mas, ao m e sm o te m p o , através
da existência do Tabernáculo, do Tem plo e dos sacrifí­
cios, p o d e -s e ver se d efinindo o seg u n d o aspecto desse
te ste m u n h o : o aspecto sacerdotal. É d u ra n te o rein a d o de
Davi que aparece de u m a m a n e ira exem plar a m issão de
Israel: ser o representante da so b eran ia de D eus sobre a
terra. C o n tu d o - e isto nos co ncern e d ire ta m e n te - é fi­
n alm e n te no h o m e m , Jesus de Nazaré, o r iu n d o de Israel,
ind isso lu velm ente ligado a Israel, que se c u m p re em to d o
o seu rigor a m issão confiada a esse povo.

A m issão de Israel deve ser co n sid e ra d a c o m o p le ­


n a m e n te revelada e c u m p rid a em Jesus Cristo. É p o rq u e,
ao longo de to d a história desse povo, ela p e rm a n e c e u , de
1 1 0 - Esboço dc um a D ogm ática

início, oculta e sem efeito. Q u a n d o se deseja ler a te n ta ­


m e n te o A ntig o T estam ento, se perce b e de im e d ia to e
q u ase a cad a p ágina, que esse livro não se p re o c u p a n e m
u m p o u c o e m exaltar Israel co m o “raça” ou nação. Ao
co n trá rio , a im a g e m que ele d á do h o m e m israelita é e x ­
tr a o r d in a r ia m e n te p o u c o edificante: é a de u m ser qu e se
opõe c o n s ta n te m e n te à escolha e à vocação d a q ual é o b ­
jeto, que se m o s tr a in d ig n o de sua m issão e que, p re c isa ­
m e n te p o rq u e recusa a graça que lhe é feita, se vê sem p re
sob os golpes do ju lg a m e n to de Deus. H istó ria m e d ío cre,
essa do povo de Israel, que c a m in h a de catástrofe e m c a ­
tástrofe, p o r causa de suas repetidas infidelidades. A in fi­
delidade só p o d e significar a infelicidade e a ru ín a ,
c o n fo rm e o a n u n c ia ou c o n firm a a pregação dos profetas.
E qual é o resu ltad o dessa história la m entável7. A profecia
cessa e não resta a esse povo m ais que u m a lei escrita,
m a rc a d a pela esterilidade. O te m p lo de Salom ão, que
sim bolizava a e sp eran ça de Israel e sua m issão sacerdotal,
não é m ais qu e r u ín a e cinzas. E o qu e o c o rr e u co m a
rein o de Davi? Q u a n to p esar p a ra to d o s os israelitas p e n ­
sar em tu d o o que eles p e r d e r a m sob os golpes do ju lg a ­
m e n to de D eus, cujo a m o r foi sem p re tão m al-
reco m p en sad o . E q u a n d o en fim aparece o M essias que
eles e s p e ra ra m d u r a n te tão longo tem po , eles o c ru c ifi­
cam , c o n fir m a n d o p o r esse ato su p re m o o que tin h a sido
sua a titu d e n o c u rso de to d a a sua história. Eles v êem nele
u m b lasfem ador, eles o en tre g am aos pagãos e a Pilatos,
p a ra qu e ele seja p e n d u r a d o n o m adeiro. Eis Israel, eis o
po vo eleito, eis o que ele faz da sua escolha, d a sua m i s ­
são: ele se julga e se c o n d e n a a si p ró prio . O a n ti- s e m i­
tism o v em ta rd e demais! A sentença sobre Israel já está
p r o n u n c ia d a e c o m p a ra d o s a essa sentença, to d o s os o u ­
tros ju lg a m e n to s c o n d u z id o s sobre esse povo são in s ig n i­
ficantes. D aí se segue que a m issão desse p ov o te n h a se
O Salvador c o Servo de D eus - 1 1 1

to r n a d o caduca? Não, pois o A ntigo T estam ento n ão se


cansa de afirm ar: a escolha de D eus é coisa séria, ela p e r ­
m a n ece e te rn a m e n te válida. O h o m e m , tal co m o Israel
n o -lo m ostra, é e p erm an ece, a despeito de tudo, o eleito
de Senhor, seu m a n d a tá rio no m u n d o . A fidelidade de
D eus triu n fa sobre a infidelidade. E é assim qu e e m tu d o
sen do u m a d em o n stra ç ã o viva da in d ig n id a d e do h o ­
m e m , Israel to rn a-se ao m e sm o te m p o o sinal d a livre
graça de D eus, a qual, sem querer levar em co n sid era ção
nossa atitu de nos dá o benefício de u m p ro d ig io so “a p e ­
sar de tu d o ”. O h o m e m não é mais que objeto d a m is e r i­
córdia divina e desde que ele queira ser m ais do qu e isso,
deve necessariam ente p rotestar c o n tra a existência do
povo de Israel. Israel d ep e n d e to talm en te e exclusiva­
m e n te de Deus. Está p ara sem pre re d u zid o a re c o rre r a
ele som ente. Leiam os Salmos: “Tu so z in h o ...” O h o m e m
não p o d e mais que escutar D eus que lhe fala e cuja s o b e ­
ran ia d o m in a -o con stan tem en te, q u aisq u er qu e sejam
suas tentativas p a ra lhe escapar. E é q u a n d o a m issão de
Israel se c u m p re com to d o o seu rigor, isto é, p o r ocasião
da crucificação de Jesus de Nazaré, que se p o d e c o m p r e ­
ender, enfim , o m istério desse povo. Pois q u e m é, então,
esse Jesus crucificado senão, aind a u m a vez, esse m e sm o
Israel p e c a d o r e ímpio, Israel, o blasfem ador? Mas, d o r a ­
vante, ele se c h a m a Jesus de Nazaré. Se c o n s id e ra rm o s
agora a h istó ria desses dois m ilênios o n d e o ju d e u a p a ­
rece sem cessar com o u m m ilagre e u m absurdo , c o m o
u m obstáculo que desencadeia o ó dio dos povos - e cada
u m p o d e r ia colocar aqui seu p e q u e n o refrão anti-sem ita!
- , o que p o d e ser essa h istória e s tra n h a senão a c o n f ir m a ­
ção da rejeição de Israel, tal com o D eus a m a n ifesta no
G ólgota, m as tam b ém da escolha desse povo ao qual D eus
p e rm a n e c e fiel, através de todas as vicissitudes? P o d e m o s
afirm ar isso p o rq u e essa fidelidade de D eus tr iu n f o u s o ­
1 1 2 - Esboço de um a D ogm ática

bre o Calvário. O n d e D eus esteve m ais p e r to de seu povo


senão n o G ólgota? O n d e esteve ele, através desse povo,
m ais fo rte m e n te do lado de to d o s os h o m e n s, de to d o s os
povos? Vocês p e n s a m q ue estaria em no sso p o d e r excluir
os ju d e u s d a fidelidade de Deus? Vocês ac re d ita m v e r d a ­
d e ira m e n te que p o d e ría m o s privá-los dela? A fidelidade
de D eus c o m relação a Israel é p recisa m en te a g a ra n tia de
sua fid elidad e co m relação a nós, co m relação a to d o s os
h o m e n s.
M as é preciso virar a página. Jesus C risto é o coroa-
m e n to e a realização de Israel. Se v o lta rm o s ao A ntig o
T estam ento, n ão d eix am o s de e n c o n tr a r nele ig u alm ente,
p o r to d a a sua extensão, h o m e n s que, ap esar de sua r e ­
volta e de sua perdição, sabem , às vezes - coisa im p re s s io ­
n a n te - , re c o n h e c e r sua escolha. M as essa espécie de eco
fiel, de resp o sta da piedade, longe de p ro v ir do p ró p rio Is­
rael, é u m fru to ren o v ad o da graça de D eus. C o m efeito, a
graça, desde qu e está aqui, obriga os h o m e n s a lo u v a r a
D eus c o n tra sua v o n ta d e e a fazê-los e n te n d e r a resp o sta
qu e não p o d e d eixar de suscitar neles, co m o u m sim ples
reflexo, a luz que os visitou. H á u m a graça d e n tro do ju l­
gam ento. O A ntig o T estam ento a te s te m u n h a n ão co m o
u m a q u a lid a d e do h o m e m israelita, m as c o m o u m m i la ­
gre de D eus. É apesar das virtudes e dos p e c a d o s desse
povo que sua h istó ria co n tém sem pre os te s te m u n h o s que
se a b rem p o r estas palavras: “A ssim fala o E te r n o ...” (Is
43.1). N ão são mais q ue respostas, ecos do m ilagre da fi­
d elid ad e de D eus. O A ntigo T estam en to fala de u m “r e ­
m a n e sc e n te ”. O que d isting ue esse re m a n e s c e n te n ão é a
v irtu d e o u a piedade, m as o fato de ter sido c h a m a d o . Ele
c o n té m os p eca d o res m a n tid o s no freio pela graça, pecca-
tores justi.
A revelação atinge seu p o n to c u lm in a n te n a e x istê n ­
cia de Jesus de Nazaré. Jesus é o riu n d o de Israel, n ascido
O Salvador e o Servo de D eus - 113

da V irgem M aria e, contudo, ele vem de o u tr a parte, do


alto; co m o tal, ele revela e c u m p re a aliança. Israel não
u m d o e n te que se recupera, é aquele que ressuscita dos
m ortos. D esde que Jesus aparece, é o ju lg a m e n to de D eus
que brilha; este julg am en to vai ao en c o n tro de to d o s
aqueles que o h o m e m p ro n u n c ia c o n tra si m esm o , ele
lhes retira sua ú ltim a aparência de realidade. A fidelidade
de D eus triu n fa no oceano da m iséria e p e c a d o h u m a n o s.
D eus tem m isericó rd ia do h o m e m . Este se liga a ele no
m ais ín tim o de seu ser. Ele jam ais deixa de a tra ir co m
cordas de a m o r povo infiel. E eis que este h o m e m de Is­
rael, n ão p o r sua natureza, m as p o r u m m ilag re da graça,
de novo se ergue em Israel, triu n fa d a m o r te é elevado à
direita de Deus!
Israel é, no fundo, a projeção da livre graça de Deus.
Ele fo rm a o q u a d ro do a co n tecim en to decisivo o nd e,
d e n tro d a sua relação co m o h o m e m , D eus se to r n a visí­
vel: a ressurreição de Jesus Cristo. O h o m e m aparece d o r a ­
vante d e n tro da luz da glória de Deus. Tal é a graça, o
fru to da c o n d esce n d ên cia de D eus p a ra co m o h o m e m . E
o lu gar desse evento é o h o m e m Jesus, o r iu n d o de Israel.
E a co n seq ü ên c ia desse evento que ilustra u m a vez m ais o
caráter positivo da graça, é essa extensão p ro d ig io sa da
aliança de A braão a tod os os o u tros h o m en s.
“Ide p o r to d o o m u n d o e pregai o E vangelho a to d a
criatura” (Mc 16.15). Tal é a graça: sua n atu re za é se es­
tender, ir do p a rtic u la r ao geral. Mas, p o rq u e a salvação
vem dos ju d e u s, esse povo está n ão so m en te sob o golpe
do julg am ento , m as ta m b é m sob o benefício d a graça. A
graça que rep o u sa sobre Israel, en q u a n to povo eleito e
ch am ado , é visível até os nossos dias n a Igreja, q ue é es­
sen cia lm e n te c o m p o sta p o r ju d e u s e pagãos. N a epístola
aos R o m ano s, capítulos 9-11, o apóstolo P aulo n ão se
cansa de dizer que não h á u m a Igreja de ju d e u s e u m a
1 1 4 - Esboço dc um a D ogm ática

Igreja de pagãos, m as que a Igreja é a c o m u n id a d e ú n ic a


de h o m e n s o riu n d o s de Israel e de pagãos. Essa d u p la c a ­
racterística é con stitutiv a d a Igreja e longe de se n tir v e r ­
go nh a, ela deve c o n s id e ra r c o m o u m títu lo de glória o
fato de c o n ta r e m seu seio co m d escen d e n tes au tên tic o s
de A braão. A existência de cristãos de o rig em ju d a ic a é a
m arca visível d a u n id a d e do povo de D eus que, visto de
u m lado, se c h a m a Israel, e, de outro, Igreja. E se existe
ainda, ao lado d a Igreja u m a Sinagoga que tira su a exis­
tência d a rejeição de Jesus C risto e da vã a m b ição de c o n ­
tin u a r a h istó ria de Israel, de fato, já h á m u ito te rm in a d a ,
não p o d e m o s ver aí m ais d o que u m tip o d a Igreja, c o m o
sua s o m b r a através dos séculos; co m o tal, ela c o n tin u a a
participar, q u e r q u eira q u e r não, do te s te m u n h o d a d o a
D eus e à sua revelação. A videira n ão está m o rta . O que
conta, é qu e D eu s a plantou, é o que ele fez nela e o qu e
ele lhe deu; e tu d o isso to r n o u - s e m a n ifesto e m Jesus
Cristo, o h o m e m o r iu n d o de Israel.
XII O Filho Único de Deus

A revelação de D eus tio hom em Jesus Cristo é com pu lsória


e exclusiva e se tra d u z p o r um a ação p le n a m e n te
salutar, po rq u e Jesus Cristo não é um ser
diferente de Deus, m as o Filho
único do Pai, isto é,
o p róprio D eus vivo, sua graça,
sua verdade e sua onipotência em pessoa;
com o tal, é o único verdadeiro M e d ia d o r entre D e u s
e todos os homens.

Eis-nos chegados à questão relativa à v e rd a d e ira d i ­


v in d a d e de Jesus Cristo. D e fato, no p o n to e m q u e c h e g a ­
m os, a resp o sta a essa questão n ão deixa m ais dúvida.
T entem o s apenas p erceber em que te rm o s essa re p o sta se
im p õ e a nós.
Ao longo de nossa exposição, te m o s c o n s ta n te m e n te
to p a d o co m o conceito de revelação o u d a P alavra de
Deus. Trata-se do ato pelo qual D eus se faz conh ecer, da
m e n sa g e m qu e ele m e sm o nos dá. N o m u n d o existem n u ­
m erosas revelações, oráculos e m e n sagens se a rro g a n d o a
q u alid ad e de “Palavras de D eus”. Trata-se, pois, de sab er -
e nós irem o s to m a r posição q u an to a isso - em q ue m e ­
did a isso que nós m esm os en te n d e m o s aqui p o r revelação
1 1 6 - Ksboço de um a D ogm ática

de D eu s se im p õ e e deve ser aceito co m o tal. É certo q ue a


h is tó ria d a h u m a n id a d e no seu c o n ju n to c o m o a dos i n d i­
víd uo s p a rticu la res é fértil em eventos de to d a n atu re za,
capazes de nos fazer sen tir “u m a p resen ça m isterio sa” que
se im p õ e a nós de m a n e ira irresistível, n o s su b ju g a e não
nos deixa mais. N ó s p o d e ría m o s facilm ente ilu strar a
coisa. A v id a h u m a n a é c o m o que p o n tu a d a de “revela­
ções”, q u e r se trate de amor, q u e r de p o tê n cia, q u e r de b e ­
leza, etc. P o rq u e seria necessário, então, que isso q ue aqui
d e n o m in a m o s revelação de D eus, ou seja, o evento c o i n ­
cidente c o m a v in d a de Jesus Cristo, fosse u m a revelação
exclusiva? A essa qu estão (sobre o “ab so lu tism o ” do c ris ­
tian ism o , veja Troeltsch), deve-se resp o n d er: de fato, e s ta ­
m os cercado s p o r m u itas ou tras “revelações” m ais ou
m e n o s co m p u lsó rias ou legítimas. Mas do p o n to de vista
da fé cristã nós te m o s o direito de a firm a r que lhes falta
u m a au to ridade últim a, absoluta, indiscutível. P od e-se
p e r c o r re r a s u r p re e n d e n te diversidade, d e ix a n d o -se vez
p o r o u tr a ilum inar, con ven cer ou subjugar; n ã o é m e n o s
v erd a d e que n e n h u m a delas p o ssu i esse s u p r e m o p o d e r
de im p e d ir qu e aquele que elas c a p tu ra ra m p o r u m in s ­
tante, se d e s p r e n d a em seguida, tal com o u m h o m e m que,
depo is de te r visto seu reflexo n u m espelho, c o n tin u e seu
c a m in h o e im e d ia ta m e n te esqueça o que viu. É evidente
que u m ele m e n to capital falta a esse tipo de revelações: a
força c o m p u lsó ria. N ão que elas sejam im p o ten tes, in s ig ­
nificantes, ineficazes, m as, e é aqui que a fé cristã nos
força a reco nhecer, elas são, enfim , apenas revelações da
gran deza, da potên cia, da b o n d a d e e d a beleza tal co m o
essas existem nesta terra criad a p o r Deus. A te rra está
ple n a de glória e m agnificência. Ela n ão seria n e m a cria­
ção de D eus, n e m o q u a d ro qu e ele fixou p a ra n o ssa vida,
se ela n ão estivesse repleta de revelações. Os filósofos, os
poetas, os m ú sico s e os profetas de to d o s os te m p o s o sa-
O Filho Ü nico de Deus - 117

bem . P o rtan to, falta a essas revelações, p ró p ria s d a terra, a


a u to rid a d e capaz de p re n d e r definitivam en te o h o m e m .
O h o m e m p o d e atravessar o m u n d o inteiro sem se sentir
preso a nada. Mas, p o d e ria m se tra ta r de revelações celes­
tes, q u er dizer, revelações do m u n d o invisível e in c o m p r e ­
ensível que nos ro deia p o r tod os os lados e exerce sobre
nós u m a pressão contínua. Q u an to s m otivos de espanto,
de e n ca n tam en to , existem nesse im en so d o m ín io e nos
escapam! O que seria o h o m e m sem essa p resen ça c o n s ­
tante do m u n d o celeste acim a de sua cabeça? C o n tu d o , as
revelações que se p o d e obter ali, p e rte n c e m ta m b é m à o r ­
d e m da criação: elas não p o ssu e m a a u to rid a d e d e r r a ­
deira. Falta-lhes algo. Todo o d o m ín io celeste p erm a n e c e ,
co m o o terrestre, subm isso à contingência. Ele se a p r e ­
senta p a ra nós co m o em b aixador e x tra o rd in a ria m e n te
b rilh an te de u m g ran d e m onarca; co ntudo , nós sabem os
que ele não é esse m o narca, m as so m en te o seu m e n s a ­
geiro. É assim co m todas as potências do céu e d a terra,
com todas as suas “revelações”. Sabem os que existe ain d a
“algu m a coisa” acim a delas. Por mais form idáveis que elas
p u d e s s e m ser, m e sm o que elas alcançassem a en v e rg a ­
d u ra cia b o m b a atômica, elas não seriam capazes de nos
p re n d e r em últim a instância, n e m nos su b ju g ar d e fin iti­
vam ente. Si fra ctu s illabitur orbis, im p a vid u m fe rie n t rui-
nae! (H orácio). A h u m a n id a d e n ão d e m o n s tro u , m ais de
u m a vez, através desses últim os anos de g u erra, qu e ela
p e rm a n e c e invulnerável aos piores aco n tecim en to s? Na
verdade, fora do pró p rio Senhor, não h á s e n h o r capaz de
p a rtir o coração do h o m e m . Impassível, a h u m a n id a d e
atravessa todas as ru ín as e p o d e resistir a todas as p o t ê n ­
cias deste m u n d o .

Q u a n d o , pois, a Igreja cristã fala de revelação, não é


dessas m anifestações terrestres ou celestes, p o r m ais altas
que sejam elas, que ele q u er falar e sim da p o tê n c ia q ue se
1 1 8 - Esboço de um a D ogm ática

e n c o n tr a acim a de todas as po tências, q u a is q u e r q u e se­


jam ; n u m a palavra, trata-se d a revelação do próprio D eus
e n ão d a revelação de u m divino cá de baixo o u lá de
cima. Se, pois, a v erd a d e q ue é o objeto desta conversação,
a saber, a revelação de D eus em Jesus Cristo, te m u m c a ­
ráter c o m p u ls ó rio e exclusivo, se ela é v e rd a d e ira e to t a l­
m e n te salutar, é p o rq u e ela não d estaca u m a realidad e
d iferente e s e p a ra d a de D eus, celeste o u terrestre, m a s sim
o ser ín tim o de D eus, a p ró p ria p esso a de D eu s A ltíssim o,
c ria d o r do céu e da te rra do qual n os fala o p r im e iro a r ­
tigo do Símbolo. Nas inu m eráveis p assagens o n d e Jesus
de N azaré (que a Igreja p rim itiv a re c o n h e c e u e d eclaro u
c om o sen d o o C risto) é c h a m a d o o S e n h o r (Kyrios), o
N ovo T estam en to n ão faz o u tra coisa sen ão re to m a r o
te rm o “Yahvé” pelo qual o A ntigo T estam en to d esigna o
p ró p rio D eus. Esse Jesus de N azaré qu e atravessa das ci­
d ades e vilas d a Galiléia, e sobe a Jerusalém , o n d e foi a c u ­
sado, c o n d e n a d o e crucificado, é o E te rn o (Yahvé) de
q u e m fala o A ntigo T estam ento, é o C riador, é o p ró p rio
D eus. U m h o m e m co m o to d o s nós, pois, situ a d o no
te m p o e n o espaço, p o ssu i to d o s os atrib u to s de D eus,
sem deixar, c o n tu d o , de ser h o m e m , isto é, p le n a m e n te
criatura. O p ró p rio C r ia d o r se to rn a , sem e n fra q u e c e r em
n a d a sua d iv in d ad e, n ão u m sem i-deus, não u m anjo, m as
m u ito sim p lesm en te, m u ito realm ente, u m h o m e m . Eis o
que q u e r d iz er a C o nfissão de fé q u a n d o afirm a q u e Jesus
C risto é o Filho ú n ic o de Deus. Ele é o Filho de D eus, isto
é, D eus n o ato s o b e ra n o pelo qual ele dispõe de si mesmo.
Esse D eus que dispõ e assim de seu ser, esse Filho ú n ic o
de D eus, é esse h o m e m particular, Jesus de N azaré. P o rqu e
D eus n ão é s o m e n te o Pai, m as ta m b é m o Filho, p o rq u e
seu ser ín tim o é o lugar desse m o v im e n to c o n tin u o (ele é
D eus, m as, d e n tro do p ró p rio ato de seu ser, ele é o Pai e o
Filho), ele te m a facu ldade de ser, ao m e s m o te m p o , o
O Filho Ú nico dc Deus - 119

C ria d o r e a criatura, com o é, ao m e sm o tem po , o Pai e o


Filho. P o rq ue essa ação, essa revelação de D eus é a ob ra
do Filho e tern o de D eus ela ocupa, em c o m p leta le g itim i­
dade, u m lugar abso lu tam ente único em relação ao c o n ­
ju n to d a criação. Sim, p o rq u e aqui, o p ró p rio D eus
intervém , p o rq u e esta criatura é seu Filho, o a c o n te c i­
m e n to que se efetiva no h o m e m Jesus de N azaré possui
u m caráter com pulsório, exclusivo e p le n a m e n te salutar.
Ele se disting ue de tod os os ou tros a c o n tecim en to s que se
p ro d u z e m ao nosso red o r e que são ta m b é m , b e m e n t e n ­
dido, u m efeito da v o n ta d e e do desejo de Deus. A rev ela­
ção e a ação de D eus em Jesus C risto n ão são u m efeito
q u a lq u e r da sua vontade, m as o p ró p rio D eus in te rv in d o
na criação.

N o p o n to em que chegam os, m e p arece b a sta n te i n ­


d icad o d ar a palavra à Igreja do século IV que, n o c o n ­
texto da controvérsia relativa à d iv in d ad e de Cristo, se
ex p rim e assim: “C rem os n u m só Senhor, Jesus Cristo, Fi­
lho único de D eus, nascido do Pai antes de to d o s os s é c u ­
los, luz de luz, verdadeiro D eus de v erd ad e iro Deus,
gerado e não criado, de u m a m e sm a su b stân cia que o Pai
e p o r q u em tu d o foi feito, que, p o r nós, h o m e n s, e p o r
nossa salvação, desceu dos céus...” (C redo N iceno, 381
d.C.). N ão faltaram v itupérios co n tra essa fó rm u la ao
longo dos séculos e vocês encon trarão, certam en te, d u ­
ran te seus estudos, n u m e ro so s sábios e m e sm o p ro fesso ­
res que não c o m p re e n d e m e d ep lo ra m p r o f u n d a m e n te
que a Igreja te n h a p o d id o chegar aqui. Eu g ostaria que
agora vocês se lem brassem u m p o u co dessas lições e t o ­
m a ssem u m te m p o para refletir u m instante. Pois, to d o s
esses ataques co n tra o que se ch am a “o rto d o x ia” fazem re ­
alm en te p e n sa r nos “uivos dos lobos”,13 aos quais, m e sm o

13. No texto a le m ã o : W olfsgeheul. (N. d o T.).


120 - Esboço de um a D ogm ática

que se lhes a trib u a u m m ín im o de cu ltura, d ev em o s r e c u ­


sar ju n ta r-n o s . Sim, h á algo de b á rb a ro nos insu ltos p r o ­
feridos c o n tra os Pais d a Igreja antiga. P arece -m e que,
m e sm o sem ser cristão, deve-se te r u m p o u c o de respeito
p a ra re c o n h e c e r a en v erg a d u ra das tentativas teológicas
deles, e m p a rtic u la r n o p ro b le m a que nos ocupa. H o u v e a
p re s u n ç ã o de qu e as fórm ulas do S ím bolo de N icéia n ão
fossem bíblicas. M as h á m u itas verdades, r e c o n h e c id a ­
m e n te necessárias e b o as que não estão fo rm u la d a s co m
to d a s as letras n a Bíblia. A Bíblia não é u m livro de rece i­
tas, é u m d o c u m e n to ú n ic o d a revelação divina. É preciso
qu e a revelação nos fale de m a n e ira que p o s sa m o s c o m ­
preen d ê -la. E m cad a época, a Igreja viu-se n a o brigação
de re s p o n d e r ao que lhe era dito n a Bíblia. Ela viu-se
o b rig a d a a fazê-lo, cada vez, co m u m a o u tr a lín g u a e co m
o u tra s palavras, diferentes daquelas d a E scritura. O texto
de N icéia é u m a dessas respostas da Igreja q ue fo ra m te s ­
tadas e m com bate. Nesse caso, em particu lar, era a b s o lu ­
ta m e n te necessário que fosse co n d u z id o esse c o m b a te p o r
u m foto14: Jesus C risto era o p ró p rio D eus o u u m sim ples
h erói celeste o u terrestre? N ão se tratava de u m a q u estão
qualquer, vê-se; m as nesse iota é o E vangelho c o m o u m
to d o que estava em jogo. O u b e m seria c o m o p ró p rio
D eu s q ue nos rela cio n aríam o s em Jesus Cristo, o u b e m
c o m u m a criatu ra. A h istó ria das religiões c o n h e c e à p r o ­
fusão seres div in os ou sem i-divinos. L u ta n d o até o s a n ­
gue sobre o p o n to que nos ocu pa, a teolog ia antiga sabia,
pois, o que fazia.

C e r ta m e n te esse co m b ate n ão foi sem p re tã o e d ifi­


cante; ele se m is tu r o u b astan te com o “h u m a n o ”. M as será

14. N. d o Ed.: É o n o m e d a m e n o r letra d o a lf a b e t o grego, u s a d a a q u i


p a r a sig nific a r u m d e t a l h e q u e a lg u n s p o d e r i a m c o n s i d e r a r s e m im ­
p o r t â n c i a (cf. u s o s e m e l h a n t e p o r Je su s e m Mt 5.18).
O Filho Ú nico de Deus - 121

que esse lado desagradável m erece tal interesse? C a d a u m


sabe que os p ró p rio s cristãos não tiveram n u n c a a p r e te n ­
são de ser e n ão são anjos. N ão é lícito, q u a n d o u m a q u e s ­
tão essencial está em jogo, invocar, co m u m g ra n d e gesto
ab ençoado, a paz, a paz a q u alq u er preço; deve-se, ao
co ntrário, e m p e n h a r todas as forças em u m c o m b ate que
deve ser m e sm o levado até o fim, sem se co n sid e ra r n i n ­
guém . G raças a Deus, os Pais do século IV p o r m ais a b ­
surdos, mais h u m a n o s, mais pedantes que p o ssa m nos
p arec er hoje, não te m e ra m co n d u z ir u m tal com bate. T o­
das as suas fó rm ulas qu eria m dizer u m a só e a m e sm a
coisa: é que o Filho único nascido do Pai antes de to d o s
os séculos, luz de luz, verdadeiro D eus de v e rd ad e iro
D eus, não é u m a criatura, m as o p ró p rio D eus, d a m esm a
su bstân cia (e não de substância sem elh an te) que o Pai,
D eus em pessoa. “Por q u em tu d o foi feito e q u e m p o r nós,
os h o m e n s (...) desceu dos céus”. D esceu a nós: eis Jesus
Cristo. E eis co m o a Igreja antiga o viu, eis co m o ele se
im p ôs a ela e o te ste m u n h o que ela deu a ele n a sua C o n ­
fissão de fé, e que nos cham a ta m b é m a u m a confissão se­
m elhante. É ain d a possível, q u a n d o se c o m p re e n d e isso,
deixar de ad erir ao gran d e consensus da Igreja? Q u e i n ­
fantilidade p e rm a n e c e r em lam entações estéreis a p r o p ó ­
sito da o rto d o x ia e da teologia gregas! Isso n ão tem
n e n h u m a ligação co m a questão em si. E se as c ir c u n s tâ n ­
cias que cercaram a redação dos antigos sím bolos cristãos
n ão fo ram sem p re “edificantes”, não será p o r q u e tu d o o
que e m p re e n d e m o s nós, os h o m e n s, p e r m a n e ç a fo rço sa­
m e n te sujeito à caução, repleto de confusão e de in su fic i­
ência? M as é m u ito im p o rta n te passar p o r isso p a ra
atingir u m resultado m e sm o que p o u co claro e p e r t i ­
nente. D ei providentia et h o m in u m confusione!

M u ito sim plesm ente e m uito p raticam en te, o c o n ­


te ú d o dos antigos sím bolos deve nos p e r m itir ver co m
122 - Lisboço de um a D ogm ática

clareza; ao confessar a sua fé no Filho de D eus sob a


fo rm a que se conhece, os h o m e n s de N icéia p u s e r a m o
ded o sobre o que d istin g u e e d istin g u irá s em p re a fé cristã
disso q ue se c h a m a religião. N ós te m o s ligação co m o
p ró p rio D eu s e n ão co m q u a isq u e r deuses. É p r ó p r io d a fé
cristã nos fazer “p a rtic ip a r da n a tu re z a divina” (2Pe 1.4).
D o que se trata, de fato? D o a c o n te c im e n to pelo qual
D eus se a p ro x im o u de nós a tal p o n to que, pela fé, nós
p a rtic ip a m o s de seu ser. Jesus C risto é, pois, o M e d ia d o r
en tre D eu s e os h o m e n s. É d e n tro dessa p e rs p e c tiv a que
tu d o deve ser in terp reta d o : D eus se p õ e n o n o sso nível
p a ra nos elevar ao dele. Q u e u m tal m ilagre devesse se
p ro d u z ir e se te n h a efetivam ente p ro d u z id o , eis o qu e nos
faz m e d ir no sso p e c a d o e nossa m isé ria em to d a a sua
v e rd a d e ira p ro fu n d id a d e . É sobre esse m ilag re in aud ito,
esse a c o n te c im e n to que nos u ltrap assa to ta lm e n te , qu e a
Igreja e to d a a c r is ta n d a d e têm os olhos postos. D eu s se
d eu ele m e s m o a nós. E é p o r isso que to d a palavra, to d a
p ro p o s iç ã o cristã te m algo de absoluto, o que n ão seria
possível às o u tra s palavras h u m a n a s. A Igreja n ão tem
“o p in iõ e s ”, p o n to s de vista, convicções, ela n ão se deixa
levar p o r u m a idéia. Ela crê e ela afirm a sua fé, q u e r dizer,
ela fala e age a p a rtir da m e n sa g e m f u n d a d a e m C risto
que ela recebe do p ró p rio Deus. D aí o cará ter exclusivo de
seu e n s in a m e n to , de suas consolações e de suas e x o r ta ­
ções das quais to d a a força p ro ced e não dela m e sm a , m as
do a c o n te c im e n to p ro d ig io so pelo qual D eu s quis ser
para nós, em Jesus Cristo, seu Filho único.
Nosso Senhor

A existência do hom em Jesus Cristo é, em virtude da sua


divindade, a decisão soberana sobre a existência de
todo hom em . Ela está baseada no fa to de que,
pela dispensação de Deus,
este A lguém representa tudo e,
portanto, tudo está ligado e subjugado a este
Alguém. Sua com unidade sabe disso.
E é isto que deve ser proclam ado ao m undo.

P erg u n tei a m im m e sm o se, ao invés destas s e n te n ­


ças, sim p lesm en te não copio a explanação de M a rtin h o
Lutero sobre o segu ndo artigo: “Creio que Jesus Cristo,
verd ad e iro D eus nascido do Pai na etern id ad e, e ta m b é m
verd ad e iro h o m e m nascido da Virgem M aria, é m e u Se­
nhor...”. N estas palavras, Lutero expressou o co n te ú d o
co m pleto do artigo segundo. Se o lh a rm o s p a ra o texto,
talvez pareça, exegeticamente, u m ato arbitrário , p o rém ,
segu ram ente, u m ato arbitrário de u m gênio. A final, L u ­
tero, n a verdade, não fez mais do que r e m o n ta r ao mais
original e m ais simples vocabulário do C redo, Kyrios Jesus
Christos, Jesus Cristo é o Senhor. Ele c o m p rim iu e r e d u ­
ziu a este d e n o m in a d o r tu d o o que está d eclarad o n o se­
g u n d o artigo. N a sua form ulação a v erd ad e ira D iv in d a d e
124 - Esboço de um a D ogm ática

e a v e rd a d e ira h u m a n id a d e se to r n a m o p re d ic a d o deste
sujeito. A o b ra c o m p leta de C risto é a o b ra c o m p le ta do
Senhor. A d eclaração integral que este S e n h o r n o s p r o p õ e
é de q ue sejam os sua possessão; “p a ra que eu viva sob ele
no seu rein o e o sirva”, p o rq u e ele é m e u Senhor, qu e “m e
re d im iu q u a n d o estava p e rd id o e co n d e n a d o , a d q u iriu -
me, liv ro u -m e de to d o s os pecados, da m o r te e do p o d e r
do m a l”. E a p ro m e s s a cristã, n a sua in teg ralid ad e, está d i ­
re c io n a d a p a r a “que eu o sirva em retid ão etern a, in o c ê n ­
cia e glória”, de aco rd o co m sua glória. A in teg ra lid a d e se
to r n a u m a analogia d a exaltação de Cristo.

N ão q u e ria iniciar esta exposição d esta p a rte do


Credo sem c h a m a r sua atenção e n faticam en te p a ra o texto
de Lutero. M as v am os te n ta r trazê-la p a ra b e m p e r to da
nossa p r ó p r ia lin h a de p en sam e n to . O q ue se q u e r d izer
q u a n d o d iz em o s que Jesus C risto é n o sso S enhor? C o s ­
tu m o parafrasear, d iz en d o que a existência de Jesus
C risto é a soberana decisão sobre a existência de to d o h o ­
m e m . U m a s o b e ra n a decisão foi to m a d a sobre nós, h o ­
m ens. Se esta m o s conscientes dela e lhe fazem os justiça,
isto é o u tr a questão. Tem os a declaração de qu e ela foi t o ­
m ad a. Esta decisão não te m n a d a que ver c o m u m d e s ­
tino, u m a d e te rm in a ç ã o n e u tra e objetiva do h o m e m , que
p o d e ria , de a lg u m a form a, ser lida d a n a tu re z a e h istó ria
do h o m e m ; p o r é m esta decisão s o b e ra n a sobre a e x istê n ­
cia de to d o h o m e m consiste n a existência do h o m e m Je­
sus Cristo. P o rq u e ele é, foi e será, esta decisão s o b e ra n a é
im p o sta sobre to d o h o m e m . Você se le m b ra que, no in í­
cio d a n o ssa aula, e n q u a n to era exposto o conceito de fé,
d e c id im o s q ue a fé cristã deve ser vista a b s o lu ta m e n te
co m o u m a decisão do h o m e m , qu e é to m a d a à vista de
u m a decisão divina. Q u a n d o dizem os que D eu s é n o sso
S e n h o r e M estre, co m o cristãos não estam o s p e n s a n d o , à
s e m e lh a n ç a de to d o m isticism o, c o m o algo div in o e des-
Nosso Senhor - 125

c o n h ec id o e de certa fo rm a indefinível e final, q ue paira


sobre nós com o u m p o d e r e nos do m in a. P orém , estam o s
p e n s a n d o d a figura concreta, o h o m e m Jesus C risto. Ele é
nosso Senhor. U m a vez que ele existe, D eu s é n o sso Se­
nhor. P reced e n d o to d a existência h u m a n a , co m o u m a
priori, assim é a existência de Jesus Cristo. É isto que a
Confissão de fé cristã nos diz. O que significa esta p re c e ­
dência dele? N ão deixe a idéia de u m a p rece d ên cia t e m ­
poral ser p ro em in en te . Ela aconteceu, m as acabou, h á
este g ra n d e histórico perfeito, no qual o se n h o rio foi es ta ­
belecido sobre nós, nos anos 1-30 n a P alestina - p o rém ,
n ão é este o caso. Q u a n d o a precedência te m p o ra l a d ­
quire sua im p o rtân cia, é devido à existência deste h o m e m
preceder nossa existência em virtud e da sua in c o m p a r á ­
vel importância. Ele precede nossa existência em v irtu d e
da sua au to rid ad e sobre nossa existência, n o p o d e r d a sua
divindade. Voltemos ao que dizíam os n a ú ltim a aula.
A gora p o d e m o s ver o que se q u eria dizer q u a n d o d iz ía­
m o s que a existência deste h o m e m é, em palavras simples,
a existência do p ró p rio Deus. É nisto que co nstitui o valor
deste h o m e m , que é o co n teú d o da sua vida, que é seu p o ­
d er sobre nós. U m a vez que Jesus C risto é o ú n ic o Filho
gerado p o r Deus, “de u m a substância co m o Pai”, p o r ­
tanto, ta m b é m de sua natureza, seu ser h u m a n o , é u m
a c o n tecim en to no qual a decisão s o b e ra n a está c o n s u ­
m ada. Sua h u m a n id a d e é, na verdade, h u m a n id a d e , a es­
sência de to d a hum anitas. N ão com o u m conceito ou
idéia, m as com o u m a decisão, com o história. Jesus Cristo
é o h o m e m , e a m edida, a d ete rm in a ç ã o e lim itação de
to d o ser h u m a n o . Ele é a decisão q u a n to ao p ro p ó s ito e
objetivo de Deus, não so m en te para ele, m as p a ra to d o
h o m e m . É neste sentido que a C onfissão cristã c h a m a Je­
sus C risto “nosso S e n h o r”.
126 - Esboço de um a D ogm ática

Esta so b eran ia , decisão régia e m Jesus C risto, está


f u n d a m e n ta d a sob re o fato de q ue pela disp o siçã o de
D eu s este ú n ic o h o m e m rep resen ta todos. Está f u n d a ­
m e n ta d a , isto é, esta decisão so b e ra n a de D eu s - o u seja,
o s e n h o rio de Jesus C risto - não é u m ato cego d e p o d e r
em si m e s m o v oltad o p a ra nós, h o m e n s. Você se le m b ra
c o m o falam os d a o n ip o tê n c ia de D eus e c o m o su b lin h e i a
d eclaração de q ue “o p o d e r em si m e s m o é m a lig n o ; que o
p o d e r pelo p o d e r é o D iab o ”. O se n h o rio de Jesus C risto
n ão é p o d e r pelo poder. Q u a n d o a igreja cristã confessa
q u e “C reio q u e Jesus C risto é o S e n h o r”, p o r ta n to , n ão
está p e n s a n d o n u m a lei cega p a ira n d o a m e a ç a d o r a m e n te
sobre nós, n ão e m u m p o d e r histórico, n ão e m u m d e s ­
tin o ao q u al o h o m e m está exp osto indefeso, d ia n te do
qual sua p e rc e p ç ã o final con sistiria a p en a s e m reco-
n h e c ê -lo c o m o tal; m as ela está p e n s a n d o n o p ró p r io se­
n h o r io d o seu Senhor. Seu s e n h o rio n ão é apen as
potentia-, ele é potestas. Ele se to r n a reco nh ecív el p a r a n ós
co m o o rd e n a n ç a n ão apenas de u m a v o n ta d e inson dável,
m as c o m o ordenança de sabedoria. D eu s é ju sto e sabe o
qu e está fazendo, assim ele é no sso S e n h o r e q u e r ser c o ­
n h e c id o e re c o n h e c id o p o r n ó s co m o tal. E v id en tem en te,
esta base d o s e n h o rio de C risto nos c o n d u z ao m istério.
Eis algo objetivo, u m a o rd e m que está acim a de n ó s e se­
p a r a d a de nós, u m a o r d e m à qual o h o m e m deve sujeitar-
se, a qual deve reconhecer, a qual ele deve ap en a s o u v ir e
obedecer. C o m o p o d e ria ser de o u tra fo rm a, u m a vez q ue
o p ró p rio s e n h o rio de C risto já foi f u n d a d o e consiste no
p o d e r d a sua D iv in dad e? O n d e D eus é rei, o h o m e m só
p o d e p ro s tra r-s e e adorar. M as a d o r a r n a p re s e n ç a d a s a ­
b e d o r ia d e D eus, d a sua justiça e san tid ad e, d o m isté rio
d a su a m ise ricó rd ia . Esta é a reverência cristã d ia n te de
D eus e o lo u v o r do cristão p a ra D eus, d o serviço cristão e
Nosso Senhor - 127

obediência. A ob ed iência está no ouvir e o o u v ir significa


receber a palavra.

G o staria de te n tar e indicar esta base d o s e n h o rio de


C risto resu m id am en te. A declaração de a b e r tu ra diz que
esta decisão so b eran a está b asead a no fato de q u e este
U nig énito d a dispensação de D eus rep re se n ta todos. O
m istério de D eus, e dessa form a, o de Jesus Cristo, é que
ele, o U nigénito, este h o m e m , pelo seu ser Ú nico - não
u m a idéia, m as Ú nico que é to talm en te c o n c re to neste
te m p o e lugar, u m h o m e m que carregou u m n o m e e vem
de u m lugar, e que, com o to d o s nós, te m u m h istó rico de
vida no te m p o - não apenas existe p o r si m e sm o , m as é
Único p a ra todos. Você p o d e te n ta r ler o N ovo Testa­
m e n to do p o n to de vista deste “p a ra n ó s”. Pois a existência
inteira deste h o m e m , que p erm a n ece no centro, é d e te r ­
m in a d o pelo fato de que ela é u m a existência h u m a n a , r e ­
alizada e c u m p rid a não apenas d e n tro d o seu p ró p rio
referencial e com seu p ró p rio significado em si m esm o,
m as p a ra to d o s os outros. Neste h o m e m ú n ic o D eu s vê
to d o h o m e m , to dos nós, com o se através de u m espelho.
Através deste meio, através deste M ediador so m o s c o n h e ­
cidos e vistos p o r Deus. D esta form a, p o d e m o s e d e v e ría ­
m o s e n te n d e r a nós m esm os com o h o m e n s vistos p o r
D eus nele, neste h o m e m , com o h o m e n s feitos c o n h ec id o s
para ele. A n te seus olhos na etern id ad e D eu s m a n tê m os
ho m e n s, cada h o m e m , nele, neste U nigénito; e n ão a p e ­
nas d iante dos seus olhos, mas a m ad o s e eleitos e c h a m a ­
dos e feitos sua possessão. Nele, desde a e tern id ad e, ele se
a m a lg a m o u a si m e sm o a cada h o m e m , a to d o s os h o ­
m ens, ao longo de to d o o espectro que ab range o ser c ri­
ado c o m o h o m e m , através d a m iséria h u m a n a até a glória
p r o m e tid a ao h o m e m . Tudo que se refere a n ó s é d ecidid o
nele, neste ú n ic o h o m e m . É à sem elhan ça deste Ú nico, à
sem elh an ça de Deus, após a qual o h o m e m foi c ria d o ho-
128 - Esboço de um a D ogm ática

m e m . Este Ú nico em sua h u m ilh a ç ã o carreg a o pecado, a


p e rv ersid a d e, a estupidez, o s o frim e n to e a m o r te de t o ­
dos. A glória deste Ú nico é a glória que foi in te n c io n a d a
p a ra to d o s nós. P ara nós sua in ten ção é que p o d e m o s
servi-lo e m e te rn a justiça, in o c ên cia e b e m -a v e n tu ra n ç a ,
u m a vez qu e ele ressuscitou, vive e g o v ern a n a etern id ad e.
A ssim é a sa b e d o ria da dispen sação de D eus, esta coesão
de cad a h o m e m e to d o s os h o m e n s co m o Ú nico; esta é,
visto assim p a ra falar de cim a, a base do s e n h o rio de
Cristo.

E agora a m e s m a coisa vista do lad o d o h o m e m .


U m a vez q ue esta d isp en sação de D eus existe, u m a vez
que in iciam o s n esta coesão, u m a vez q ue Jesus C risto é o
ú n ic o h o m e m e p e rm a n e c e d ia n te de D eus em n o sso fa­
vor, e nós nele so m o s am ad o s, su sten ta d o s, c o n d u z id o s e
g erad o s p o r D eus, so m os p ro p rie d a d e de Jesus C risto, p o r
o b rig ação estam o s ligados nele, este P ro p rietário . O b ­
serve b e m qu e esta n o m e a ç ã o de nós p a ra ser sua p r o p r i ­
edade, esta co nexão de n ós p a ra ele não p o ssu i em
p r im e ir a in stâ n cia algo com o u m a m o ra l ou m e s m o u m a
q u a lid a d e religiosa, m as ela rep o u sa sobre u m estad o de
obrigações, sobre u m a o rd e m objetiva. O ele m e n to m o ra l
e religioso é a cura posterior. E v id en tem en te, o resu ltad o
n ec e ssa ria m e n te ta m b é m incluirá u m elem en to de m o r a ­
lidade e religião. P orém , n o p rim e iro caso o fato é s im ­
p le sm en te que p e rte n c e m o s a ele. E m v ir tu d e da
disp en saçã o de D eu s o h o m e m é p ro p rie d a d e de Cristo,
não ap esar de, m as n a sua liberdade. Pois assim c o m o o
h o m e m c o n h ec e e vive sua liberdade, ele vive n a lib e r ­
d a d e que lhe é oferecida e criada p a ra ele pelo fato de que
C risto in terced e p o r ele n a p resen ça de D eus. Esta é a
g ra n d e b o a ação de D eus, a n u n c ia d a nisto, qu e Jesus
C risto é o Senhor. É a d iv in d a d e desta b o a ação, a d iv in ­
d a d e d a m ise ric ó rd ia ete rn a que, antes de ex istirm o s ou
Nosso S enhor - 129

p e n s a rm o s nele, fom os buscados e achados nele. N esta


m ise ric ó rd ia divina que ta m b é m é p a ra nós a base d o se­
n h o rio de C risto e que nos libera de to d o s os o u tro s se­
nh o rio s. É esta m isericórdia divina que exclui o direito de
to d o s os o utros senhores falarem e to rn a im possível es ta ­
belecer o u tra a u to rid ad e ao lado desta a u to rid a d e e o u tro
s e n h o r ao lado deste Senhor, e ouvi-lo. É esta e te rn a m i ­
sericórdia, n a qual esta dispensação sobre n ós está in c lu ­
ída, que to rn a im possível recorrer ao passad o o S en h o r
Jesus C risto p a ra o u tro s e n h o r e c o n tar m ais u m a vez
com o destino, histó ria ou natureza, c o m o se fossem estas
coisas que, na verdade, tivessem nos d o m in a d o . U m a vez
que vim os que a potestas de Cristo está basead a n a m is e ­
ricó rdia de D eus, b o n d a d e e am or, so m en te en tão a b a n ­
d o n a m o s todas as reservas. E n tão a divisão e n tre a esfera
religiosa e ou tras esferas cessa. C essam os de s e p a ra r entre
co rp o e alma, entre serviço de D eus e política. Todas estas
separações cessam, pois o h o m e m é u m , e c o m o tal está
sujeito ao se n h o rio de Cristo.
A c o m u n id a d e sabe que Jesus C risto é n o sso Se­
nhor, isto é co n h ec id o n a igreja. Mas a v erd ad e “no sso Se­
n h o r ” não d ep en d e do nosso c o n h e c im e n to ou
re co n h e cim e n to , ou da existência de u m a congregação
o n d e ela é en te n d id a e tem sua expressão; é p o rq u e Jesus
C risto é n osso S enh or que ele p o d e ser co n h e c id o e p r o ­
c lam ad o co m o tal. Mas n in g u é m conh ece co m o u m a o b ­
viedade que to d o s os h o m e n s tê m seu S e n h o r nele. Este
c o n h e c im e n to é u m a questão da nossa eleição e ch am ado ,
u m a questão da c o m u n id a d e reu n id a ju n to pela sua P ala­
vra, u m a questão da Igreja.
Citei a exposição de Lutero do seg u n d o artigo. A l­
g u ém p o d e ria objetar esta exposição, o n d e Lutero faz do
“n osso” S en h o r u m “m e u ” Senhor. E videntem en te, não
m e a v en tu raria a fazer disto u m a acusação c o n tra Lutero;
130 - Esboço de um a D ogm ática

pois esta c o n c e n tra ç ã o de Lutero sobre a exposição i n d i­


vid ual a d q u ire u m a u rg ên cia e u m peso e x tra o rd in á rio .
“M eu S en h o r!” - através desta confissão o to d o alcança
u m a realid ad e e existencialidade fantásticas. M as n ão d e ­
v em os p e r d e r de vista o fato de que, e m c o n c o rd â n c ia
c o m a expressão aceita do N ovo T estam ento, a C onfissão
diz, “nosso S e n h o r ”. D a m e sm a fo rm a q ue n a O ra ç ã o do
Senhor, o ra m o s no plural, não c o m o u m a m u ltid ã o , m as
em c o m p a n h e irism o . A confissão “nosso S e n h o r ” é a c o n ­
fissão daqueles que são c h am ad o s em sua cong reg a ção
p a ra serem irm ã o s e irm ãs, co m a com issão geral p a ra e n ­
fre n ta r o m u n d o . São aqueles que c o n h e c e m e confessam
Jesus C risto c o m o a pessoa que ele é. Eles o c h a m a m
“n o sso ” Senhor. M as u m a vez que estam os cientes de que
existe tal lug ar de c o n h e c im e n to e confissão, dev em o s
o lh a r m ais u m a vez p a ra fora, p a ra a cen a com pleta; e não
dev em o s c o n s id e ra r o “nosso S e n h o r” em q u a lq u e r s e n ­
tido lim itado, c o m o se a con gregação dos cristãos tivesse
seu S e n h o r em Jesus Cristo, m as o u tras assem bléias e c o ­
m u n id a d e s tivessem o u tros senhores. O N ovo Testa­
m e n to n ão deixa dúv id as p a ra o fato de qu e existe ap en a s
u m S e n h o r e este S e n h o r é o S en h o r do m u n d o , Jesus
Cristo. É isto qu e a c o m u n id a d e te m de p re g a r p a r a o
m u n d o . A v e rd a d e e realidade d a Igreja p e rte n c e ao t e r ­
ceiro artigo. M as este ta n to p o d e ser dito aqui, qu e a c o ­
m u n id a d e de Jesus C risto não é a realidade que existe p o r
si m esm a; ela existe p o rq u e te m u m a com issão. O qu e ela
co n h ec e ela te m de dizer ao m u n d o . “D eixe sua luz b r i ­
lh a r d ia n te dos h o m e n s ” (M t 5.16). F azend o isto, sen d o
c o m o era d esde o princípio, a ú n ic a e viva ad v ertên cia
co n tra o m u n d o , a pro cla m açã o da existência do Senhor,
dessa fo rm a n ão le v an tan d o falsos reclam o s p a r a si
m esm a, p o r sua fé ou seu c o n h ec im e n to . N ão, Jesus
C risto é o Senhor.
N osso S enhor - 131

E ntretan to , aqui ta m b é m o C red o de N icéia tem


feito p o u c o progresso c o m p arad o co m o C red o dos A p ó s ­
tolos - assim cham ad o, unicum d o m in u m , o sole Senhor.
Expressar e p ro c la m a r isto é a com issão d a Igreja. Entre
os cristãos e n a congregação devem os c o n s id e ra r o q ue é
c h a m a d o o “m u n d o ”, com o a priori n a d a m ais do q ue o
d o m ínio, do que aqueles h om ens, que devem o u v ir isto
m esm o, e além disso, de nós. Tudo o m ais que c o n c e b e ­
m o s que co n h ec em o s sobre o m u n d o , to das as m a n ife s ta ­
ções de incre d u lid a d e são p ro po sições secu n d árias e não
nos p re o c u p a m fu n d am e n talm en te . O que interessa e nos
p re o c u p a com o cristãos não é que o m u n d o está o n d e nós
estam os, que ele fecha seu coração e cabeça à fé, m as s im ­
p lesm en te isso, que estes h o m e n s são pessoas que devem
ouvir de nós, para q u em nós p o d e m o s p ro c la m a r o Se­
nhor.

N este p o n to eu gostaria, a p ropósito, de re s p o n d e r a


p e r g u n ta que se m e tem colocado várias vezes d u r a n te es­
tas sem anas: “Você não está ciente de que h á m u ito s dos
que estão sentados nesta classe que n ão são cristãos?”
S em pre so rrio e digo: “Isto não faz n e n h u m a diferença
p a ra m im ”. D everia ser c o m p leta m en te te m e ro so se a fé
dos cristãos objetivasse a separação e separasse u n s dos
outros. Ela é, na verdade, o m otivo m ais forte para r e u n ir
h o m e n s e ligá-los to dos juntos. E o que os liga, sim p le s­
m e n te e desafiad oram ente, ao m e sm o tem p o, a com issão
que a c o m u n id a d e tem para p ro cla m ar sua m e n sag e m . Se
c o n s id e ra rm o s a questão mais u m a vez do p o n to de vista
da c o m u n id a d e , isto é, do p o n to de vista daqueles que se­
ria m e n te desejam ser cristãos - “Senhor, eu creio: ajuda-
m e n a m in h a descrença!” (Mc 9.24) - d ev em o s le m b ra r
que tu d o d e p e n d e rá não de o cristão p in ta r p a ra o não-
cristão em palavra e ação u m quadro do S e n h o r o u vima
idéia de Cristo, m as sobre seu sucesso em, com suas p a la ­
132 - Esboço de um a D ogm ática

vras h u m a n a s e idéias, a p o n ta r o p ró p rio Cristo. Pois esta


n ão é a co n c e p ç ã o dele, não o d o g m a de C risto qu e é o
S e n h o r v erd adeiro, m as ele que é c o n fir m a d o n a palav ra
dos A póstolos. D iga-se a to d o s os que se c o n s id e ra m
crentes: Q u e nos seja c o n ce d id a não f u n d a m e n ta r u m a
im agem , q u a n d o falam os de Cristo, u m ídolo cristão, m as
e m to d a no ssa fraqueza a p o n ta r Aquele que é o S e n h o r e
assim, n o p o d e r da sua D ivindade, a so b e ra n a decisão s o ­
bre a existência de todo h o m e m .
O Mistério e o Milagre
do Natal

A verdade da concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo


e seu nascimento da Virgem M aria nos co n du z
à verdadeira Encarnação do verdadeiro Deus,
realizada na sua manifestação
histórica, e lembra a fo r m a
especial através da qual este início
do ato divino da graça e revelação, que
aconteceu em Jesus Cristo, fo i distinguido de
outros acontecimentos hum anos.

C h eg am os agora a u m dos po ntos, e talvez, n a v e r ­


dade, ao p on to , no qual sempre, e até m e sm o em larga es­
cala n a c o m u n id a d e cristã, som o s insultados. Talvez seja
a sua ex p eriên cia ta m b ém , u m a vez qu e esteve p ro n to a
seguir a explanação até aqui, e m b o ra o casio n a lm e n te
co n stran g id o q u an to a saber o n d e isto nos levará; você é
levado ao assunto re p e n tin a m e n te pelo que está p a ra vir
agora - e que não é m in h a invenção, m as a C on fissão da
Igreja! N ão vam os ficar apreensivos, m as te n d o c a m i­
n h a d o até aqui em paz relativa, q u erem o s a b o rd a r esta se­
ção da m e sm a form a, pacificam ente e objetiv am en te, a
seção “concebido pelo Espírito Santo, n ascid o da V irgem
M aria”. A qui ta m b é m nosso interesse deve ser s im p les­
134 - F.sboço de um a D ogm ática

m e n te a verdade; m as ta m b é m d evem o s nos a p ro x im a r


co m m u ita reverência, p a ra q ue as questões que n os d e i­
x a m apreensivos, c o m o “devemos acreditar nisto?”, não
seja a últim a, m as que talvez m e sm o aqui p o s s a m o s re s ­
p o n d e r u m “Sim ” co m m u ita alegria.
T em os de tr a ta r co m o início de u m a série co m p le ta
de p r o n u n c ia m e n to s sobre Jesus Cristo. O que estivem os
o u v in d o até agora foi a descrição de u m sujeito. Todavia,
agora o u v im o s u m a q u a n tid a d e de definições - c o n c e ­
bido, n ascid o, padecido , crucificado, sepultado, desceu,
subiu n o v a m e n te , assentou -se à direita de D eus, p o r esta
razão ele voltará... q ue descrevem u m a ação o u u m
evento. E sta m o s interessado s com a h is tó ria de u m a vida,
c o m e ç a n d o co m geração e n a sc im e n to co m o q u a lq u e r
vida h u m a n a ; u m a vida in teira n o ta v elm e n te c o m p rim id a
em u m a p e q u e n a palavra “p a d e c e u ”, u m a h is tó ria de p a i­
xão e, finalm ente, a co n firm a ç ã o divina desta vida e m sua
R essurreição, sua A scensão e ain d a a co n clu são f o r m i d á ­
vel que, dev id o a tu d o isso, ele voltará p a ra ju lg a r os vivos
e os m o rto s. Ele, que vive e age, é Jesus Cristo, o Filho de
D eus, no sso Senhor.
Se q u is e rm o s e n te n d e r o significado de “co n c e b id o
pelo E sp írito Santo e nascid o d a V irgem M a ria ”, s o b re ­
tu d o d ev em o s te n ta r ver que estas du as declarações f o r ­
m idáveis asse g u ra m que o D eus d a livre graça to r n o u - s e
h o m e m , u m h o m e m real. A Palavra e te rn a se fez carne.
Este é o m ilagre da existência de Jesus Cristo, a v in d a do
D eu s dos altos céus até nós - o Espírito Santo e a V irgem
M aria. Este é o m istério d a N atividade, d a E n ca rn ação .
N esta parte, a C o nfissão da Igreja C atólica faz o sinal da
cruz. E nos m ais variado s cenários, co m p o sito res tê m r e ­
p r o d u z id o este et incanatus est. Este m ilagre celeb ram o s
a n u a lm e n te , q u a n d o celebram os o Natal.
O M istério c o M ilagre do N atal - 135

Se este milagre devo compreender


Então perm aneça reverente m eu espírito

Tal in nuce é a revelação de Deus; p o d e m o s apenas


c o m p re en d ê-la , som ente ouvi-la com o início de to d a s as
coisas.
P orém não há n e n h u m a dú vid a aqui sobre a c o n ­
cepção e o n ascim en to em geral, m as de u m a co n ce p ção e
n a scim en to s específicos. Por que conceb id o pelo Espírito
Santo e p o rq u e nascido da Virgem M aria? P or q ue este
m ilagre especial que se p reten d e expresso n a E n carnação?
Por que o m ilagre da N atividade an d a lado a lado c o m o
m istério da Encarnação? U m a declaração n o é tic a é co lo ­
cada, p o r assim dizer, ao lado de u m a declaração o n to ló ­
gica. Se n a E n carnação tratam o s com o e lem en to e m si,
aqui tra ta m o s co m o símbolo. Os dois n ão p o d e m ser
co n fu n d id o s. O elem ento envolvido n a N atividad e é v e r ­
dad eiro p o r si m esm o. C o ntu do , ele é rele m b rad o , ex ­
po sto no m ilagre do Natal. Porém , seria injusto co ncluir
que, e m b o ra “apen as” u m sím bolo esteja envolvido, isto
signifique que se possa subtraí-lo do m istério. D eixe-m e
alertá-lo co n tra isto. É raro na vida ser capaz de sep arar
fo rm a e conteúdo.
“V erdadeiro D eus e verdadeiro h o m e m ”. Se c o n s id e ­
ra rm o s em p rim eiro lugar esta v erd ade cristã básica à luz
de “co ncebido pelo Espírito Santo”, a v erd ad e evidente é
que o h o m e m Jesus Cristo sim plesm en te te m sua origem
em D eus, isto é, ele deve sua origem na h istó ria ao fato de
que D eus em p esso a to rn o u -s e h o m e m . Isto significa que
Jesus C risto é, n a verdade, h o m e m , v erd ad e iro h o m e m ,
m as ele não é apenas u m h o m e m , não s o m e n te u m d o m
e x tra o rd in á rio ou u m h o m e m esp ecialm ente orientado ,
p a ra não dizer u m su p er-h o m em ; m as, e n q u a n to h o m e m ,
136 - Esboço de um a D ogm ática

ele é o p r ó p r io D eus. D eus é u m co m ele. Sua existência


co m eça c o m a ação especial de Deus; c o m o h o m e m ele
está f u n d a m e n ta d o em D eus, ele é v e rd a d e iro D eus. O s u ­
jeito d a h is tó ria de Jesus C risto é, p o rta n to , o p ró p rio
D eus, tão v e rd a d e iro q u a n to é u m h o m e m q u e vive, sofre
e age. T ão s e g u ra m e n te q u a n to está envolvida n esta vida,
d a m e s m a fo rm a esta iniciativa h u m a n a te m seus f u n d a ­
m e n to s n o fato de que nele e através dele D eu s to m o u a
iniciativa. D este p o n to de vista n ão p o d e m o s d eix ar de
dizer q ue a E n c a rn a ç ã o de Jesus C risto é análo g a à c ria ­
ção. M ais u m a vez D eus age co m o criador, m a s ag o ra n ão
c o m o o C r ia d o r a p a r tir do nada; pelo co n trá rio , D eus
a d e n tr a a criação e cria ju n ta m e n te co m ela u m n ovo c o ­
m eço, u m novo co m eço n a histó ria e, além d o mais, na
h istó ria de Israel. N a c o n tin u id a d e da h is tó ria h u m a n a
u m p o n to se to r n a visível no qual o P ró p rio D eus apressa-
se ao e n c o n tr o d a cria tu ra e se to r n a u m co m ela. D eu s se
fez h o m e m . D esta fo rm a esta h istó ria com eça.

Agora, te m o s de virar a p á g in a e nos ach e g ar à s e ­


g u n d a declaração expressa rela cio n ad a a isto, q u a n d o d i ­
zem os “n ascid o d a V irgem M aria”. O fato realçado é que
estam os n a terra. H á u m a crian ça h u m a n a , a V irgem M a ­
ria; assim co m o env iado p o r D eus, Jesus ta m b é m veio
deste ser h u m a n o . D eus d eu-se a si m e s m o u m a o rig em
h u m a n a te rre n a, este é o significado de “n a sc id o d a V ir­
gem M aria”. Jesus C risto não é “a p e n a s ” o v e rd a d e iro
Deus; isto n ão seria e n ca rn ação v e rd a d e ira - n e m é ele
u m ser in te rm e d iá rio ; ele é u m h o m e m c o m o to d o s nós,
u m h o m e m sem restrição. Ele não apenas se assem elh a
conosco; ele é o m e sm o que nós. C o m o D eu s é o sujeito
na vida de Jesus Cristo, assim o h o m e m é o sujeito n esta
história, p o ré m , não no sen tido de u m sujeito s e n d o i n ­
fluenciado, m as de u m h o m e m qu e está n a ação. O h o ­
m e m n ão se to r n a u m m a rio n e te neste e n c o n tro co m
O M istério e o M ilagre do N atal - 137

D eus, m as se h á h u m a n id a d e genuína, aqui está, o n d e o


p ró p rio D eus se fez h o m em .

Isto co nfig uraria o círculo que p o d e ser visto aqui;


isto é, a v erd ad e ira divindade e v erd ad e ira h u m a n id a d e
em co m pleta un id ade. N o Concílio de C alced ônia, em
451, a Igreja te n to u cercar esta u n id a d e c o n tra to d o s os
equívocos; c o n tra a unificação m onofisista, q ue resultou
do assim ch a m a d o docetism o, que estava fu n d a m e n ta l­
m e n te desapercebido de q u alq u er h u m a n id a d e v e r d a ­
deira em C risto - D eus se fez h o m e m apenas
a p a re n te m e n te - e co n tra a tentativa n e s to ria n a de a u ­
m e n ta r a distância entre D eus e h o m e m , que q u e ria s im ­
plesm en te separar, e seg und o a qual a d iv in d ad e de C risto
p o d e ser c o n sid era d a a to d o instante co m o s e p a ra d a da
sua h u m a n id a d e . A lém disto, esta d o u tr in a re to m a u m
erro m ais antigo, aquele dos assim c h a m a d o s ebionitas. A
p a rtir destes ebionitas o c am in h o c o n d u z aos ariano s que
deseja ram e n te n d e r Cristo sim plesm ente c o m o u m a c ria ­
tu r a esp ecialm ente exaltada. O C oncílio de C a lced ô n ia
fo rm u lo u a tese de que a u n id a d e é “sem confusão, sem
m u d a n ç a , sem divisão, sem separação”. Talvez você esteja
inc lin ad o a descrever isto com o “teólogos a b a n d o n a d o s ”
ou com o “escaram uças de clérigos”. Todavia, e m to d a s es­
tas disputas a p reo cu p a ção n u n c a foi deixar o m istério de
lado, co m o se quiséssem os p o r esta fó rm u la resolver a
questão racionalm ente; mas os p rim eiro s esforços da
Igreja eram - e isto que a to rn a dign a de no ssa atenção -
co n d u z ir os olhos dos cristãos de u m a fo rm a a d e q u a d a a
este m istério. Todas as outras tentativas fo ram tentativas
p a ra solucion ar o m istério d e n tro de u m a capa cid ad e de
co m p re e n sã o h u m a n a . O p ró p rio D eus e o h o m e m m is te ­
rioso, isto p o d ia ser enten dido ; até m e sm o a ú n ic a c o in c i­
dência deste D eus e deste h o m e m n a fo rm a de Jesus
p o d e ria ser explicada. Mas estas teorias, c o n tra as quais a
138 - Esboço dc um a Dogm ática

igreja p rim itiv a se voltou, não a te n ta m p a ra o m istério.


M as a o r to d o x ia p rim itiv a estava in teressa d a e m u n ir h o ­
m e n s so bre este centro, e ao h o m e m que recusasse a c re d i­
ta r dev eria ser ign o rad o ; m as n a d a deve ser d ilu íd o aqui;
este sal não deve p e r d e r seu sabor. Eis a razão d a g ra n d e
aplicação de esforços pelos p rim e iro s concílios e teólogos.
H á u m a g rosseria de nossa parte, nos dias de hoje, c o m o
resu ltad o de u m a intelectu alidade de a lg u m a fo rm a b á r ­
bara, d iz er qu e eles fo ram “m u ito longe” naqu eles dias, ao
invés de se rm o s gratos pelo tra b a lh o f u n d a m e n ta l que
então realizaram . Você n ão precisa, e v id en tem en te, su bir
ao p ú lp ito e recitar esta fórm ula; m as você d ev eria a s s u ­
m ir a q u estão co m o a b s o lu tam en te fu n d a m e n ta l. A c ris ­
ta n d a d e te m visto e estabelecido o qu e está en volvido n o
m ilag re da N atividade, ou seja, a unio hypostatica, a u n i ­
d ad e g e n u ín a do v e rd ad e iro D eus e do v e rd a d e iro h o ­
m e m n o ú n ic o Jesus Cristo. E som os co n v id a d o s a n os
a g a rra r a isto.
C e rta m e n te , to d o s vocês agora o b s e rv a m que, n e s ­
tas expressões “co n ce b id o pelo Espírito S anto” e “n ascid o
da V irgem M aria”, algo especial ain d a está s e n d o m a n ife s ­
tado. A declaração é de u m a p ro cria ção e de u m n a s c i­
m e n to raros. A isto dá-se o n o m e de nativitas Jesu Christi.
U m m ilagre leva ao m istério da v e rd a d e ira d iv in d a d e e da
v erd ad e ira h u m a n id a d e , o m ilagre d esta p ro c ria ç ã o e
deste n ascim en to .
O qu e se q u e r dizer co m “c o n ce b id o pelo Espírito
S anto?” N ão significa que o Espírito Santo é s u p o s ta ­
m e n te o pai de Jesus Cristo; e m sen tido restrito, ap en a s a
negação está d eclarad a através dela, de que o h o m e m Je­
sus C risto n ão te m pai. Em sua p ro c ria ç ã o n ão acon tece o
início d a existência h u m a n a , m as sua h u m a n a existência
inicia n a lib e rd a d e do p ró p rio D eus, n a lib e rd a d e n a q ual
o Pai e Filho são u m n a ligação do am or, n o E spírito
O M istério c o M ilagre do N atal - 139

Santo. Assim, q u a n d o olham os para o início da existência


de Jesus, na v erd ad e estam os o lh a n d o p ara o p r o f u n d o da
D iv indade, n a qual o Pai e Filho são um . Esta é a lib e r­
d ad e d a vida mais ín tim a de Deus, e nesta lib erd ad e a
existência deste h o m e m com eça em 1 a. C. P or este a c o n ­
tecim en to , pelo p ró p rio D eus m u ito c o n c re ta m e n te in i­
ciar neste p o n to consigo m esm o, este h o m e m qu e de si
m e sm o não estava capacitado ou pro p en so , p o d e não
apenas p ro c la m a r a Palavra de Deus, m as p o r si m e sm o
ser a Palavra de Deus. No meio da velha h u m a n id a d e , a
nova se inicia. Este é o milagre do Natal, o m ilagre da
p ro cria ção de Jesus Cristo sem u m pai. Isto não te m n a d a
q u e ver co m os m itos n arrad o s em diversos lugares na
h istó ria da religião, m itos de p ro criação de h o m e n s p o r
deuses. N ão tem os n ad a que ver com este tip o de p r o c r ia ­
ção. O p ró p rio D eus assum iu-se c o m o C ria d o r e não
co m o u m parceiro desta Virgem. A arte cristã de te m p o s
mais rem o to s te n to u re p ro d u z ir este fato, isto é, de que
não havia n e n h u m a questão de u m evento sexual. E tem
sido b e m co n firm a d o que esta p ro criação se c o n cre tizo u
esp ecialm ente pelo ouvido de M aria, que ou v iu a Palavra
de Deus.

“N ascido da Virgem M aria”. Mais u m a vez e agora


de u m p o n to de vista h u m a n o , o m a ch o é excluído. O m a ­
cho não teve n e n h u m a participação neste nascim en to . O
que está envolvido aqui, se você preferir, é o ato d iv in o de
julgam ento. P ara o que agora se inicia, o h o m e m e m n a d a
c o n trib u iu através da sua ação e iniciativa. O h o m e m não
está sim p lesm en te excluído, pois a V irgem está presente.
Mas o m acho, com o agente específico da ação h u m a n a n a
história, co m sua responsabilidade no d ir e c io n a m e n to da
espécie h u m a n a , deve agora retirar-se p a ra seg u n d o
plano, com a im p o te n te figura de José. Esta é a resp o sta
cristã à questão da m ulher: aqui, a m u lh e r p e r m a n e c e a b ­
140 - Esboço dc um a D ogm ática

s o lu ta m e n te e m p rim e iro plano, além disso, virgo, a V ir­


gem M aria. D eus n ão escolheu o h o m e m e m seu o rg u lh o
e em sua rebeldia, m as o h o m e m e m sua fraq u eza e h u ­
m ildade, n ão o h o m e m em seu papel histórico, m a s o h o ­
m e m n a fraq u eza de sua n atu re za assim re p re s e n ta d a pela
m ulher, a c ria tu ra h u m a n a que p o d e c o n f r o n ta r D eus
ap en a s e m palavras, “Sou serva do S enhor; q ue aco nteça
com igo c o n fo rm e a tu a palavra” (Lc 1.38). Esta é a c o o p e ­
ração h u m a n a n esta questão, isto e apenas isto! N ã o d e v e ­
m o s p e n s a r n o m é rito da existência d esta serva n e m
te n ta r m ais u m a vez a trib u ir p o d e r à criatura. M as D eu s
te m visto o h o m e m em sua fraqueza e em sua h u m ild a d e ,
assim co m o M a ria ex pressou o q ue s o m e n te a criação
p o d e ex pressar em seu encontro. A ssim M a ria o fez e a s ­
sim, p o rta n to , a cria tu ra diz “Sim” p a ra D eus, co m o p a rte
d a g ra n d e aceitação que chega ao h o m e m d a p a r te de
Deus.

O m ilagre do N atal é a fo rm a atual do m isté rio da


u n iã o p essoal de D eus co m o h o m e m , a unio hypostatica.
R epetidas vezes a igreja cristã e sua teologia te m insistido
qu e n ão d ev em o s p o s tu la r qu e a realidade d a E n ca rn ação ,
o m istério do Natal, tin h a que, p o r ab soluta necessidade,
to m a r a fo rm a deste milagre. A v e rd a d e ira D iv in d a d e e a
v e rd a d e ira h u m a n id a d e de Jesus C risto em sua u n id a d e
não d e p e n d e m do fato de C risto te r sido co n c e b id o pelo
Espírito Santo e nascido d a V irgem M aria. T u do o que
p o d e m o s dizer é qu e foi do agrado de D eus deixar o m i s ­
tério real e to rn a r-s e m anifesto em sua form a. N o v a ­
m e n te, isto n ão p o d e significar que c o n tra esta fo rm a
fatual do m ilagre estam o s c o m o que livres p a ra afirm á-lo
ou não, s u b tra ir algo e d izer que te m o s ouvido, m a s que
te m o s reservas, que esta questão p o d e estar e m o u tra
fo rm a p a ra nós. Talvez e n te n d a m o s m e lh o r a relação da
q u estão e fo rm a, q ue está presente aqui, d a n d o u m a
O M istério e o M ilagre do N atal - 141

o lh a d a na história, familiar a todos, da cura do paralítico:


“Mas, p a ra que vocês saibam que o Filho do h o m e m tem
na te rra au to rid ad e p ara p e rd o a r pecados... Levante-se,
pegue a sua m a ca e vá p ara casa” (Mc 2.10, 11). “P ara que
vocês saibam...”; desta form a o m ilagre do n a s c im e n to
virginal deve ser ta m b é m en tendido. O que está e m q u e s ­
tão é o m istério da E ncarn ação com o a fo rm a visível do
milagre. E n te n d e ría m o s mal M arcos 2, se q u is e rm o s i n ­
te rp re ta r e m sua leitura que o m ilagre p rin cip al foi o p e r ­
dão dos p ecado s e o m ilagre co rp o ral apen as u m
incidente. U m a coisa obviam ente p e rte n c e n ec e ssa ria ­
m e n te à outra. D a m e sm a fo rm a d ev eríam o s d a r u m
alerta, ta m b é m , co n tra con siderar o m ilagre da nativitas à
parte, e ad erir ao m istério com o tal. U m a coisa deve ser
dita d efinitivam ente, que, to d a vez que as pessoas q u e re m
fugir do milagre, u m a teologia vem co m o ajuda, qu e ces­
sou de e n te n d e r e ta m b é m de h o n r a r o m istério, e tem ,
pelo co ntrário, se esforçado em exorcizar o m istério da
u n id a d e de D eus e h o m e m em Jesus Cristo, o m istério da
graça livre de Deus. Por o utro lado, o n d e este m isté rio se
faz en te n d id o e o n d e os h o m e n s evitam q u a lq u e r te n ta ­
tiva da teologia natural, u m a vez que eles não tê m n e c e s­
sidade dela, o m ilagre chega p ara ser g racio sa m en te e
a legrem ente reconhecido. Ele se to rn a, p o d e m o s dizer,
u m a necessidade in tern a neste ponto.
Sofreu.

A vida de Jesus Cristo não é um triunfo, m as u m a Jiumi-


Ihação, não u m sucesso, mas u m a falha , não u m a
alegria, m as sofrimento. Por esta m esm a razão
ela revela a rebelião dos hom ens
contra Deus e a ira de Deus
contra o hom em , que se segue
necessariamente; mas ela tam bém
revela a misericórdia na qual D eus se
envolveu nos negócios próprios do h o m e m
e conseqüentem ente em sua humilhação, fa lh a e sofri­
mento, para que, dessa fo r m a , não
necessitassem ser mais da alçada do hom em .

N o C atecism o de Calvino p o d e m o s nesta passagem


ler a e x tra o rd in á ria conclusão que n a C onfissão a v ida de
Jesus é ig n o rad a até a Paixão, p o rq u e o que aconteceu
nesta vida até à Paixão não p erte n ce à “su b stân cia da
nossa red en ç ão ”. Tom o a liberdade de dizer qu e aqui C a l­
vino está errado. C o m o po d e alguém dizer que o resto d a
vida de Jesus não é su b stancialm ente p a ra nossa r e d e n ­
ção? N este caso qual seria seu significado? U m a n arrativ a
m e ra m e n te supérflua? Penso que está envolvido n a vida
completa de Jesus algo que recebe seu início n o artigo “ele
144 - Esboço de um a D ogm ática

p a d e c e u ”. E m C alvino tem o s u m exem plo p ra z e ro s o ante


os no ssos olhos, de alu no s de u m g ra n d e m e stre s em p re
v e n d o m e lh o r do que ele; pois n o C atecism o de H eidel-
berg, c o m p o s to pelos discípulos de Calvino, O lev ian e
U rsino, a Q u e s tã o 37 p ergun ta: “O que tu e n te n d e s pela
p e q u e n a p alav ra ‘so frer’?” “Q u e ele durante todo o tem po
da sua vida na terra, m as esp ecialm en te ao fim disso, c a r ­
regou e m seu co rp o e alm a a ira de D eu s c o n tra o p e c a d o
de to d a a raça h u m a n a ”. A favor da visão de C alv in o p o d e,
claro, ser a d u z id o q ue Paulo, e as epístolas do N ovo T esta­
m e n to em geral, ra ra m e n te referem -se a esse “to d o o
te m p o ” da vida de Cristo, e que os apóstolos ta m b é m , se­
g u n d o Atos, p a re c e m ter m o s tra d o co n s id e ra v e lm e n te
p o u c o interesse n a questão. P ara eles, a p a re n te m e n te ,
ap en a s u m a coisa sobressaia, que, traíd o pelos ju d e u s, ele
estava lib e ra d o p a ra os gentios, foi cru cificad o e ressurg iu
da m o rte. M as se os cristãos d a igreja p rim itiv a estavam
co m seu o lh a r tão co m p le ta m e n te c o n c e n tr a d o n o C r u c i ­
ficado e R essurreto, isto não é p a ra ser to m a d o c o m o e x ­
clusividade, m as de fo rm a inclusiva. O fato de qu e C risto
m o r r e u e ressu rgiu é u m a red ução d a vida completa de Je­
sus; m as nisto d ev em o s ta m b é m ver seu d e s en v o lv i­
m ento. A vida com p leta de Jesus v em sob o título
c< i >>
pclC lC C C U .

Este é u m fato e x tre m a m e n te s u rp re e n d e n te , p a ra o


qual n ão te m o s sido p re p a ra d o s d ire ta m e n te pelo que
te m sido dito. Jesus Cristo, o Filho ú n ic o de D eus, n o sso
Senhor, c o n ce b id o pelo Espírito Santo, n a scid o d a V irgem
M aria, v erd ad e iro Filho de D eus e v erd ad e iro filho do h o ­
m e m - qual a relação destas coisas co m o d e s d o b r a m e n to
de to d a a sua vida sob o signo de que ele “p a d e c e u ”? P o d í­
am o s e s p e ra r algo diferente, algo resp lan d e cen te , t r i u n ­
fante, b e m sucedido, jubiloso. D e q u a lq u e r fo rm a, n ão
o u v im o s u m a palavra disso, mas, p r e d o m in a n te n a p le n i­
Sofreu... - 145

tu de de sua vida, a asserção de que “ele p a d e c e u ”. N a v e r ­


dade, é a últim a palavra? N ão p o d e m o s negligenciar
co m o esta vida com p leta term ina: no terceiro dia ele re s ­
surge da m o rte. Assim, a vida de Jesus não é c o m p le ta ­
m e n te d esprovida de u m sinal da alegria v in d o u r a e da
vitória v in d o u ra. N ão sem m otivo ta n to é dito sobre g lo ­
rificação e, n ão sem m otivo h á a figura d a alegria do ca s a ­
m e n to tantas vezes m en cionada. E m b ora, certam en te,
não é sem ad m iração que várias vezes o u v im o s Jesus c h o ­
rand o, m as n u n c a que ele riu, e há ain d a p a ra ser dito que
co n tin u a m e n te através do seu s o frim en to h o u v e u m a es­
pécie de centelha de alegria n a n atu reza à sua volta, em
crianças e, sobretudo, de alegria em sua existência e em
sua missão. O u v im o s mais u m a vez que é dito qu e ele se
regozijou sobre o fato de que D eus havia o c u lta d o este c o ­
n h e c im e n to do sábio, mas revelado aos ingênuos. A ssim
nos m ilagres de Jesus h á triunfo e alegria. C u ra e alegria
aqui ir r o m p e m n a vida dos ho m en s. Parece que se to r n o u
visível q u e m está agindo. N a história da T ransfiguração,
na qual é relatado que os discípulos v ira m as vestes de Je­
sus mais alvas do que a neve, o que n a te rra é p e rfe ita ­
m e n te possível, este o u tro algo, a questão da sua vida -
p o d e m o s ta m b é m dizer, seu início e o rig em - se to r n a m
visíveis p o r antecipação. Bengel está in d u b itav elm en te
certo q u a n d o diz dos Evangelhos antes da R essurreição
que p o d e m o s dizer de to das estas histórias d e Jesus que
eles spirant resurrectionem. Mas, mais do que isso, não
p o d e m o s, na verdade, dizer. H á u m a frag rân cia do início
e do fim, u m a fragrância de D iv in d a d e triu n fa n te que
está n a ação.

M as o te m p o presente d a sua vida está, n a verdade,


so fren d o d esde o início. N ão h á dú v id a de que p a ra os
evangelistas Lucas e M ateus a infância de Jesus, seu n a s c i­
m e n to e a m a n je d o u ra em Belém, já estavam sob o signo
146 - Esboço dc um a D ogm ática

do so frim en to . Este h o m e m é p e rs e g u id o to d a sua vida,


u m e s tra n h o p a ra sua p ró p ria fam ília - qu e d eclarações
ch o ca n tes ele profere! - e p ara sua nação; u m e s tra n h o
nas esferas d o Estado, da Igreja e da civilização. Q u e c a ­
m in h o s de in c o m p re e n s ã o ele trilhou! E m qu e co m p le ta
solidão e te n ta ç ã o ele p e rm a n e c e u e n tre os h o m e n s , os lí­
deres d a sua nação, até m e sm o c o n f ro n ta n d o as m assas
do p ov o e n o p ró p r io círculo dos seus discípulos! N este
círculo estreitíssim o ele e n c o n tro u seu tra id o r; e n o h o ­
m e m ao qual ele diz: “Tu és a Rocha...” o h o m e m q u e o
negou três vezes. F inalm ente, é aos discípulos de q u e m se
é dito q ue “to d o s o a b a n d o n a r a m ” e o p ov o clam a em
coro: “Fora c o m ele! C rucifica-o ” A vida c o m p le ta de Je­
sus é vivida n esta solidão e, assim, já n a s o m b ra d a cruz. E
se a luz d a ressu rreição ilu m in a aq ui e ali, isto é u m a ex ­
ceção q ue co m p ro v a a regra. O filho d o h o m e m deve s u ­
b ir a Jerusalém , lá deve ser c o n d e n a d o , t o r t u r a d o e
cru cificad o - ressurgir n o v a m e n te n o terceiro dia. M as
p rim e iro é este d o m in a n te “deve” que o leva à m o rte.

O qu e isto significa? N ão é o o p o s to d o q u e p o d e ­
m o s e s p e ra r das novas de q u e D eus se fez H o m e m ? A qui
há s o frim en to . O b se rv e que é aqui pela p r im e ir a vez n a
C on fissão qu e o g ra n d e p ro b le m a d o m al e s o frim e n to
e n c o n tr a - n o s d iretam e n te. Já nos referim o s cla ra m e n te
co m fre q ü ê n c ia a isso. M as s e g u n d o a carta esta é a p r i ­
m e ira vez qu e te m o s u m a indicação d o fato de q u e n a re ­
lação C ria d o r e c ria tu ra tu d o n ão é o m elh or, que a
ilegalidade e a d e s tru iç ã o d o m in a m , q ue d o r é a c re s c e n ­
ta d a ao so frim en to . Aqui, pela p rim e ira vez, o lado s o m ­
b rio d a existência p e n e tr a e m no sso c a m p o de visão, e
n ão n o p r im e iro artigo, que fala de D eu s o C riador. N ão
na d escrição d a criação co m o céu e terra, m a s aq u i na
descrição d a existência do C ria d o r qu e se t o r n o u criatura,
o m a l aparece; aqu i a d istante m o r te se to r n a visível. O
Sofreu... - 147

fato de que isto é assim, no m ín im o , significa isto: qu e a


discrição é exigida em todas as descrições d a fraq u eza e
do m al co m o sendo, em algum a m e d id a, in d e p e n d e n te s.
Q u a n d o isto foi realizado mais tarde, foi relativ am ente
negligenciado que tu d o isto en tra em ca m p o u n ic a m e n te
em con exão co m Jesus Cristo. Ele sofreu, ele deix o u visí­
vel o que é a n atu reza d o mal, d a revolta d o h o m e m c o n ­
tra D eus. O que co n h ec em o s do m al e do pecado? O que
sab em o s do que é ch a m a d o sofrim ento, ou o qu e significa
a m orte? A qui consegu im os entendê-lo. A q ui aparece esta
treva com p leta em sua realidade e verdade. A qui as q u e i­
xas são destacadas e punidas, aqui a relação e n tre D eu s e
o h o m e m é, n a verdade, clarificada. O qu e são to d a s as
nossas visões, o que é tu d o o que o h o m e m p e n s a que
sabe sobre sua estupidez e p ec a m in o sid a d e e sobre o es­
ta d o p e rd id o do m u n d o , o que é to d a especulação sobre o
so frim e n to e m o rte co n fro n ta d o com o qu e se t o r n o u m a ­
nifesto aqui? Ele, ele sofreu, aquele que é v erd ad e iro D eus
e v e rd ad e iro h o m e m . Toda conversa in d e p e n d e n te sobre
o assunto - isto é, conversa sep arad a dele - n ec e ssa ria ­
m e n te será in a d e q u a d a e im perfeita. A m e n o s que a c o n ­
versa sobre esta questão p a rta do centro, ela será irreal.
Q u e o h o m e m p o d e s u p o rta r os mais terríveis golpes do
D estin o e atravessar in tocad o com o q u em atravessa u m a
p a n c a d a de chuva, isto p o d e ser visto p o r n ó s hoje e m dia.
E stam o s sim p lesm ente intocados ta n to pelo s o frim e n to
q u a n to pela p ró p ria realidade d o mal; s ab em o s disto
agora. P ortanto, p o d e m o s rep e tid a m e n te escapar do c o ­
n h e c im e n to da nossa culpa e pecado. P o d e m o s apen as
c o n seg u im o s u m co n h ec im e n to ad equ ado , q u a n d o c o ­
n h e c e m o s que ele que é verdadeiro D eu s e v e rd a d e iro h o ­
m e m , padeceu. E m outras palavras, é preciso fé p a ra ver o
que é o sofrim ento. A qui houve sofrim ento. T u do o mais
que co n h e c e m o s co m o sofrim ento é s o frim e n to irreal
148 - Esboço de um a D ogm ática

c o m p a r a d o c o m o que aco n teceu aqui. S o m en te deste


p o n to de vista, c o m p a rtilh a n d o do s o frim e n to qu e ele s o ­
freu, p o d e m o s re c o n h e c e r o fato e a causa do s o frim e n to
em to d o lu gar n o co sm o s criado, sec re ta m e n te e a b e r t a ­
m ente.

Se o lh a rm o s p a ra este “ele p a d e c e u ”, p o d e m o s c o ­
m e ç a r do fato de q ue ele era D eus que se fez h o m e m em
Jesus Cristo, q ue agora tem de sofrer, não d a im perfeição
do m u n d o criado, n e m p o r q u a lq u e r p a d rã o d a n atu re za,
m as de h o m e n s e de sua atitud e p a ra co m ele. D e Belém à
cruz ele foi a b a n d o n a d o pelo m u n d o que o cercava, r e p u ­
diado, perseg u id o , fin alm en te acusado, c o n d e n a d o e c r u ­
cificado. Estes são os ataques dos h o m e n s sob re ele, sobre
o p ró p rio D eus. A qui h á u m a revelação d a rebelião do
h o m e m c o n tra D eus. O Filho de D eus é n e g a d o e rejei­
tado. C o m o Filho de D eus os h o m e n s p o d e m a p en a s fa­
zer o que eles fize ram seg u n d o a p ará b o la do viticultor:
“Este é o herdeiro. V enham , v am o s m atá-lo, e a h e r a n ç a
será n ossa”. Esta é a resp o sta do h o m e m à graciosa p r e ­
sença de D eus. P ara sua graça, ele n ão expressa n a d a além
de u m “N ão ” cheio de ódio. É a nação de Israel q ue rejeita
e m Jesus seu M essias e Rei. É a nação de Israel q u e não
co n h ec e n a d a m e lh o r a fazer co m o Líder p r o m e tid o de
to d a a sua história, à qual ele d á significado, co nclui e
cu m p re , do q ue entregá-lo, finalm ente, aos gentios. A s ­
sim Israel lid o u co m seu Salvador. E o m u n d o gentílico na
fo rm a de Pilatos p ô de, p o r sua parte, ap en a s aceitar esta
entrega. Ele executa o ju lg a m e n to que os ju d e u s p r o n u n ­
ciaram , e desta fo rm a p a rtic ip a m s e m e lh a n te m e n te nesta
rebelião c o n tra D eus. O que Israel faz aq u i é a revelação
de u m c o n te ú d o q ue está presen te n a h istó ria c o m p le ta de
Israel: os h o m e n s enviados p o r D eu s n ão são recebidos
co m júb ilo co m o auxiliadores, co n fo rta d o re s e cu rad o res;
m as, de M oisés em diante, e aqui m ais u m a vez, conclusi-
Sofreu... - 149

vãm ente, eles en fre n ta m o fato de que o h o m e m diz Não


p a ra eles. Este N ão toca d ire ta m e n te o p ró p rio D eus. A s ­
sim, so m en te neste ultim ato, a mais ín tim a e d ireta p r e ­
sença de D eus, que expressa a distância do h o m e m dele,
se to r n a m anifesta. A qui se to rn a m an ifesto o qu e é o p e ­
cado. P ecado significa rejeitar a graça de D eu s co m o tal,
que n os envolve e está presente em nós. Israel p e n s a que
p o d e ajudar a si m esm o. Visto deste pon to , d evem os dizer
que tu d o o que p en sam o s que sabem os c o m o p e c a d o é i n ­
significante e casual e u m a simples aplicação do p ecad o
original. D a m e sm a fo rm a que no A ntigo T estam en to t o ­
dos os m a n d a m e n to s não têm n a d a além do q ue u m a i n ­
tenção, a de co n d u z ir o povo de Israel p a ra o pacto da
graça de D eus, p o rta n to a transgressão de to d o s os m a n ­
d a m e n to s é perversa e má, p o rq u e m anifesta o p ro testo
do h o m e m co n tra a graça de Deus. O fato de que Jesus, o
Filho de D eus sofreu sob os ju deu s e gentios revela - e s o ­
m e n te ele revela - o m al em sua realidade. S o m en te deste
p o n to p o d e m o s c o m p re e n d e r o fato, a extensão e o c o n ­
te ú d o do im p e d im e n to do h o m e m , pois, pela p rim e ira
vez so m os aqui desafiados com a raiz de to d a g ra n d e e i n ­
significante transgressão. E n q u a n to nós, em to d a nossa
p e c a m in o s id a d e e nossa culpa m ú tu a em gran d es e in sig ­
nificantes form as, não reco n h e cem o s esta raiz e vem os
nós m e sm o s acusados no sofrim ento de Cristo, v em os
nós m e sm o s mais u m a vez nesta rebelião do h o m e m c o n ­
tra o p ró p rio D eus, to d o co n h e c im e n to o u r e c o n h e c i­
m e n to de culpa é vã. Pois de to d o c o n h e c im e n to de culpa
além deste con hecim ento, nós p o d e m o s n o s livrar m ais
u m a vez, com o u m p o o d le m o lh a d o que se seca b a l a n ­
çan d o to d o o corpo. E n q u a n to não v irm o s a p e rv e rsid a d e
em sua n atu re za real, não estam os presos (m e s m o se fa ­
la rm o s com veem ência sobre nossa culpa) à confissão,
“p eq u ei c o n tra os céus e p eran te ti”. Este “p e ra n te ti” se
150 - lisboço dc um a D ogm ática

to r n a óbvio aqui, e óbvio co m o o âm ago e sig nificado de


to d a cu lp a in d iv idu al n a qual estam o s envolvidos. Esta
culpa in d iv id u al n ão se to rn a, p o rta n to , incid en tal. O que
é feito p o r h o m e n s em ações individuais, d esd e a ação de
Pilatos até aquela de Judas, é a rejeição d a graça de D eus.
Mas o q ue é feito pelos h o m e n s ad q u ire sua im p o r tâ n c ia
co m p le ta do qu e foi feito p a ra D eus. Pois n o sso c o n h e c i­
m e n to co m p leto do m al d e p e n d e rá do n o sso r e c o n h e c i­
m e n to de qu e o h o m e m está sob acusação de ser o fenso r
c o n tra Deus. S o m en te p o d e m o s ver a cu lp a in fin ita n a ­
quilo em que p e r m a n e c e m o s c o n tra Deus; o D eu s qu e se
fez h o m e m . O n d e so m os cu lp ad o s c o m respeito ao h o ­
m e m , s o m o s a u to m a tic a m e n te le m b rad o s deste h o m e m .
Pois cada h o m e m que te m o s o fen d id o e to r t u r a d o é u m
daqueles que Jesus C risto c h a m o u seus irm ão s. A gora, o
q u e te m o s feito p a ra ele, te m o s feito p a ra D eus.

É v erd a d e q ue n a vid a de Jesus e n a h is tó ria d a sua


Paixão é ta m b é m a vida simples de u m h o m e m q ue se d e ­
senrola. Pense nas gran d es obras de arte cristãs, d a visão
de G r ü n e w a ld n o “S o fredor sobre a C r u z ”, até as te n ta ti­
vas m e n o s talentosas, na obra c o n h e c id a “C a m in h o s da
Paixão”, da p ie d ad e católica? Tudo isto é este h o m e m em
seu to rm e n to , e n q u a n to ele m e rg u lh a pelos d eg rau s dos
desfiladeiros da tribulação, de ser go lp e ad o e, finalm ente,
de ser m o rto . M as m e sm o visto deste asp ecto n ão é a p e ­
nas o h o m e m e m sua im perfeição que co m o u m ser m o r ­
tal p o d e ser a to rm e n ta d o , e m b o ra n ão sen d o D eus; pois a
figura do Jesus so fred o r é a figura daquele c o n d e n a d o e
p u n id o . D esde o início, o que causou o s o frim e n to de Je­
sus é a ação legal da sua nação, que fin alm en te se to r n a
c o m p le ta m e n te explícita. Eles o v êem c o m o o su p o sto
M essias qu e é d iferente d aquele esp erad o p o r eles, c o n tra
cujo cla m o r eles p o d e m , p o rta n to , ap en a s protestar.
Pense n a a titu d e dos fariseus, a d e n tr a n d o o Sinédrio: lá
Sofreu... - 151

você tem o p r o n u n c ia m e n to de u m veredicto. Este v e re ­


dicto expressa o julg am en to m u n d a n o executado p o r Pi-
latos. Os Evangelhos colocam ênfase p recisa m en te sobre
este ato legal. Jesus é a Pessoa acusada, c o n d e n a d a e p u ­
nida. A qui nesta ação legal é revelada a rebelião do h o ­
m e m c o n tra Deus.
M as nisso h á ta m b é m a revelação d a ira de D eus
co n tra o h o m e m . “P adeceu” é explicado n o C atecism o de
H eid elberg co m o Jesus carregan do a ira de D eus p o r sua
vida inteira. D esta form a, ser um h o m e m significa estar
diante de D eus e m e recer esta ira. N esta u n id a d e de D eus
e h o m e m , o h o m e m está lim itado a ser este c o n d e n a d o e
golpeado. O h o m e m Jesus em sua u n id a d e co m D eu s é a
figura do h o m e m golpeado p o r Deus. M esm o a justiça do
m u n d o , que c u m p re este julgam ento, o faz pela vo n ta d e
de Deus. O Filho de D eus se fez h o m e m a fim de deixar o
h o m e m ser visto sob a ira de Deus. O Filho do h o m e m
deve sofrer, ser entregue e crucificado, diz o N ovo Testa­
m ento. N esta Paixão a conexão se to rn a visível e n tre a
culpa in finita e a reconciliação que n ece ssariam en te se se­
gue sobre esta culpa. T orna-se claro que, o n d e a graça de
D eus é rejeitada, o h o m e m se apressa p a ra a sua p ró p ria
perdição. É aqui, o n d e o p ró p rio D eus se fez h o m e m , que
a mais p ro fu n d a verdade da vida h u m a n a é m anifesta: o
s o frim en to total que c o rresp o n d e ao p eca d o total.
Ser u m h o m e m significa estar tão situado n a p r e ­
sença de D eus co m o Jesus está, isto é, ser o p o r ta d o r da
ira de Deus. Isto nos pertence, e seu fim é a m orte. T o d a ­
via, este n ão é o final, n e m a rebelião do h o m e m , n e m a
ira de D eus. M as o mais p ro fu n d o m istério de D eu s é
este, que o p ró p rio D eus, no h o m e m Jesus, n ão se e s q u i­
vou de to m a r o lugar do h o m e m p eca d o r e de ser (aquele
que não con hecia pecado, ele o fez pecado ) o que o h o ­
m e m é, u m rebelde, carreg and o nele o s o frim e n to tal
152 - Esboço de um a D ogm ática

c o m o h o m e m , p a ra ser ele m e sm o o c u lp a d o co m p leto e a


reco nciliação com pleta! Foi isto qu e D eus fez e m Jesus
Cristo. Isto é, sem dúvida, o elem en to ab so lu to o cu lto
desta vida, q ue vê p rim e iro a luz n a ressu rre ição de
Cristo. M as a p aixão de C risto p o d e ser e rro n e a m e n te i n ­
te rp re ta d a , se n ão fôssem os além d a queixa sobre o h o ­
m e m e seu destino. N a verdade, o s o frim e n to de C risto
não foi e x au rid o neste desafio de p ro testo c o n tra o h o ­
m e m e o te r r o r d ia n te da ira de D eu s (este é a p en a s u m
lado d a Paixão e m e sm o o A ntigo T estam en to a p o n ta
além dela). A aliança de paz p e rm a n e c e ta m b é m acim a
desta in su rg e n te e a s su stad o ra figura do h o m e m . D eu s é
aquele que se fez cu lp ad o e reconciliação. P o rta n to , o li­
m ite se to r n a visível, ajuda total c o n tra a culpa total. Esta
é a ú ltim a coisa, c o m o ela ta m b é m foi a p rim e ira , que
D eus está p resen te e sua b o n d a d e é infindável. M as o sig­
nificado disto p o d e apenas se to r n a r claro n o co n tex to
po sterior. D e v e m o s p assar p a ra a co nsid eração, q ue está
in te rp o s ta n u m a fo rm a ex tra o rd in ária , q u e r dizer, “sob
P ôn cio Pilatos”.
Sob Pôncio Pilatos

E m virtude do nom e de Pôncio Pilatos estar conectado com


ele, a vida e a paixão de Jesus Cristo é u m evento
na m esm a história m u n d ia l na qual
nossa vida tam bém acontece.
E com a cooperação deste estadista
ela adquire visivelmente o caráter de um a
ação na qual o compromisso e retidão divinos,
assim como a perversão h u m a n a e a injustiça da ord en a­
ção do Estado do que acontece
no m undo, se tornaram efetivas e manifestas.

C o m o Pôncio Pilatos en tro u p a ra o C redo? D e certa


fo rm a grosseira e sarcástica, a resposta p o d e ser antes de
tudo: co m o u m cacho rro n u m belo quarto! D a m e sm a
fo rm a c o m o a política envolve a vida h u m a n a e depois, de
u m a fo rm a ou outra, a vida d a Igreja ta m b ém ! Q u e m é
Pôncio Pilatos? N a verdade, u m a figura desagradável e i n ­
significante co m u m caráter detestável. Q u e m é P ôncio
Pilatos? U m fu n cionário ex tre m am en te sub altern o, u m a
espécie de c o m a n d a n te m ilitar do go verno aliado que
ocupava o p o d e r em Jerusalém. O que ele fazia lá? A c o ­
m u n id a d e ju daica local expediu u m a resolução, p a ra a
execução da qual não tin h a suficiente auto ridad e. Foi t r a ­
154 - Esboço de um a D ogm ática

zida u m a sen ten ç a de m o rte, que agora dev eria ser legali­
zada pelo p o d e r executivo de Pilatos. D epo is de alg u m a
hesitação, ele faz o que exigiam dele. U m h o m e m in s ig n i­
ficante n u m papel c o m p le ta m e n te externo; pois tu d o que
havia de im p o r ta n te e espiritual foi e x au rid o e n tre Israel e
C risto n o S inédrio que o acusa e o rejeita. Pilatos se p o sta
em seu u n if o r m e e é usado, e seu papel n ão é n a d a h o n ­
roso; ele reco n h e ce que o h o m e m é in o c e n te e m e s m o a s ­
sim o e n c a m in h a p a ra a m orte. Ele era forçado a agir
e s trita m e n te s e g u n d o a lei, m as não age assim e se deixa
d e te r m in a r pelas “considerações políticas”. Ele n ão se
av e n tu ra a m a n te r a decisão judicial, m as se r e n d e ao cla­
m o r p o p u la r e en tre g a Jesus. Ele c u m p riu a crucificação
pelas suas coortes. Q u a n d o no m eio da C o nfissão da
Igreja C ristã, n o m o m e n to em que estam os n o p o n to de
e n tra r m o s n a área do mais p ro f u n d o m istério, tais coisas
vêm à m ente, e alguém p o d e até exclam ar c o m o G o eth e,
“u m neg ócio sujo! Q u e vergonha! U m a frau d e po lítica!”
Mas lá está “sob P ôncio Pilatos...”; p o rta n to , d e v e m o s p e r ­
g u n ta r a nós m e sm o s o que isto significa. A ro m a n c is ta
D o r o th y L. Sayers, escreveu vima peça p a ra a rád io inglesa
in titu la d a The m a n born to be King [O h o m e m n ascid o
p a ra ser rei], e nela in te rp re ta o s o n h o de Procla, a espo sa
de Pilatos, o n d e esta m u lh e r ouviu n u m so n h o , atra v es­
san d o os séculos em cada língua, este m e s m o brad o: “So­
freu sob o p o d e r de P ôncio Pilatos”. C o m o p ô d e P ô ncio
Pilatos e n tra r p a ra o Credo?

O n o m e e m conexão com a Paixão de C risto deixa


in e q u iv o c a m e n te claro que esta Paixão de Jesus Cristo,
este desvelar d a rebelião do h o m e m e d a ira de D eus, a p e ­
sar da sua m ise ricó rd ia , não aco n teceu n o céu ou em a l­
g u m p la n e ta rem o to , ou m e sm o em alg u m m u n d o das
idéias; a c o n te c e u e m nosso tem po, no c e n tro d a h istó ria
m u n d ia l n a q ual n o ssa vida h u m a n a é vivida. P o rtan to ,
Sob Pôncio Piiatos - 1 5 5

n ão d ev em os escapar desta vida. N ão d evem os alçar vôo


p a ra u m a te rra m elhor, para algum a altu ra o u o u tro lugar
d esco nh ecido , n e m p a ra o u tra Terra do F a z -D e -C o n ta es­
piritual, n e m p a ra u m conto de fadas cristão. D eu s veio
p a ra nossa vida em sua mais com pleta a m ab ilid ad e e te ­
mor. Q ue a Palavra se fez carne ta m b é m significa que ela
se to r n o u tem poral, histórica. Ela assu m e a fo rm a que
p e rte n c e à cria tu ra h u m a n a , na qual h á pessoas tais com o
o p ró p rio P ôncio Piiatos - o povo ao qual p e rte n c e m o s e
que som o s nós m e sm o s em q u alq u er te m p o n u m a escala
lig eiram ente grande! N ão é necessário fechar nossos
olhos p a ra isto, pois D eus ta m b é m não fechou os seus; ele
a a ssu m iu com tudo. A E n carnação da Palavra é u m
evento ex tre m a m e n te concreto, no q ual u m n o m e h u ­
m a n o p o d e fazer parte. A Palavra de D eus te m o caráter
de hic et nunc. N ão há n a d a da o pinião de Lessing de que
a Palavra de D eus é u m a “verdade ete rn a da razão”, e não
u m a “v erd ad e acidental d a história”. A h istó ria de D eu s é,
n a verdade, u m a verdade acidental da história, c o m o este
insignificante com an d an te . D eus não se e n v e rg o n h o u de
existir neste estado acidental. Aos fatores que d e t e r m i­
n a m n o sso te m p o h u m a n o e história h u m a n a , ta m b é m
p e rte n c e m , em v irtu d e do n o m e de P ôncio Piiatos, a vida
e Paixão de Jesus. N ão som os a b a n d o n a d o s neste m u n d o
assustador. N este m u n d o alienado, D eus veio até nós.

Sem dúvida, fica claro que este m e sm o fato de que


Jesus C risto sob o p o d e r de Pôncio Piiatos p o d e apenas
sofrer e m orrer, caracteriza a história m u n d ia l co m o u m
fato e x tre m a m e n te questionável. A qui se to r n a óbvio que
te m o s a ver com este m u n d o passageiro, a velha era, o
m u n d o cujo representante típico, P ôncio Piiatos, c o n ­
fro n ta Jesus em co m pleta im p o tên cia e desam paro. O p o ­
d er m u n d ia l de R om a está exposto, assim c o m o Piiatos, o
te n en te do g ran d e s e n h o r em R om a está exposto. Esta é a
156 - Esboço de um a D ogm ática

fo rm a co m o a ação política total aparece à luz d a a p ro x i­


m a ção do R eino de Deus: tu d o d ire c io n a d o p a ra u m r o m ­
p im e n to e p re v ia m e n te c o n tra d ita d o . Este é u m lado: este
m u n d o n o q ual C risto veio, é ilu m in a d o p o r ele e m sua
co m p le ta fragilidade e estupidez.

M as n ão seria correto p a ra rm o s aqui, pois o e p is ó ­


dio de Pilatos, e m to d o s os q u a tro Evangelhos, te m ain d a
m u ito m ais im p o rtâ n c ia , p a ra que estejam o s satisfeitos
c o m declaraçõ es de que Pilatos é apenas u m h o m e m deste
m u n d o . Ele n ão é apenas isto, m as o estad ista e político;
p o r ta n to , este e n c o n tro en tre o m u n d o e o R eino de D eus
é, n a verdade, m u ito especial. N ão é u m a q u e stã o de e n ­
c o n tro e n tre o R eino de D eus e o c o n h e c im e n to h u m a n o ,
a socied a d e h u m a n a , o tra b a lh o h u m a n o , m as do e n c o n ­
tro e n tre o R eino de D eus e a polis. Pilatos, assim , r e p r e ­
senta a o r d e m que c o n fro n ta a o u tra o rd e m re p re s e n ta d a
p o r Israel e a Igreja. Ele é o rep resen tan te do im p e r a d o r
Tibério. Ele rep resen ta a h istó ria m u n d ia l, n o qu e diz re s ­
peito estar sob as o rd en s do Estado. Q u e Jesus C risto s o ­
freu sob P ôncio Pilatos, significa, p o rta n to , ta m b é m que
ele aceitou a o r d e m deste Estado. “N ão terias n e n h u m p o ­
d er sobre m im , se do céu n ão te fosse d a d o ” (Jo 19.11). Je­
sus C risto estava falando m u ito sério q u a n d o disse: “D ai a
C ésar o qu e é de C é s a r” (M t 22.21). Ele d e u -lh e o qu e era
dele; ele não atacou a a u to rid a d e de Pilatos. Ele sofreu,
m as n ão p ro te s to u c o n tra Pilatos p ro fe rir u m ju lg a m e n to
sobre ele. E m o u tras palavras, a o r d e m do Estado, a polis,
é a área n a qual sua ação ta m b é m , a ação d a e te rn a P a la ­
vra de D eus, acontece. É a área n a qual, s e g u n d o a p e r ­
cepção h u m a n a , sob a am eaça e aplicação d a força física,
a decisão é to m a d a q u a n to ao certo e e rra d o n a vida ex ­
te rn a dos h o m e n s. Este é o Estado, isto é o qu e c h a m a m o s
política. T udo o que acontece no d o m ín io d a p o lític a é, de
a lg u m a fo rm a, u m a aplicação d esta tentativa. O que
Sob Pôncio Pilatos - 157

acontece n o m u n d o é sem pre igualm ente o r d e n a d o pelo


Estado, em b o ra , felizmente, não so m en te pelo Estado! N o
m eio deste m u n d o de o rdenanças do Estado, surge Jesus
Cristo. Pelo fato de sofrer sob Pôncio Pilatos, ele ta m b é m
p artic ip a desta o rd em , p o rta n to é d ig no de co n sid era ção
o que este fato deve significar, com o as o rd e n s extern as se
parecem , com o a realidade total de P ôncio Pilatos parece
do p o n to de vista do sofrim en to do Senhor.
Este não é o lugar para desenvolver a d o u tr in a cristã
do Estado, que n ão é p a ra ser sep arada da d o u tr in a cristã
da Igreja. Todavia, um a s poucas palavras d e v e m ser ditas
aqui, pois neste e n co n tro de Jesus e Pilatos tu d o está r e u ­
nid o in nuce, daquilo que seria co n sid era d o e dito do lado
do Evangelho co m relação ao d o m ín io d a polis.
O r d e m do Estado, p o d e r do Estado, co m o r e p r e s e n ­
tad o p o r Pôncio Pilatos vis-à-vis Jesus, to rn a -s e visível em
sua fo rm a negativa, em to d a perv ersão e injustiça h u m a ­
nas. A lgu ém pode, na verdade, dizer que se e m alg u m lu ­
gar o E stado é visível com o o Estado do erro, esse lu gar é
aqui; e se em algum lugar o Estado te m sido ex p o sto e sua
política pro v o u -se m o n stru o sa, então m ais u m a vez este
lugar é aqui. O que fez Pilatos? Ele fez o qu e políticos fa­
zem m ais ou m e n o s sem pre, e o que sem p re se iden tificou
co m a realização da política em to d o s os tem pos: ele t e n ­
to u resgatar e m a n te r a o rd e m em Jeru salém e, dessa
form a, ao m e sm o te m p o preserv ar sua p ró p ria posição de
poder, p o r m eio de su b o rd in a r a clara lei, p a ra a p ro teção
da qual ele estava, na verdade, instalado. E x tra o rd in á ria
contradição! Sua ocupação é decidir sobre o certo e o e r ­
rado; esta é sua raison detrê; e a fim de m a n te r sua p o s i­
ção, “te m e n d o os ju d e u s”, ren u n cia a fazer ex atam e n te o
que estava o b rigado a fazer: ele cede. N a verdade, ele não
c o n d e n a Jesus - ele não pôde co ndená-lo, ele n ão o acha
cu lp ado - todavia, ele o entrega. Ao e n tre g ar Jesus, ele
158 - Esboço de um a D ogm ática

ta m b é m está se en tregan do . P or to rn a r-s e o p ro tó tip o de


to d o s os p erseg u id o re s d a Igreja e pelo qu e N e ro veria
nele, pelo E sta d o injusto que está a tu a n d o aqui, c o m o u m
Estado caído e m desgraça. N a p esso a de Pilatos o E stado
a b a n d o n a sua p r ó p r ia base de existência e se tra n s f o r m a
e m covil de ladrões, u m Estado gângster, o o r d e n a m e n to
de u m a c a m a rilh a irresponsável. Isto é a polis, isto é p o lí­
tica. É de se a d m ir a r que alguém q u eira ta p a r o ro sto d i ­
ante disso? Se o estad o tem , d u ra n te ano s e d éca d as se
a p re s e n ta d o a si m e sm o s o m e n te nesta aparência, n ão é
de se a d m ir a r q ue alg uém se canse do d o m ín io co m p leto
d a política? N a v erd ad e o E stado assim o b serv ad o , o E s­
ta d o após o p a d r ã o de Pilatos, é a polis em sua m ais p u r a
op osição à Igreja e ao reino de D eus. Este é o E sta d o
c o m o ele é descrito n o N ovo T estam ento, em A pocalipse
13, c o m o a Besta do abism o, co m a o u tra Besta c o m o
g ra n d e fo c in h o q ue a a c o m p a n h a , a qual a p r im e ir a Besta
c o n tin u a m e n te glorifica e adora. A paixão de C risto se
to r n a o d e s m a s c a ra m e n to , o ju lg am en to , a c o n d e n a ç ã o
desta Besta, cujo n o m e é polis.

M as isto n ão é tudo, e n ão p o d e m o s p a ra r neste


p o nto . Se Pilatos, antes de tudo, traz à superfície a d e te r i­
oração d o E sta d o e, p o rta n to , o E stado injusto, d ev em o s
ta m b é m n ã o falhar e m re c o n h e c e r neste esp elho côn cavo
o b o m p rece ito de D eus que está aqui estabelecido, e
m a n té m -s e , e efetivo, o E stad o justo, q u e é, n a v erd ad e,
d e sg raçad o pela injustiça das ações h u m a n a s , m a s que,
ta n to q u a n to a Igreja correta, n ão p o d e ser c o m p le ta ­
m e n te p o s to de lado, p o rq u e re p o u s a sobre a in stitu iç ão e
m a n d a to divino. O p o d e r que Pilatos d e m o n s t r a n ão é
m e n o s c o n c e d id o a ele p o rq u e ele ab u sa dele. Jesus o r e ­
con hece, ex a ta m e n te n a fo rm a e m q ue m ais a d ia n te Paulo
re u n ia os cristãos ro m a n o s p a ra reconhecer, m e s m o n o
estad o de N ero, a instituição e m a n d a to divinos, p a ra
Sob Pôncio Pilatos - 159

c o n f o r m a r a este m a n d a to e assim r e n u n c ia r a to d o c risti­


a n ism o não-político, e, p articu la rm en te , re c o n h e c e r sua
resp onsab ilidade p a ra a m a n u te n ç ã o do Estado. Q u e a o r ­
d e m do E stado está correlacionada co m o sen d o u m a o r ­
d e m de D eus, está ta m b é m claro no caso de Pilatos, nisto
- e n q u a n to co m o u m m a u estadista ele e n tre g o u Jesus à
m orte, ele não p o d e senão, com o u m g en u ín o estadista,
declará-lo inocente. T am bém se to r n a visível co m u m a
força excepcional, que Pilatos, u m m a u estadista, te m p o ­
d er e v o n ta d e p a ra fazer exatam ente o c o n trá rio d o que
co m o u m g en u ín o estadista ele p o d ia ter desejado e feito
- lib ertar B arrabás e levar Jesus à m orte, e p o r ta n to (quão
diferente da fo rm a que lem os em 1 P edro 2.14!) “h o n r a r
os qu e p raticam o m al e p u n ir o b e m ” - m as, c o m o resu l­
ta d o (que n ão o exime, m as justifica a s a b e d o ria de
Deus!), ele deve c u m p rir ta m b é m a s u p re m a lei. Q u e Je­
sus, o justo, deveria m o r re r no lugar d o injusto, qu e c o n ­
se q ü e n te m e n te este h o m e m - Barrabás! - dev eria ser
lib ertad o n o lugar de Jesus, foi, na verdade, a v o n ta d e de
D eus n o so frim en to de Jesus Cristo. E desta fo r m a foi seu
so frim en to sob Pôncio Pilatos, o estadista m a u - ju sto
c o n tra sua vontade. E foi a vo n ta d e de D eu s n o so fri­
m e n to de Jesus Cristo, que Jesus deveria ser en tre g u e p e ­
los ju d e u s p a ra os pagãos, que a Palavra de D eus p o d e
sair do seu estreito d o m ín io da nação de Israel p a ra o
m u n d o gentio. O gentio que aceita Jesus - d esde as m ã o s
im u n d a s de Judas, dos sum o-sacerdotes e do pov o de Je­
rusalém , ele p ró p rio u m h o m e m co m m ã o s sujas - este
gentio é o estadista perverso, Pôncio Pilatos - ju sto c o n ­
tra sua vontade! N u m certo aspecto, ele ta m b é m é, co m o
H a m a n n o ch am ou , o executor do N ovo Testam ento,
n u m certo sentid o o fu n d a d o r da Igreja de ju d e u s e g e n ­
tios. Assim, Jesus triu n fa sobre aquele, sob cujas p erversi-
dades ele tem de sofrer. Assim, Jesus triu n fa sob o
160 - Esboço de um a D ogm ática

m u n d o , no qual tr ilh a n d o - o ele te m de sofrer. A ssim , ele


é o S e n h o r ta m b é m o n d e ele é rejeitado pelos h o m e n s.
A ssim a p r ó p r ia o rd e m política, in d e p e n d e n te m e n te de
sua c o r r u p ç ã o através da cu lp a h u m a n a q u a n d o Jesus foi
p o r ela subjugado, está d e s tin a d a a to r n a r claro q u e está,
na verdade, s u b ju g ad a a ele. Eis p o r que os cristãos dev em
o ra r pelos governantes. Eis p o r que eles to r n a m - s e re s ­
ponsáveis p o r sua m a n u ten çã o . Eis p o r que a tarefa dos
cristãos é b u s c a r o m e lh o r p a ra a cidade, h o n r a r a d ivina
in dicação e in stitu iç ão do Estado, e s co lh e n d o e d e s e ja n d o
no m e lh o r do seu co n h ec im e n to , n ão o E stado errad o ,
m as o E sta d o direito, o Estado qu e faz do fato de q u e seu
p o d e r v em “de cim a”, não u m a v erg o n h a, c o m o Pilatos,
m as u m a h o n ra . E além disto eles estão con fiantes de que
a lei de D eu s n a vida política, m e sm o o n d e ela é ig n o ra d a
pelos h o m e n s e p isoteada, é a p arte m ais forte, p o r causa
da Paixão de Jesus - o Jesus p a ra q u e m todo p o d e r n o céu
e n a te rra é dado. A provisão foi feita p a ra que o m al e p e ­
q u e n o Pilatos se inqu ietasse à toa, n o final das contas.
C o m o , neste caso, p o d e ria u m cristão to m a r p a r tid o dele?
Foi Crucificado,
Morto e Sepultado,
Desceu ao Inferno

Na m orte de Jesus Cristo, Deus h um ilhou a si m esm o e e n ­


tregou a si mesmo, a f i m de cum prir sua lei
sobre todo h o m em pecador,
assum indo seu lugar e,
assim, de um a vez p o r todas,
removendo do ho m em para si m esm o
esta maldição que o afetou, a punição que o
h o m e m merecia, o passado que quer ver corrigido,
o abandono no qual ele caiu.

O m istério da E ncarnação se d e s d o b ra n o m istério


da Sexta-feira Santa e da Páscoa. E m ais u m a vez é c o m o a
vem os sem p re presente no m istério co m p leto d a fé, ou
seja, de que devem os sem pre ver as duas coisas in terlig a­
das, devem os sem pre en te n d e r u m a pela outra. N a h is tó ­
ria da fé cristã, na verdade, sem pre esteve latente que o
c o n h e c im e n to dos cristãos sem pre p e n d e u m ais p a ra u m
lado do que p a ra outro. Temos isto n a decisiva inclinação
da Igreja O ciden tal em relação à theologia crucis - isto é,
u m a te n d ê n c ia em to rn a r público o fato de que ele foi e n ­
treg ue pelas nossas transgressões. E n q u a n to que a Igreja
O rie n ta l ace n tu a mais o fato de que ele ressuscitou p a ra
nossa justificação, e, p o rtan to , inclina-se p a ra a theologia
162 - Esboço de um a D ogm ática

gloriae. N esta q u estão n ão h á n e n h u m se n tid o e m q u e re r


jo g a r u m a c o n tra a outra. Você sabe d esd e o início que
Lutero enfatizou a te n d ê n c ia o cid en tal - n ão a theologia
gloriae, m as a theologia crucis. O que Lutero p re te n d e u
diz er co m isto está certo. M as n ão dev em o s erigir e c o n ­
firm a r q u a lq u e r oposição; pois n ão h á n e n h u m a theologia
crucis que n ão te n h a seu co m p le m e n to n a theologia g lo ­
riae. É evid en te qu e n ão h á n e n h u m a P áscoa sem a Sexta-
feira da Paixão, m as do m e sm o m o d o n ão h á Sexta-feira
d a Paixão sem a Páscoa! D e m a s ia d a trib u la ç ã o e s o b r ie ­
d a d e são facilm ente lavradas n o cristianism o. M as se a
cru z é a C r u z de Jesus C risto e não u m a esp ecu lação s o ­
bre a cruz, qu e q u a lq u e r pagão f u n d a m e n ta lm e n te t a m ­
b é m p o ssa tecer, en tão não p o d e n e m p o r u m s e g u n d o
ser esq u ecid o ou ig n o ra d o que o C ru cificad o ressu rg iu da
m o r te n o terceiro dia. C eleb rarem o s, neste caso, a Sexta-
feira d a Paixão c o m p le ta m e n te diferente, e talvez seria
desejável não c a n ta r n a Sexta-feira d a Paixão os h in o s
tristes e d e s co n so lad o s d a Paixão, m as c o m e ç a r a c a n ta r
os h in o s d a Páscoa. N ão foi u m a coisa triste e p esaro sa
que a co n teceu n a S exta-Feira d a Paixão; pois ele ressu sc i­
tou. Q u e r o ser o p rim e iro a d eclarar que você n ão p o d e
to m a r a b s tra ta m e n te o que te m o s a dizer sobre a m o r te e
a Paixão de Cristo, m as já o lh a r além p a r a o lug ar o n d e
sua glória é revelada.
Este âm ag o d a cristologia te m sido descrito n a velha
teologia sob dois conceitos principais de exinanitio e o
exaltatio de Cristo. Q u al o significado que a h u m ilh a ç ã o e
a exaltação a s s u m e m aqui?
A h u m ilh a ç ã o de C risto inclui o todo, c o m e ç a n d o
co m “sofreu sob P ô ncio Pilatos”, e d e c id id a m e n te visível
em “foi crucificado, m o r to e sepultado , desceu ao i n ­
ferno ”. O que o c o rre u prim eiro, c e rtam en te, foi a h u m i ­
lhação deste h o m e m que sofreu, m o r r e u e tr a n s ito u pelas
Foi Crucificado, M orto e Sepultado, Desccu ao Inferno - 163

m ais densas trevas. M as o que p rim e iro d á sua significa­


ção p a ra a h u m ilh açã o e o a b a n d o n o deste h o m e m é o
fato de que este h o m e m é o Filho de D eus, e de que n ão é
o u tro senão o p ró p rio D eus que se h u m ilh a e se en trega a
si m esm o.
A ssim , q u a n d o este fato é c o n tra b a la n ç a d o co m o a
exaltação de Jesus Cristo com o o m istério da Páscoa, esta
glorificação é, na verdade, u m a auto-glorificação de
Deus; é p a ra sua h o n r a que este triu n fo aconteça: “D eus
b r a d o u em alta voz”. Mas o m istério v e rd ad e iro d a Páscoa
n ão é que D eus é glorificado nele, m as qu e o h o m e m é
exaltado, elevado pela m ão direita de D eus e p e r m itid o
triu n fa r sobre o pecado, a m o rte e o diabo.
Q u a n d o sustentam os estes dois p o n to s ju n to s, en tão
o q u a d ro que tem os diante de nós é de u m a inconcebível
troca, de u m a katalage, isto é, u m a substituição. A r e c o n ­
ciliação do h o m e m com D eus acontece ao colocar D eus a
si m e sm o n o lugar do h o m e m e o h o m e m n o lu g a r de
D eus, c o m o o mais p u ro ato da graça. É este m ilagre i n ­
concebível que se to rn a nossa reconciliação.
Q u a n d o a p ró p ria C onfissão já a c e n tu a este “cru c ifi­
cado, m o r to e sepultado...” n u m a fo rm a p u r a m e n te ex ­
te rn a através de u m a franqu eza e in teg rid ad e de u m
registro que não é su p e ra b u n d a n te em palavras; além
disso, q u a n d o os Evangelhos p ro lo n g a m a h istó ria da
C rucificação até u m certo ponto, e q u a n d o em to d o s os
te m p o s a C ru z de Jesus é evidenciada c o m o o cen tro real
de to d a a fé cristã; q u a n d o em to d o s os séculos se ouve
repetidas vezes, Ave crux única spe m e a , tem os de ser cla­
ros em que o p o n to não é a glorificação e ênfase n a m o rte
em m a rtírio de u m fu n d a d o r de u m a religião - h á h is tó ­
rias indubitáveis de m ártires mais im p ression antes, mas
nas quais não estam os interessados - e n e m m e sm o é a
expressão do universal s o f r im e n to - d o - m u n d o sobre a
164 - Esboço de um a D ogm ática

C ru z c o m o u m a espécie de sím bo lo do lim ite d a e x p e r i­


ência h u m a n a . P or m eio disso n os d is ta n c ia m o s d o c o ­
n h e c im e n to daqueles que tê m te s te m u n h a d o o Jesus
C risto crucificado. N o sentid o do te s te m u n h o apostólico,
a cru cificação de Jesus C risto é a ação c o n c re ta do p r ó ­
p rio D eus. D eu s m u d a a si m esm o, o p ró p rio D eu s se
to r n a m ais p ró x im o , D eus p en sa que n ão é u m a e x p lo ra ­
ção ser divino, isto é, ele não se apega aos d esp o jo s c o m o
u m salteador, m as D eu s rep arte consigo m e sm o . Tal é a
glória d a sua D iv in d a d e, aquela o n d e ele p o d e ser “a b n e ­
gado”, aquela o n d e ele p ode, na verdade, p e r d o a r a si
m e sm o e m a lg u m a coisa. Ele se m a n té m g e n u in a m e n te
v e rd a d e iro p a ra si m esm o , m as s o m e n te p o r m e io de não
te r de lim itar-se à sua D ivindade. É a p ro f u n d e z a d a D i ­
vin d ad e, a g ra n d e z a d a sua glória que é revelada n o p r ó ­
prio fato de qu e ela ta m b é m p o d e se e s c o n d e r e m sua
m ais p u r a oposição, n a mais p ro f u n d a das rejeições e na
m a io r das m isérias d a criatura. O que acontece n a C r u c i ­
ficação de C risto é que o Filho de D eu s a ssu m e p a ra si
m e sm o é q ue deve se to r n a r a cria tu ra e m estad o de r e ­
volta, que q u e r lib ertar-se da sua c o n d ição de c ria tu ra e
declarar-se a si m e sm o o Criador. Ele se p õ e a si m e sm o
nas n ecessid ades da c ria tu ra e n ão a a b a n d o n a a si
m esm a. A lém disso, ele não apenas a aju d a de fora e a
saúda de longe; ele faz sua a desgraça da sua criatu ra.
C o m que p ropó sito ? P ara que sua c ria tu ra seja livre, p a ra
que o fardo que carrega sobre si seja tirado. A p ró p ria c r i­
a tu ra deve estar em frangalhos, m as D eus não deseja isto;
ele q u e r ver a sua salvação. É tão g ra n d e a ru ín a d a c ria ­
tu ra q u e q u a lq u e r coisa m e n o s que a a u to -e n tre g a de
D eus n ã o seria suficiente p a ra o seu resgate. M as D eu s é
tão g ran de, que foi sua v o n ta d e e n tre g ar a si m e sm o . R e­
conciliação significa D eus to m a n d o o lug ar d o h o m e m .
D eix e-m e acre sce n tar que n e n h u m a d o u tr in a deste m is-
Foi Crucificado, M orro c Sepultado, Desceu ao Inferno - 165

tério central p o d e c o m p re e n d e r com precisão e exaustão


ou expressar até on d e D eus interveio p o r nós. N ão c o n ­
fu n d a m in h a teoria da reconciliação co m a p r ó p r ia r e ­
conciliação. Todas as teorias da reconciliação não passam
de indicadores. M as esteja atento ta m b é m p a ra este “p o r
n ó s ”: n a d a p o d e ser su btraído dele! O que q u e r que a
d o u trin a da reconciliação p ro cu re expressar, ela deve d i­
zer isto.
N a m o rte de Jesus Cristo, D eus te m c u m p rid o sua
lei. N a m o rte de Jesus Cristo, ele atu o u co m o Juiz p ara
c o m o H o m e m . O h o m e m se colocou n u m p o n to n o qual
o veredicto de D eus é declarado sobre ele e te m de ser
carregado inevitavelm ente. O h o m e m p e r m a n e c e diante
de D eus co m o u m pecador, co m o u m ser que está s e p a ­
rad o de D eus, que se rebelou co n tra aquilo qu e ele deve
ser. Ele se rebelou co n tra a graça; c o m o se isso fosse
pouco, ele v iro u as costas para a gratidão. Tal é a v ida h u ­
m a n a, este con stan te afastar-se, este vulgar e sutil pecado.
O p eca d o leva o h o m e m à necessidade inconcebível: ele
se to rn a im possível diante de Deus. Ele se coloca on d e
D eus n ão p o d e vê-lo. Ele colocou-se, p o r assim dizer, p o r
detrás das costas da graça de Deus. M as as costas do
“Sim” de D eus é o divino “N ão”; é o ju lg am en to . A ssim
c o m o a graça de D eus é irresistível, assim ta m b é m seu
ju lg a m e n to é irresistível.
A gora p o d e m o s en te n d e r o que foi d eclarad o de
Cristo, que ele foi “crucificado, m o rto e sepultado...”,
c om o a expressão daquilo que está, na verdade, c u m p rid o
sobre o h o m e m .
Crucificado. Q u a n d o u m israelita era crucificado,
significava que ele era am aldiçoado, b a n id o , n ão apenas
do d o m ín io d a vida, m as da aliança co m D eus, re m o v id o
do círculo dos eleitos. C rucificado significava rejeitado,
ser en treg ue à m o rte da forca infligida aos pagãos. V am os
166 - Esboço de um a D ogm ática

deixar claro o qu e está envolvido no ju lg a m e n to de D eus,


no q ual a c ria tu ra h u m a n a te m de sofrer d o lado de D eus
c o m o u m a c ria tu ra pecad ora; ele está envolvido n a rejei­
ção, n a m aldição. “M aldito to d o aquele que for p e n d u ­
ra d o no m a n e ir o ”. O que recaiu sobre C risto é o que
deveria recair sobre nós.
Morto. A m o r te é o fim de tod as as po ssib ilid ad es
p resen tes de vida. M o rre r significa ex au rir a ú ltim a das
possibilidades q ue nos foi dada. Q u e r deseje m o s in t e r p r e ­
ta r m o r r e r fisicam ente e m etafisicam ente, seja o q u e for
que aconteça, u m a coisa é certa, que acontece o ú ltim o
ato que p o d e aco n tecer n a existência d a criatura. Seja o
que for q ue aco n teça além d a m o rte deve, pelo m e n o s, ser
algo diferen te da c o n tin u id a d e d esta vida. A m o r t e r e a l­
m e n te significa f i m . Este é o ju lg a m e n to p e ra n te o qual
nossa vida está: a espera da m orte. N ascer e crescer, a m a ­
d u re c e r e envelhecer, é c a m in h a r em direção ao m o m e n to
n o qual p a ra cada u m de nós será o fim, d e fin itiv a m e n te o
fim. A q u estão vista deste lado, é u m a q u estão que tr a n s ­
fo rm a a m o r te n u m elem en to em n ossa vida, so b re o q ual
p referim o s n ão pensar.
Sepultado. Ele p e rm a n e c e lá tão d is c re ta m e n te e
n u m a sim ples superficialidade. M as ele n ão está lá p o r
nada. A lg u m dia serem o s en terrad o s. A lg u m dia u m p u ­
n h a d o de h o m e n s se dirigirão ao cem itério o n d e descerão
u m caixão e to d o s re to rn a rã o p a ra casa; m as alg u é m não
voltará, e este tal serei eu. O selo da m o r te será q u e eles
m e e n te rra rã o co m o u m a coisa que é su p é rflu a e p e r t u r ­
b a d o r a n a te rra dos vivos. “S epultado” d á à m o r te o c a r á ­
ter de p assag em e declínio e à existência h u m a n a o
cará ter de tra n s ito rie d a d e e c o rru p tib ilid ad e. E ntão, qual
o significado da vida h u m a n a ? Significa apressar-se p a ra
a sep ultura. O h o m e m apressa-se p a ra e n c o n t r a r o seu
passado. Este passado, no qual não h á m ais futu ro, será a
Foi Crucificado, M orto c Sepultado, Desceu ao Inferno - 167

coisa final: tu d o o que som os terá ido e terá sido c o r r o m ­


pido. Talvez a m e m ó ria p erm a n ecerá, e n q u a n to h o u v e r
h o m e n s que gostem de lem brar-se de nós. M as alg u m dia
eles ta m b é m m o rre rã o e a m e m ó ria deles ta m b é m se ex ­
tinguirá. N ão h á u m grand e n o m e n a h istó ria h u m a n a
que n u m d ia ou o u tro não será esquecido. Este é o sign ifi­
cado de ser “sepu ltad o”; e este é o ju lg a m e n to sobre o h o ­
m e m , que n o tú m u lo ele é deixado ao esquecim ento. Esta
é a respo sta de D eus para o pecado: não h á n a d a m ais
p a ra ser feito co m o h o m e m pecador, exceto e n te rrá -lo e
esquecê-lo.

Desceu ao inferno. N o A ntigo T estam en to a im ag em


de in fern o é algo diferente do que se desenvolveu p o s te r i­
o rm en te. Inferno, o lugar do inferi, H ades n o s en tid o do
A ntigo Testam ento, é, n a verdade, o lugar de to rm e n to , o
lugar de co m pleta separação, o n d e o h o m e m c o n tin u a a
existir apenas com o u m não-ser, com o u m a som b ra. Os
israelitas p en sav am neste lugar com o u m lugar o n d e os
h o m e n s se p e rp e tu a v a m suspensos a ro d e a r c o m o s o m ­
bras furtivas. E a p arte ru im sobre estar n o in fe rn o no
sentido do A ntigo T estam ento é que n a m o rte não p o ­
d ia m m ais louvar a Deus, não p o d ia m m ais ver sua face,
n ão p o d ia m mais c u m p rir as regras do Sabath de Israel. É
u m estado de exclusão de Deus, o que to r n a a m o r te tão
tem erosa, e que faz do inferno o que ele é. O h o m e m estar
sep arad o de D eus significa estar n u m lugar de to rm e n to .
“C h o ro e ran g er de den tes” - nossa im ag in aç ão n ão está
a d e q u a d a p a ra esta realidade, esta existência sem D eus. O
ateu n ão está consciente do que é a não -ex istên cia de
D eus. A n ão -existência de D eus é a existência no inferno.
O que m ais além disto é oferecido com o resu ltad o do p e ­
cado? O h o m e m n ão se separou de D eus p o r seu p ró p rio
ato? “D esceu ao inferno ” é sim p lesm en te a co n firm ação
disto. O ju lg a m e n to de D eus é justo - isto é, ele oferece ao
168 - Esboço dc um a D ogm ática

h o m e m o que ele quer. D eus n ão seria D eus, o C r ia d o r


n ão seria o C riador, a cria tu ra n ão seria a c ria tu ra e o h o ­
m e m n ão seria o h o m e m , se este vered icto e su a execução
p u d e s s e m ser detidos.

P o rém , agora, a C o nfissão n o s diz q ue a execução


deste vered icto é efetivada p o r D eu s d esta fo rm a, que ele,
o p r ó p r io D eus, e m Jesus C risto seu Filho, u m a vez v e r d a ­
deiro D eu s e v erd ad e iro h o m e m , a ssu m iu o lu gar d o h o ­
m e m co n d e n a d o . O ju lg a m e n to de D eus é ex ecu tado , a lei
de D eu s assu m e seu curso, m as de u m a tal fo r m a q u e o
que o h o m e m ti n h a de sofrer é sofrido p o r Aquele, que
c o m o Filho de D eus sofreu p o r todos. Tal é o s e n h o rio de
Jesus Cristo, qu e se ofereceu p o r nós d ian te de D eus, t o ­
m a n d o so bre si o que n o s pertencia. Nele, D eu s se faz re s ­
ponsável, até ao p o n to no qual so m o s a m a ld iç o a d o s e
cu lp ad o s e p erd id o s. Ele estava em seu Filho, q u e n a p e s ­
soa deste h o m e m cru cificado s u p o rta n o G ó lg o ta tu d o
aquilo que deveria ser levado p o r nós. D esta fo rm a ele
p õ e u m fim à m aldição. N ão é d a v o n ta d e de D eus q ue o
h o m e m pereça; n ão é da v o n ta d e de D eu s que o h o m e m
pagu e o que estava sujeito a pagar; e m o u tra s palavras,
D eus ex tirp a o pecado. Ele o faz, não a d e sp eito d a sua
justiça, m a s é a p ró p ria justiça de D eu s que ele, o Santo,
in te rv e n h a a favor nós, os profanos, qu e ele q u e ira salvar-
nos e assim o faça. Justiça n o A ntigo T estam en to n ão é a
justiça do juiz qu e faz o d ev ed o r pagar, m as a ação de u m
juiz que n o a c u sa d o reco n h e ce o vilão que ele deseja a ju ­
d a r d a n d o - lh e os direitos. É isto qu e significa justiça. Jus­
tiça significa assentar o direito. E é isto que D eu s faz.
C e rta m e n te , n ão sem a p u n iç ã o ser s u p o r ta d a e to d a a
a n g ú stia irro m p er, m as através de ele colocar-se n o lugar
do culpado. Ele que p o d e e faz isto é justificad o pelo fato
de qu e ele assu m e o papel d a sua criatura. A m ise ric ó rd ia
de D eus e a justiça de D eus não são divergentes e n tre si.
Foi Crucificado, M orto e Sepultado, Desceu ao Inferno - 169

“Seu Filho n ão é igualm ente q u e rid o p a ra ele,

Ele o entregou; pois ele

D o fogo e tern o através do seu sangue

Me resgataria.”

Este é o m istério d a Sexta-feira d a Paixão.

Mas, n a verdade, estam os o lh a n d o p a ra além da


Sexta-feira d a Paixão, q u a n d o d izem os qu e D eu s v e m em
n o sso lugar e assum e nosso castigo sobre si. D este m o d o ,
ele, n a verdade, o to m a de nós. Todo so frim en to , to d a
tentação, assim com o nosso m orrer, é apenas a s o m b ra do
ju lg am en to que D eus já executou a nossa favor. A quilo
que n a v erd ade nos afetava e p o d ia n os afetar, foi, n a v e r ­
dade, lançado fora de nós n a m o rte de Cristo. Isto está
atestado pelas palavras de Cristo n a Cruz: “Está c o n s u ­
m a d o !” P ortanto, n a visão da C ru z de C risto s o m o s c o n ­
vidados, p o r u m lado, a perceber a m a g n itu d e e peso do
no sso p ecado e o custo do nosso perdão. N u m sentido
mais rigoroso não h á co n h ec im e n to do p e c a d o exceto à
luz da C ru z de Cristo. Pois so m en te c o m p re e n d e o que é
o pecado, q u e m sabe que seu pecado é p erd o ad o . P o r o u ­
tro lado p o d e m o s p erceb er que o preço é pago ao no sso
favor, pois so m os absolvidos do p ecad o e suas c o n s e q ü ­
ências. N ão som os mais tratad os e vistos p o r D eus co m o
pecadores, que devem passar sob o ju lg a m e n to p o r sua
culpa. N ão te m o s mais n a d a para pagar. S om os abso lvi­
dos g ratu itam en te, sola gratia, pela p ró p ria in terv en ção
de D eus p o r nós.
Ao Terceiro Dia
Ressurgiu dos Mortos

Na Ressurreição de Jesus Cristo, o h o m em é, de u m a vez


p o r todas, exaltado e levado a descobrir com Deus
seu direito contra todos os seus adversários
e assim libertar-se para viver u m a nova vida, na qual ele
não mais terá pecado e, portanto, a maldição, a morte, o
tú m u lo e o inferno à sua frente, m as atrás de si.

“Ao terceiro dia ressurgiu dos m o r to s ” é a m e n s a ­


gem d a Páscoa. Ela assegura que não foi em vão q ue D eus
se h u m ilh o u e m seu Filho; fazendo assim ele s e g u ra m e n te
agiu ta m b é m p a ra sua p ró p ria h o n ra e p a ra a c o n f ir m a ­
ção da sua glória. Pela sua m isericórdia triu n fo u em sua
p ró p ria h u m ilh açã o , o resultado sendo a exaltação de Je­
sus Cristo. E q u a n d o dissem os a n te rio rm e n te qu e n a h u ­
m ilh açã o o Filho de D eus estava envolvido e, p o rta n to , o
p ró p rio D eus, devem os agora enfatizar que o que está e n ­
volvido n a exaltação é o h o m e m . Em Jesus C risto o h o ­
m e m é exaltado e levado p ara a vida p a ra a qual D eu s o
lib erto u n a m o r te de Jesus Cristo. Deus, p o r assim dizer,
a b a n d o n o u a esfera da sua glória e o h o m e m p ô d e agora
to m a r seu lugar. Esta é a m e n sag e m d a Páscoa, o objetivo
d a reconciliação, a redenção do h o m e m . É o objetivo que
já era visível n a Sexta-feira da Paixão. Através d a interces-
172 - Esboço de um a D ogm ática

são de D eus pelo h o m e m - os escritores d o N ovo T esta­


m e n to n ão estavam te m ero so s em u s a r a expressão
“p a g a n d o ” - o h o m e m é u m a c ria tu ra resgatável.
Apolytrosis é u m conceito legal que descreve o resgate de
u m escravo. O alvo é que o h o m e m seja tra n s fe rid o p a ra
o u tro status n a lei. Ele não p erte n ce m ais àquilo q u e tin h a
direito so bre ele, ao d o m ín io d a m aldição, m o r te e i n ­
ferno; ele é tr a d u z id o p a ra o reino do q u e rid o Filho de
D eus. Isto significa que seu posição, sua co nd ição, seu
status legal c o m o u m p e c a d o r é rejeitado em to d a form a.
O h o m e m n ão é visto m ais seria m e n te p o r D eu s c o m o
u m p ecador. O que q u e r que ele p ossa ser, tu d o qu e existe
p a ra ser dito dele, tu d o que possa vir a rep ro vá-lo, D eu s
não o leva m ais a sério com o u m pecador. Ele m o r r e u
pa ra o pecad o; lá n a C ru z do Gólgota. Ele n ão está m ais
p resen te p a ra o pecado. Ele é re c o n h e c id o e estabelecido
dia n te de D eus co m o u m h o m e m justo, co m o aquele que
é ju sto d ia n te de D eus. A ssim c o m o se ap resenta, ele tem ,
ev id en tem en te, sua existência em p eca d o e, assim , e m sua
culpa; m as ele o te m atrás dele. A m u d a n ç a foi c o m p le ­
tada, de u m a vez p o r todas. Mas não p o d e m o s dizer, “Eu
a b a n d o n e i de u m a vez p o r todas, eu e x p e rim e n te i” - não;
“de u m a vez p o r to d a s ” é o “de u m a vez p o r to d a s ” de Je­
sus Cristo. M as se crem o s nele, então é nosso. O h o m e m
está em C risto Jesus, que m o r r e u p o r ele, em v irtu d e da
sua R essurreição, o Filho a m a d o de D eus, q ue vive p o r e
p a ra o b o m g ra d o de D eus.
Se esta é a m e n sa g e m da Páscoa, en tão você p erce b e
qu e n a R essurreição de Jesus C risto h á a revelação do
fru to a in d a e s c o n d id o d a m o rte de Cristo. É este exato
p o n to decisivo qu e está ain d a esco n d id o n a m o r te de
Cristo, o c u lto sob o aspecto n o qual o h o m e m lá aparece
c o n s u m id o pela ira de Deus. A p a rtir de ago ra o N ovo
T estam en to n os to r n a te ste m u n h a s de q ue este asp ecto do
Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos M ortos - 173

h o m e m não é o significado do evento no G ólgota, m as


que p o r trás deste aspecto o real significado deste evento
é aquele que é revelado no terceiro dia. Sobre este terceiro
dia com eça u m a nova história do h o m e m , ta n to q ue p o ­
d e m o s até m e sm o dividir a vida de Jesus em dois gran des
p erío d o s, os trin ta e três anos até sua m o rte , e o b e m
c u rto e decisivo p e río d o dos q u a re n ta dias en tre sua
m o rte e a Ascensão. Ao terceiro dia com eça u m a nova
vida de Jesus; mas, ao m e sm o tem po, n o terceiro d ia c o ­
m eça u m novo A e o n , u m a nova fo rm a de m u n d o , depois
do velho m u n d o ter sido co m p leta m en te aca b ad o e q u i­
ta d o n a m o rte de Jesus Cristo. A Páscoa é a n o v id a d e de
u m novo te m p o e m u n d o na existência do h o m e m Jesus,
que agora com eça u m a nova vida com o co n q u istad o r,
co m o u m c o n d u to r vitorioso, com o o d e s tr u id o r do fardo
do p eca d o do h o m e m , que foi posto sobre ele. N esta sua
existência d iferen ciada a p rim eira c o m u n id a d e viu não
apenas a co n tin u açã o so b ren atu ra l da sua v ida anterior,
m as u m a nova vida com pleta, aquela do exaltado Jesus
C risto e sim u ltan e am en te o início de u m novo m undo.
(Os esforços p a ra relacionar a Páscoa a certas renovações,
c o m o as que o c o rre m na natureza, co m o a p rim av era, ou
até m e sm o no d esp erta r do h o m e m pela m a n h ã , e assim
p o r diante, não têm q u alq u er força. D epo is d a p rim a v e ra
segue-se, inexoravelm ente, u m inverno, e depois do d e s ­
pertar, o cair no sono novam ente. O que te m o s aqui são
m o v im e n to s cíclicos renováveis. M as to rn a r-s e novo na
Páscoa é to rn a r-se novo de u m a vez p o r todas.) N a re s ­
surreição de Jesus Cristo o reivindicação está feita, se­
g u n d o o N ovo Testam ento, de que a v itória de D eu s em
favor do h o m e m n a pessoa de seu Filho já foi ganha. A
P áscoa é, n a verdade, o gran de p e n h o r d a no ssa e s p e ­
rança, m as ao m e sm o te m p o este fu tu ro já está presen te
174 - Ksboço de um a D ogm ática

n a m e n sa g e m d a Páscoa. É a p ro c la m a ç ã o d a v itó ria já


vencida. A g u e rra está no fim - e m b o ra aqui e acolá t r o ­
pas estejam atiran d o , p o rq u e ain d a n ão o u v ira m n a d a s o ­
bre a capitulação. O jogo está vencido, e m b o ra o jo g a d o r
a in d a faça alguns m o v im e n to s adicionais. N a v erd ad e , ele
já está d erro ta d o . O relógio está p a ra n d o , e m b o ra o p ê n ­
dulo a in d a oscile le n ta m e n te p a ra lá e p a ra cá. É neste es­
paço in te rin o q ue estam o s vivendo: as coisas velhas já
passaram , eis qu e tu d o se fez novo. A m e n s a g e m d a P á s ­
coa nos co n ta q ue nossos inim igos, o pecado, a m a ld içã o
e a m o r te fo ram vencidos. N o final das contas, eles não
p o d e m m ais cau sar danos. Eles a in d a se c o m p o rta m
c o m o se o jogo ain d a não tivesse acabado, a b a ta lh a não
te rm in a d a ; dev em o s ain d a c o n ta r co m eles, m a s f u n d a ­
m e n ta lm e n te d ev em o s p a r a r de tem ê-los de u m a vez p o r
todas. Se você o uviu a m e n sa g e m d a Páscoa, você não
p o d e m ais a n d a r p o r aí co m u m a face trág ica e u m a c o n ­
d u ta existencial d e s a n im a d a de u m h o m e m que n ã o te m
esperança. U m a coisa ain d a está segura, e s o m e n te esta
coisa deve ser levada a sério: qu e Jesus é o V itorioso. A s e ­
ried a d e de q u e m olh a p a ra trás, c o m o a esp o sa de Ló, n ão
é a seried a d e cristã. P ode estar q u e im a n d o lá atrás - e
v e rd a d e ira m e n te está q u e im a n d o - , p o r é m d ev em o s
olhar, n ão p a ra isso, m as p a ra o o u tro fato, de q u e so m o s
co n v id ad o s e co n v ocado s a to m a r co m seried a d e a vitó ria
da glória de D eus neste h o m e m Jesus e se regozijar nele.
Só en tão p o d e m o s viver em g ratid ão e n ão e m m ed o.

A R essurreição de Jesus C risto revela e co m p le ta


esta p ro c la m a ç ã o de vitória. N ão d ev em o s tr a n s m u ta r a
R essurreição e m u m evento espiritual. D ev em o s o uvi-la e
deixá-la c o n ta r-n o s a h istó ria de co m o h o u v e u m tú m u lo
vazio, q ue u m a nova vida além d a m o rte to r n o u - s e v isí­
vel. “Este [h o m e m a rre b a ta d o d a m o rte] é o m e u Filho
Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos M ortos - 175

am ado, n o qual te n h o p ra z e r”. O que foi a n u n c ia n d o no


b atism o no Jordão agora se to rn a u m evento e m anifesto.
A to d o s que c o n h ec em este evento, a r u p tu r a en tre o v e ­
lho m u n d o e o novo é pro clam ada. Eles ain d a tê m u m a
p e q u e n a lin h a p a ra term inar, até que se to rn e visível que
D eus em Jesus C risto j á c u m p riu tu d o p a ra eles.
Ascendeu aos Céus,
e Está Assentado À Direita
de Deus Pai Todo-Poderoso

O objetivo da obra de Jesus Cristo, que aconteceu de um a


vez p o r todas, é o fu n d a m e n to da sua Igreja através
do conhecimento, confiado às testem unhas da
sua ressurreição, de que a onipotência de
D eus e a graça de Deus, que são ativas e
aparentes nele, são um a e a m esm a
coisa. Assim, o f i m desta obra é tam bém o início
do tempo-final, isto é, do tempo no qual a Igreja tem
de proclam ar para todo o m u n d o a graciosa onipotência e a
onipotência graça de D eus em Jesus.

O curso do texto d a Confissão de Fé m o s tra -n o s ex ­


te rio rm e n te que estam os nos ap ro x im a n d o de u m obje­
tivo, o objetivo d a obra de Jesus Cristo, d esde que ela
aco n teceu de u m a vez p o r todas. Nessa estrad a ain d a h á
u m a p arte pen d en te, que é fu turo e que se to r n a r á visível
ao final da Confissão, “de on d e ele h á de v ir ” m ais u m a
vez... M as o que aconteceu de u m a vez p o r todas, agora se
ap resen ta c o n s u m a d o diante de n ós em u m a série c o m ­
pleta de v erbo s no te m p o perfeito: gerado, con ceb ido,
nascido, sofrido, crucificado, m orto, sepultado, desceu,
ressuscitou; e agora, su b ita m en te u m presente: “Está as­
sentado à direta de Deus...” É co m o se tivéssem os esca­
178 - Esboço de u m a D ogm ática

lado u m a m o n t a n h a e agora alcan çad o seu cu m e. Este


p resen te é c o m p le ta d o p o r u m final n o perfeito, q u e ele
asc e n d e u aos céus; o que p o r sua p a rte c o m p le ta o “r e s ­
su rg iu d os m o r t o s ”.
C o m este “está assen tad o à d ireita de D eu s P ai” o b ­
v ia m e n te p a s s a m o s p a r a u m novo te m p o q u e é n o sso
te m p o presen te, o te m p o d a igreja, o te m p o -fin a l, in a u g u ­
ra d o e fu n d a d o pela o b ra de Jesus Cristo. N o N ov o T esta­
m e n to o relato deste evento co n stitu i a co n clu sã o dos
relatos d a R essurreição de Jesus Cristo. H á - q u ase a n á ­
logo aos m ilagres d a N ativ id ad e - u m a lin h a tê n u e rela­
tiva n o N ovo T estam en to , q ue fala d a ascensão de C risto
aos céus. A qu i e acolá apenas a R essurreição é m e n c io ­
n a d a e en tão d ire ta m e n te a p a rte sobre estar à m ã o d ireita
do Pai. N o Evangelho ta m b é m a ascensão aos céus é m e n ­
c io n a d a de m o d o relativam ente escasso. O qu e está e n v o l­
vido é esta transição, a m u d a n ç a do te m p o da revelação
p a ra o n o sso tem po.
Q u a l é o significado d a A scensão? S e g u n d o o qu e
te m o s dito so bre céus e terra, ela significa e m q u a lq u e r
m e d id a que Jesus deixa o espaço terreal, o espaço, isto é,
que foi co n c e b id o p a ra nós e q ue ele c rio u p o r a m o r a
nós. Ele n ã o p e rte n c e m ais a ele c o m o n ó s p e rte n c e m o s .
Isto n ão significa q ue se to r n o u alien ad o p a r a ele, que este
espaço n ão é seu espaço ta m b é m . Pelo co n trá rio , u m a vez
qu e ele p e r m a n e c e acim a deste espaço, ele o p re e n c h e e se
to r n a p re s e n te p a ra ele. M as agora, e v id e n te m e n te , n ão
m ais n a m a n e ir a do te m p o d a sua revelação e d a su a ativ i­
da d e terreal. A A scensão n ão significa qu e C risto su biu
p a ra o u tro d o m ín io do m u n d o criado, p a ra o d o m í n io do
que é in concebível p a ra nós. “À direita de D e u s ” significa
n ão ap en a s a tran sição do concebível p a r a o inco ncebív el
n o m u n d o criado. Jesus é re m o v id o n a direção d o m is té ­
rio do espaço divino, o que está a b s o lu ta m e n te o c u lto ao
Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai T o do-P oderoso - 179

h o m e m . N ão são os céus a sua m o rad a ; ele está co m


D eus. O C rucificado e o R essurreto está o n d e D eus está.
A m e ta da sua atividade sobre a te rra e n a h is tó ria é que
ele vai p a ra lá. Envolvido n a E n ca rn ação e n a C ru c ific a ­
ção está a h u m ilh açã o de Deus. Mas n a R essurreição de
Jesus C risto está envolvida a exaltação do h o m e m . C risto
está agora, com o o C o n d u to r da h u m a n id a d e , co m o
nosso R epresentante, no lugar o n d e D eus está e n a fo rm a
na qual D eu s é. N ossa carne, nossa n atu re za h u m a n a , está
exaltada nele p a ra Deus. O fim da sua o b ra é que estam os
co m ele em ascensão. E stam os com ele ao lado de D eus.
D este p o n to inicial tem os que o lh a r p a ra trás e p a ra
frente. Se e n te n d e rm o s o Novo T estam ento c o rretam en te,
c o m seus te ste m u n h o s para esta co n seq ü ên c ia d a v ida e
atividade de Jesus Cristo, esta co n seq ü ên c ia é c a ra c te ri­
zada e m u m c a m in h o duplo.
D este Ú ltim o surgiu a luz, que é vista pelos seus
Apóstolos. O co n h e c im e n to conclusivo está co n fia d o às
te ste m u n h a s da sua Ressurreição. N o Evangelho seg u n d o
São M ateus p e rm a n e c e m as palavras de C risto (28.18):
“Foi-m e d a d a to d a a u to rid ad e nos céus e n a terra”. É sábio
e necessário trazer estas palavras em conexão c o m a p a rte
‘a direita de D eus Pai T o d o -p o d ero so ”. O conceito de o n i­
p o tê n cia aparece nos dois pontos. E m Efésios 4.10 o
m e sm o c o n h e c im e n to é declarado: “A quele que d esceu é
o m e sm o que subiu acim a de to dos os céus, a fim de e n ­
ch er to das as coisas...”; enchê-las com sua v o n ta d e e sua
Palavra. Ele agora está nas m aiores alturas; ele ag ora é o
Senhor, e revelado com o tal. V oltam os a esta p assag em
p a ra coisas que nós tocam o s acim a n a exposição d o p r i ­
m e iro artigo. Se falamos c o rretam en te d o D eu s T o d o -p o -
dero so que está sobre todas as coisas, en tão n u n c a
d ev em o s e n te n d e r p o r o n ip o tên cia de D eu s q u a lq u e r
coisa além d a realidade da qual o seg u n d o artigo fala. O
180 - Esboço de um a D ogm ática

c o n h e c im e n to que os A póstolos a d q u irir a m c o m base na


R essurreição de Cristo, cuja co nclusão é a A sc en são de
Cristo, é essen cia lm e n te este c o n h e c im e n to básico de que
a recon ciliação que aco n teceu em Jesus C risto n ão é u m a
h istó ria casual, m a s q ue n esta o b ra d a graça de D eu s nós
lid am o s c o m a palav ra da onipotência de D eus, de que
aqui a ú ltim a e s u p re m a coisa e n tra em ação, atrás d a qual
não h á n e n h u m a o u tr a realidade. N ão h á n a d a p a r a além
deste evento, do qual o s e g u n d o e o terceiro artigos falam.
C risto é aquele q ue te m todos os p o deres, e co m ele e s ta ­
m o s engajados, se acreditam os. R ecip ro cam en te, a o n i p o ­
tência de D eu s é revelada e ativa in te ira m e n te n a graça da
reconciliação de Jesus Cristo. A graça de D eus e a o n i p o ­
tência de D eu s são idênticas. N u n c a d ev em o s e n te n d e r
u m a sem a outra. Aqui, m ais u m a vez, te m o s de lid a r co m
a revelação do m isté rio d a E ncarn ação , que este h o m e m é
o Filho de D eu s e o Filho de D eu s é este h o m e m . Jesus
C risto te m este lugar, esta fu n ção sobre to d o s nós, e ele as
te m n a realid ad e final. Ele está em relação a D eu s c o m o o
Ú nico p a ra o q ual o p o d e r de D eus é a b s o lu ta m e n te c o n ­
fiado; c o m o u m G o v e rn a d o r ou u m P rim e iro M in istro ,
p a ra q u e m seu Rei tran sferiu to d o seu poder. Jesus C risto
fala co m o D eu s e age co m o Deus; e re c ip ro c a m e n te , se
q u is e rm o s saber d a fala e ação de D eus, p re c isa m o s a p e ­
nas o lh a r p a ra esse h o m e m . Esta id e n tid a d e de D eu s e
h o m e m e m Jesus C risto é o c o n h e c im e n to , a revelação do
c o n h e c im e n to , pelo q ual a o b ra de Jesus C risto, c u m p riu -
se de u m a vez p o r todas, alcan çou sua conclusão.

“Está a ssen tad o à direita de D eus Pai” - o c u m e foi


alcançado, o p assad o p e rm a n e c e atrás de n ó s e e n tra m o s
no d o m ín io do presente. É isto qu e te m o s p a ra d iz er do
n o sso te m p o - que é a p rim e ira e ú ltim a coisa que i m ­
p o r ta p a ra n o ssa existência no tem po. N esta b ase está esta
existência de Jesus Cristo, assen tado à direita de D eu s Pai.
Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à D ireita de Deus Pai T odo-P oderoso - 181

Q u a lq u e r que seja a p ro sp erid ad e ou d e rro ta qu e a c o n ­


teça e m n osso espaço, q u alq u er que seja a m u d a n ç a , o u o
que q u e r que passe, h á u m a constante, u m a coisa q ue p e r ­
m an ece e co n tin u a, é este seu assentar à d ireita de D eus
Pai. N ão há n e n h u m p o n to decisivo histórico q ue se a p r o ­
xim e disto. A qui tem os o m istério do que c h a m a m o s h is ­
tória m u n d ial, história da Igreja, histó ria d a civilização;
aqui te m o s a coisa que f u n d a m e n ta tudo. Este p rim e iro
de tu d o absoluto, sim plesm ente significa a coisa que está
expressa mais u m a vez no final do Evangelho de São M a ­
teus, pelo tão con hecid o m a n d a to m issionário: “Ide p o r
to d o o m u n d o e fazei discípulos, b a tiz a n d o -o s e e n s i­
n a n d o -o s a o b serv ar as coisas que te n h o m a n d a d o ”.
C o m o conseqüência, este conh ecim en to , de que a “o n ip o ­
tência de D eus é a graça de D eus”, n ão é u m c o n h e c i­
m e n to inútil. E a conclusão d o te m p o da revelação n ão é
o fim de u m espetáculo, o n d e a co rtin a se fecha e os es­
p ectad o res p o d e m ir para casa, m as ela te rm in a c o m u m
desafio, co m u m m a n d a m e n to . O evento d a salvação
to rn a -s e agora a p o n ta de u m evento m u n d ial. O que
agora se to rn a visível p ara os A póstolos c o rre s p o n d e ao
fato de que aqui ta m b é m na terra, com o u m a h istó ria h u ­
m a n a, c o m o u m a ação dos discípulos, h á u m lugar te r ­
reno que c o rre s p o n d e ao lugar celestial, u m a v ida e ação
de te ste m u n h a s da sua Ressurreição. C o m a p a r tid a de Je­
sus Cristo p a ra o Pai, algo é estabelecido n a terra. Sua
p a rtid a significa não apenas u m fim, m as ta m b é m u m
início, m e sm o que não com o u m a co n tin u açã o d o seu a d ­
vento. P ara isto não seria dito que a ob ra de Jesus C risto
sim plesm ente co n tin u a na vida de cristãos e n a existência
da Igreja. A vida dos santos não é o p ro lo n g a m e n to da r e ­
velação de Jesus C risto sobre a terra. Isto c o n tra d iz o seu
“Está c o n s u m a d o ”. O que aconteceu e m Jesus C risto não
precisa de continuação. Mas, evidente, o que aco n teceu
182 - Esboço de um a D ogm ática

de u m a vez p o r to d a s p o ssu i n o que agora acon tece sobre


a te rra u m a co rre s p o n d ê n c ia , u m reflexo; n ão u m a r e p e ­
tição, m as u m a sem elh an ça. E to d a esta v id a cristã é n a fé
em Cristo, tu d o isto é c h a m a d o de c o m u n id a d e , é esta s e ­
m elh an ça , este s o m b re a m e n to a p a r tir d a existência de Je­
sus C risto c o m o a C abeça do seu corpo. C risto f u n d a sua
Igreja ao ir p a r a o Pai, ao fazer-se c o n h e c id o p a r a seus
A póstolos. Este c o n h e c im e n to significa o c h a m a d o de
“Ide p o r to d o o m u n d o e pregai o Evangelho a to d a c r ia ­
tu ra ”. C risto é o Senhor. Isto é o que to d a criação, o que
to d a s as n açõ e s d ev em conhecer. A co n clu são d a o b ra de
C risto é, p o rta n to , n ão u m a o p o r tu n id a d e d a d a p a r a os
A póstolos p a ra inatividade, m as o serem en viado s p a ra o
m u n d o . A qui não h á re p o u s o possível; aqui há, pelo c o n ­
trário, c o rre ria e corrida; aqui está o início d a m issão, o
en viar d a Igreja ao m u n d o e p a ra o m u n d o .

Este te m p o que agora vivem os, o te m p o d a Igreja, é


ao m e s m o te m p o o te m p o -fin al, o te m p o no q u al a exis­
tê n cia o u o significado da existência do m u n d o das c r ia ­
tu ras alcan ça seu objetivo. O u v im o s, q u a n d o falam o s d a
C ru z de C risto e Ressurreição, q ue a b a ta lh a foi vencida,
o relógio está p a ra n d o , m as D eus a in d a te m paciência,
D eu s a in d a está esp erand o. P ara este te m p o d a su a p a c i­
ência ele co lo co u a Igreja n o m u n d o , e o significado deste
ú ltim o te m p o é, q ue ele está repleto d a m e n s a g e m do
Evangelho e q ue o m u n d o te m seu m a n d a m e n to , p a r a o u ­
vir esta m e n sag e m . P o d e m o s c h a m a r este te m p o q ue ir ­
r o m p e u c o m a A scensão de Jesus aos céus, “o te m p o da
Palavra”, talvez ta m b é m o te m p o do a b a n d o n o e, e m certo
sentido, d a solidão da Igreja n a terra. É o te m p o n o qual a
Igreja está u n id a co m C risto apenas n a fé e pelo Santo E s­
pírito; é o te m p o in te rin o entre sua ex istência te rr e n a e
seu re to r n o em glória; é o te m p o d a g ra n d e o p o rtu n id a d e ,
d a tarefa d a igreja voltada p a ra o m u n d o ; é o te m p o da
Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à D ireita de Deus Pai T odo-P oderoso - 183

missão. C o m o dissem os, é o te m p o d a paciência de Deus,


no qual ele está esp eran d o pela Igreja, e, c o m a Igreja,
pelo m u n d o . Pois o que tem acontecido co n clu siv am en te
em Jesus C risto com o o c u m p rim e n to do te m p o , o b v ia ­
m e n te n ão é p a ra ser realizado sem a p articip a ção do h o ­
m e m , sem o louvor a D eus dos seus lábios, sem os seus
ouvidos, que p o d e m ouvir a Palavra, sem os seus pés e
m ãos, pelos quais eles p o d e m se to r n a r m en sag eiro s do
Evangelho. Q u e D eus e h o m e m to r n a r a m -s e u m em Jesus
C risto p o d e ser visto, p rim eiro pelo fato de qu e h á h o ­
m e n s de D eus n a terra, a q u em é c o n ce d id o serem suas
te stem u n h as. O te m p o da Igreja, o te m p o -fin a l - o que
to r n a o te m p o tão significante e g randioso, n ão é q ue ele
seja o tem p o-fin al, m as que ele deixa o p o r tu n id a d e p a ra o
ouvir, crer e arrep en der, para p ro cla m ar e c o m p re e n d e r a
m en sagem . É te m p o que se concretiza p a ra Jesus C risto
no re la cio n am en to do “Eu estou à p o rta, e b ato ”. Ele está
m ais próxim o. Ele deseja entrar; tão p ró x im o e a in d a do
lado de fora, diante da p o rta, e já p o d e m o s ouvi-lo e ficar
à espera da sua entrada. - Neste te m p o in te rin o e t e m p o ­
final, neste te m p o de espera e d a paciência divina, nele
chega a o rd e m d upla d a divina pro vidência, as conexões
en tre Igreja e Estado, das esferas in tern as e ex tern as em
sua oposição e coordenação. Elas n ão são as ú ltim a s o r ­
dens ou a ú ltim a palavra; mas, c o rre ta m e n te en ten d id as,
elas são as boas o rdenanças p ara o objetivo, que c o rre s ­
p o n d e m à graça de Deus. A A scensão é o co m eço deste
te m p o em que vivemos.
XX A Vinda de Jesus Cristo,
O Juiz

A m em ó ria da Igreja é tam bém sua expectativa, e sua


m ensagem para o m un do é ta m bém a esperança
do mundo. Pois Jesus Cristo, de cuja palavra
e obra a Igreja conscientemente, e o
m u n d o ainda inconscientemente,
origina, é o m esmo que veio ao encon­
tro da Igreja e do mundo, como o objetivo
do tempo que está chegando ao fi m , a f i m de tornar
visível, fin a lm e n te e para todas as pessoas, a decisão to­
m ada nele a graça e o reino de D eus
como a m edida pela qual a h u m a n id a d e
inteira e cada existência h u m a n a é medida.

“...De o n d e há de vir julgar os vivos e os m o r to s ”.


D epois de m uitos perfeitos e o presente, segue-se o futu ro
- “ele voltará”. P o d em o s analisar g ra m a tic a lm e n te to d o o
seg u n d o artigo em três tem pos, que ele veio, que ele está
assentado à direita de D eus e que ele voltará.
P rim eiro, deixe-m e dizer algo sobre o con ceito cris­
tão do tem po. N ão p o d e m o s deixar de p erc e b e r q u e a q u i
u m a luz e s tra n h a cai sobre o que n u m s en tid o g en u ín o e
a p ro p ria d o é ch a m a d o de te m p o real - o te m p o à luz do
te m p o de D eus, a eternidade.
186 - Esboço de um a D ogm ática

Jesus C risto veio, to d o s aqueles te m p o s passados,


r e s p o n d e ria m pelo que d e n o m in a m o s passado. M as q u ã o
in a p ro p ria d o seria dizer deste evento que ele foi u m p a s ­
sado. O que Jesus sofreu e realizou n ão é c e r ta m e n te p a s ­
sado; pelo co n trá rio , é o velho que foi p assado, o m u n d o
do h o m e m , o m u n d o d a d e so b ed iê n cia e d e s o rd e m , o
m u n d o d a m iséria, p e c a d o e m o rte. O p e c a d o foi c a n c e ­
lado, a m o r te foi vencida. O p ecado e a m o r te existiram , e
to d a a h is tó ria h u m a n a , in c lu in d o aq uela que segue seu
cu rso p o st C hristum , ex atam ente em n o sso s dias, existi­
ram. T ud o isto é p assad o em Cristo; p o d e m o s ap en a s
p e n s a r e m tu d o isto o lh a n d o p a ra trás.

M as Jesus C risto assen to u-se ao lado do Pai, c o m o


aquele que so freu e ressurgiu dos m o rto s. Isto é o p r e ­
sente. A ssim ele está p resen te c o m o D eu s está presente,
co m o isto já se a d m ite que ele voltará co m o a p e s s o a que
ele u m a vez foi. Ele q u e é hoje o m e sm o que foi o n te m ,
ta m b é m será o m e s m o a m a n h ã - Jesus C risto o n te m e
hoje, e o m e s m o p a ra a eternidad e. U m a vez qu e Jesus
C risto existe c o m o a p essoa que foi, o b v ia m e n te ele é o
início de u m te m p o novo, diferente daqu ele qu e c o n h e c e ­
m os, u m te m p o n o q ual não h á d esv an ec im en to , m as o
te m p o real qu e te m u m o n te m , u m h oje e u m a m a n h ã .
M as o o n te m de Jesus C risto é ta m b é m o seu hoje e seu
am a n h ã . N ão é au sência do tem po, u m a e te r n id a d e vazia
qu e te m lu gar n o seu tem po. Seu te m p o n ão está n o fim;
ele c o n tin u a seu m o v im e n to desde o n te m p a r a hoje, até o
am a n h ã . Ele n ão p o ssu i a te m e ro sa efe m e rid a d e do n osso
presente. Q u a n d o Jesus C risto assen to u -se à d ireita do
Pai, a existência dele co m Deus, sua existência c o m o o
p o s s u id o r e re p re s e n ta n te da divina graça e p o d e r o u t o r ­
gada aos h o m e n s , n ão te m n a d a que ver c o m o qu e r i d i ­
cu la m e n te co n c e b e m o s co m o e te rn id a d e - isto é, u m a
existência sem o tem p o. Se esta existência de Jesus C risto
A V inda de Jesus C risto, O Juiz - 187

à d ireita de D eus é u m a existência real e c o m o tal a m e ­


did a de to d a existência, então ela ta m b é m existe no
tem po, e m b o ra em o u tro te m p o além desse qu e c o n h e c e ­
mos. Se o se n h o rio e governo de Jesus C risto à d ireta do
Pai é o significado do que vem os com o a existência da
nossa h istó ria do m u n d o e nossa h istó ria de vida, en tão
esta existência de Jesus Cristo não é u m a existência sem o
tem po, e a etern id ad e não é u m a ete rn id a d e sem o tem po.
A m o rte é sem o tem po, o n ad a é sem o tem po. E n tão s o ­
m os h o m e n s sem o te m p o q u a n d o estam o s sem D eus e
sem Cristo. Assim, não tem os o tem po. M as esta ausência
de te m p o ele venceu. Cristo te m o tem po, a p le n itu d e do
tem po. Ele assentou-se à direita de D eus c o m o aquele que
veio, aquele q ue agiu e sofreu e triu n fo u n a m o rte. Sua
p a rte à direita de D eus não é apenas o extrato d esta h is tó ­
ria; é o e tern o d e n tro desta história.

P aralelam en te a esta existência e te rn a de C risto h á


ta m b é m sua existência tra n sfo rm a d o ra . O que era, veio; o
que aconteceu acontecerá. Ele é o Alfa e o Ô m ega, o c e n ­
tro do te m p o real, o te m p o de Deus; que n ão é o te m p o
sem significado que passa. N ão o presente co m o n ó s o c o ­
nh ece m o s, no qual to d o “agora” é apenas u m salto do
n u n c a -m a is para o ainda-não. Seria este p resen te a ag ita­
ção n a so m b ra do Hades? N a vida de Jesus C risto o u tro
presen te nos encon tra, que é o p ró p rio passado, e, p o r ­
tanto, não u m a ausência de tem p o que leva ao nada. E
q u a n d o se diz que Cristo está voltando, este re to r n o n ão é
u m objetivo localizado no infinito. A “in fin itu d e ” é u m a
atividade desconfortável e não u m p red ic ad o divino, mas
aquilo que se refere à natureza da cria tu ra caída. Este fim
sem u m fim é apavorante. É u m a im ag em da p erd iç ã o do
h o m e m . O h o m e m se en c o n tra em tal estado qu e ele é
precip itado n u m a interm inável falta de pro pósito. Este
ideal do infindável n a d a te m que ver co m D eus. U m li­
188 - Esboço cie um a D ogm ática

m ite é, pelo co n trá rio , p r e p a ra d o p a ra este te m p o . Jesus


C risto é e tra z o te m p o real. Mas o te m p o de D eu s t a m ­
b é m te m u m fim, assim c o m o u m início e u m m eio. O
h o m e m está c irc u n d a d o e envolto em to d o s os lados. Isto
é a vida. P o rtan to , a existência do h o m e m se to r n a visível
n o s e g u n d o artigo: Jesus C risto c o m seu passado, p r e ­
sente e futuro.

Q u a n d o a c o m u n id a d e cristã olha p a ra trás ao que


a co n teceu e m Cristo, n a sua p rim e ira vind a, sua vida,
m o rte e ressurreição, q u a n d o ela vive nesta m e m ó ria , e n ­
tão não é u m a m e ra lem brança, n ão o qu e c h a m a m o s h is ­
tória. Isto q u e aco n teceu de u m a vez p o r tod as, pelo
co n trá rio , é o p o d e r da divina presença. O q u e a co n teceu
a in d a aco ntece e, co m o tal, acontecerá. O p o n to do qual a
c o m u n id a d e cristã origina-se, co m sua confissão de Jesus
Cristo, é o m e s m o p o n to ao qual ela vai ao en co n tro . Suas
reco rd açõ es são ta m b é m suas expectativas. E q u a n d o a
c o m u n id a d e cristã a b o rd a o m u n d o , sua m e n s a g e m à p r i ­
m e ira vista te m c e rta m e n te o caráter de u m a n arrativ a
histórica, en tão a fala é de Jesus de N azaré, que sofreu sob
P ô ncio Pilatos, depois de nascer sob o I m p e r a d o r A u ­
gusto. M as q ue angú stia se a m e n sa g e m cristã p a ra o
m u n d o tivesse p a ra d o neste evento. O c o n te ú d o e o b je ­
tivo d esta n a rra tiv a seria in evitavelm ente de u m h o m e m
qu e viveu o “era u m a vez” ou u m a figura le n d á ria p a r a a
qual m u ita s nações o lh a ria m p a ra trás de u m a m a n e ira
s em elh an te, u m f u n d a d o r de u m a religião e n tre outros.
Q u ã o d e c e p c io n a d o o m u n d o estaria sobre o q ue fez e faz
existir a verd ad e, sobre as b oas novas que “C risto veio
p a ra n o ssa reconciliação; regozijai, ó c r is ta n d a d e !” Este
perfeito “C risto veio” ta m b é m deve ser p ro c la m a d o em
sua co n tex tualização c o n tra o m u n d o c o m o aquilo que
este m u n d o m ais espera, e em cujo e n c o n tr o a h istó ria
m u n d ia l ta m b é m vai.
A V inda de Jesus C risto, O Juiz - 189

A lém disso, a fé cristã p o d e ria ser vista co m o e x p e c ­


tativa e esperança; m as esta expectativa p o d ia ser de u m
caráter vazio e generalizado. U ns esp eram p o r m e lh o res
tem pos, m elhores circunstâncias “nesta vida”, ou na
fo rm a de o u tra vida no tã o -c h a m a d o “além ”. A ssim , sutil-
m e n te a esperança cristã se to rn a u m a expectativa in d e ­
te rm in a d a p o r algum a espécie de glória desejada. A lguns
se esq u ecem do verdadeiro c o n teú d o e objetivo d a ex p e c ­
tativa cristã - ou seja, de que aquele q ue v em é o m e sm o
que foi. Estam os para e n c o n tra r aquele de q u e m viem os.
Isto ta m b é m deve, n a relação entre a Igreja e o m u n d o ,
ser a su bstância da sua m ensagem : ela não a p o n ta p a ra o
vazio q u a n d o concede coragem e esp eran ça p a ra os h o ­
m ens; ela p o d e dar coragem e esperança e m vista do que
aconteceu. “Está co n s u m a d o ” é c o m p le ta m e n te válido. O
te m p o perfeito cristão não é im perfeito; m as c o r r e ta ­
m ente en te n d id o o perfeito tem a força do futuro. “M eu
te m p o está em tuas m ãos!” (SI 31.15). A ssim nos a d m i r a ­
m o s c o m o Elias na força deste alim en to q u a re n ta dias e
q u a re n ta noites para o M onte de Deus, ta m b é m c h a m a d o
H orebe. A in d a é a c a m in h a d a e não o objetivo, m as u m a
c a m in h a d a d irec io n ad a pelo objetivo. Eis a m a n e ir a c o m o
nós, cristãos, p o d e m o s falar aos não-cristãos. N ão d e v e ­
m os nos sen tar entre eles com o corujas m elancólicas, m as
n a certeza do nosso alvo, que sob repuja to d a s as ou tras
certezas. Todavia, q uan tas vezes nos p o s ta m o s en v e rg o ­
n h a d o s entre os filhos do m u n d o , e qu ão fre q ü e n te m e n te
nós as c o m p re e n d e m o s se a nossa m e n sa g e m n ão as satis­
faz. Aquele que enten d e que “nosso te m p o está em tuas
m ã o s ” n ão tra ta rá altivam ente os h o m e n s do m u n d o que,
na esp eran ça precisa que m uitas vezes nos en v ergon ha,
seguem seu cam inho ; m as ele os e n te n d e rá m e lh o r do
que eles e n te n d e m a si m esm os. Ele verá a esp eran ça deles
c om o u m a parábola, u m sinal de que o m u n d o n ão está
190 - Esboço de um a D ogm ática

a b a n d o n a d o , m as te m u m início e u m p ro p ó sito . Nós,


cristãos, d ev em o s tra n s p o r ta r o v erd ad e iro Alfa e Ô m e g a
ao coração d a e sp eran ça e p e n s a m e n to seculares. M as só
p o d e m o s fazer isso se e x ce d erm o s o m u n d o e m c o n f i­
ança.
P o rta n to , a situação é qu e o m u n d o o rig in a-se i n ­
c o n sc ie n te m e n te , e n q u a n to qu e a Igreja o rig in a-se c o n s ­
c ie n te m e n te de Jesus Cristo, da sua obra. O fato objetivo é
qu e Jesus C risto veio e que falou sua palavra e fez sua
obra. Isto existe, in d e p e n d e n te m e n te de se nós, h o m e n s,
c rem o s o u não. Isto vale p a ra todos, p a ra os cristãos e
p a ra os n ão -cristão s. D eriv am o s d o fato de q u e C risto
veio e d ev em o s o lh a r o m u n d o de aco rd o c o m isto. Q u e o
m u n d o seja “m u n d a n o ” n ão q u e r d izer nad a. M as é o
m u n d o n o m e io do qual Jesus C risto foi cru cificad o e res-
su rrecto. A Igreja ta m b é m surgiu dele e está n a m e s m a
p o sição q ue o m u n d o . M as a Igreja é o lugar o n d e a p e s ­
soa te m c o n h e c im e n to disto e isto, n a verdade, faz a t r e ­
m e n d a difere n ça en tre a Igreja e o m u n d o . N ós, cristãos,
p o d e m o s saber isso, p o d e m o s ver c o m olhos ab e rto s a luz
que ressurgiu, a luz d a parúsia. N isto reside u m a g raça es­
pecial, n a qual p o d e m o s nos alegrar a cad a m a n h ã . N a
verdade, n ão m e re c e m o s esta graça; os cristãos n ão são
m e lh o res d o qu e os filhos do m u n d o . P o rtan to , isto p o d e
ser ap en a s u m a q u estão de sua apresentação, a p a r ti r do
seu c o n h e c im e n to , algo p a ra os o u tro s qu e n ão c o n h e ­
cem. Eles d e v e m d eixar b rilh a r a tê n u e luz, q ue foi c o n c e ­
d id a a eles.
T anto a Igreja q u a n to o m u n d o estão d ia n te d a q u ele
de q u e m eles se orig in am . E p a ra os dois o m ilag re é que
este alvo de e s p e ra n ç a n ão está em alg u m lugar, d e v e n d o
nós c o n s tr u ir la b o rio s a m e n te a estrad a que n o s c o n d u z a
ela, p o r é m o q u e está dito n a C onfissão é Venturus est.
N ão qu e d ev em o s vir; é ele q u e m vem . A o n d e chegare-
A V inda de Jesus C risto, O Juiz - 191

m o s co m n ossa preocup ação e correria? A h is tó ria do


m u n d o , co m sua diligência, com suas g u erras e seus a r ­
m istícios, a h istó ria d a civilização com suas ilusões e i m ­
p ro b ab ilid ad e s - é este o cam in ho? Tem os de sorrir. M as
q u a n d o ele vem , ele que é o Ator, en tão tu d o aquilo qu e é
tão m iserável em nossa “progressividade” é visto sob u m a
nova luz. A fraqueza e te m erid a d e tolas d a Igreja e do
m u n d o são elevadas p o r ele. “C risto n a s c e u ”. M ais u m a
vez o Advento. A v in d a de C risto mais u m a vez é a v in d a
daquele que está presente. Portanto, a tolice dos pagãos e
a fraqueza d a Igreja não têm desculpas, m a s elas e n tra m
na luz do dia de Páscoa: “O m u n d o estava perd id o , C risto
n a s c e u ”. Todavia, Cristo não apenas in terced eu p o r nós;
ele ta m b é m interced erá p o r nós. D esta fo rm a a existência
- am bas, h u m a n a e cristã - é m a n tid a d esde o início até o
seu fim. C risto não foi e n e m será en v e rg o n h a d o de ser
ch a m a d o no sso Irmão.

“... D e o n d e h á de vir”. Neste “de o n d e ” está co n tid o


sobre tu d o este fato, de que ele em erg irá da o b s c u rid a d e
o n d e ele está p ara nós hoje, o n d e ele é p ro c la m a d o e crido
pela Igreja, o n d e ele está presente p a ra n ó s ap en a s n a sua
Palavra. O N ovo T estam ento diz deste fu tu ro p o r v ir que
“ele virá sobre as nuvens dos céus co m g ra n d e p o d e r e
glória” e “assim com o o relâm pago sai d o O rie n te e vai
p a ra o O cidente, assim será a v in d a do Filho d o h o m e m ”
(Lc 21.27; M t 24.27). São m etáforas, m as m e táfo ras das
realidades finais, que ao m e n o s in d icam que isto não
acontece mais em m istério, mas é c o m p le ta m e n te rev e­
lado. N in g u é m mais será capaz de engan ar-se sobre esta
realidade vivente. Portanto, ele virá. Ele rasgará os céus e
se p o s ta rá d iante de nós com o a pessoa q u e ele é, a ssen ­
tado à direita da divina onipotência. Ele v em co m o aquele
em cujas m ão s nossa existência inteira está selada. Nele
esperam os, ele está v oltando e ele será m anifesto co m o
192 - Esboço dc um a D ogm ática

aquele a q u e m já co n hecem o s. E m suas m ã o s estão to d o s


estes eventos; a ú n ic a coisa à espera é aquilo q u e está e n ­
c o b e rto p a ra ser re m o v id o p a ra que to d o s o vejam . Ele já
c u m p r iu isto e ele te m o p o d e r de fazê-lo m anifesto. E m
suas m ã o s se e n c o n tr a o v e rd ad e iro te m p o e n ã o o te m p o
sem fim n o q ual n u n c a te m o s o tem po. M e s m o neste m o ­
m e n to este c u m p r im e n to p o d e existir. N o ssa v id a te m u m
c u m p r im e n to e este c u m p rim e n to será m anifesto. N o sso
f u tu ro consiste e m no sso ser m o s tr a d o qu e tu d o foi c o r ­
reto e b o m em n o ssa existência e nesta h is tó ria d o m u n d o
m á e - m ilagre dos milagres! - n esta a in d a m ais m á h is tó ­
ria da Igreja. N ão p o d e m o s vê-lo: o q ue está e m H e u s s i15
n ão é b o m , e o que está nos jorn ais não é b o m . Todavia,
alg u m dia será m a n ifesto co m o reto, p o r q u e C risto foi o
centro. Ele governa, a ssen tad o à d ireita do Pai. Isto virá à
luz e to d a lá g rim a será enxugada. Este é o m ilagre do qual
p o d e m o s ir ao en co n tro , e o qual em Jesus C risto será e x ­
p o sto a n ó s c o m o já existente, pois ele virá e m sua glória,
co m o u m relâ m p ag o que b rilh a do O rie n te e se estend e
p a ra o O cid ente.

“... P ara ju lg ar os vivos e os m o r t o s ”. Se d eseja rm o s


e n te n d e r c o rre ta m e n te aqui, d ev em o s d esd e o início s u ­
p r im ir certas im ag en s do ju lg a m e n to do m u n d o , até o n d e
p o d e m o s, e fazer u m esforço p a ra não p e n s a r o q ue elas
estão descrev en do. Todas estas visões, co m o os g ra n d e s
p in to res as re p re s e n ta ra m , sobre o ju lg a m e n to do m u n d o
(M iguelangelo n a C apela Sistina), C risto av a n ç a n d o co m
o p u n h o cerrado , d iv id in d o aqueles que estão à direita
daqueles que estão à esquerda, e n q u a n to o o lh a r de a l­
g u é m se m a n té m fixo naqueles d a esquerda! Os p in to res
im a g in a ra m , até certo p o n to co m prazer, co m o estes con-

15. O a le m ã o Kart Heussi (1877-1961), historiador d a igreja, cuja ob ra era


bastante crítica.
A Vinda de Jesus C risto, O Juiz - 193

d e n a d o s naufrag avam no lago do inferno. M as n ão é este


o caso. A P erg u n ta 52 do C atecism o de H eid elb erg p e r ­
gunta: “Q u e con forto terás co m a v in d a de C risto p a ra
julgar os vivos e os m o rto s? ” Resposta: “D e qu e em to d o s
os m e u s so frim en to s e perseguições p ossa o lh a r co m m i ­
n h a cabeça ereta p a ra o p ró p rio Cristo, que antes se e n ­
treg ou a si m e sm o p o r m im no ju lg a m e n to de D eu s e
levou sobre si todas as m in h as m aldições, p a ra vir co m o
Juiz dos céus...” H á u m a observação diferente e ch o ca n te
aqui. O re to rn o de Jesus Cristo p ara julgar os vivos e os
m o rto s são boas novas de alegria. “C o m a cabeça ereta”, o
cristão e a Igreja p o d e m de devem c o n fro n ta r este futuro.
Pois aquele que v em é o m esm o que a n te rio rm e n te o fere­
ceu a si m e sm o para o julgam en to de Deus. É pelo seu r e ­
to rn o que esperam os. Se tivesse sido c o n ce d id o a
M iguelangelo e o utros artistas o uvir e ver isto!

Jesus C risto v in d o n o v am en te p a ra ju lg am en to , sua


ú ltim a e universal m anifestação sem p re é d escrita no
N ovo T estam ento com o a revelação. Ele será revelado,
não so m en te p a ra a Igreja, m as p a ra todos, co m o a pessoa
que ele é. Ele não apenas será o juiz, ele é já o é; m as en tão
pela p rim e ira vez ele se to rn a rá visível, que isto n ão é u m a
questão do nosso Sim e Não, nossa fé o u n ossa falta de fé.
N a claridade e pub licid ade plenas o “está c o n s u m a d o ”
virá à luz. Por isto a Igreja está esperando; e sem o saber o
m u n d o está e sp eran d o tam bém . Estam os to d o s n a ro ta de
en c o n tro d esta manifestação. N ão parece, todavia, que a
graça e a justiça de D eus são, n a verdade, válidas c o m o a
m e d id a pela qual a h u m a n id a d e com pleta e cada in d iv í­
d u o e m si são m edidos. A in d a te m o s dúv id as e a n s ie d a ­
des. A in d a h á lugar p ara a justiça pelas obras e o rg u lh o
pela p ie d ad e assim com o pela im piedade. Isto p o d e ain d a
ser visto. A Igreja p roclam a C risto e a decisão feita nele.
P o rém ain d a se vive neste te m p o que é chegado ao fim e é
194 - Esboço de um a D ogm ática

p o r ta d o r de to d a s as m arcas de g ra n d e fraq u eza e m si. O


que tra z o futuro ? M ais u m a vez, n ão u m p o n to decisivo
na h istó ria, m a s a revelação do que é. É o fu turo , m a s o
fu tu ro d aq u ilo q ue a Igreja re m e m o ra , d aq u ilo q u e já
a co n teceu de u m a vez p o r todas. O Alfa e o Ô m e g a são a
m e s m a coisa. A volta de Jesus C risto p ro v a rá q u e G o e th e
estava certo q u a n d o escreveu:
“A D e u s p e rte n c e o O rien te e o Ocidente;
D e N o r te a Sul repousam as terras

N a p r o fu n d a p a z das p ró p ria s m ãos de D eus.”


N a p ersp e c tiv a bíblica o juiz n ão é p r im a r ia m e n te
aquele que re c o m p e n s a alguns e p u n e outros; ele é o h o ­
m e m qu e cria a o rd e m e restau ra o que foi d e s tru íd o . P o ­
d e m o s e n c o n tr a r este juiz, esta restau ra ção ou, m elhor, a
revelação d esta restau ra ção e m con fia n ça in c o n d icio n a l,
p o r q u e ele é o juiz. E m con fiança in c o n d icio n a l, p o r q u e
v iem o s d a sua revelação. O te m p o p resen te p arec e tão
m e s q u in h o e desprezível e não n os satisfará, n e m m e s m o
o p re s e n te te m p o d a Igreja e da cristan d ad e. M as é esta
c ris ta n d a d e qu e p o d e e deve deixar-se c h a m a r rep etid as
vezes, c h a m a d a de volta à sua o rig em e ao m e s m o te m p o
a e n c o n tr a r o fu tu ro de Jesus Cristo, o d e s lu m b r a n te e
glorioso fu tu ro d o p ró p rio D eus, que é o m e s m o o n te m e
hoje e p a r a sem pre. P ara a seried ade d a idéia de ju lg a ­
m e n to n e n h u m d a n o será feito, pois será m a n ifesto q u e a
graça de D eu s e a justiça de D eus são a m e d id a pela qual
to d a a h u m a n id a d e e cad a h o m e m será m e d id o . Venturus
judicare: D eu s sabe tu d o o qu e existe e acontece. E n tão
p o d e m o s ficar b e m apavorados, e neste p o n to estas visões
do Juízo Final n ão são s im p lesm en te sem significado.
A quele qu e n ão p ro v é m d a graça e d a ju stiça de D eu s n ão
p o d e existir. Tanto a “g ran d ez a” h u m a n a q u a n to a cristã
talvez m e rg u lh e in fin ita m e n te p a ra a m ais p r o f u n d a das
A V inda de Jesus C risto, O Juiz - 195

trevas. Q u e existe u m tal Não divino, de fato está p re s s u ­


po sto neste judicare. M as n o m o m e n to em que a d m itim o s
isto d ev em o s rev erter p a ra a v erdad e de que o Juiz qu e se­
p ara alguns p a ra a esqu erda e os o utro s p a ra a direita, é,
na verdade, aquele que se en treg ou a si m e sm o p a ra o j u l­
g a m e n to de D eus no m eu lugar e levou to d a s as m in h a s
m aldições sobre si. Foi ele q u em m o r r e u n a C ru z e re s ­
suscitou n a Páscoa. O te m o r de D eus em Jesus C risto não
p o d e ser n e n h u m além daquele que p e rm a n e c e n a alegria
e co nfian ça da pergu nta: “N a v in d a de C risto o que te
c o n fo rta ? ” Isto não n os leva à apostasia. H á u m a decisão
e u m a divisão, m as através dele, que in terced e p o r nós.
Existe nos dias de hoje u m a divisão m ais ag u d a e u m d e ­
safio m ais u rgente do que a m e n sag e m sobre este Juiz?
Creio no Espírito Santo

Q u a n d o os h o m e n s p e rte n c e m a Jesus C risto de tal m a ­


n eira que eles têm liberdade p ara re c o n h e c e r
sua Palavra com o destin ad a ta m b é m a eles,
sua o b ra com o realizada ta m b é m p a ra eles,
a m e n sag e m sobre ele com o ta m b é m
sua tarefa; e assim,
p o r sua parte, lib erdade p ara
esp erar pelo m e lh o r de to d o s os o u tro s
h o m e n s, isto acontece, n a verdade, c o m o sua
experiên cia e ação h u m a n as, e m e sm o que n ão e m v ir ­
tu d e da sua capacidade, d e te rm in a ç ã o e
esforço h u m a n o s, m as so m en te
n a base do D o m gratuito de D eus,
no qual tu d o isto é co n ced id o a eles. N este
ato de co n ced er e dar, D eus é o Espírito Santo.

Neste p o n to do C redo mais u m a vez rep ete-se a p a ­


lavra “creio”. Isto não tem apenas u m significado estilís­
tico; aqui a atenção é ch a m a d a co m u rg ên cia p a ra o fato
de que o c o n teú d o da Confissão C ristã é le v an tad o mais
u m a vez p a ra u m a nova luz, e o que agora se segue não
está o b v iam ente con ec tad o com o que veio antes. É co m o
198 - Esboço dc um a D ogm ática

se fizesse u m a pausa; é u m a p au sa notável en tre a A s c e n ­


são e o Pentecostes.

As afirm ações do terceiro artigo estão d ire c io n a d a s


ao h o m e m . E n q u a n to o p rim e iro artigo fala de D eu s, o
s e g u n d o do D e u s - h o m e m , agora o terceiro fala d o h o ­
m e m . N ão dev em o s neste p onto, e v id en tem en te, s e p a ra r
os três artigos; d ev em os en ten d ê-lo s e m sua u n id a d e . E s­
ta m o s o c u p a d o s co m o h o m e m qu e p a rtic ip a n o ato de
D eus, e, além disso, p articip a ativam ente. O h o m e m p e r ­
te n ce ao Credo. Este é o m istério q ue n ão foi ouvido, do
qual estam o s agora nos a p ro x im an d o . H á u m a fé n o h o ­
m e m , d esd e que este h o m e m p articip e a tiv am e n te e liv re­
m e n te n o tra b a lh o de Deus. E isto q u e n a v erd a d e
acontece, é a o b ra d o Espírito Santo, a o b ra de D eu s na
terra, q ue te m sua analogia n a o b ra o cu lta de D eus, na
em a n a ç ã o do Espírito da p a rte do Pai e d o Filho.

Q u a l é o significado desta p articip a ção do h o m e m


n a o b ra de D eus, de seu livre e ativo c o m p a rtilh a r? N ão
seria n a d a confortável se tu d o p e rm a n e c e s s e objetivo. Há,
ta m b é m , u m e lem en to subjetivo; p o d e m o s ver a m o d e r n a
e x u b e râ n c ia deste elem en to subjetivo, que já foi i n t r o d u ­
zido n a m e ta d e do século dezessete, e tra z id o p o r Schlei-
e r m a c h e r p a ra a o r d e m sistem ática, c o m o u m a te n tativ a
fo rçada de tra z e r a v erd ad e do terceiro artigo.

H á u m a con exão geral de todos os h o m e n s co m


Cristo, e to d o h o m e m é seu irm ão. Ele m o r r e u p o r to d o s
os h o m e n s e ressuscitou p o r to d o s os h o m e n s; p o rta n to ,
to d o h o m e m é en fo ca d o pela ob ra de Jesus Cristo. Q u e
seja assim , é a p ro m essa p ara to d a a h u m a n id a d e . Esta é a
base m ais im p o rta n te , e a ún ic a que abran ge tud o, d o que
c h a m a m o s h u m a n id a d e . A quele que u m a vez p erc e b e u o
fato de que D eu s se fez h o m e m n ão p o d e falar e agir d e ­
s u m a n a m e n te .
Creio no Espírito Santo - 199

Mas, antes de tudo, q u a n d o falam os d o Espírito


Santo, não vam os olhar para to d o s os h o m e n s, m a s p a ra
h o m e n s especiais que p erte n cem , de u m a m a n e ir a e s p e ­
cial, a Jesus Cristo. Q u a n d o falamos do Espírito Santo, es­
ta m o s falando de h o m e n s que p e rte n c e m a Jesus C risto
de u m a m a n e ira especial que eles tê m a lib erd ad e de re c o ­
n h e c e r sua Palavra, sua obra, sua m e n sa g e m em u m a m a ­
neira precisa, e ta m b é m esperar de sua p a rte o m e lh o r
p a ra to d o s os hom ens.

Q u a n d o falamos de fé, a c e n tu am o s o conceito de li­


berdade. O n d e estiver o Espírito do Senhor, aí h á lib e r­
d ad e (2Co 3.17). Se desejarm os p arafrasear o m istério do
Espírito Santo, é m e lh o r escolher este conceito. R eceber o
Espírito, ter o Espírito, viver no Espírito significa se lib e r­
ta r e se p e rm itir viver em liberdade. N e m to d o s os h o ­
m e n s são livres. L iberdade não é u m a coisa n atu ra l e não
é sim p lesm en te u m predicado da existência h u m a n a . To­
dos os h o m e n s estão d estinados à liberdade, m as n e m t o ­
dos estão nesta liberdade. O n d e passa a lin h a de
separação está oculto a nós, ho m en s. O Espírito so pra
on d e ele q u e r (Jo 3.8). N ão verdade, não é u m a co n d ição
n atu ra l do h o m e m p ara ele ter o Espírito; isto sem p re será
u m a distinção, u m D o m de Deus. O que im p o r ta aqui é,
sim plesm ente, p erte n c e r a Jesus Cristo. N ão nos o c u p a ­
m o s co m Espírito Santo com o algo novo e diferente dele.
Esta sem pre foi u m a concepção e rrô n e a do Espírito
Santo. O Espírito Santo é o Espírito de Jesus Cristo. “R e­
ceberá do que é m e u e vos dará” (Jo 16.14). O Espírito
Santo n ão é n a d a mais do que u m a certa relação d a P ala­
vra com o h o m e m . No d e rra m a m e n to do Espírito Santo
no Pentecostes, h á u m m o v im en to - p n e u m a significa
vento - de C risto para o h o m e m . Ele so p ro u sobre eles:
“Recebei o Espírito Santo!” C ristãos são to d o s aqueles s o ­
p rad o s p o r Cristo. P ortanto, n u m certo aspecto, n u n c a
200 - Esboço dc um a D ogm ática

p o d e r e m o s falar de m o d o suficien tem en te solene d o E s­


pírito Santo. O que está envolvido é a p a rtic ip a ç ã o do h o ­
m e m n a Palavra e o b ra de Cristo.
M as esta sim ples coisa é ao m e s m o te m p o algo s u ­
p r e m a m e n te inconcebível. Pois esta p a rtic ip a ç ã o d o h o ­
m e m significa p articip a ção ativa. V am os a in d a p o n d e r a r
o que isto significa em sua m ais p r o f u n d a verdade: ser
traz id o ativ am e n te p a ra a g ra n d e e s p e ra n ç a de Jesus
C risto que su sten ta to d o s os h o m e n s, n ã o é v e r d a d e ir a ­
m e n te u m a coisa natural. É u m a resp o sta p a ra a p e rg u n ta
que se ren o v a d ia n te de nós a cada m a n h ã . Ela envolve a
m e n s a g e m d a Igreja Cristã; e através d o m e u o u v ir esta
m e n s a g e m ela to rn a -s e m i n h a p ró p ria tarefa. Esta m e n s a ­
gem ta m b é m passa p o r m im , c o m o cristão; ta m b é m m e
to r n o p o r t a d o r dela. Mas, p o r m eio dela, so u co lo cad o na
posição de, p o r m in h a parte, c o n sid era r os h o m e n s, to d o s
os h o m e n s, m u ito d ifere n tem en te de antes; já n ão p o sso
m ais fazer o u tr a coisa senão esp erar o m e lh o r p a ra todos.
Ter o u v id o s in te rn o s p a ra a Palavra de C risto, ser
ag rad e cid o p o r sua o b ra e ao m e sm o te m p o responsável
pela m e n s a g e m dele e, p o r últim o , te r co n fia n ç a n o s h o ­
m e n s p o r a m o r a C risto - esta é a lib erd ad e que o b te m o s,
q u a n d o C risto so p ra sobre nós, q u a n d o ele nos envia seu
Santo Espírito. Se ele não vive m ais n u m lu g a r re m o to
h istó rico o u celestial, teológico ou eclesiástico p a ra m im ,
se ele se a p ro x im a de m im e to m a p osse de m im , o r e s u l­
ta d o será que eu ouço, que so u ag rad e cid o e respon sável e
que, fin alm en te, p osso esperar p o r m im m e s m o e p o r t o ­
dos os outros; em o u tras palavras, que eu p o sso viver de
u m a m a n e ira cristã. É u m a coisa tr e m e n d a m e n te g ra n d e
e de m o d o alg u m u m a coisa natural, o b te r esta liberdade.
D ev em o s, p o rta n to , cada dia e cada h o r a o ra r Veni Crea-
tor Spiritus, o u v in d o a Palavra de C risto e em ação de g r a ­
ças. Este é u m círculo fechado. N ão “p o s s u ím o s ” esta
C reio no Espírito Santo - 201

liberdade; ela é, repetidas vezes, c o n ce d id a a nós p o r


Deus.
N a exposição do p rim eiro artigo da C on fissão eu
disse qu e a criação não era u m m ilagre m e n o r do q u e o
n a s c im e n to virginal de Cristo. E agora, em terceiro lugar,
gostaria de dizer que o fato de que h á cristãos, h o m e n s
que tê m esta liberdade, não é u m m ilagre m e n o r d o que o
n a s c im e n to virginal de Jesus Cristo do Espírito Santo e da
V irgem M aria, ou do que a criação do m u n d o a p a r tir do
nada. Pois, se le m b ra rm o s o que, e quem , e c o m o som os,
d ev em o s clamar. “Senhor, te m m ise ricó rd ia de n ó s ”. Para
este m ilagre os discípulos esp eraram dez dias após a A s­
censão do S e n h o r aos céus. N ão senão depois desta p au sa
o d e r r a m a m e n to do Espírito Santo aco n teceu e c o m isso
u m a nova c o m u n id a d e surgiu. Lá aco nteceu u m n o v o ato
de D eus, que, c o m o to dos os atos de D eus, é u m a c o n f ir­
m ação dos anteriores. O Espírito não p o d e ser sep arad o
de Jesus Cristo. “O S enho r é o Espírito”, diz Paulo.
Q u a n d o os h o m e n s p o d e m receber e p o s su ir o E sp í­
rito Santo, isto é n a tu ra lm e n te u m a ex p eriên cia h u m a n a e
u m ato h u m a n o . É ta m b é m u m a questão de e n t e n d i­
m e n to e de vo n ta d e e, posso dizer n a verdade, d a im a g i­
nação. Isto ta m b é m p erte n ce ao ser u m cristão. O h o m e m
completo, até nas mais íntim as regiões do tão c h a m a d o
“in co n scien te”, é to m a d o em clamor. A relação de D eus
co m o h o m e m inclui o h o m e m com pleto. M as não deve
h aver m á com preensão: o Espírito Santo n ão é u m a fo rm a
de espírito h u m a n o . A teologia é tra d ic io n a lm e n te re c o ­
n h e c id a co m o vima das “ciências do intelecto”. Isto p o d e
p assar c o m o pia d a de b o m gosto. M as o E spírito Santo
n ão é idêntico ao espírito h u m a n o , p o ré m o en co n tra.
N ão desejaríam os d eg rad a r o espírito h u m a n o - é p a r t i ­
c u larm en te necessário tratá-lo co m u m p o u c o de c a rin h o
n a nov a A le m a n h a - e m e sm o os teólogos n ão dev eriam
202 - Esboço de um a D ogm ática

se desviar n u m a atitude papista e arrogante. M as esta li­


b e r d a d e d a vida cristã n ão vem do espírito h u m a n o . N e ­
n h u m a c ap a cid ad e h u m a n a , ou p ossibilid ades, ou
esforços de q u a lq u e r espécie p o d e m alcan çar esta lib e r­
dade.
Q u a n d o acontece de o h o m e m o b te r lib e rd a d e tor-
n a n d o - s e u m ouvinte, responsável, agradecido, u m a p e s ­
soa esperan ço sa, n ão é p o r causa de u m ato d o espírito
h u m a n o , m as s o m e n te p o r causa do ato d o E sp írito Santo.
P o rta n to isto é, em ou tras palavras, u m D o m de D eus.
Isto te m q ue ver co m u m novo n ascim en to , c o m o E sp í­
rito Santo.
A Igreja, Sua Unidade,
Santidade e Universalidade

D esde que aqui e acolá, através do Espírito Santo, os h o ­


m e n s se e n c o n tra m co m Jesus C risto e,
desta form a, ta m b é m u m co m o outro,
a c o m u n id a d e cristã visivelm ente
surge e existe aqui e acolá.
É u m a form a do único, universal
e santo povo de Deus, e u m a c o m u n h ã o
de h o m e n s e obras santas, que se su b m ete
ao governo ún ico de Jesus Cristo, em q u e m ela
está fu n d a m e n ta d a , que ta m b é m alm eja viver s o m e n te no
c u m p rim e n to do seu serviço c o m o
em baix ado ra, re c o n h e cen d o seu
objetivo u n ic am en te na sua esperança,
que é o seu limite.

D ev em o s ser breves nesta parte, q ue p o r d ireito d e ­


veria ser tra ta d a m u ito com p letam en te. N ossas h o ra s de
palestra são n u m e ra d as. Mas talvez não haja n e n h u m
prejuízo nisso. Hoje, h á coisas dem ais ditas sobre a Igreja.
H á algo m elhor: vam os ser a Igreja!
Seria u m g ran d e lucro, se o u rgen te desejo de Lutero
tivesse sido c u m p rid o e a palavra “congreg ação” tivesse
to m a d o o lugar da palavra “Igreja”. Claro que p o d e m o s
204 - Ksboço de um a D ogm ática

ach a r n a palav ra “Igreja” o qu e é b o m e v erd ad e iro , u m a


vez qu e Igreja significa Kyriake Oikia, a C asa do S en h o r;
ou, o rig in a d a de circa, u m espaço c irc u lar fechado. As
duas explan ações são possíveis, m as ekklesia c e rta m e n te
significa congregação, u m ajuntam ento, q u e surge da
co nv ocação p a ra a assem bléia n acio n al q ue se e n c o n tr a
ao c h a m a m e n to do m ensageiro, o u m elhor, ao so m da
tr o m b e ta d o arauto.

U m a cong regação é o a ju n ta m e n to daq ueles que


p e rte n c e m a Jesus C risto através do Espírito Santo. O u v i­
m o s q ue estes h o m e n s especiais p e r te n c e m , de u m a
fo rm a especial, a Jesus Cristo. Isto aco ntece q u a n d o os
h o m e n s são c h a m a d o s pelo Espírito Santo p a r a p a r ti c ip a ­
re m n a P alavra e o b ra de Cristo. Esta associação especial
te m sua analogia ao nível h o rizo n tal n a associação d a q u e ­
les h o m e n s u n s co m os outros. O d e r r a m a m e n to d o E s p í­
rito Santo afetou d ire ta m e n te o a ju n ta m e n to destes
h o m e n s. N ão p o d e m o s falar do Espírito Santo - isto p o r ­
qu e é neste p o n to q ue a con gregação aparece im e d ia t a ­
m e n te - sem a co n tin u a ç ã o do credo ecclesiam, creio n a
existência da Igreja. R ecip ro cam en te, ai de nós, q u e m s o ­
m o s nós q u a n d o falam os da Igreja sem estabelecê-la t o ­
ta lm e n te n a o b ra do Espírito Santo! Credo in Sp iritu m
sa n ctu m , m as n ão Credo in ecclesiam: C reio n o Espírito
Santo, m as n ão n a Igreja. Ao co ntrário, creio n o Espírito
Santo, e, p o rta n to , ta m b é m na existência d a Igreja, da
congregação. P o rtan to , d ev em os elim in a r to das as idéias
de o u tr a assem bléia h u m a n a ou sociedades que tê m exis­
tido, p a rc ia lm e n te pela natureza, p a rc ia lm e n te pela h is tó ­
ria, n a b ase d e aco rd o s e organizações. A co n gregação
cristã su rg e e existe, n e m p o r n atu re za n e m pela decisão
h istó rica h u m a n a , m as c o m o u m a d ivina convocatio.
A queles c h a m a d o s ao a ju n ta m e n to pela o b ra do E spírito
Santo c o n g re g a m -s e ao serem con v o ca d o s p o r seu Rei.
A Igreja, Sua U nidade, Santidade e U niversalidade - 205

O n d e a Igreja coincide com a vida n atu ra l d a c o m u n i­


dade, com , p o r exemplo, aquela das nações, o perig o de
u m a m á com p re en são sem pre é am eaçador. Ela n ão p o d e
ser fo rm a d a p o r m ãos h u m a n as; p o r isto a e n tu sia s m a d a
e ráp id a fu n d açã o de igrejas, tal co m o acontece n a A m é ­
rica e ta m b é m algum as vezes n a H o lan d a, é u m negócio
duvidoso. C alvino gostava de aplicar à Igreja u m a c o n ­
cepção militar, a de la compagnie desfidèles. U m a c o m p a ­
n h ia geralm ente v em do a ju n tam e n to sobre a base de u m
c o m a n d o e não sobre a de u m livre acordo.

Através de h o m e n s se co n g reg a n d o aqui e acolá no


Espírito Santo surge aqui e acolá u m a congregação cristã
visível. É m e lh o r não aplicar a idéia de invisibilidade p ara
a Igreja; so m os to d o s inclinados a esco rregar c o m isto na
direção de u m a civitas platônica ou alg u m a espécie de
“te rra de cucos nas nu vens”, n a qual os cristãos estão u n i ­
dos in tim a m e n te e invisivelmente, e n q u a n to a Igreja visí­
vel é desvalorizada. N o C red o dos A póstolos ela n ão é
u m a e s tru tu ra invisível que é planejada, m as u m a ju n ta ­
m e n to co m p leta m en te visível, que se orig ina c o m os doze
Apóstolos. A p rim e ira congregação era u m g ru p o visível,
que causou u m alvoroço público visível. Se a Igreja não
te m esta visibilidade, então não é a Igreja. Q u a n d o digo
congregação, estou p e n s a n d o p r im a r ia m e n te n a fo rm a
c o n cre ta de u m a congregação em local particular. É claro
que cada u m a destas congregações te m seus pro blem as,
c o m o a congregação de Roma, de Jerusalém etc. O N ovo
T estam ento n u n c a apresenta a Igreja fora dos seus p r o b le ­
mas. S em pre que u m p ro b lem a de variação na c o n g re g a ­
ção individual aparece, p o d e levar a u m a divisão. Tudo
isto p e rte n c e à visibilidade da Igreja, que é o objeto do se­
g u n d o artigo. C rem o s na existência d a Igreja - o que sig­
nifica que crem os que cada congregação e m p a rtic u la r
seja u m a congregação de Cristo. G u a rd e b e m isto: u m a
206 - Esboço de um a D ogm ática

p esso a qu e n ã o crê que n esta cong reg ação à qual p e r ­


tence, in c lu in d o aqueles h o m e n s e m u lheres, viúvas e c r i­
anças, a co n greg ação de C risto existe, n ã o crê n a
existência d a Igreja. Credo ecclesian significa q u e creio
qu e aqui, neste lugar, nesta assem bléia visível, a o b ra do
Espírito Santo acontece. P or isto n ão p re te n d o u m a deifi-
cação d a criatura; a Igreja n ão é o objeto d a fé, n ã o c re ­
m o s na Igreja; m as crem o s qu e n esta cong reg a ção a o b ra
do E spírito Santo se to r n a u m evento. O m isté rio da
Igreja é q ue p a ra o Espírito Santo n ão é p o u c a coisa te r
tais form as. C o n s e q ü e n te m e n te , existem n a v e r d a d e n ão
m u itas Igrejas, m as u m a Igreja em te rm o s d esta o u d a ­
quela igreja concreta, que reco n h e ceria a si m e s m a c o m o
u m a Igreja e to d a s as o u tras ta m b é m .

Credo u n a m ecclesiam: creio em u m a fo r m a d o povo


de D eu s q u e o uv iu a voz d o Senhor. E xistem ta m b é m d i ­
ferenças arrisca d as c o m o aquela, p o r exem plo, e n tre a
n ossa e a Igreja C atólica R o m a n a, n a qu al n ã o é sim ples
re c o n h e c e r u m a Igreja. Mas, m e sm o assim, a Igreja ain d a
é mais o u m e n o s reconhecível. M as, antes de tu d o , os
cristão s são sim p le s m e n te co n vocado s p a ra c re r e m D eus
c o m o a o rig e m c o m u m , o objetivo c o m u m d a Igreja p a ra
o qual eles são cham ad o s. N ão so m o s co lo cad o s n u m a
torre, d a qual p o d e m o s v islu m b ra r todas as v a rie d a d e s de
Igrejas; sim p le s m e n te estam o s n a te rra n u m lu g a r d e fi­
n id o e existe a Igreja, a ú n ic a Igreja. C re m o s n a u n id a d e
d a Igreja, n a u n id a d e das congregações, se c re m o s n a
existência d a n o ssa Igreja co ncreta. Se crem o s n o Espírito
Santo nesta Igreja, en tão m e s m o n a p io r das h ip ó teses
não so m o s a b s o lu ta m e n te sep arad o s das o u tra s c o n g re g a ­
ções. Os v e rd a d e iro s cristãos ecu m ê n ic o s n ã o são aqueles
que v u lg a riz a m as diferenças e flu tu a m ac im a delas; m as
são aqueles q u e e m suas respectivas igrejas são c o n cre ta-
m e n te a Igreja. “O n d e dois ou três estiverem re u n id o s em
A Igreja, Sua U nidade, Santidade e Universalidade - 207

m e u no m e , aí estarei” (M t 18.20) - isto é a Igreja. Nele,


apesar de to das as variedades nas congregações in d iv id u ­
ais, estarem os un id os, de alg um a form a, u n s c o m os o u ­
tros.
“C reio n a santa... Igreja”. Q ual é o significado de
sancta ecclesia? Seg und o o co stum e do te rm o , ele significa
“estar sep arad o ”. P ensam os n a origem d a igreja, daqueles
ch am ad o s do m u n d o . “Igreja” sem pre significará u m a se­
paração. O u v im o s que h á ta m b é m sociedades n a tu ra is e
históricas, m as som ente a congregação cristã é a ecclesia
sancta. Ela é d istin ta de to d a estas sociedades p o r causa
d a sua com issão, seu fu n d a m e n to e seu objetivo.
“C reio n a santa igreja católica [universal]...” - eccle­
sia catholica. O conceito de catolicidade está m a n c h a d o
p a ra nós, p o rq u e em conexão com isso p e n s a m o s da
Igreja C atólica R om ana. Mas os R eform adores in d u b ita ­
v elm en te fizeram u m a reivindicação sobre este conceito
para si m esm os. O que está envolvido é o po vo único,
santo e católico de Deus. F u n d a m e n ta lm e n te os três c o n ­
ceitos fazem a m e sm a declaração: ecclesia catholica sig n i­
fica que através de to d a a h istó ria a Igreja p e r m a n e c e a
m e s m a consigo m esm a. Ela n ão altera sua natu reza. Há,
ev id entem ente, diferentes form as nas prin cip ais igrejas.
H á ta m b é m fraquezas, perversões, erro s e m tod as elas.
Mas não h á igrejas su b stancialm en te diferentes. A o p o s i­
ção a elas p o d e ria ser apenas aquela de que h á v erd ad e iras
e falsas igrejas. Farem os b e m em n ão incluir esta oposição
co m m u ita rapidez e freqüência d e n tro da discussão.
A Igreja é a c o m u n h ã o dos santos, co m m u n io sanc­
torum. A qui existe u m p ro b lem a de exegese: é o n o m i n a ­
tivo sancti o u sancta? N ão quero decid ir esta d isp u ta , m as
apenas falar se não existe a intenção de u m a a m b ig ü id a d e
notável n u m sentid o mais p rofun do. Pois s o m e n te
q u a n d o as duas interp retaçõ es são assim iladas lado a
208 - Esboço cie um a D ogm ática

lado, a q u estão recebe seu com p leto e m e lh o r significado.


Sancti significa n ão especialm ente u m p o v o excelente,
m as, p o r exem plo, pov o co m o os “santos e m C o r in to ”, que
foram santos e x tre m a m e n te esquisitos. M as estes c o m p a ­
n h e iro s esquisitos, a q u e m ta m b é m p e rte n c e m o s , são
sancti. A co n gregação é o lugar o n d e a Palavra de D eu s é
p r o c la m a d a e os sac ra m e n to s são solenizad os e o c o m p a ­
n h e iris m o d a o ração acontece, não m e n c io n a n d o os d o n s
e obras in teriores, que são o significado daq ueles e x te r io ­
res. Então, sancti p e rte n c e a sancta e vice-versa.

D e ix e -m e recapitular: Credo ecclesiam significa que


creio qu e a con gregação à qual p e rte n ço , n a q ual te n h o
sido c h a m a d o à fé e sou responsável pela m i n h a fé, na
qual te n h o m e u m inistério, é aquela Igreja s an ta e u n iv e r ­
sal. Se n ão acre d ito nela, não acred ito em n a d a dela. N e m
falta de beleza, n e m “rugas e m a n c h a s ” n esta con g reg a ção
p o d e m d esv iar-m e do cam inh o. O que está envolvido
aqui é u m artigo de fé. N ão h á sentido, q u a n d o b u s c a m o s
a “v e rd a d e ira ” congregação, a b a n d o n a r a con g reg a ção
concreta. E m to d o lug ar estam os n os “re la c io n a n d o co m
h o m e n s ”. Claro, a separação não p o d e ser excluída; ela
p o d e ser o b je tiv am en te necessária. M as n e n h u m a divisão
ja m ais levará o “rela cio n am en to com h o m e n s ” a ser e x ­
cluído c o m p le ta m e n te em u m a re c é m -s e p a ra d a c o n g r e ­
gação do Espírito Santo. Q u a n d o os R e fo rm a d o re s
ch e g a ra m e a Igreja R o m a n a p e r m a n e c e u atrás d a Igreja
R e fo rm a d a e se p a ra d a dela, não estava em ação n a Igreja
evangélica n e n h u m a Igreja im aculad a, pois ela ta m b é m
estava cheia de “m a n c h a s e ru gas” até n osso s dias. Pela fé
certifico que a con gregação co n cre ta a qual p e rte n ç o e
pela vida d a qual sou responsável, está d e s ig n a d a p a r a a
tarefa de fazer neste lugar, nesta form a, aqu ela santa
Igreja un iv ersal visível. D iz e n d o Sim p a r a isto, co m o
aquele q ue p e rte n c e a o u tras con gregações pelo E spírito
A Igreja, Sua U nidade, Santidade e U niversalidade - 209

Santo, espero e te n h o esperança de que o E spírito Santo


de Jesus C risto atesta nisto e através disto ta m b é m aos o u ­
tros e c o n firm a que nisto aquela n atu re za santa e u n iv e r ­
sal da Igreja se to rn a rá visível.
N o C red o de Nicéia u m q u a rto p o n to é a c re sc e n ­
tado a estes três p redicad os d a Igreja, que eu creio n a ­
quela una, santa, católica e apostólica Igreja. M as este
q u a rto pred ic ad o não p erm a n ece s im p lesm en te n u m a fi­
leira c o m os o utros três predicados, m as p r o c u r a explicá-
los. Q u al é o significado de U nidade, C atolicidade, S an ti­
dade? O que d istin gue a congregação de to d a s as ou tras
so ciedades do tipo natural ou m e sm o histórico? Talvez
p o ssa m o s dizer que ela é a ecclesia apostolica - isto é, a
Igreja f u n d a d a sobre o te ste m u n h o dos A póstolos - que
tra n s m ite seu te ste m u n h o e que foi co n stitu íd a e será
c o n stitu íd a sem pre em n ovidade pelo fato de que ela ouve
o te s te m u n h o dos Apóstolos. Som os desafiados c o m a
com pleta totalid ad e da existência da Igreja e ao m e sm o
te m p o co m a totalidade dos problem as, nos quais n ão te ­
m o s te m p o n e m espaço p ara entrar. M as te n tarei to r n a r
visível e m três linhas o que a ap ostolicidade d a Igreja sig­
nifica.
N ossa declaração de ab e rtu ra diz que a cong regação
cristã é “u m a c o m u n h ã o de h o m e n s e obras santas, que se
su b m ete ao g overno único de Jesus Cristo, em q u e m ela
está fu n d a m e n ta d a , que ta m b é m alm eja viver s o m e n te no
c u m p rim e n to do seu serviço co m o e m b aix ad o ra, re c o ­
n h e c e n d o seu objetivo u n ic am en te n a sua esperança, que
é o seu lim ite”. Aqui você vê as três linhas que estão en vol­
vidas.
O n d e a Igreja C ristã está, estam os o b v ia m e n te c o ­
n ectad o s de u m a fo rm a ou o u tra co m Jesus Cristo. Este
n o m e indica a un id ad e, santidade e u n iv e rsalid ad e da
Igreja. Q u e r esta base e apelo aconteça de ju r e é a q u estão
210 - Esboço dc um a D ogm ática

q u e deve ser le v an tad a em cad a congreg ação e m to d o l u ­


gar. O n d e a Igreja A postólica está, a Igreja q u e ouve e
tr a n s m ite o te s te m u n h o d os A póstolos, u m sinal d e f in i­
tivo estará vivo, u m a nota ecclesiae, de que Jesus C risto, a
saber, n ão é ap en a s aquele de q u e m a igreja se origina,
m as q ue C risto é aquele que g o vern a a congregação. Ele, e
s o m e n te ele! E m n e n h u m lugar ou espaço a Igreja é u m a
a u to rid a d e q u e se su sten ta a si m e sm a, m as - e aqui se se­
gue u m im p o rta n te p rin cíp io c o m relação ao g o v e rn o d a
Igreja - f u n d a m e n ta lm e n te a Igreja n ão p o d e ser g o v er­
n a d a n e m m o n a rq u ic a m e n te n e m d e m o c ra tic a m e n te .
A qui Jesus C risto go v ern a sozinho, e q u a lq u e r g o v ern o
d o h o m e m p o d e ap en a s re p re se n ta r este g o v ern o dele. E
deve deixar-se m e d ir p o r este governo. M as Jesus C risto
g o v ern a e m su a Palavra pelo Espírito Santo. O g o v ern o da
Igreja é, assim , idêntico co m a S agrada E scritu ra, através
do seu te s te m u n h o dele. P ortanto, a Igreja deve c o n t in u a ­
m e n te estar o c u p a d a co m a exposição e aplicação d a E s­
critu ra. O n d e a Bíblia se to r n a u m livro m o r to c o m a c ru z
sobre a capa e m a rg e n s d o u rad as, o g o v ern o d e Jesus n a
Igreja é inativo. N este caso, a Igreja n ão é m ais aq uela
s an ta Igreja universal, m as p e rm a n e c e a a m eaça d e r u p ­
tu ra n a q u ilo q u e é p ro fan o e separatista. E viden te q u e até
m e s m o esta “Igreja” se c h a m a rá pelo n o m e de Jesus
Cristo. E n tre ta n to , n ão são as palavras, m a s a realid ad e
q u e interessa; e tal Igreja n ão estará n u m a p o sição para
tra z e r a realid ad e à ação.

A v ida d a ú n ic a san ta Igreja u niversal está d e t e r m i ­


n a d a pelo fato de qu e ela é o c u m p rim e n to d o m in is té rio
de e m b a ix a d o ra o r d e n a d o sobre ela. A Igreja vive co m o
o u tra s c o m u n id a d e s vivem, m as neste m in is té rio d a
Igreja sua n a tu re z a aparece - p ro cla m açã o d a P alav ra de
D eus, a d m in is tra ç ã o dos sacram en to s, u m m a io r o u m e ­
n o r d e s e n v o lv im en to litúrgico, a aplicação d a lei d a Igreja
A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade -2 1 1

(a tese de R. S o h m é u m trab a lh o fantástico, pois até


m e sm o a p rim e ira congregação tin h a ao m e n o s u m o r d e ­
n a m e n to co m o Igreja, isto é, A póstolos e congregação) e,
p o r ú ltim o, u m a teologia. O g ran d e pro b lem a, q u e a
Igreja te m de re s p o n d e r repetidas vezes, é este - o que
acontece e m e p o r m eio de todas estas funções? É u m a
questão de edificação? É a b e m -a v e n tu ra n ç a de in d iv í­
d u o s o u tu d o q ue o envolve? É o cultivo da religião viva,
o u o bjetivam en te u m a o rd em (segun do o conceito o n t o ­
lógico de Igreja) que deve sim plesm ente ser c u m p rid a
co m o a obra de D eus7. O n d e a vida da Igreja está ex aurid a
no auto-serviço, tem -se o gosto de m orte; o e lem en to d e ­
cisivo foi esquecido, de que a vida inteira é vivida apenas
no exercício do que c h am am o s m in istério de e m b a ix a d o r
d a Igreja, proclam ação, kerygma. U m a Igreja q ue re c o ­
nh ece sua com issão não desejará, n e m estará apta a p e t r i ­
ficar e m q u aisq u er de suas funções, p a ra ser u m a Igreja
e m interesse próprio. H á o “g ru p o dos crentes e m C risto ”;
m as este g ru p o foi enviado: “Ide e pregai o E vangelho!”
Ele n ão diz, “Ide e celebrai o m in istério !”; “Ide e edificai a
vós m e sm o s com o s erm ão !”; “Ide e celebrai os S a c ra m e n ­
tos!”; “Ide e apresentai-vos na liturgia, que p o r v e n tu r a r e ­
pita a liturgia celestial!”; “Ide e deixai o legado de u m a
teologia qu e possa gloriosam en te se d e s d o b ra r c o m o a
S u m m a de T h o m a s de A qu in o!” Claro, n ão h á n a d a que
p ro íb a tu d o isto; p o d e haver u m a b o a causa p a ra fazer
tu d o isto; m as nada, n ad a afinal p a ra seu interesse p r ó ­
prio! Nela, to d a s aquelas coisas d evem prevalecer: “Pregai
o Evangelho a to d a criatura!” A Igreja corre c o m o o
arau to p a ra en treg ar a m ensagem . N ão é u m caracol que
tr a n s p o rta sua p e q u e n a casa sobre suas costas e está tão
b e m ac o m o d a d o , que apenas o c a s io n a lm e n te liga suas
antenas, e depois p en sa que a “exigência de p u b licid ad e”
foi satisfeita. Não, a igreja vive pela sua com issão c o m o
212 - Esboço de um a D ogm ática

arauto; ela é la compagnie de Dieu. O n d e a Igreja está viva,


ela deve p e r g u n ta r a si m e s m a se está s e rv in d o esta c o ­
m issão o u se to r n o u - s e u m objetivo e m si m e sm a? Se o
ú ltim o for o caso, en tão c o m o regra ela c o m e ç a a te r o
gosto pelo “sag rad o ”, co m afetos de pied ade, a agir c o m o
sacerdo te e m u r m u r a d o r . Q u a lq u e r u m c o m n a riz a g u ­
çad o se n tirá o cheiro e achará formidável! O C r is tia n is m o
não é “s a g ra d o ”; pelo c o n trá rio ele resp ira o ar fresco do
Espírito. D e o u tra form a, não é C ristian ism o . Pois ele é
algo “m u n d a n o ” expo sto p a ra to d a h u m a n id a d e : “Ide p o r
to d o o m u n d o e pregai o Evangelho a to d a c ria tu ra ”.

Agora, o ú ltim o p on to, de qu e o n d e a Igreja estiver,


ta m b é m h av erá u m alvo, o reino de D eus. Este objetivo
da Igreja está d e s tin a d o a co n stitu ir u m a c o n tín u a in q u i e ­
tação p a ra os h o m e n s n a Igreja, cuja ação n ão te m n e ­
n h u m a relação co m a g ran d ez a do objetivo. N ão d ev em o s
p e r m itir qu e a existência cristã, isto é, a existência da
Igreja, a existência teológica, seja p riv a d a deste. P o de
aco n tecer que q u e ira m o s largar a m ã o do arado, q u a n d o
c o m p a r a m o s a Igreja co m este objetivo. P o d e m o s , com
freqüência, te r u m a aversão pela v ida d a Igreja c o m o u m
todo. Se você n ão con h ec e esta opressão, se você s im p le s ­
m e n te s e n te - s ’ b e m d e n tro das p aredes d a Igreja, você
c e rta m e n te n ão viu a v e rd a d e ira d in â m ic a d esta questão.
N a Igreja p o d e m o s ser com o u m pássaro n a gaiola que
está s e m p re se d e b a te n d o c o n tra as grades. Algo b e m
m a io r está e m jo go do q ue n osso p u n h a d o de p reg ação e
liturgia! M as o n d e a Igreja A postólica está viva, alg u ém
con hece, v e rd a d e ira m e n te , este anseio, nós a n sia m o s pela
m a n s ã o p r e p a ra d a p a ra nós, m as n ão fu g irm o s, s im p le s ­
m e n te n ão a b a n d o n a m o s . Pela es p e ra n ç a do reino, nós
não nos p e r m itim o s ser im p e d id o s de p e r m a n e c e r c o m o
u m so ld ad o raso n a compagnie de D ieu, e assim av an çar
p a ra o alvo. O lim ite nos é m a rc a d o pelo alvo. Se real-
A Igreja, Sua U nidade, Santidade e Universalidade - 2 1 3

m e n te esp eram o s pelo reino de D eus, então p o d e m o s s u ­


p o r ta r a Igreja em sua insignificância. E n tão n ão
ficarem os env erg o n h a d o s em desco b rir n a congreg ação
c o n cre ta a ú n ic a Igreja santa e universal, e en tã o n e n h u m
in d ivídu o será env erg o n h a d o da sua confissão particular.
A esp eran ça cristã, que é a coisa mais rev o lu c io n ária que
so m os capazes de p e n sa r e além d a qual todas as o u tras
revoluções são m eros cartuchos vazios, é u m a esp erança
disciplinada. Ela orienta o h o m e m nas suas limitações:
nela você persevera. O Reino de D eus é chegado, p o r ­
tanto, você não deve com eçar a luta pelo R eino de Deus.
Tom e seu lugar e esteja em seu lugar co m o u m v e rd ad e iro
m inister verbi divini. Você p o d e ser u m revolucionário,
m as você p o d e ser ta m b é m u m conservador. O n d e este
co n tra ste e n tre revolucionário e c o n s e rv a d o r está u n id o
em u m h o m e m , o n d e ele p o d e ser de u m a vez c o m p le ta ­
m e n te ansioso e co m p letam en te tranqü ilo, o n d e ele p o d e
estar com os o utros desta m a n e ira n a congregação, na
qual os m e m b ro s reco n h e cem u m ao o u tro em anseio e
em h u m ild a d e na luz do divino h um or, ele fará o que tem
de fazer. N esta luz to d a nossa ação n a Igreja é p e rm itid a
e, n a verdade, reco m en d ad a. Portanto, a Igreja, e s p e ra n d o
e apressando, c a m in h a ao e n co n tro da v in d a do Senhor.
O Perdão dos Pecados

O h o m e m cristão olha p a ra trás e, apesar do seu p ecado,


recebe o te stem u n h o , através do Espírito Santo
e através do santo batism o, da m o rte de
Jesus Cristo e assim da justificação
da sua p ró p ria vida.
Sua fé, p o r último, está f u n d a d a
no fato de que o p ró p rio Deus, to m a n d o
o lugar do h o m e m em Jesus Cristo,
assu m iu responsabilidade
inco ndicion al p o r seu cam in ho.

Este é o c a m in h o do h o m e m cristão, que foi c o n s ti­


tu íd o pela graça de D eus e que tem seu lugar n a c o n g r e ­
gação. N ão devem os, p ortan to, sob circ u n stân cia algum a,
sep arar o que tem os ouvido agora, p e rd ã o dos pecados,
ressurreição do co rp o e vida eterna, do fato de que D eus,
pelo Espírito Santo, age de m a n e ira tal q ue h á h o m e n s
que ouvem , e surge u m a congregação. O c a m in h o do c ris ­
tão é deriv ado do p erd ão dos pecados e c o n d u z à re s s u r­
reição do co rp o e vida eterna. Esta o rig em do h o m e m
cristão está co n ce n trad a, realm ente e su b stan cialm e n te
n u m ú n ic o ponto. Este p o n to é o cen tro do s e g u n d o a r ­
tigo, a paixão e ação de Jesus Cristo. E stam o s ju n to s com
216 - Esboço de um a D ogm ática

ele no E spírito Santo. S om os a sua congregação, e tu d o


qu e é n o sso é o rig in a lm e n te e p a r tic u la r m e n te dele. V ive­
m o s pelo qu e ele é. N ão dev em o s n o s afastar deste cen tro
de to d a a verdade. P erd ão dos pecados, ressurreição, vida
ete rn a n ão são coisas externas a Cristo, m a s são a ação de
D eus n a sua luz. Ele, o Único, ilum in a, e o h o m e m cristão
m o ve-se e m sua luz. O qu e d istin gu e o h o m e m cristão é
q u e ele p e r m a n e c e neste feixe de luz qu e v em de Cristo.
M as esta existência n a luz não é u m p ro p ó s ito egoísta, p o ­
ré m o h o m e m cristão m ove-se nesta luz, a fim de te r luz
e m si m e sm o . D eus a m o u o m u n d o de tal m a n e ira que
d eu o seu ú n ic o Filho. C ristãos são m e n sag e iro s n o lugar
de Cristo. M as aq u i n a co ngregação ele é re c o n h e cid o , ele
é visto e ex p e rim e n ta d o , o que C risto é p a ra o h o m e m ,
p a ra to d o s os h o m e n s, a fim de que o te s te m u n h o p o ssa
ser c o n d u z id o daqui.
C reio n o p e rd ã o dos p ecad os - este é o p o n to n o
qual o cristão o b v ia m en te olha para trás n o c a m in h o do
qual ele vem . N ão s o m e n te no m o m e n to d a sua c o n v e r ­
são’, m a s é o qu e acontece sem p re q u a n d o o cristão olha
p a ra trás: ele está o lh a n d o p a ra o p e rd ã o dos pecados.
Este é o a c o n te c im e n to que o c o n fro n ta e o im p ele p a ra
u m a atitude, isto e n a d a mais. N ão se acre sce n ta a isto,
co m o p e rd ã o dos peca d o s e m in h a ex p eriên cia o u p e rd ã o
dos p eca d o s e m in h a s realizações! O qu e está e m r e tr o s ­
pecto, sa b e m o s p o r nós m e sm o s, s o m e n te p o d e ser isto,
que vivem os através do perdão. P ara se rm o s h o n esto s, s o ­
m o s indigentes.
Se p e rd ã o dos p eca d o s significa tu d o q u e ficou p a ra
trás de nós, en tão u m ju lg a m e n to p asso u so bre nossa
vida. N ão h á n e n h u m m érito, aquele d a g ratidão , d ig a ­
m os, n o q ual te n h o oferecido to d a espécie de coisas ao
q u e rid o D eus. T en ho sido u m lutador! T en h o sido u m t e ­
ólogo! Talvez te n h a escrito livros! Não, isto n ão justifica.
O Perdão dos Pecados -2 1 7

Tudo que fom os e fizemos estará sujeito ao ju lg a m e n to de


que estava em pecado. E pecado significa transgressão,
desvio. Se havia alg um a coisa a mais, sem p re foi a coisa
que veio de cima, da qual não tem os de que nos jactar,
m e sm o p o rq u e é a m isericórdia de Deus. T o do d ia d e v e ­
m o s com eçar, p o d e m o s co m eçar com a confissão: “C reio
no p e rd ã o dos p eca d o s”. N a breve h o ra d a n o ssa m o rte
ain d a te re m o s mais p a ra dizer. Talvez p o ssa m o s m e lh o r
clarificar o conceito de perd ão ou remissio, c o m o alg u m a
coisa que foi gravada em escritos, p o r exem plo, nossa
vida; agora u m gran d e golpe, e ele é retirad o p o r inteiro.
Ele m erece ser retirado e - graças a Deus! - será retirado.
A pesar do m e u pecado, agora posso aceitar u m te s te m u ­
n h o de que m e u pecado não será mais le m b ra d o p a ra
m im . N ão posso, p o r m im m esm o, rem o vê-lo de m im
m esm o. O p ecado significa a perdição ete rn a d o h o m e m .
C o m o p o d e ría m o s p o r nós m e sm o s c o n d u z ir esta r e m o ­
ção? Q u e te n h o pecad o significa que sou u m pecador.

Mais u m a vez tu d o isto nos leva ao te s te m u n h o do


Espírito Santo, o te ste m u n h o da Palavra de D eu s o u v id a e
o te s te m u n h o do batism o. Pois a relevância do santo b a ­
tism o é esta, de que p o d e m o s d u ra n te to d a a n o ssa vida
p e n sa r n o fato de que som os batizados; assim c o m o L u ­
tero na tentação ap a n h o u u m giz e escreveu n a lousa,
baptizatus sum. O batism o fala de m im c o m p leta m en te,
in d e p e n d e n te m e n te se sem pre estive aten to ao te s te m u ­
n h o do Espírito Santo com a m e sm a vivacidade. H á algo
de erra d o co m a nossa percepção. H á u m sobe e desce
nela; algum as vezes a Palavra não é viva p a ra m im , e é
aqui o n d e o fato p o d e intervir, de que sou batizado. Mais
u m a vez em m in h a vida u m sinal foi estabelecido, de que
estou seguro m e sm o q u a n d o o te s te m u n h o do Espírito
Santo n ão m e alcança. Assim com o nasci, ta m b é m fui b a ­
tizado. C o m o u m a pessoa batizada, to rn e i-m e u m a teste-
218 - Esboço de um a D ogm ática

m u n h a p a ra m i m m esm o. O b atism o n ão c o n f irm a n a d a


além do que o Espírito Santo co n firm a, p o r é m c o m o u m a
p esso a b a tiz a d a p osso p o r m im m e sm o ser u m a te s t e m u ­
n h a p a r a o Espírito Santo e re s ta u ra r a m i m m e s m o p o r
este te ste m u n h o . O b atism o m e le m b ra do m in is té rio do
te ste m u n h o , u m a vez que ele m e leva ao a r r e p e n d im e n to
diário. Ele é u m sinal estabelecido em n o ssa vida. C o m o
as b raça d as do n a d a d o r estão sem p re em m o v im e n to p a ra
q u e ele n ão afu nde, assim o b atism o n os c h a m a de volta
ao te ste m u n h o .

M as este te s te m u n h o é a Palavra de D eu s p a ra nós,


dizend o: Você, ó h o m e m , co m seu pecado, p e rte n c e c o m ­
p le tam e n te, co m o p r o p rie d a d e de Jesus C risto, ao d o m í ­
nio da m ise ric ó rd ia inconcebível de D eus, qu e n ão n o s vê
c o m o aqueles q ue vivem p o r viver e agem p o r agir, m as
diz p a ra nós, ‘Você está justificad o’. P ara M im você n ão é
m ais u m pecado r, m as o n d e você está ta m b é m Eu estarei.
O lh e p a ra este O u tro . Se você está an sioso so bre c o m o se
arre p e n d e r, deixe apen as que se lhe diga: “Teus p eca d o s
fo ram p e r d o a d o s ”. Se você p e r g u n ta r “q ue m ais p o sso fa­
zer, co m o a d e q u a r m i n h a vida em c o m p a n h e ir is m o co m
D e u s ”, deixe a resp o sta chegar até você de q ue a expiação
p o r sua v id a já foi realizada e sua c o m u n h ã o c o m D eus
co m pletad a. Sua reação, ó filho do h o m e m , consiste a p e ­
nas n a aceitação desta situação, de que D eu s o vê agora
m ais u m a vez e o recebe mais u m a vez e m Sua luz, c o m o a
c ria tu ra que você é. “F om os sep ultad os c o m ele n a m o r te
p o r m e io d o b a tis m o ” (Rm 6.4). B atism o é a r e p r e s e n ta ­
ção d a m o r te de C risto no m eio d a n ossa vida. Ele n o s diz
que q u a n d o C risto foi m o r to e sep u ltad o ta m b é m fo m o s
m o r to s e sepu ltado s, n ós transgressores e pecad ores.
C o m o aquele que foi batizado, você p o d e ver você m e s m o
c o m o m o rto . O p e rd ã o dos p ecad os re p o u s a n o fato de
que este m o r r e r aco n teceu n o te m p o n o G ólgota. O ba-
O Perdão dos Pecados - 219

tism o diz a você que aquela m o rte foi ta m b é m a sua


m orte.
O P ró p rio D eus, em Jesus Cristo, to m o u a iniciativa
de d a r o p rim e iro passo no lugar do h o m e m . P en sam o s
m ais u m a vez na nossa declaração de que a reconciliação
é u m a troca. D eus agora assum e a resp o n sab ilid ad e p o r
nós. A gora som o s sua p ro pried ade, e ele nos te m à sua
disposição. N ossa p ró p ria in dig nação não nos afeta mais.
Vivemos agora pelo fato de que ele faz isto, o que significa
não u m a existência passiva, m as u m a existência e x tre m a ­
m e n te ativa. Se p u d e rm o s usar a figura, p o d e m o s p e n s a r
em u m a criança d e s e n h a n d o u m objeto. Ela n ão consegue
fazê-lo. E ntão o professor senta-se no lugar do alu n o e d e ­
sen h a o m e sm o objeto. A criança fica ao seu lado e a p e ­
nas olha, e n q u a n to o professor traça os finos d es e n h o s
em seu p ró p rio cad e rn o de exercícios. Isto é ju stificação -
D eus realizando em nosso lugar o que não p o d e m o s r e a ­
lizar. Fui d esem b a raçad o das form as m in úsculas; agora,
se ain d a h á algo a ser dito co n tra m im , verão que isto não
m ais m e diz respeito, m as àquele qu e sen to u -se n o m e u
lugar. E to d o s os que tê m alg um a reclam ação c o n tra m im ,
o diabo e suas legiões e aqueles q u erid o s c o m p a n h e iro s ,
se o u sa re m erguer-se co n tra m im , verão ele s e n ta d o em
m e u lugar. Esta é m in h a situação. Assim, sou in ocente,
po sso m e rejubilar com p letam ente, p o rq u e as acusações
c o n tra m im cessaram . A justiça de Jesus C risto agora é
m in h a justiça. Isto é o perd ão de pecados. “C o m o és tu
justo diante de Deus? S om ente pela fé e m Jesus C risto ”
(P erg u n ta 60, Catecismo de Heidelberg). Foi assim q ue a
R eform a viu a questão e a expressou. D eus nos co n ce d eu
que a p re n d a m o s com o ad q u irir mais u m a vez a v erd ad e
c o m p leta d a v ida que resulta dela.
A gora não devem os dizer que isto n ão é suficiente
p a ra viver pelo p erd ão ‘so m en te’. Esta objeção foi le v a n ­
220 - Ksboço de um a D ogm ática

ta d a c o n tra o C red o e fo rte m e n te c o n tra os R e f o r m a d o ­


res. Q u e tolice! C o m o se quisesse dizer q ue o p e r d ã o dos
pecado s, n ão fosse a ú n ic a coisa pela qual vivem os, o p o ­
d er de to d o s os poderes! C o m o se tu d o n ã o estivesse la ­
ten te n a frase! É p recisa m en te q u a n d o estam o s
co nscientes de q ue ‘D eus é p o r m im ’, que so u n o v e r d a ­
d eiro se n tid o responsável. Pois deste p o n to de vista e s o ­
m e n te dele h á u m a ética v erdad eira, te m o s u m critério do
b e m e d o mal. P o rtan to , viver pelo p e rd ã o n ão significa
de q u a lq u e r m a n e ir a passividade, m as o viver cristão em
sua p le n itu d e. Se p referirm o s descrevê-la c o m o a g ra n d e
lib e rd a d e o u u m a disciplina estrita, c o m o a p ie d a d e ou
co m o v e rd a d e iro m u n d a n is m o , co m o m o ra lid a d e p a r t i ­
cu lar o u c o m o m o ra lid a d e social, se o lh a m o s p a ra esta
vida sob o signo d a g ra n d e esp eran ça o u sob o sign o da
p aciên cia diária, de q u a lq u e r fo rm a viv em o s ap en a s pelo
perdão. A qui está a distin ção entre o cristão e o pagão, o
cristão e o ju d e u . O que n ão passa sobre esta lâ m in a afi­
ad a d o p e r d ã o de pecad os, ou graça, n ão é cristão. P or
isto serem o s julgados, sobre isto o Juiz u m d ia q u e s tio ­
nará, q u e r você viva pela graça ou já escolh eu d euses p a ra
si m esm o , o u talvez qu eira se to r n a r c o m o u m . Você tem
d e m o n s tr a d o a fé de u m servo, que n ão te m d o q ue se ja c ­
tar? N este caso você é aceito; desta fo rm a você c e r t a ­
m e n te te m sido m ise rico rd io so ta m b é m e te m p e rd o a d o
seus devedores; ta m b é m te m se g u ra m e n te c o n f o r ta d o o u ­
tro s e sido a luz, suas obras ta m b é m tê m se d e m o n s tr a d o
boas, obras qu e flu em d o p e rd ã o d o s pecados. A p e r g u n ta
sobre estas obras é a p e r g u n ta do Juiz, qu e te m o s de e n ­
frentar.
A Ressurreição do Corpo
e a Vida Eterna

O olh ar do cristão p ara além e apesar d a sua m o rte , r e ­


cebe do Espírito Santo e da Ceia do S en h o r
o te ste m u n h o da ressurreição de
Jesus C risto e assim da
conclusão da sua p ró p ria vida.
Sua fé nisto está f u n d a m e n ta d a n o fato
de que, u m a vez que ao h o m e m é p e rm itid o tom ar,
em Jesus Cristo, o lugar de Deus, foi-lhe co n c e d id o a p a r ­
ticipação in con dicion al n a glória de D eus.

U m cristão olha p ara trás, falamos n a declaração de


a b e rtu ra anterior. U m cristão olha p a ra frente, diz em o s
agora. Este olhar p a ra o passado e o lhar ad ian te c o n s ti­
tu e m a vida do cristão, a vita h u m a n a C hristiana, a vida
de vim h o m e m que recebeu o Espírito Santo, que p o d e v i­
ver n a congregação e é c h am ad o p a ra ser nela u m a luz
p a ra o m u n d o .
U m h o m e m olha adiante. Fazem os u m a volta, c o m o
se fosse de 180 graus: atrás de nós está o n o sso p e c a d o e
diante de nós a m orte, o m orrer, o caixão, o tú m u lo , o
fim. O h o m e m que não leva isto seriam ente, o fato de que
estam o s o lh a n d o p a ra este fim, o h o m e m que não perce b e
o q ue o m o r r e r significa, que não fica ap av o ra d o co m isto,
222 - Esboço dc um a D ogm ática

que n ão te n h a talvez a alegria suficiente n a v id a e assim


não c o n h ec e o te m o r do fim, que ain d a n ão e n te n d e u que
esta vida é u m D o m de D eus, q ue n ão te m inveja da l o n ­
g evidade dos patriarcas, que não tin h a m ap en a s cem , m as
trezen to s, e q u a tro c e n to s, o u m ais anos, o h o m e m que,
em o u tra s palavras, não assim ilou a beleza d esta vida, n ão
p o d e c o m p re e n d e r o significado d a “ressu rre ição ”. Pois
esta p alav ra é a resp o sta ao te rro r d a m o rte , o te r r o r de
q u e esta v id a alg u m dia chegará ao fim, e este fim é o h o ­
rizonte d a n o ssa existência. “N o m e io d a vida s o m o s afi­
velados à m orte...” A existência h u m a n a é u m a existência
sob esta am eaça, m a rc a d a p o r este fim, p o r esta c o n t r a d i­
ção c o n tin u a m e n te lev an tad a c o n tra n o ssa existência:
você n ão p o d e viver! Você crê em Jesus C risto e p o d e a p e ­
nas crer, e não ver. Você está d ia n te de D eu s e g o staria de
se regozijar e p o d e se regozijar, to d a v ia deve e x p e r i m e n ­
ta r a c ad a d ia co m o seu p eca d o é no vo a cad a m a n h ã . H á
paz, e, tod avia, apen as a p az q ue p o d e ser c o n f irm a d a p o r
m e io d a luta. A qui e n te n d e m o s , e, todavia, ao m e s m o
te m p o e n te n d e m o s tão pouco. H á vida, m a s a v id a a in d a
n o vale d a s o m b ra da m orte. E stam o s lado a lado, p o r é m
u m dia n o s s e p a ra re m o s u m d o outro. A m o r t e p õ e seu
selo so bre tu d o ; é o salário do pecado. A c o n ta está fe­
ch ada, o caixão e a c o rru p ç ã o são a ú ltim a palavra. A d is ­
p u ta está decidida, e d ecid id a c o n tra nós. Isto é a m o rte.

A g o ra o cristão o lh a adiante. Q u a l o sig nificad o da


es p e ra n ç a cristã n esta vida? U m a vida ap ós a m o rte ? U m
ev ento fora d a m o rte? A p e q u e n a alm a que, c o m o a b o r ­
boleta, esvoaça sobre a sep u ltu ra e a in d a é p re s e r v a d a em
alg u m lugar, a fim de viver em im o rtalid ad e? É assim q ue
os p ag ãos v êem a vida após a m orte. M as isto n ão é a es­
p e ra n ç a cristã. “C reio n a ressurreição d o c o rp o ”. C o r p o
n a Bíblia é sim p lesm en te o h o m e m ; h o m e m , além disto,
sob o signo d o pecado, h o m e m caído. P ara este h o m e m é
A Ressurreição do C orpo c a Vida E terna - 223

dito “Tu ressuscitarás”. Ressurreição significa n ã o a c o n ti­


n u ação desta vida, m as sua conclusão. P ara este h o m e m
u m “Sim ” é dito on d e a so m b ra da m o rte n ão p o d e alcan ­
çar. N a ressurreição, nossa vida está envolvida, nós, h o ­
m e n s co m o so m os e estam os situados. Nós ressu scitare­
m os, n in g u é m mais to m a rá nosso lugar. “Serem os
tra n s fo rm a d o s ” ( I C o 15); isto não q u e r d izer que u m a
vida diferente se inicia, m as “o co rruptível se revestirá de
in c o rru p tib ilid ad e e o m o rtal de im o rta lid a d e ”. E n tão será
m anifesto que “a m o rte foi trag a d a pela vitória”. P ortanto ,
a esp eran ça cristã afeta nossa vida co m o u m tod o; as n o s ­
sas vidas serão com pletadas. Esta que foi se m e a d a e m d e ­
so n ra e fraq ueza ressuscitará em glória e poder. A e s p e ­
ran ça cristã n ão nos co n d u z p a ra longe d esta vida; pelo
contrário, é a revelação d a v erdade n a qual D eu s vê nossa
vida. É o triu n fo sobre a m orte, m as n ão u m vô o p a ra o
Além. A realidade desta vida está envolvida. A escatolo-
gia, c o rre ta m e n te entend ida, é a coisa m ais p rá tic a que
p o d e ser considerada. Nela, a luz cai sobre nossas vidas.
E sp eram o s p o r esta luz. “N ós te oferecem os esp eran ça”,
disse G oethe. Talvez até ele m e sm o sabia d esta luz. A
m e n sa g e m cristã, em to d a m edid a, de m o d o confiante e
co nfortan te, p ro cla m a esperança nesta luz.

É v erd ade que não p o d e m o s nos co n ce d er o u p e r s u ­


ad ir de que te m o s esta esp erança de que n ossa v id a será
concluída. Ela deve ser crida, apesar da m o rte. O h o m e m
que não con hece o que é a m o rte ta m b é m n ão con h ec e o
que é a ressurreição. É necessário o te s te m u n h o d o E sp í­
rito Santo, o te ste m u n h o da Palavra de D eus p ro c la m a d a
e o uv id a n a E scritura, o te ste m u n h o do Jesus C risto res-
surreto, a fim de que se creia que haverá luz e q ue esta luz
c o m p leta rá nossa vida incom pleta. O Espírito Santo, que
fala a nós n a Escritura, nos ensina q ue p o d e m o s viver esta
g ra n d e esperança.
224 - Esboço de um a D ogm ática

A C eia do S e n h o r p o d e ser m ais c o m p re e n d id a do


p o n to de vista d a Páscoa, do que g eralm en te a vem os.
N ão é p r im a r ia m e n te u m a refeição de luto o u fú n eb re,
m as a a n tecip a ção d a festa de casam en to do C o rd eiro . A
Ceia é u m a refeição alegre: o c o m e r d a carn e dele, Jesus
Cristo, e b e b e r do seu sangue, é c o m id a e b e b id a d a vida
e te rn a no m e io d a n ossa vida. S om os co n v id a d o s à sua
m e sa e assim ja m ais serem o s sep arad o s dele. P o rtan to ,
neste sinal o te s te m u n h o da sua refeição está u n id o ao
te s te m u n h o d o Espírito Santo. A Ceia v e rd a d e ira m e n te
n os diz, “você n ão m o rre rá , m as viverá”, e p r o c la m a a
o b ra d o Senhor! Vocêl S om os co n v id ad o s à M esa d o Se­
n h o r, que n ã o é apenas u m a im agem ; é u m a c o n te c i­
m en to. “T odo o que crê em m im te rá vida e te rn a ”. Sua
m o r te está p o s ta n a m o rte. Você já está, n a verdade,
m o rto. O te rr o r que você enfren ta, você já d eix o u c o m ­
p le ta m e n te p a ra trás. Você deve viver c o m o u m c o n v i­
d a d o p a ra esta mesa. Você deve ir n a força d esta c o m id a
q u a r e n ta dias e q u a re n ta noites. N esta força isto é p o s s í­
vel. D eixe prevalecer isto, que você c o m e u e bebeu; deixe
tu d o qu e é m o rta l que o c irc u n d a ser c o n q u istad o . N ão
acalente seu la m e n to com te rn u ra ; n ão faça u m p e q u e n o
ja rd im disso co m salgueiros chorões suspensos! “N ão t o r ­
n e m o s a cru z e a d o r m aiores do que a n o ssa m e lan co lia”.
S om os c h a m a d o s p a ra u m a situação diferente. “Se m o r r e ­
m o s c o m C risto, cremos que ta m b é m c o m ele v iv e re m o s”
(R m 6.8). O h o m e m que crê nisto já c o m e ç o u aq u i e
agora a viver a v ida plena.

A es p e ra n ç a cristã é a sem en te d a vida etern a. Em


Jesus C risto n ão estou m ais n u m p o n to n o qual po sso
m o rre r; nele n o sso co rp o já está no céu (P e rg u n ta 49, C a ­
tecismo de Heidelberg). D esd e que rece b em o s o te s t e m u ­
n h o d a C eia do Senhor, já vivem os aqui e ag ora n a a n te c i­
pação do eschaton, q u a n d o D eus será tu d o em tod os.
K arl B arth: Teólogo protestante suíço nascido em Basiléia, conhecido como o criador da teologia
dialética do século XX. Estudou nas universidades de Berna, Berlim e Tübingen, e Marburg. Foi editor-
assistente do jornal Die Christliche Welt, pároco da Igreja Reformada Alemã em Genebra e pastor em
Safenwill, ainda na Suíça. Lecionou teologia nas universidades alemãs de Gòttingen, de Munique e de
Bonn, de onde foi demitido pelo governo nazista (1935) e teve seus diplomas de teologia anulados
devido a sua posição antinazista. Voltando a Suíça, organizou a resistência dos pastores ao nacional-
socialismo, dirigiu outros movimentos de âmbito internacional, defendeu os operários de Viena e os
republicanos espanhóis. Com o fim da guerra, voltou à cátedra de Bonn, depois à de Basiléia, onde se
aposentou (1961). Morreu em Basel eseus principais livros foram Der Rõmerbrief - Carta aos Romanos
(1919) e Die Christliche Dogmati (1932-1969), obra em 26 volumes

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