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PENSAR O PODER, O ESPAÇO E O CORPO: HETEROTOPIAS E

FRONTEIRAS

Clarissa Naback1

RESUMO

Esse texto pretende analisar as relações entre a produção do “outro” e os processos de


subjetivação a partir de figuras heterotópicas. Inicialmente, traça-se um percurso sobre o
pensamento do filósofo Michel Foucault que examinou as relações de poder sobre os
corpos e espaços, mas que em um texto, aparentemente solto, discorreu especificamente
sobre o espaço, em especial os “espaços outros”. A heterotopia surgiria então no limiar
das relações de poder, mas de que maneira ela pode contribuir para pensar a “produção
de si”? Para tanto, percorre-se a obra de Gloria Anzaldúa, Borderlands/La Frontera:
The New Mestiza, que numa escrita mestiça (inglês e espanhol) cartografa os diferentes
percursos que constituem as fronteiras e os sujeitos das fronteiras (no caso os
“chicanos” – mexicanos ou filhos de mexicanos que habitam nas margens entre Estados
Unidos e México) e as possibilidades de produzir uma nova consciência nessas
encruzilhadas.
Palavras-chaves: espaço, corpo, heterotopia, fronteira, subjetivação.

ABSTRACT

This text intends to analyze the relations between the production of the "other" and the
processes of subjectivation through heterotopic figures. Initially, it will be analysed the
course Michel Foucault´s thought, who examined the relations of power over bodies and
spaces, but which in a text, seemingly loose, he spokes specifically about space,
especially "other spaces." The heterotopia arise on the threshold of power relations, but
in what way can it contribute to think of the "production of self"? The work of Gloria
Anzaldúa, Borderlands / La Frontera: The New Mestiza can contribute to the proposed
reflection because, in a cross-cultural script (English and Spanish), it maps the different
routes that constitute the frontiers and the subjects of the frontiers (in this case the
"Chicanos" - Mexicans or children of Mexicans living on the shores between the United
States and Mexico) and the possibilities of producing a new consciousness at these
crossroads.
Key words: Space, body, heterotopia, bordlands, subjectivation.

1
Doutoranda em Direito pela PUC-Rio, mestre pela mesma instituição (2015). Integra também o grupo
de extensão “Direitos em Movimento: territórios e comunidades”.
INTRODUÇÃO

A heterotopia é um conceito que vem sendo amplamente utilizado nas análises


urbanas e geográficas. Em Lefebvre ela é associada a um espaço de produção de
diferenças em contraste com o urbanismo homogeneizador do Estado e do mercado 2 .
Pensar uma cidade produzida pelos citadinos, em espaços urbanos tecidos através da
vivência na cidade compõe um aspecto de resistência ao controle burocrático e
financeiro.

No entanto, ao estudar a cidade não se pode deixar de pensar as relações de


poder que, por diferentes intensidades, circulam e percorrem todos os espaços e tornam
possível estabelecer determinados mecanismos de controle e disciplina. As análises
foucaultianas sobre biopoder e disciplina ajudam a entender como podemos pensar as
relações de poder erigidas a partir da modernidade. No entanto, fica a questão de como
é possível pensar uma resistência que produza uma outra cidade, ou outras relações
urbano-espaciais mais justas e democráticas.

Essa questão percorreu a minha análise sobre processos de remoções de favelas


na cidade do Rio de Janeiro3 . Embora na favela se produza um espaço nas vivências dos
moradores, entre necessidades e desejos, não podemos analisa-la à parte da cidade, nem
das relações de poder ali colocadas. Os termos urbanísticos, os direitos e imaginários
sociais circulam também ali. Além disso, muitas vezes a diferença é construída de modo
a designar a favela como um espaço anormal, ruim para os moradores, que precisa ser
removida ou ser corrigida nos moldes do que se concebe como urbanismo.

Por isso, optei por não utilizar o conceito de heterotopia para entender a
produção de espaços urbanos, em especial as favelas. No entanto, o texto de Glória
Anzaldúa Borderlands / La Frontera: The New Mestiza 4 me direcionou de novo a
pensar a resistência relacionando espaço, corpo e poder. Numa análise de sua própria

2
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução de Sergio Martins. Belo Horizonte: Ed. UGMG,
1999.
3
Essa análise encontra-se na dissertação Remoções biopolíticas: o habitar e a resistência da Vila
Autódromo. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2015.
4
ANZALDÚA, G. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. São Francisco: Aunt Lute Books, 1999
trajetória, ela reflete sua condição de mestiza5 , chicana e queer, sua condição de
fronteira, entre Estados Unidos e México, entre colonização suas origens indígenas.

Esse percurso reflexivo de Anzaldúa não conduz a um sujeito estático, mas ao


próprio processo de reconhecimento das violências e resistências que ela vivenciou por
diferentes trajetórias. Essa subjetivação em curso se coloca como uma condição de
fronteira e ela só pode estar relacionada com a heterotopia se pensarmos nesse conceito
não como um espaço de diferença, mas como um espaço que coloca em relevo a própria
ordem social, os próprios processos de “separação” ou “exclusão” que constitui essa
ordem. Trata-se, portanto, de processos de subjetivação.

Portanto, tomo como a análise o pequeno texto Os Espaços outros, de Michel


Foucault produzido para uma conferência de arquitetura6 , em 19677 . Nele, o filósofo se
debruça sobre a figura da heterotopia que antes havia traçado brevemente em outra obra
sua As palavras e as Coisas8 , mas que não retoma mais em suas outras obras. São
reflexões ainda de um período de estudos arqueológicos, mas que vamos tentar
entrelaçar aqui com suas reflexões sobre poder, mesmo que produzidas posteriormente a
partir de investigações geneológicas.

Por isso, traça-se, primeiramente, as reflexões sobre o poder em Foucault, como


foram construídas de formas espacializadas para depreender processos de normalização.
Em seguida, busca-se compreender o conceito de heterotopia em Foucault e as
possibilidades que ele pode nos conferir para pensar as relações de poder e o que de
certam maneira desestabiliza tais relações. Por fim, pretende-se compreender a fronteira
como uma heterotopia da atualidade a partir da obra de Anzaldúa.

5
É importante ressaltar que a palavra mestiza empregada por Anzadúa se difere da construção da ideia de
mestiçagem no Brasil que guarda relação com o processo de eugenização, que consistiu na tentativa de
embranquecimento da população brasileira – Ver Kabenguele Munanga, Discutindo a mestiçagem no
Brasil: identidade nacional versus identidade negra, Petrópolis, Vozes, 1999. A relação entre México e
EUA, coloca a mestiza em um lugar de discriminação, como chicana, isto é, descendentes mexicanos
pobres e não brancos. Anzaldúa aponta que a mestiza é um lugar da violência – primeiro com os índios e
depois como os mexicanos – mas aponta também a possibilidade de uma prática de si, como será
explicado melhor no texto.
6
Foucault foi convidado para participar em 1967, do Círculo de estudos arquiteturais que ele propôs uma
analítica nova chamada de “heterotopologia”. O texto só foi liberado para publicação e m 1984, um pouco
antes da morte de Foucault. Para maiores digressões acerca desse texto ver Heterotopia: tribulações de
um conceito entre Veneza, Berlim e Los Angeles.
7
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987
8
Id. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Selma Tannus
Muchail. 8ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
1. ESPACIALIZAÇÃO DO PODER

Quando pensamos o que seria a reflexão sobre espaço na teoria de Foucault,


logo nos atemos à figura do Panóptico, que consiste num um plano espacial que
possibilitaria uma vigilância constante e um esquadrinhamento do indivíduo. Ao
analisar esse espaço, Foucault aponta a genealogia de uma nova tecnologia de poder, ou
governo.

No século XVIII, o suplício deu lugar a uma “economia política” do poder de


punir, pensada numa sociedade cada vez mais numerosa, com novas formas de
produção e acumulação capitalista sob o estatuto da propriedade, e lutas contra tais
formas de exploração e expropriação. Tratava-se de deslocar da figura do rei o poder de
punir, para criar um sistema distribuído no interior da sociedade e do Estado, com
mecanismos eficientes e pouco dispendiosos, distribuídos em uma arquitetura fechada,
complexa e hierarquizada da carceragem9 .

O Panóptico se torna objeto e imagem principal dessa economia política– a


masmorra daria lugar a uma geometria espacial, em que uma torre central de vigilância
seria localizada de modo a ser vista por cada cela. Mais do que uma arquitetura, o
panoptismo consiste em uma máquina de vigilância capaz de observar e inspecionar os
comportamentos humanos. Tal dispositivo é observado em outros espaços sociais, como
escolas, hospitais, oficinas, quarteis etc. A partir desses “universos fechados”, o
“cartógrafo” é capaz de traçar o diagrama de uma figura política que se destaca de
qualquer uso específico: o poder disciplinar10 .

Em Vigiar e Punir, Gilles Deleuze designa Michel Foucault como um


cartógrafo. Ao estudar a prisão, Foucault se distancia de uma leitura vertical a partir dos
aparelhos do Estado, de uma pretensa evolução do direito penal, para se aproximar de
uma perspectiva genealógica, apontando os fatores históricos, as rupturas e a produção
de mecanismos e tecnologias no interior de um campo social. A cartografia, aqui, é um

9
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987
10
Deleuze aponta que Foucault foi considerado um pensador do internamento, ao analisar o ao analisar o
funcionamento interior de certas figuras, como prisão e hospital e traçar sua genealogia (DELEUZE,
2013). Em entrevista ao jornal O Globo, em 1975, Foucault também foi indagado por trabalhar com
universos fechados, circulares e concetracionários. Cf. <http://goo.gl/YvSy2z>.
mapeamento das relações de força, das intensidades dos deslocamentos, técnicas e
táticas de poder11 .

Na obra de Foucault, observamos assim uma análise das relações de poder que
perpassam um plano espacial, para apreender a produção de dispositivos e tecnologias
predominantes. O estudo da disciplina atravessa diferentes figuras que de um modo ou
de outro produzem um esquadrinhamento do espaço e do indivíduo, que de uma forma
ou de outra tentam disciplinar uma determinada multiplicidade. A cidade pestilenta, a
escola, a fábrica ou mesmo as vilas operárias são exemplos da produção de um
mecanismo, uma arquitetura de um poder capaz de disciplinar e distribuir os corpos.

Mais tarde Foucault vai pesquisar outra tecnologia de poder, o biopoder, que
também opera sobre o espaço e o corpo, não mais no registro disciplinar, sob espaços
cerrados e esquadrinhado, mas sobre elementos dados e processos naturais, como a
demografia ou a reprodução da população. Não se tratava mais de disciplinar os corpos,
mas de regular a vida, os “espaços de existência” do homem tratado cada vez mais
como espécie.

Pensar o espaço trata também de pensar o corpo, ou as subjetividades. O


delinquente, o louco, o mastubardor: o diagrama do poder também é o mapeamento dos
processos de separação, distribuição e normalização. As práticas difusas entre saber e
poder circulam e produzem assimetrias no interior desses espaços sociais, a fim de
“corrigir”, “regular” ou “compensar” aquilo que se designa como diferente. Normalizar
aqui se refere a diversos mecanismos e enunciados que a partir de certas fronteiras ou
binômios (normal/anormal) produzem processos de subjetivação – “individualizar os
excluídos, mas utilizar processos de individualização para marcar as exclusões (asilo
psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada,
os hospitais e etc.)”12 .

O que é interessante destacar aqui é o próprio pensamento do autor, que circula


de uma forma “espacializada”, apreendendo a coexistências de formas, de interstícios
entre as técnicas, saberes e estratégias. Nesse diagrama, o próprio saber ocupa um

11
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013
12
FOUCAULT, M. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 165.
espaço, “o espaço que o sujeito pode tomar para falar dos objetos de que se ocupa em
seu discurso” (por exemplo, o sujeito do discurso da medicina é o médico)13 .

A imagem piramidal sobre o poder-saber, ou mesmo sobre o direito (aqui o


entendendo a partir da figura do Estado), daria lugar há um diagrama ou mapa com
relevos, sombreamentos e densidades. A lei ou o judiciário não se apagam, mas são
inseridos na trama de uma rede de instituições, saberes e técnicas (médicos,
psiquiátricos, administrativos, urbanísticos etc.)14 . Por isso, Deleuze aponta que em
Foucault a lei aparece mais como uma imagem de uma “guerra”, como um campo de
estratégias entre legalidades/ilegalidade, do que como um bem ou um princípio de
inteligibilidade.

Embora Foucault não tenha se debruçado sobre o espaço como objeto primeiro
de sua análise – ele o tratou de forma complementar em sua produção teórica sobre as
relações de poder – observamos a utilização de metáforas espaciais como território,
deslocamento, campo, estratégias. Indagado em uma entrevista sobre essas metáforas 15 ,
Foucault menciona que pensar a formação dos discursos em termos espaciais possibilita
“perceber exatamente os pontos pelos quais os discursos se transformam em, através de
e a partir das relações de poder” 16 .

Cada vez mais me parece que a formação dos discursos e a genealogia do saber devem ser
analisadas a partir não dos tipos de consciência, das modalidades de percepção ou das
formas de ideologia, mas das táticas e estratégias do poder. Táticas e estratégias que se
desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles de
territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir uma espécie de
geopolítica [...]17 .

Apesar de destacar aqui os estudos genealógicos de Foucault, a tentativa de


compreender os discursos ou o saber a partir de recursos espaciais já pode ser
encontrado nos estudos arqueológicos do filósofo. O isomorfismo de diferentes
modalidades de práticas discursivas que compõe a episteme em um determinado tempo,
ou como diz Gilles Deleuze o arquivo audiovisual que torna possível certos saberes, é
delineado a partir de uma paisagem concreta de instituições, disciplinas, hábitos e
técnicas, num processo de justaposições, aproximações e distanciamentos.

13
Idem. A Arqueologia do Saber. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 219;
14
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon de Albuquerque. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2013, p. 157.
15
Cf. Sobre Geografia. Entrevista prevista na coletânea de textos do livro Microfísicas do Poder.
16
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 158.
17
Idem.
Cabe lembrar que a heterotopia é uma figura que aparece pela primeira vez na
obra de Foucault no prefácio do livro As palavas e as Coisas (1966). Foucault, ao ler a
taxinomia animal da “enciclopédia chinesa”, inventada por Borges, se espanta nos
agrupamentos formados entre animais reais que se misturam aos imaginários, como as
sereias18 . O que o espanta, não é o agrupamento em si, muito menos a citação de seres
fabulosos, mas as condições de possibilidade de agrupamentos que só podem ocorrer no
não-lugar da linguagem. A heterotopia aqui surge ainda como um espaço de
representação, isto é, como a representação daquilo que é difícil de qualificar ou
nomear, segundo os termos existentes – “as heterotopias (encontradas tão
frequentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias,
contestam, desde a raiz, toda a possibilidade de gramática”19 .

Foucault retoma a análise dessa figura apenas uma vez mais, em 1967, antes de
desenvolver mais afundo seus estudos genealógicos. No ponto a seguir, vamos tratar
melhor sobre essa figura, mas, o que é importante destacar desde já, não vamos analisa-
la à parte da própria reflexão foucaultiana sobre poder. Não parece que a arqueologia
nem a genealogia são incongruentes: embora o enfoque seja diverso, ambas estão
relacionados a um percurso de análise direcionado às arestas, às margens, não se atendo
aos grandes discursos ou temas, mas nos elementos secundário, ou nos interstícios dos
“grandes monumentos discursivos”20 .

Trata-se de tentar construir uma reflexão sobre a figura da heterotopia que nos
indique nas relações de saber-poder o que está em crise, ou o que pode, relativamente,
transbordar de seus termos. Esse caminho vamos tentar percorrer com referência no
pensamento especializado do filósofo.

18
Para uma melhor compreensão, vale transcrever um trecho do livro: “Esse livro nasceu de um texto de
Borges. Do riso que, com sua leitura perturba todas as familiaridades do pensamento – do nosso: daquele
que tem nossa idade e nossa geografia -, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
tornam sensata para nós a profusão dos setes, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa
prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita „uma certa enciclopédia chinesa‟ onde será escrito
que os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se
agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados co m um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et
cetera, m) que acabam que quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas‟. No deslumbramento dessa
taxinomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de
um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso” (FOUCAULT, M.
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999,
IX).
19
FOUCAULT, op. cit., XIII.
20
Idem, A Arqueologia do Saber. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013, p. 167.
2. HETEROTOPIA E OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA

Como dito anteriormente, Foucault retoma a figura da heterotopia em um


pequeno texto produzido para uma conferência de arquitetura, em 1967, antes de Vigiar
e Punir (1975)21 . A heterotopia foi o desdobramento da sua própria análise sobre o
espaço e, em especial, como a Modernidade produziu o seu “espaço”.

Marcado pelo próprio tempo, o espaço vai ser produzido conforme uma grade ou
um diagrama. Na Idade Média, por exemplo, a questão primordial era a localização, isto
é, a relação hierárquica entre certos elementos: o profano e o sagrado, o rural e o
urbano. No século XX, Foucault ressalta o problema do espaço a partir da ideia de
“posicionamento”: entre justaposição e distribuição, dispersão ou concentração, trata-se
de como pensar o armazenamento de informações, a estocagem, a circulação, a
22
classificação das espécies, o posicionamento dos homens no mundo etc. .

“Posicionamento” é uma imagem que mais uma vez se afasta de uma dimensão
individual para apontar um conjunto de relações externas que situam certos elementos
em um diagrama dessas próprias relações. Segundo Foucault, “vivemos em um conjunto
de relações que definem posicionamentos irredutíveis uns aos outros e absolutamente
23
impossíveis de serem sobrepostos” .

A questão não perpassa mais o posicionamento de certo elemento sobre o


espaço, mas a posição de um espaço em relação a outros. Há para ele dois
posicionamentos que se relacionam com os demais, “mas de um tal modo que eles
suspendam, neutralizam ou invertem um conjunto de relações por eles designadas,
refletidas ou pensadas (....) espaços que estão ligados a todos os outros, contradizendo,
no entanto, a todos os outros posicionamentos”24 . Tais espaços consistem na utopia e
heterotopia. O primeiro trataria de um espaço não localizável, sem lugar real, sobre o
qual Foucault não tece grandes análises no texto.

Contudo, sobre as heterotopias, ele vai apresentar uma série de exemplos e traçar
princípios e relações desses “espaços outros”. As heterotopias seriam utopias

21
FOUCAULT, M. De espaços outros. Revista Estudos Avançados. 2013. USP. Disponível em:
<http://goo.gl/iuu7LL>. Acesso em 20 de julho de 2016.
22
Idem.
23
Ibdem, p. 414.
24
Ibdem, p. 115.
localizadas, um contraposicionamento, “espécies de lugares que estão fora de todos os
outros lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis”25 . Um bom exemplo de
heterotopia são os espaços produzidos pelas crianças, em que uma tenda produzida por
lençóis vira uma cabana ou uma casinha.

Nessa perspectiva, Foucault traça seis princípios das heterotopias: (1) elas estão
presentes em todas as sociedades, como os lugares de transição nas sociedades
primitivas (espaços reservados às mulheres durante a menstruação), ou os lugares de
desvios nas sociedades modernas (as clínicas psiquiátricas ou as prisões); (2) uma
heterotopia pode sofrer alterações ou apresentar diferenças no interior da sociedade,
como os cemitérios, que na Idade Média se localizavam ao lado da igreja, com sua
hierarquia de túmulos e sua sacralização, para depois serem afastado da cidade,
associados a corpos em decomposição e a doenças; (3) nas heterotopias há uma
justaposição de diversos espaços como o cinema; (4) nelas estão presentes uma relação
de tempos, uma simetria, como ocorre na biblioteca; (5) elas guardam um sistema de
abertura e fechamento, certos procedimentos ou ritos, de inserção ou separação, como
os motéis americanos, que guardam descrição na entrada, para abrigar e afastar certa
sexualidade proibida; (6) as heterotopias exercem também uma função “o papel de criar
um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos
os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada”26 .

É interessante traçar aqui, brevemente, uma diferença entre o que Foucault


expressa como uma heterotopia e o que outro autor, Henri Lefebvre, a entende. Este se
tornou uma importante referência nos estudos sobre urbanização, espaço e cidade. Para
ele, a vida urbana se caracterizava pela (poli)centralidade e a coexistência de diferenças.
As heterotopias são espaços marcados pelas heterogeneidades, em contraposição ao
Urbanismo produzido pelo Estado, mercado e urbanistas que fabricavam isotopias, isto
é, homogeneizações e disciplinas espaciais. Para Foucault, as “diferenças” não estão em
oposição ao poder, ou a alguma norma, mas ao contrário, elas são produzidas no interior
das relações de poder.

A heterotopia em Foucault expressaria mais um espaço outro do que um espaço


marcado pela heterogeneidade. No entanto, o conceito é utilizado de forma recorrente

25
Ibidem, p. 415.
26
Ibidem, p. 420.
com diferentes sentidos por uma gama de autores, em especial da geografia cultural
como Edward Soja, para marcar um espaço de diferença27 . Talvez, a própria
enumeração desses princípios elencados por Foucault seja um dos motivos que
contribua para as inúmeras compreensões do termo.

No entanto, parece mais assertivo pensarmos as relações que Foucault quer


estabelecer com a heterotopia, relacionando-a com a ideia de espaços outros.
Retornando a As Palavras e as Coisas, o autor vai apontar nas heterotopias como aquilo
que “inquietam”, que solapam a linguagem, a “desordem que faz cintilar os fragmentos
de um grande número de ordens possíveis”28 .

Assim é que a enciclopédia chinesa citada por Borges e a taxinomia que ela propõe
conduzem a um pensamento sem espaço, a palavras e categorias sem tempo nem lugar mas
que, em essência, repousam sobre um espaço solene, todo sobrecarregado de figuras
complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos, de secretas passagens e
imprevistas comunicações; haveria assim na outra extremidade da terra que habitamos, uma
cultura voltada inteiramente à ordenação da extensão, mas que não distribuiria a
proliferação dos seres em nenhum dos espaços onde nos é possível nomear, falar, pensar 29 .

A enciclopédia chinesa de Borges é uma ilustração de como funciona o


diagrama da linguagem ou da cultura: trata-se de uma determinada ordem que compõe
nossa episteme (saber) e nos faz estranhar – ou denunciar – a possibilidade de outra
base ou reorganização ou de não-organização. A ordem é composta por semelhanças a
aproximações, e organiza, agrupa ou separa as diferenças. É nesse sentido que Foucault,
se propondo a analisar em As Palavras e as Coisas a continuidade da cultura ocidental,
o que tornou possível a compreensão moderna sobre linguagem e sobre o próprio
surgimento do homem como campo do saber, diz trata-se o livro sobre a arqueologia do
Mesmo – “a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo – daquilo que, para
uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser, portanto, distinguido por
marcas e recolhido por identidades”30 . Ele mesmo diferencia essa obra dos estudos
sobre a história da loucura, da história do Outro – “daquilo que, para uma cultura é ao
mesmo tempo interior e estranho, a ser portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo
interior), encerrando-o porém (para reduzir-lhe a alteridade)”31 .

27
HETHERINGTON, K. The badlands of modernity: heterotopia and social ordering. Londres, Nova
York: Routledge, 1997
28
As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.. 8ª Ed. São Paulo: Martins Fontes,
1999, XII.
29
Ibidem, XV.
30
Ibidem, XXIII.
31
Ibidem, XXII.
Kevin Hetherington identifica que as heterotopias não são facilmente localizadas
no sistema de representação, mas também não existem sui generis. Elas se caracterizam
pela justaposição de elementos incomuns e entre si (ou incomensuráveis) e que não
permitem a construção de uma unidade, ou estabilidade. Apresentam, portanto, certo
distúrbio na ordem das coisas, mas não são intrinsecamente espaços de resistência,
podendo expressar ambas forças, controle e luta. Por isso, Hetherington trata-as como
um limite da experiência, ou seja, aqueles espaços, que nas relações espaciais, põe em
relevo, ou em crise a ordem das coisas; são espaços performativos que apontam o real
como ilusório, ou a desordem como a possibilidade real32 .

Nessa linha, pensar os espaços heterotópicos nos direciona a pensar os processos


de normalização e, ao mesmo tempo, de subjetivação. Os espaços outros não são
espaços à parte das relações de poder, mas de certo modo, são espaços que põe em
questão essas relações, em que elas revelam a própria crise entre ordem e sua desordem.

3. A CONDIÇÃO DE FRONTEIRA E A PRÁTICA DE SI

Nessa reflexão sobre espaços outros, destaca-se a relação entre exterioridade e


interioridade, isto é, um espaço externo que não está completamente fora, mas um
“fora” em relação aos demais posicionamentos33 . Claro que essa questão perpassa ao
problema das relações de poder, da irredutibilidade dessas relações. A partir da obra de
Foucault, Deleuze apreende quatro dobras que constitui o sujeito, ou os processos de
subjetivação: o corpo, as relações de força e o saber e o “fora” que para Deleuze

32
HETHERINGTON, K. The badlands of modernity: heterotopia and social ordering. Londres, Nova
York: Routledge, 1997.
33
Na relação entre exterioridade e interioridade, Deleuze vai apontar que não é a partir do Eu que se
depreende o outro, ao contrário, é o “outro que se encontra em mim”, é a repetição do “diferente” e não a
reprodução do mesmo (DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013, p. 125). De forma similar,
Judith Butler destaca em Problema de Gênero, que a despeito da matriz heteronormativa, a partir da qual
não podermos ler o gênero ou o sexo fora, antes ou além das relações de poder, as sexualidades
produzidas no interior dessas relações não são mera repetições acríticas (lésbicas, gays, trans, travestis
etc.); ao contrário, a repetição não é a cópia do original, mas a cópia da cópia, isto é, a denúncia do
original como paródia – “Se o corpo não é um „ser‟, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja
permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de
hierarquia de gênero e heterosexualidade compulsória, então que linguagem resta para compreender essa
representação corporal, esse gênero, que constitui sua significação „interna‟ em sua superfíc ie? Sartre
talvez chamasse esse ato de „estilo de ser‟ ; Foucault, de estilística da existência. Em minha leitura de
Beauvoir, sugeri que os corpos marcados pelo gênero são „estilos da carne‟. Esses estilos nunca são
plenamente originais, pois os estilos têm uma história, e suas histórias condicionam e limitam suas
possibilidades” (BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução
de Renato Aguiar. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 198)
significa como “a linha que não para de reencadear as extrações, feitas ao acaso em
mistos aleatório e de dependência”34 .

Pensar assume aqui, então, novas figuras: obter singularidades, reencadear as extrações, os
sorteios; e inventar cada vez, as séries que vão da vizinhança de uma singularidade à
vizinhança de outra. Existem singularidades de todos os tipos, sempre vindas de fora:
singularidades de poder, apanhadas em relações de forças; singularidades de resistência,
que preparam as mutações; e mesmo singularidades selvagens, que ficam suspensas no lado
de fora sem entrar em relações nem se deixar integrar... (e somente aí o “selvagem” adquire
sentido, não como experiência, mas como o que ainda não entra na experiência) 35 .

Como as heterotopias podem auxiliar na compreensão desses processos de


subjetivação? Qual é a relação das heterotopias, esses outros, com os demais
posicionamentos? Em que medidas elas são produzidas pelas relações de poder? Ou em
que medidas elas escapam a tais relações?

Podemos tomar aqui uma figura interessante: a fronteira. Não seria a fronteira
uma heterotopia? A fronteira é um “espaço entre”, que guarda relação com a figura dos
territórios. As fronteiras são, no limite, o que delimita os territórios. A princípio, em
termos naturais ou geológicos não existe fronteira, ela é uma fabricação que podemos
atrelar a formação dos Estados, a delimitação dos territórios nacionais. “Guardar a
fronteira” é uma expressão de cunho militar atrelada a proteção desses territórios. O que
vemos hoje, porém, é que a fronteira traz a questão da circulação, do que entra e o que
sai desses territórios. Observamos o problema dos “tráficos” em geral, dos comércios
ilegais de armas, drogas etc; a questão da imigração, o número e as pessoas aceitáveis
etc. Gerir as “entradas e saídas” vai também trazer um série de outras questões, como a
construção de muros, de aparatos militares etc.

Seria possível fazer uma cartografia das fronteiras, o que não é o propósito desse
texto. O que se pretende é fazer uma análise das heterotopias em relação ao processo de
subjetivação. Apoia-se, então, em um belo livro de Gloria Anzaldúa, Borderlands/La
Frontera: The New Mestiza, que, por sua vez, traça uma cartografia da própria fronteira
entre Estados Unidos e México. Como a autora mesmo diz, essa fronteira é uma “ferida
aberta”, que envolve desde os processos de colonização, expulsão dos índios,
mestiçagem e depois a própria anexação do território do Texas pelos americanos, a
expulsão dos mexicanos e, posteriormente, sua exploração por grandes donos de terras e

34
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2013, p. 125.
35
Idem.
corporações americanas. No século XX, os processos econômicos de dependência e o
alto desemprego desencadearam uma imigração entre milhares de mexicanos aos
Estados Unidos e nesse processo atravessar a fronteira, se tornou se submeter a um risco
e uma violência, entre contrabandista e patrulhas americanas36 .

A fronteira aqui trata da relação entre primeiro e terceiro mundo, da relação


entre “outros”. Os “chicanos”, como os imigrantes são chamados de forma pejorativa,
sofrem também a violência de serrem ora visíveis, os “outros”, os de “fora”, ora
invisíveis. Em uma passagem, Anzaldúa relata como foi sua experiência na formação
primária em uma escola americana, em que era punida toda vez que falava o espanhol,
mesmo que na hora do recreio. O inglês era imposto ao espanhol, assim como a cultura
norteamericana à herança mexicana.

Pa´allar buen trabajo tienes que saber hablar inglês bien. Qué vale toda tu educación si
todavía hablas inglés con un “accent” my mother would say, mortified that I spoke English
like a Mexican. At Pan American University, I, and all Chicano students were required to
take two speech classes. Their propose: to get rid of our accent 37 .

No entanto, a violência da língua é também a violência do silenciamento, do


patriarcado na cultura “chicana”. O “medo de regressar ao lar”, de sofrer homofobia,
como uma mulher feminista e lésbica colocou Anzaldúa em uma fronteira entre si e sua
cultura. Aceitar-se como uma queer de cor, como ela se designa, é se rebelar contra sua
cultura, é uma resistência contra uma cultura do machismo ou do catolicismo, em que a
mulher se mantém do lar, submissa e calada.

A fronteira é, portanto, o lugar do impuro, das rupturas ou transições – “ It is a


constant state of transitional”38 . Não se está ou se chega a um lugar: estar-se na
fronteira, nesse lugar, que é um lugar “outro”. Ao ser criada no sul do Texas, em um
pequeno povoado de imigrantes mexicanos, Anzaldúa vivenciou essa fronteira, esse
espaço outro, que nem é inteiramente americano, nem inteiramente mexicano; entre
essas duas línguas. No entanto, sua fronteira é seu próprio corpo: ser chicana para os
americanos, ser indígena para os mexicanos – “With us and within la cultura chicana,
commonly held beliefs of the white culture attack commonly held beliefs of the

36
ANZALDÚA, G. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. São Francisco: Aunt Lute Books, 1999.
37
Ibidem, p. 75
38
Ibidem p. 25.
Mexican Culture, and both attack commonly helds beliefs of the indegeneous culture”
39
.

Podemos perceber infinitas dobras, e atravessamentos nesse corpo de fronteira –


“soy um amasamiento”40 . Para Anzaldúa, fronteira é um espaço vago, cinzento, cujos
habitantes são todos aqueles atravessados: queer, mulatos, vesgos, moribundos, os
encrenqueiros etc. – “in short, thouse who cross over, pass over or go through the
„confines‟ of the normal”41 . Mas os atravessamentos os recolocam constantemente nas
relações de poder – esse fora, esse lugar que separado que separa, que está em constante
relações com o de dentro.

A fronteira trata também da relação consigo. Anzaldúa percebe que o lugar da


mestiça está situado em uma encruzilhada, mas também possibilita a abertura para
produção de “outros” – pensamentos, perspectivas, práticas, outros processos de
subjetivação. O corpo da mestiça é uma heterotopia: guarda lugares e tempos diferentes
em si – “la mestiza is a product of the transfer of the cultural and spiritual values of one
group to another”42 . Mas esse corpo conflituoso, cheio de combate em si, produz
também uma nova consciência.

This step is a conscious rupture with all oppressive traditions of all cultures and religions.
She communicates that rupture, documents the struggle. She reinterprets the history, and
using new symbols, she shapes new myths. She adopts new perspectives toward the
darkskinned, women and queers. She strengthens her tolerance (and intolerance) for
ambiguity. She is willing to share, to make herself vulnerable to foreign ways of seeing and
thinking. She surrenders all notions of safety, of the family. Deconstru ct, construct. She
becomes a nahual, able to transform herself into a tree, a coyote or another person. She
learns to transform a small “I” into the total “Self” 43 .

Nessa passagem percebemos um duplo movimento. Primeiro um


posicionamento de uma subjetividade da fronteira. A mestiça não é um mero
entrelaçamento de culturas, uma justaposição de culturas, mas certo deslocamento.
Reconhecer-se como “chicana” possibilita desgarrar-se do inglês imposto sem pretender
voltar a uma língua original, ao espanhol dos mexicanos, e permite perceber que esse
espanhol mestiço, o espanhol dos “chicanos” é também uma língua viva, cheia de
aberturas ou resistências; possibilita também não negar a herança e devoção do

39
Ibidem, p. 100.
40
Ibidem, p. 103.
41
Ibidem, p. 25.
42
Ibidem, p. 100.
43
Ibidem, p. 103.
catolicismo, mas reconhece-lo em meio a elementos pagãos, concebê-lo como um
folkcatholicismo44 .

Um segundo movimento interessante é a própria construção de uma ética. A


fronteira aparece aqui como um deslocamento, ou um posicionamento escolhido: se
posicionar na fronteira é também construir uma prática de si: uma relação aberta,
transitória com as identidades e resistências que a atravessam, uma relação de si com o
“outro” em si, uma construção do pensamento sobre si e sobre o mundo – um processo
aberto de subjetivação.

CONCLUSÕES INICIAIS

As reflexões traçadas não se esgotam nesse texto, nem pretende-se esgotar os


sentidos de conceitos como heterotopia ou fronteira. As condições de fronteira e de
heterotopia apresentadas não são condições estáticas, mas estão inseridas no interior das
relações entre poder e saber. São figuras, portanto, prioritariamente relacionais, mas
estão de uma maneira estranha, ou perturbadora, envolvidas com determinada ordem
social.

No entanto, analisar essas figuras pode ser um campo interessante de


investigação, uma vez que elas podem conter um caráter performativo que desnaturaliza
determinada ordem, que “denuncia como ilusório o real”. Dessa maneira, elas não
podem ser observadas distantes dos conflitos ou violências, mas ao contrário, como
muitas vezes a ordem violenta pode se desnudar, como, por exemplo, na fronteira. Por
outro lado, esses limites da experiência podem se tornar, por vezes, lugares de
resistência. Essa não é uma condição necessária das heterotopias, mas suas resistências
podem ser também perturbadoras das relações de poder estabelecidas.

Glória Anzaldúa nos conduz a uma experiência nos espaços de fronteiras. Não se
trata, então, de uma tentativa de universalizar essa experiência. A trajetória de sua
experiência nos aponta, porém, certa prática de resistência que constitui a própria
produção de si, diante das encruzilhadas, a tentativa de construir outros processos de
subjetivação nas arestas das normalizações do poder.

44
Ibidem, pg 49.
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