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DOGMÁTICA
KARL BARTH
2006
Capa: Tradução:
Eduardo de Proença Paulo Zacarias
Revisão: Diagramação:
Alceu Lourenço Z -P M teh ®
ISBN: 85-86671-69-X
“d ire to r ”! N ós tra ta m o s co m u m a só e m e s m a o b ra do
ú n ic o e m e s m o D eus, m as esta o b ra é, ela m e sm a, u m m o
vimento. Pois o D eus em q u e m a cre d itam o s n ã o é u m
D eus m o rto , n e m u m D eus solitário, m as, se n d o in te ir a
m e n te o Único, ele não fica, co n tu d o , só em si m e sm o , r e
co lh ido e m sua m ajestad e divina: a o b ra que ele realiza,
na qual ele nos e n c o n tra e que nos p e rm ite con hecê-lo , é
u m a ação d in â m ic a e viva, p o r n a tu re z a e p a ra a e t e r n i
dade; e p a ra nós que vivem os no te m p o da su a graça, ele é
o D eus único em suas três m aneiras de ser. A Igreja antiga
afirm a: D eu s é u m só em três pessoas. Se te m -s e em co n ta
a significação que esse ú ltim o conceito re c o b ria p a r a ela,
a Igreja antiga fo rn eceu aqui u m a definição inatacável.
C o m efeito, e m latim e em grego, “pessoa” q u e r d iz er e x a
ta m e n te aquilo que tentei in d icar pela expressão “m a n e ira
de s e r”. Hoje, o te rm o p essoa evoca p a ra nós, q u ase que
irresistivelm ente, a idéia de u m a in d ividualidad e. E, nessa
acepção, ela não é m u ito co nveniente p a ra e x p rim ir o ser
de D eu s Pai, o Filho e o Espírito Santo. C alvino disse em
alg u m lugar, n ão sem ironia, que não era p e r m itid o r e
p re s e n ta r o D eu s trin itá rio à m a n e ira da m a io ria dos p i n
tores que se c o n te n ta m em m o s tr a r sobre a tela três
“figuras e s tra n h a s ”. Isso não te m n a d a a ver c o m a T r in
dade. Q u a n d o a Igreja cristã fala do D eus trin itá rio , p r e
te n d e dizer q ue ele é ao m e sm o te m p o e ta m b é m o Pai
que é o Filho e o Espírito Santo. Trata-se, p o r ta n to , p o r
três vezes do ú n ic o e m e s m o D eus, de suas três m a n e ira s
de ser, de sua T rin d a d e de Pai, de Filho e de Espírito
Santo; tal ele é n o s lugares altíssim os e tal ele é em sua r e
velação.
É im possível s e p a ra r o c o n h e c im e n to do C r ia d o r e
de sua o b ra d a ação de que o h o m e m é o objeto d a p arte
de D eus. É s o m e n te q u a n d o nos é a p re s e n ta d a a in t e r v e n
ção o p e r a d a em n osso favor p o r D eus em Jesus Cristo,
que p o d e m o s c o n h e c e r a pessoa do C r ia d o r e o s en tid o
de sua obra. A criação é a analogia te m p o ra l, d is tin ta de
D eus, do qu e se passa no p ró p rio D eus, vale dizer, do
m istério e m v irtu d e do qual ele é o Pai de seu Filho. O
m u n d o n ão é Filho de D eus, ele n ão é “e n g e n d r a d o ”, m ais
criado. C o n tu d o , a ação de D eus co m o c ria d o r s o m e n te
p o d e ser c o m p re e n d id a , do p o n to de vista da fé cristã,
co m o u m eco, u m reflexo, u m a im ag em p ro v in d a da re la
ção in te rn a e p r o fu n d a que existe entre D eus, o Pai e
D eus, o Filho. E é a razão pela qual o S ím bolo dos A p ó s
tolos atrib u i a o b ra da criação ao Pai. Isso n ão significa
que ap en a s o Pai seja o criador, m as não deixa de s u b li
n h a r essa analogia e n tre a criação e a relação viva q ue u n e
o pai e o Filho. O c o n h e c im e n to da criação é o c o n h e c i
m e n to de D eus e, p o r con seqü ên cia, conhecim ento de fé,
no s en tid o m ais rigoroso e mais exclusivo. Ela n ão é u m a
espécie de a n te c â m a ra on d e a teologia n a tu ra l p u d esse ter
livre curso. C o m o p re te n d e ría m o s re c o n h e c e r a e x istê n
cia do Pai se ele não nos tivesse sido revelado de a n te m ã o
em seu Filho? N ós não sab ería m o s ex tra ir a idéia de u m
D eus c ria d o r a p a r tir da existência do m u n d o c o m o tal,
em to d a a sua diversidade. O m u n d o tal c o m o é, c o m t o
dos os seus pesares e alegrias, jam ais p o d e r á ser p a ra nós
mais do que u m espelho obscuro, mais que u m a ocasião
de e x p rim ir n osso o tim is m o ou nosso p essim ism o ; ele
p e rm a n e c e in capaz de nos fornecer o m í n im o c o n h e c i
m e n to do D eus criador. Ao co ntrário, cada vez que o h o
m e m quis p a r tir das coisas criadas - o céu estrelado
O Deus C riador - 69
12. N. tio Ecl.: Na filosofia indiana, Véu de Maya designa a própria realidade,
co n sid era d a ilusória.
70 - Hsboço de um a D ogm ática
d a n d o esses detalhes, é u n ic am en te p a ra m o s tr a r a re p r e
sentação e m algum tipo “cosm ológico” que se e n c o n tra
p o r d etrá s do conceito bíblico de “céu”. Trata-se de u m a
realidade que se o p õ e ao h o m e m e o d o m in a a b s o lu ta
m ente, m as que, ela ta m b ém , está n a o rd e m das coisas cri
adas. Tudo o que está além do que escapa ao h o m e m e se
o p õ e a ele, assu stan d o -o e exaltando -o alte rn a d a m e n te ,
n ão deve ser c o n fu n d id o co m Deus. A p resen ça do in i n
teligível acim a de nós não é, de m a n e ira n e n h u m a , a p r e
sença do p ró p rio Deus: é a p resen ça do céu,
sim plesm ente. C h am á-lo D eus é d iv inizar a criatu ra, da
m e sm a m a n e ira que o assim ch a m a d o “h o m e m p r i m i
tivo”, que a d o ra o sol. São m u ito n u m e ro s o s os filósofos
que, nesse sentido, re n d e ra m culto à criatura. O lim ite
im p o sto à nossa inteligência não passa en tre D eu s e nós,
ele passa entre o que o Símbolo ch am a de céu e de terra.
Existe, no seio do m u n d o criado, essa realidade qu e c o n s ti
tui p a ra nós u m p u ro m istério: o céu. Se ela n ão é o p r ó
p rio D eus, ela faz parte de sua criação. O b se rv e m o s, de
passagem , que o fato m e sm o de ser u m a c ria tu ra c o m
p o r ta em si u m p ro fu n d o m istério, o m istério do ser,
fonte incessante de te rro r e de alegria. É de m a n e ir a h o
nesta que os filósofos e os poetas de to d o s os te m p o s p r o
c u ra ra m ex p rim ir esse m istério. É -n o s p e rm itid o ,
e n q u a n to cristãos, igualm ente, saber essas coisas, c o n h e
cer os altos e baixos d a existência h u m a n a ; sim, a v id a tal
c o m o é c o m p o rta já to d a sorte de m istérios e feliz o h o
m e m que sabe “que h á mais coisas entre o céu e a te rr a do
que p o d e s o n h a r nossa vã filosofia!” A criação possui,
pois, u m a e s tru tu ra celeste, m isterio sa p a ra o h o m e m ,
m as q ue n ão representa, contud o, n a d a a te m e r n e m a v e
n e ra r co m o algo de divino. N ós estam os p o sto s e m u m
m u n d o qu e c o m p o rta essa realidade; essa d im e n s ã o do
céu nos lem bra, sem cessar, sob a fo rm a de p aráb o la, u m a
84 - Esboço de um a D ogm ática
q u a n d o a b o rd a m o s o g r a n d e p ro b le m a - q u e n ã o deix a
de nos a t u r d i r e que só p o d e m o s f o r m u la r c o r r e n d o os
m ais graves riscos de e r r a r - da relação e n tre D eu s e o
h o m e m . T em os ap en a s u m a re s p o s ta p a r a esse p r o
blem a: Jesus Cristo.
D essa m a n e ira , n ão p o d e m o s c o m p r e e n d e r a r e la
ção e n tre a criação, a c ria tu ra, a ex istên cia, de u m a
p a rte , e a Igreja, a red en ç ão , D eus, de o u tr a , p a r t i n d o
de u m a v e r d a d e geral ou dos d a d o s da H is tó ria das re li
giões, m a s u n ic a m e n te a p a r ti r d a relação que e x p r im e
a p e s s o a de Jesus C risto. É nele que n o s d is c e r n i m o s o
qu e significa: D eus acim a do h o m e m ( T ° artig o ) e D eu s
com o h o m e m (3o artigo). É p o rq u e o s e g u n d o artig o , a
cristo lo g ia, é a p e d r a de to q u e de to d o c o n h e c im e n to de
D eus, n o s e n tid o cristão da palavra, o c rité rio de to d a
teologia. “D iz e -m e q ual é a tu a c ris to lo g ia q u e eu te d i
rei q u e m tu és”. E aqui que os c a m in h o s se s e p a r a m , é
aq u i qu e se p re c isa m as relações e n tre a te o lo g ia e a fi
losofia, e n tre o c o n h e c im e n to de D eu s e o c o n h e c i
m e n to do h o m e m , e n tre a revelação e a razão, e n tre o
E v an g e lh o e a Lei, e n tre a v e rd a d e d iv in a e a v e rd a d e
h u m a n a , e n tre o d o m ín io da alm a e o do c o rp o , e n tre a
fé cristã e a política.
É aq u i que tu d o se to r n a b rilh a n te o u o b sc u ro ,
claro ou confuso. N ós estam o s n o cen tro . E, p o r m ais
fora de alcance, m isterio so , difícil q ue p o s sa n o s p a r e
cer esse cen tro , p o d e m o s a firm a r sem m e d o : d o r a v a n te
tu d o se t o r n a e x tre m a m e n te sim ples, e lem en tar, i n f a n
til. Sim, n o m o m e n to m e sm o em que, c o m o p ro fe s s o r
de te o lo g ia sistem ática, m e u dever é g r ita r a vocês:
“A tenção! Isso é sério: ou b e m fazem o s c iên cia o u b e m
ca ím o s nas piores b o b a g e n s !” a c o n tece q u e m e vejo e n
tre vocês c o m o u m m o n i to r de escola d o m in ic a l d ia n te
92 - Esboço cic um a D ogm ática
de seus p e q u e n o s alu n o s, co m u m a m e n s a g e m q u e u m
g a ro to de q u a tr o a n o s p o d e r ia já c o m p re e n d e r : “E m u m
m u n d o p e r d id o , C ris to d esceu - C ris tã o s, reju b ilai-
v o s!”
O c e n tr o de qu e fala m o s é a Palavra que a tu a ou,
se p r e f e r irm o s , a ação da Palavra de D eus. D e s d e logo,
te n h o de c h a m a r a ate n ç ã o de vocês p a r a o fato d e q ue
nesse c e n tr o vivo d a fé cristã, a o p o s iç ã o tã o f re q ü e n te
e n tre p a la v ra e ação, d o u t r i n a e vida, n ã o te m n e n h u m
sen tid o . Pois a Palavra, logos, aq u i se id e n tific a c o m a
o b ra, ergon, Verbum c o in c id e c o m opus. P o r tr a t a r - s e de
D eu s e d o p r ó p r io c o ra ç ã o da n o s sa fé, essas d ife re n ç a s
q u e nos p a r e c e m tã o in te re s sa n te s e essen ciais são, n ão
a p e n a s s u p é rflu a s , m a s a in d a p e r f e ita m e n te a b s u rd a s .
D eu s fala, D e u s age, D eu s o c u p a o c e n tro de tu d o : a
v e r d a d e se t r a d u z em ato, o ato se m a n if e s ta c o m a força
da v e rd a d e . A P alavra é ação, u m a ação tal q u e é, ela
m e s m a P alavra, revelação.
Q u a n d o p r o n u n c ia m o s o n o m e C ris to n ã o é o
sim p les s u p o r te v e rb a l de u m a r e a lid a d e s u p e r io r (o
p la to n is m o n ão in te r v é m aqui!). T rata-se, sob esse
n o m e e sob esse título, da sua pessoa m e sm o . N ão de
u m a p e s s o a fo r tu ita , de u m “fato h is tó r ic o a c i d e n ta l”
c o m o e n t e n d e Lessing, p o r exem plo. As v e rd a d e s e t e r
nas d a razão, eis o tip o de fato h is tó r ic o “a c i d e n ta l” ! A s
sim , o n o m e de Jesus C ris to n ão serve p a r a d e s ig n a r u m
p r o d u to da história h u m a n a . Os h o m e n s s e m p r e a c r e d i
ta ra m te r feito u m a g r a n d e d e s c o b e r ta q u a n d o c o n s e
g u ir a m d e m o n s t r a r q u e Jesus C ris to n ã o p o d ia d e ix a r
de ser o p o n to c u l m in a n t e de to d a h is tó ria . A c h a d o m e
d ío c re , n a v erd ad e ! M e s m o a h is tó r ia do p o v o de Israel
n ã o s a b e ria se p r e s ta r a u m a tal d e m o n s tr a ç ã o . C e r t a
m e n te , a posteriori, é lícito e m e s m o n e c e s s á rio a firm a r:
nesse h o m e m , nesse povo, a h is tó r ia se realizou...; m as
Jesus C risto - 93
m e s m o t e m p o id ê n tic o e d istin to . Ao p a s s o q u e o p r i
m e iro a rtig o d o S ím b o lo descrev e o C r ia d o r c o m o o a b
s o lu ta m e n te d is tin to de tu d o o qu e existe, e a c r ia tu r a
c o m o s o m a de to d o s os seres d is tin to s d o ser d e D eu s, o
s e g u n d o significa: o C r ia d o r se t o r n o u ele m e s m o c r i a
tu ra . Ele, o D e u s e te rn o , to r n o u - s e n ã o a s o m a de to d a s
as c r ia tu r a s , m a s sim u m a c ria tu ra.
Ele que, p o r to d a a e te rn id a d e , d e c id iu p a r a n o s so
b e m t o r n a r - s e h o m e m e m Jesus C risto , t o r n o u - s e h o
m e m e fe tiv a m e n te n o te m p o e p e r m a n e c e r á s e n d o p e
los sécu lo s d o s séculos. Eis Jesus C risto . Já m e o c o r r e u
de c ita r o n o m e d a r o m a n c is ta in g lesa D o r o t h y L.
Sayers que, c o m o se diz, v o lto u -se p a r a a te o lo g ia c o m
u m in te re s se notável. E m u m p e q u e n o escrito , ela m o s
tr a o c a r á te r in sólito, “in te re s s a n te ”, in a u d ito d e ssa n o
v idade: D e u s se fez h o m e m . I m a g in e -s e , u m b e lo dia,
n a p r im e ir a p á g in a de u m jo rn al! Sim, tr a t a - s e d e u m a
n o v id a d e v e r d a d e ir a m e n te s e n s a c io n a l q u e relega to d a s
as o u tr a s à ú ltim a página! É esse fato, a b s o lu t a m e n t e
p e r tu r b a d o r , in c o m p a r á v e l e ú n ic o em seu g ê n e ro , q u e
c o n s titu i o c e n tr o d o cris tia n is m o .
O c o m p le x o D e u s - h o m e m c e d e u lu g a r a to d a
s o rte de c o m b in a ç õ e s , e m to d a s as é p o c a s d a h is tó ria .
P o r ex em p lo , a m ito lo g ia c o n h e c e a id é ia d a e n c a r n a
ção. O q u e d is tin g u e a m e n s a g e m cristã d a m ito lo g ia ,
q u a l q u e r q u e seja é que, p a ra esta ú ltim a , a e n c a r n a ç ã o
é, n o fu n d o , a ex p re s s ã o de u m a id éia geral, de u m a v e r
d a d e u n iv e rsa l. O m ito c o n tin u a d o m i n a d o p elo r it m o
dos f e n ô m e n o s , a su cessão d o dia e d a n oite, d a p r i m a
v era e d o in v e rn o , da v id a e d a m o r te ; p a ra o m ito , a r e
a lid a d e te m u m c a rá te r in te m p o r a l, in fin ito . O
E v a n g e lh o de Jesus C ris to n ã o te m n a d a e m c o m u m
c o m o m ito . Ele se d is tin g u e , já de u m p o n t o de vista
fo rm al, p elo fato de que se in s c re v e u p le n a m e n t e d e n -
Jesus C risto - 95
“Ó h o m e m , é p a ra te u b e m q ue D eu s se e n c a r n o u
e é te u sa n g u e que co rre nas veias do Filho de D e u s ”. Tal
é a m e n s a g e m do Natal. N ós te n ta m o s m a r c a r os três
aspectos. P r im e ir a m e n te o a c o n te c im e n to h is tó ric o : o
te m p o qu e é o nosso, p o ssu i u m c e n tro q u e se c o n s titu i
n a chave; c o m to d a s as suas c o n tra d iç õ e s , seus c u m e s e
seus abism os, n ossa h is tó ria se vê c o lo c a d a d e n t r o de
u m a d e t e r m in a d a relação co m D eus. N o c e n tr o de
96 - Esboço de um a D ogm ática
dos ao n o s so p ap el de a cu sad o s ou de a c u s a d o re s , n o s sa
força p a ra p r o te s ta r reside no fato de q u e n o s r e c o n h e
cem o s c o m o objetos da misericórdia divina. É u n i c a
m e n te q u a n d o n o s é d a d o m e d ir a p r o f u n d id a d e d o q ue
D eu s fez p o r n ó s que p o d e m o s to m a r c o n s c iê n c ia da
n o s sa m isé ria. Pois q u e m c o n h ec e a real m is é r ia d o h o
m e m s en ão aquele que co n h e c e a a u tê n tic a m i s e r i c ó r
dia de D eus?
A o b ra do Filho p re s s u p õ e a d o Pai e im p lic a a do
E sp írito S anto co m o co n s e q ü ê n c ia . O p r im e ir o artig o
in d ic a a o rigem , o te rc eiro a fin a lid a d e de n o s sa m a rc h a .
O s e g u n d o é o cam inho o n d e nos é d a d o a n d a r pela fé e
que e s te n d e d ia n te de nós a o b ra de D eu s e m to d a a sua
p le n itu d e .
O Salvador e o Servo
de Deus
sólita e que nos parece terrivelm ente arb itrária pela qual
ele se to rn a o D eus de Abraão, de Isaac e de Jacó. D e sorte
que a p e d r a de to q u e de to d a ação de D eus en tre os h o
m e n s deve ser sem pre de novo esta ação p a rtic u la r do
D eus de A braão, de Isaac e de Jacó. O povo de Israel, tal
co m o aparece no A ntigo Testam ento, o c h a m a d o povo
eleito, p o sto à parte, co m todos os seus en g an o s e to d a s as
suas fraquezas, objeto incessante do a m o r e da m is e r ic ó r
dia de D eus, m as ta m b é m dos seus ju lg am en to s m ais r a
dicais, é a figura histórica da livre graça de D eu s p a ra
to d o s nós. Mas n ão se trata som ente de u m fato histórico:
a livre graça de D eus b rilh a n d o sobre Israel, sobre os j u
deus, não é u m a coisa q ue os cristãos de hoje, o riu n d o s
do pag an ism o , p o ssa m co nsiderar com u m certo desliga
m e n to sob o pretexto de que ela não lhes diz respeito. De
fato, nós não estam os “livres” da h istó ria de Israel! U m
cristão que dissociasse co m p leta m en te a Igreja d a S in a
goga m o s tra ria com isso que ele não c o m p re e n d e u n e m
u m a , n e m outra. Por to d a parte o n d e se p r e te n d e u ergu er
u m m u ro en tre a Igreja e o povo jud eu, a c o m u n id a d e
cristã se viu d ire ta m e n te am eaçada. Pois essa é to d a a r e a
lidade da revelação divina que assim se renega im p lic ita
m ente; desde então, p o r p o u co que tal filosofia ou tal
ideologia v e n h a a se im por, assiste-se ao ad v en to de u m
cristian ism o do tipo helénico, g erm â n ico o u outro. (R e
co n h ec em o s, a esse respeito, que existe desde h á m u ito
te m p o u m “cristian ism o helvético” que não vale n a d a
mais que seu equivalente germânico!).
e a v e rd a d e ira h u m a n id a d e se to r n a m o p re d ic a d o deste
sujeito. A o b ra c o m p leta de C risto é a o b ra c o m p le ta do
Senhor. A d eclaração integral que este S e n h o r n o s p r o p õ e
é de q ue sejam os sua possessão; “p a ra que eu viva sob ele
no seu rein o e o sirva”, p o rq u e ele é m e u Senhor, qu e “m e
re d im iu q u a n d o estava p e rd id o e co n d e n a d o , a d q u iriu -
me, liv ro u -m e de to d o s os pecados, da m o r te e do p o d e r
do m a l”. E a p ro m e s s a cristã, n a sua in teg ralid ad e, está d i
re c io n a d a p a r a “que eu o sirva em retid ão etern a, in o c ê n
cia e glória”, de aco rd o co m sua glória. A in teg ra lid a d e se
to r n a u m a analogia d a exaltação de Cristo.
O qu e isto significa? N ão é o o p o s to d o q u e p o d e
m o s e s p e ra r das novas de q u e D eus se fez H o m e m ? A qui
há s o frim en to . O b se rv e que é aqui pela p r im e ir a vez n a
C on fissão qu e o g ra n d e p ro b le m a d o m al e s o frim e n to
e n c o n tr a - n o s d iretam e n te. Já nos referim o s cla ra m e n te
co m fre q ü ê n c ia a isso. M as s e g u n d o a carta esta é a p r i
m e ira vez qu e te m o s u m a indicação d o fato de q u e n a re
lação C ria d o r e c ria tu ra tu d o n ão é o m elh or, que a
ilegalidade e a d e s tru iç ã o d o m in a m , q ue d o r é a c re s c e n
ta d a ao so frim en to . Aqui, pela p rim e ira vez, o lado s o m
b rio d a existência p e n e tr a e m no sso c a m p o de visão, e
n ão n o p r im e iro artigo, que fala de D eu s o C riador. N ão
na d escrição d a criação co m o céu e terra, m a s aq u i na
descrição d a existência do C ria d o r qu e se t o r n o u criatura,
o m a l aparece; aqu i a d istante m o r te se to r n a visível. O
Sofreu... - 147
Se o lh a rm o s p a ra este “ele p a d e c e u ”, p o d e m o s c o
m e ç a r do fato de q ue ele era D eus que se fez h o m e m em
Jesus Cristo, q ue agora tem de sofrer, não d a im perfeição
do m u n d o criado, n e m p o r q u a lq u e r p a d rã o d a n atu re za,
m as de h o m e n s e de sua atitud e p a ra co m ele. D e Belém à
cruz ele foi a b a n d o n a d o pelo m u n d o que o cercava, r e p u
diado, perseg u id o , fin alm en te acusado, c o n d e n a d o e c r u
cificado. Estes são os ataques dos h o m e n s sob re ele, sobre
o p ró p rio D eus. A qui h á u m a revelação d a rebelião do
h o m e m c o n tra D eus. O Filho de D eus é n e g a d o e rejei
tado. C o m o Filho de D eus os h o m e n s p o d e m a p en a s fa
zer o que eles fize ram seg u n d o a p ará b o la do viticultor:
“Este é o herdeiro. V enham , v am o s m atá-lo, e a h e r a n ç a
será n ossa”. Esta é a resp o sta do h o m e m à graciosa p r e
sença de D eus. P ara sua graça, ele n ão expressa n a d a além
de u m “N ão ” cheio de ódio. É a nação de Israel q ue rejeita
e m Jesus seu M essias e Rei. É a nação de Israel q u e não
co n h ec e n a d a m e lh o r a fazer co m o Líder p r o m e tid o de
to d a a sua história, à qual ele d á significado, co nclui e
cu m p re , do q ue entregá-lo, finalm ente, aos gentios. A s
sim Israel lid o u co m seu Salvador. E o m u n d o gentílico na
fo rm a de Pilatos p ô de, p o r sua parte, ap en a s aceitar esta
entrega. Ele executa o ju lg a m e n to que os ju d e u s p r o n u n
ciaram , e desta fo rm a p a rtic ip a m s e m e lh a n te m e n te nesta
rebelião c o n tra D eus. O que Israel faz aq u i é a revelação
de u m c o n te ú d o q ue está presen te n a h istó ria c o m p le ta de
Israel: os h o m e n s enviados p o r D eu s n ão são recebidos
co m júb ilo co m o auxiliadores, co n fo rta d o re s e cu rad o res;
m as, de M oisés em diante, e aqui m ais u m a vez, conclusi-
Sofreu... - 149
zida u m a sen ten ç a de m o rte, que agora dev eria ser legali
zada pelo p o d e r executivo de Pilatos. D epo is de alg u m a
hesitação, ele faz o que exigiam dele. U m h o m e m in s ig n i
ficante n u m papel c o m p le ta m e n te externo; pois tu d o que
havia de im p o r ta n te e espiritual foi e x au rid o e n tre Israel e
C risto n o S inédrio que o acusa e o rejeita. Pilatos se p o sta
em seu u n if o r m e e é usado, e seu papel n ão é n a d a h o n
roso; ele reco n h e ce que o h o m e m é in o c e n te e m e s m o a s
sim o e n c a m in h a p a ra a m orte. Ele era forçado a agir
e s trita m e n te s e g u n d o a lei, m as não age assim e se deixa
d e te r m in a r pelas “considerações políticas”. Ele n ão se
av e n tu ra a m a n te r a decisão judicial, m as se r e n d e ao cla
m o r p o p u la r e en tre g a Jesus. Ele c u m p riu a crucificação
pelas suas coortes. Q u a n d o no m eio da C o nfissão da
Igreja C ristã, n o m o m e n to em que estam os n o p o n to de
e n tra r m o s n a área do mais p ro f u n d o m istério, tais coisas
vêm à m ente, e alguém p o d e até exclam ar c o m o G o eth e,
“u m neg ócio sujo! Q u e vergonha! U m a frau d e po lítica!”
Mas lá está “sob P ôncio Pilatos...”; p o rta n to , d e v e m o s p e r
g u n ta r a nós m e sm o s o que isto significa. A ro m a n c is ta
D o r o th y L. Sayers, escreveu vima peça p a ra a rád io inglesa
in titu la d a The m a n born to be King [O h o m e m n ascid o
p a ra ser rei], e nela in te rp re ta o s o n h o de Procla, a espo sa
de Pilatos, o n d e esta m u lh e r ouviu n u m so n h o , atra v es
san d o os séculos em cada língua, este m e s m o brad o: “So
freu sob o p o d e r de P ôncio Pilatos”. C o m o p ô d e P ô ncio
Pilatos e n tra r p a ra o Credo?
Me resgataria.”
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