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FRANÇA: MÍDIA E VIOLÊNCIA

Rumores e
violência OS ESPECIALISTAS desta forma particular de
comunicação que é o rumor estão de acor-
RESUMO do com a estimativa de que nove entre dez
Este artigo examina as relações entre uma forma específica rumores são “negros”, quer dizer, eles rela-
de comunicação, o rumor, e a violência. A maioria dos ru- tam ou anunciam acontecimentos negati-
mores são “negros”, quer dizer que eles relatam as situações vos: incidentes, agressões, acidentes, fra-
que são, de uma maneira ou de outra, violentas: acidentes, cassos, penúrias, escândalos, etc. Todas as
agressões, penúrias, escândalos, etc. Esses rumores narrati- coisas que, de uma maneira ou de outra,
vos que são as lendas urbanas exprimem de maneira fantasiosa são violentas. Os rumores “rosas”, que cor-
o sentimento de insegurança dos nossos dias. respondem ao conteúdo otimista, à realiza-
ção imaginária de uma vontade ou de um
ABSTRACT desejo coletivo, são raros. Os rumores
This article examines the relationship between rumor, a alertam os indivíduos contra todo tipo de
specific form of communication, and violence. Most rumors agressão em relação a suas posses materi-
are “black” because they report news which deal somehow ais, integridade física ou moral, e mesmo a
with violence: accident, aggression, scarcity, scandal… suas vidas. Deixaremos de lado os rumores
Narrative rumors called urban tales which reveal, like in a onde os agressores são os objetos materiais
phantasy, the feelings of insecurity in our days. (medo das novas tecnologias, por exemplo,
os rumores sobre os aparelhos de ondas),
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) ou de animais (lendas sobre as aranhas nos
- Violência (violence) yuccas ou dos jacarés nos esgotos de Nova
- Rumores (rumor) York), para nos concentrar naqueles que
- Rebeliões (rebellions) evocam violências causadas por seres
humanos. Certos rumores acusam mesmo
nominalmente os indivíduos ou grupos,
sociais ou étnicos, de serem os culpados de
agressões, justificando assim uma contra-
violência. É o fenômeno bem conhecido do
“bode expiatório” (Poliakov, 1980; Girard,
1982).
É possível destacar três tipos de
ligação entre o rumor e a violência: os
rumores geradores de rebeliões; os rumo-
res nas investigações criminais; as repre-
sentações da violência urbana nas lendas
contemporâneas. Desenvolveremos parti-
cularmente o terceiro ponto, que corres-
ponde ao nosso campo de pesquisa.

1 Os rumores geradores de rebe-


liões

Os historiadores que estudaram as revoltas


Jean-Bruno Renard* populares mostraram o papel desencadea-
IRSA-CRI / Montpellier III dor desempenhado pelos rumores. Apesar

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de serem geralmente imprevisíveis, as re- criar um imposto sobre as propriedades
beliões obedecem a um mecanismo sim- em função do número de portas e janelas.
ples: “uma multidão que se agrupa sem Os rumores diziam que fiscais revistariam
objetivos precisos, acolhe rumores, ampli- as casas e recenseariam também o número
fica-os, ataca pessoas, pilha e saqueia” de aves, de moedas, de roupas, etc. Ocorre-
(Delumeau, 1978, 144). Não existe nem ação ram afrontamentos violentos entre o povo e
pensada, nem organização, nem plano de as tropas, principalmente nas regiões de
luta coerente. A rebelião nasce em um gru- Toulouse e Clermont Ferrand (Caron, 2002).
po a partir da transformação de um senti- Outro fato sangrento que aconteceu
mento de inquietude ou de medo num sen- em Hautefaye, em Dordogne, no dia 16
timento de agressividade que gera um de agosto de 1870, é revelador das ten-
comportamento violento, tomando por sões sociais da época: com grande violên-
alvo pessoas reais e seus bens materiais. O cia e crueldade, os camponeses bonapar-
rumor desempenha o papel de catalisador tistas sacrificaram um jovem aristocrata
e serve à designação dos alvos da violên- acusado, por engano, de simpatias repu-
cia. Dois outros elementos concorrem ao blicanas (Corbin, 1990).
nascimento da rebelião da multidão: um No antigo Império russo, e até 1921,
“relaxamento do poder” (Delumeau, 1978, os pogroms, pilhagem e massacre dos ju-
194), em particular do poder local, que não deus, tiveram muitas vezes rumores como
assegura mais o controle social; e, ao inver- pretexto, um dos quais, recorrente depois da
so, a ação de “mentores” (mulheres, revo- Idade Média européia: era a acusação contra
lucionários, pregadores religiosos) que ati- os judeus de que eles raptavam uma criança
çam o furor popular. cristã para sacrificá-la ritualmente durante a
No século XIV, as epidemias de peste Páscoa Judaica.
foram atribuídas aos leprosos e aos judeus, Nos Estados Unidos, até os anos 1950,
que foram massacrados pela crença nos o linchamento de negros era resposta a
rumores que lhes acusavam de envenenar rumores acusativos, geralmente infunda-
os poços (Delumeau, 1978). dos, como, por exemplo, o fato de ter sedu-
Em Paris, em 1750, a multidão atacou zido uma mulher branca. Esses fatos nos
a polícia e os representantes das autorida- lembram que os rumores não são unicamen-
des porque rumores circulavam sobre cri- te “palavras ao ar”. Suas conseqüências po-
anças roubadas que teriam seu sangue reti- dem ser terrivelmente concretas e dramáticas.
rado para curar os aristocratas doentes, em
particular o rei Luís XV (Farge e Revel, 1988).
O século XVIII também conheceu nu- 2 Os rumores nas investigações
merosas “rebeliões alimentadas”. Estas re- criminais
voltas populares acusavam a nobreza e o
clero de guardar as reservas de trigo en- A violência exerce uma tal fascinação, que
quanto o povo morria de fome (Kaplan, as investigações criminais são acompanha-
1982). Essas rebeliões culminaram durante as das por toda uma produção de rumores:
“jacqueries” do Grande Medo, em julho e rumores alimentando pseudotestemunhos,
agosto de 1789, quando os camponeses pilha- rumores sobre a identidade do assassino
ram os castelos e executaram os intendentes antes que ele seja identificado, rumores so-
do rei, exigindo a abolição dos direitos dos bre o perfil das vítimas de um assassinato
senhores sobre as colheitas (Lefebvre, 1932). em série, etc. Vale a pena mencionar alguns
Podemos assinalar, no século XIX, as casos criminais onde o rumor teve um pa-
revoltas de julho e agosto de 1841, consecu- pel importante.
tivas ao projeto do ministro das Finanças, Em 1817, Joseph-Bernardin Fualdès,
Georges Humann, de recenseamento para magistrado aposentado em Rodez, em

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Aveyron, é encontrado degolado. Este caso, não acreditava na culpabilidade do verda-
até hoje não elucidado, deu lugar a quatro deiro assassino. De 1969 a 1976, sete mu-
hipóteses, verdadeiros “romances coleti- lheres são assassinadas no mesmo setor da
vos” elaborados pelo rumor público (Rou- pequena vila de Nogent-sur-Oise (Bernand,
quette, 1992): um caso ligado a histórias de 1978). Dois tipos de rumores vão emergir.
dinheiro; um assassinato ideológico por Primeiro, rumores sobre um pretenso perfil
ultramonarquistas deste homem famoso e das vítimas do matador em série, que seri-
enriquecido pela República e pelo Império; am todas mulheres jovens, miúdas, more-
um caso ligado à sexualidade, de acordo nas e do meio popular. Esse rumor foi ta-
com certos testemunhas que relataram as manho que certas mulheres morenas fica-
aventuras amorosas do velho magistrado; ram tão amedrontadas que colocavam uma
e, enfim, um assassinato político onde peruca loira para sair! Em seguida, rumo-
Fualdés teria sido suprimido, sob ordem res sobre a identidade do assassino, que se-
de Luís XVIII, por possuir documentos ria um homem importante de tendências
comprometedores sobre a sua vida. Como perversas (médico, comerciante de gasolina
escreve Rouquette, “o caso Fualdés escapa ou mesmo um comissário de polícia – o
à anedota, sai do plano banal do mistério que explica não se poder pegá-lo).
judiciário para se tornar outra coisa: uma O verdadeiro assassino, quando pre-
ruptura exemplar na opacidade do funcio- so, revela-se um operário, casado e pai de
namento social” (Rouquette, 1992, 101). duas crianças: mas um novo rumor supõe
O caso Marie Besnard parece ser um que ele seja inocente e que a polícia teria
caso típico de invenção de um crime e de inventado provas. Pois nesta pequena cida-
um criminoso pelo rumor (Favreau-Colom- de, onde habitam numerosos ferroviários,
bier, 1985). Essa pessoa importante de Lou- reina uma oposição social entre os ricos im-
dun foi indiciada e presa em 1949 por 13 portantes e os populares. A população,
envenenamentos, com base em suspeitas persuadida de que o assassino era um rico,
(todas as mortes lhe permitiriam constituir não acredita que o assassino seja um operá-
uma pequena fortuna), testemunhos acusa- rio. Lembramos que, em 1972, no caso não
dores e fatos que pareciam incontestáveis elucidado de Bruay-en-Artois (Pas-de-Ca-
(os corpos dos mortos continham traços de lais), o rumor tinha designado o notário do
arsênico). vilarejo como sendo o assassino de uma
Marie Besnard é chamada por todos adolescente, e militantes trotskistas fizeram
de “a envenenadora de Loudun”. Mas ela é desse assassinato um fato emblemático da
libertada em 1954 e absolvida em 1961, luta de classes.
logo que o processo esclareceu as coinci- De maneira geral, todo assassinato inex-
dências (uma série de mortes que ajudam a plicado suscita rumores sobre a identidade
acusada), as mentiras (testemunhos caluni- do ou dos culpados. Uma variante importan-
osos de vizinhas ciumentas) e a descoberta te desses tipos de rumor é a crença na exis-
de uma presença natural de arsênico nas tência de uma rede criminosa: vimos nos re-
terras do cemitério de Loudun. A conver- centes casos de pedofilia (caso Dutroux, na
gência destes elementos independentes, sob Bélgica e o processo de Outreau, na França)
o efeito catalisador das fofocas de uma pe- que o rumor público, substituído, por ve-
quena vila provinciana, criou a convicção da zes, pelos advogados das vítimas e de cer-
culpabilidade de Marie Besnard para os ha- tos órgãos da imprensa, sustentou a tese da
bitantes de Loudun, o grande público, as au- existência de uma poderosa rede crimino-
toridades policiais e a imprensa. sa, culpando famosos ou personalidades
O caso do “matador de Nogent” (No- políticas importantes, contra a suposição de
gent-sur-Oise em Oise) é um caso inverso: um maníaco solitário ou de um grupo restri-
os crimes são bem reais e o rumor público to de malfeitores.

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3 A representação da violência ur- da fatal, algo que já encontramos em outros
bana nas lendas contemporâneas casos de pânico evocando “os maníacos ur-
banos”, desde o início do século XIX, ou
As estatísticas de criminalidade mostram associados a “La traite des Blanches”1, no
que a violência real é sempre menor que a século XX, como o célebre rumor de Orle-
violência imaginada. A diferença entre os ans (Morin, 1969). Aliás, a seringa toma o
fatos de delinqüência ou de criminalidade lugar dos alfinetes ou dos espinhos enve-
e o sentimento de insegurança é o terreno nenados dos contos de antigamente, Branca
onde se desenvolve o imaginário da vio- de Neve ou a Bela Adormecida. Denúncias
lência, explorado por numerosas lendas ur- de picadas nas ruas, ao acaso, visando uma
banas (Campion-Vincent e Renard, 1992, transmissão voluntária da AIDS foram
2002; Renard, 1999). Apresentaremos abaixo registradas a partir de 1991. Essas lendas
alguns exemplos significativos de lendas são temas típicos de maníacos que imagi-
contemporâneas que exploram a violência. namos escondidos nas nossas cidades. Re-
encontramos esses temas nos rumores das
lâminas de barbear introduzidas nos doces
As agulhas infectadas com o vírus de Halloween ou no medo de contamina-
da AIDS nos cinemas ção bacteriológica. Por exemplo, o pânico
do imaginário vírus Klingerman, nos Esta-
Em março de 2001, uma advertência dra- dos Unidos, que precedeu ao ataque bio-
mática circulou amplamente na França por terrorista real, em outubro e novembro de
correio eletrônico e sob forma de panfleto. 2001, com o bacilo do carvão ou “anthrax”.
Ela dizia que, em um cinema de Paris, uma Trata-se de um caso de ostentação, quer
pessoa havia sido infectada por uma serin- dizer, de uma ação realizada por imitação
ga posta na poltrona com a seguinte men- do cenário de um rumor ou de uma sim-
sagem: “você acabou de ser contaminado ples coincidência?
pelo HIV.” Um Centro de Controle de Do-
enças teria relatado vários outros aconteci-
mentos semelhantes, e todas as agulhas A gangue dos homens de bonés
conteriam o vírus da AIDS. Teriam sido en- brancos
contradas também agulhas na portinhola
das máquinas distribuidoras de bebidas de De dezembro de 1999 a fevereiro de 2000,
estacionamento, etc. um rumor foi difundido na França e em
O rumor vinha dos Estados Unidos e toda Bretanha sobre casos de agressão de
do Quebec: o evento foi sucessivamente si- moças por uma misteriosa “gangue de ho-
tuado em Dallas, Montréal e, depois, Paris. mens de bonés brancos”:
Na França não existe o “Centro de Controle
de Doenças”. Somente nos Estados Unidos Quatro jovens de bonés brancos, a
se encontram os Centers for Disease Control. bordo de uma Mercedes com placa de
Não somente a história é inverossímil – Bouches-du-Rhône, agridem moças.
pois, afinal, podemos realmente imaginar Sob a ameaça de uma lâmina ou de
uma seringa enfiada numa cadeira com uma gilete, eles as mandam escolher
uma mensagem a ela presa? - mas é entre o estupro ou a mutilação. As
cientificamente falsa, pois o vírus da AIDS moças que recusam suas investidas são
morre pouco tempo após sua exposição ao submetidas ao “sorriso de anjo”: que
ar livre. começa por cortes de gilete nos cantos da
A sedução da mensagem diz respeito boca, os quais são seguidos de golpes no
ao encontro entre o medo de uma contami- ventre, até que a vitima grite e sua boca se
nação pela AIDS e a evocação de uma pica- rasgue. Para terminar, é colocado sal sobre

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os cortes, para impedir a cicatrização. do um “chapéu-melão”, adeptos da ultra-
O rumor circulou pelos colégios e foi violência, praticando estupros e agressões.
espalhado principalmente pelas meninas. Em janeiro e fevereiro de 1989, foi a vez do
Algumas colegiais recusavam-se a sair de rumor dos “Risos de Chelsea” (Chelsea Smi-
suas escolas e telefonavam para que lers), um bairro de Londres onde havia um
viessem buscá-las, ou pediam para ser famoso time de futebol. Segundo este, uma
acompanhadas até o portão do estabeleci- gangue de jovens abordava alguns estu-
mento. Até dezembro de 1999, e durante dantes fazendo-lhes perguntas sobre o
todo o período de circulação do rumor, as clube de futebol de Chelsea. Depois,
autoridades não pararam de desmentir es- cortam-lhes os cantos da boca com uma
sas falsas informações. O rumor era total- faca ou uma gilete, socando-lhes na barriga
mente infundado: nenhuma queixa foi regis- para que elas gritassem e aumentassem os
trada pelos fatos alegados, nenhum hospital, cortes. Segundo Steve Roud, a origem
clínica ou médico atendeu a uma vítima se- desses rumores se encontraria nas violênci-
quer dos supostos estupros ou mutilações. as reais dos torcedores de futebol, que uti-
Como em todos os fenômenos de ru- lizavam facas e lâminas de gilete em suas
mores, apareceram fatos que pareciam con- disputas. O rumor transformou a violência
firmar o rumor. Na realidade, tratava-se de interna entre os torcedores das equipes ad-
incidentes menores, por exemplo “jovens versárias, em uma violência externa que ata-
de carro, volume alto, entrando num esta- ca, de maneira atroz, vítimas jovens e ino-
belecimento escolar para se mostrar” centes. Nos Estados Unidos as lendas urba-
(Ouest-France, 3 de fevereiro de 2000) ou, nas contam que para ser admitido em uma
ainda, as fabulações inspiradas pelo rumor: gangue, os delinqüentes devem cometer, a
“Uma jovem deu queixa na delegacia, asse- título de prova iniciática, uma mutilação
gurando ter sido obrigada a subir em um ou um assassinato: por exemplo, para in-
furgão branco e depois agredida por um gressar em uma gangue, jovens negros teri-
indivíduo que a teria cortado com uma am que cortar o pênis de meninos brancos
gilete. Os investigadores da polícia rapida- (Brunvand, 1984, 82-92) ou, em outro caso,
mente fizeram um inquérito aprofundado. andar de carro durante a noite, com os faróis
A jovem confessou ter inventado tudo para apagados, perseguindo e matando o primei-
justificar sua ausência na escola. Ela ro motorista que lhes sinalizasse com os fa-
mesma teria se cortado para tornar sua róis (“Lights out!”, FoafTale News, 31, 1993, 5-6)
história mais crível…” (Le Télégramme de . As referências aos bonés brancos e a
Brest, 12 de fevereiro de 2000). Marseille indicam tratar-se de hooligans
Já mostramos (Campion-Vincent et desta cidade, mesmo que o rumor não fale
Renard, 2002) que esse rumor foi largamen- abertamente dos torcedores do O.M2. A
te inspirado por persistentes rumores britâ- imagem do malandro se impõe àquela do
nicos sobre as gangues ultraviolentas torcedor. Observamos, igualmente, um
(Roud, 1989). Nos anos 1950, as “gangues desvio racista do rumor: primeiro o carro
da gilete de Glasgow” teriam agredido de placa de Bouches-du-Rhône, depois, a
suas vítimas cortando-lhes os cantos da referência aos “Marseillais”, de onde pode-
boca. Em 1970-1972 foi a vez da “gangue de mos certamente tirar uma alusão aos
roupas verdes (ou vermelhas) de Liverpo- magrebinos e aos muçulmanos, e uma
ol”: eles mutilavam suas vítimas gravando versão mencionará os “turcos”. A lenda da
sobre seu rosto círculos ou cruzes com uma “gangue de bonés brancos” exprime o
gilete. No mesmo momento, o célebre filme medo da agressão sexual, o medo da vio-
de Stanley Kubrick, Laranja mecânica (G-B., lência pura (o malandro da gilete) e o
1971), colocava em cena um grupo de jo- medo do estrangeiro (os marseillais, os tur-
vens bandidos, vestidos de branco e usan- cos). Os diferentes casos de violências esco-

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lares que alimentam cada vez mais os noti- inconscientemente fascinados por uma jus-
ciários nos últimos anos na França criaram tiça arcaica, expeditiva, fundada sobre a lei
um clima de insegurança propícia a esse do talião. Aliás, é interessante notar que, se
gênero de rumor. o gentil vizinho da lenda possui um lado
escondido de criminoso, a velha senhora
revela também potencialidades agressivas.
A velha senhora e o agressor mas- Todos seríamos, então, Dr. Jekyll e Mr
carado Hyde! O personagem do vizinho agressor
encontra seu antecedente no folclore tradi-
A história seguinte circulou largamente na cional, relativo ao lobo dos contos – por
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos nos exemplo, o lobo que quer entrar na casa
anos 1970: dos três porquinhos ou dos cabritos – ou,
É inverno. Uma senhora idosa, que melhor ainda, na figura do lobisomem, que
vive sozinha, está atiçando o fogo da sua acumula os temas da metamorfose e da vi-
lareira. A campainha toca. Ela abre a porta olência. A folclorista inglesa Jacqueline
e vê-se frente a frente com um homem Simpson (1981), estudando esta lenda urba-
agressivo que tenta entrar e tem o rosto na, pertinentemente observou que o reco-
escondido por uma meia. A velha senhora nhecimento do agressor por sua ferida cor-
se defende dando um golpe com um tição responde ao tema da “dupla ferida” nas
incandescente na mão do agressor, que histórias do lobisomem: desmascaramos o
foge gritando. Ela telefona à polícia e vai se homem que se metamorfoseava em lobo
refugiar na casa dos vizinhos, um casal sim- porque ele tem uma ferida no mesmo lugar
pático que ajuda-lhe com freqüência. Mas a do corpo em que o animal foi machucado.
jovem vem abrir a porta em grande estado de Em uma outra lenda urbana, “a caro-
agitação: ela diz que seu marido acabou de na cabeluda” (Brunvand, 1984, 52-55), é a
chegar com uma grande queimadura na mão vez de um louco assassino, fantasiado de
(segundo Brunvand, 1984, 37-41). mulher, ser traído pela pilosidade de seu
Essa lenda ensina, primeiramente, antebraço.
que se deve desconfiar de todo mundo, e
também de seus vizinhos. Reencontramos
este tema na lenda do “jovem desviante e o O seqüestro fracassado
jantar na cidade” (Campion-Vincent e
Renard, 1992), em que um jovem burguês Esta história apareceu na França em 1996.
de Neuilly (bairro nobre de Paris) vai O cenário é o seguinte: em um supermerca-
roubar o domicílio do casal que está do, uma mulher tira os olhos por um
jantando na casa de seus pais e é morto momento de seu filho de sete ou oito anos.
pelo filho deles. Em segundo lugar, a lenda Não conseguindo encontrá-lo, ela se deses-
justifica os comportamentos de autodefesa. pera, e os responsáveis pela loja fecham as
Em várias lendas de insegurança, os portas e organizam uma busca. A criança é
agressores sofrem uma mutilação da mão encontrada no banheiro, com os cabelos
(“O dobermann que sufoca”, “O malandro pintados ou cortados, vestida com outra
da corrente”): como não ver ali uma remi- roupa. Os seqüestradores não podem ser
niscência dos antigos castigos infligidos identificados.
aos ladrões! O golpe do tição evoca a Vários elementos do relato são bas-
mesma marca a ferro que sofriam os crimi- tante improváveis: o dito fechamento das
nosos. Klintberg (1982) explica a freqüência portas é impossível e ilegal; pintar ou cor-
do tema da vingança nas lendas urbanas tar os cabelos de uma criança desconhecida
pelo fato de a justiça moderna ser reticente seria uma operação muito difícil, assim
em relação à autodefesa, e de continuarmos como despir e vestir a vítima (muitas vezes

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para se colocar roupas de menino em uma Duas séries de fatos reais tornaram
menina ou vice-versa). Enquanto o desapa- verossímil a existência dos snuff movies. A
recimento e a recuperação da vítima são existência de filmes de morte violenta ao
detalhados com precisão, os seqüestrado- vivo é uma delas: trata-se de seqüências
res permanecem indefinidos, assim como feitas por amadores que, encontrando-se
seus motivos supostos: adoção, tráfico de por acaso no local, registraram com suas
órgãos, pedofilia. câmeras uma morte acidental ou crimino-
Os relatos de “seqüestros fracassa- sa; ou, ainda, de seqüências de execuções
dos” tiveram origem nos Estados Unidos a capitais, ou, mais raramente, de cenas de
partir de 1978 (Brunvand, 1981, 182-183; torturas filmadas para fins de propaganda.
Brunvand, 1984, 78-92), e diziam respeito a Outra é a existência de fotos ou filmes rea-
uma adolescente. Em 1983 surgiu sua ver- lizados por assassinos em série. Esse gêne-
são atual, em que a vítima é um menino. ro é o mais perto dos snuff movies de que
Nossa época é marcada pela obsessão dos se chega, embora não o seja por dois moti-
crimes sexuais, em particular da pedofilia, vos: até hoje nenhum filme de assassino em
considerada como crime supremo. série parece ter apresentado a morte ao
vivo de uma vítima (as imagens gravam o
antes ou o depois); em seguida, não existe
Os snuff movies nenhuma intenção comercial nestes filmes,
geralmente realizados para uso privado do
A crença nos snuff movies é, hoje, bastante psicopata criminoso.
divulgada: os snuff movies são filmes clan- Para que o rumor dos snuff movies to-
destinos de curta duração, filmados para masse corpo, faltava dissociar esses filmes
consumo de aficcionados ricos e perversos, de sua primeira origem, os assassinos em
nos quais a atriz (trata-se geralmente de série, para associá-los à indústria do cine-
uma mulher, às vezes um adolescente) é ma pornográfico. Nesse processo, um pa-
realmente torturada e morta. Até o momen- pel importante foi representado nos anos
to atual, não existe nenhuma prova da exis- 1970, nos Estados Unidos, por associações
tência de tais filmes (Finger, 2001). Os su- de defesa da ordem moral como os Citizens
postos snuff movies examinados por especia- for Decency through Law (Cidadãos pela
listas revelaram-se falsos, realizados com decência pela lei) ou movimentos feminis-
as trucagens habituais dos filmes gore. tas (Women against Violence against Women).
De um ponto de vista criminológico, a A lenda dos snuff movies foi produzida pelo
existência dos snuff moveis parece pouco imaginário coletivo para exprimir, sob
verossímil. Em primeiro lugar, no plano uma forma extrema, um conjunto de
“econômico”: os snuff são pouco rentáveis, problemas bem reais que preocupam, e
pois o mercado é muito limitado (ao con- mesmo amedrontam, nossos contemporâ-
trário da droga, da prostituição ou do neos: a onipresença do sexo e da violência,
jogo), e o lucro é relativamente fraco em a generalização do voyeurismo e a confu-
relação à enormidade de riscos corridos são entre a ficção e a realidade.
(pena de morte ou prisão perpétua). Em
segundo lugar, a realização e a difusão dos
snuff necessitam, se não de uma rede, ao A lenda dos roubos de órgãos
menos de vários cúmplices para divulgar o
fato. Enfim, por que correr tantos riscos No final dos anos 1980 emergiram rumores
realizando snuff movies verdadeiros quando de roubos de órgãos: grupos criminosos
podemos produzir falsos, parecendo per- organizados seqüestravam indivíduos para
feitamente autênticos graças às técnicas de retirar-lhes os órgãos que eram vendidos
trucagens cada vez mais sofisticadas? clandestinamente a pacientes ricos que

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necessitavam de transplante (Campion- ra. Ele segura o homem, o ameaça e
Vincent, 1997). Três lendas típicas podem recupera a carteira. Mas, assim que
ser distinguidas: aquela dos “bebês em entra em casa, descobre que tinha
peças”, em que crianças da América Latina, esquecido sua carteira em cima da mesa
supostamente adotadas, são mortas para (segundo Brunvand, 1984, 188-189).
fornecer órgãos aos países ricos; aquela dos
“ladrões de olhos”, onde crianças da Os preconceitos relacionados à inse-
América Latina são seqüestradas e mutila- gurança fizeram dele um ladrão! Assim, as
das (retirada de um rim ou de córneas); e, lendas não são unicamente a expressão do
enfim, aquela do “rim roubado”, onde medo e da violência, elas podem ser também
adultos de países ricos, seduzidos uma uma incitação ao questionamento sobre qual
noite por uma mulher desconhecida, des- é a fonte da violência e sobre nossas repre-
cobrem-se com um rim a menos no dia se- sentações individuais e coletivas.
guinte. Inverídico cientificamente falando.
O tema do roubo de órgãos foi construído
a partir de fenômenos reais, mas indepen-
dentes: a existência de tráfico de órgãos, a Notas
violência urbana na América Latina (assim
como a culpabilidade das adoções mais ou Texto traduzido do francês por Clélia Pinto
menos forçadas) e o mal-estar ético frente
às técnicas de transplantes de órgãos. Os * Professor de Sociologia na Universidade Paul Valéry –
mais aflamados crentes e difusores da len- Montpellier III. Coordenador do Mestrado de Sociologia.
da foram os grupos progressistas e terceiro Pesquisador no Institut de Recherches Sociologiques &
mundistas, para os quais os roubos de ór- Anthropologiques e no Centre de Recherches sur
gãos constituem a forma extrema da explo- l’Imaginaire. Contato: Jean-Bruno.Renard@univ-
ração dos países pobres pelos países ricos. montp3.fr

1 Tráfico de escravas brancas.


Conclusão
2 Olympique de Marseille.
“Quem diz rumor diz medo”, escreve Jean
Delumeau (1978, 147). Os rumores são rea-
ções exorcizantes de todo tipo de medo, Referências
que têm em comum o medo da violência
que pode ser exercida sobre nós. O parado- BERNARD, Carmen. L’ombre du tueur: réflexions
xo é que o rumor produz, por sua vez, uma anthropologiques sur une rumeur, In: Communications. ed.
contra-violência, real ou simbólica. A maior 28, pp. 165-185, 1978.
parte das lendas contemporâneas que tra-
tam da violência são vetores do sentimento BRUNVAND, Jan Harold. The vanishing hitchhiker: american urban
de insegurança. Existe, entretanto, certos legends and their meanings. New York: Norton, 1981.
depoimentos que denunciam os medos sem
razão. Por exemplo essa anedota que circula- ___, The Choking Doberman: and other “new” urban legends. New
va nos Estados Unidos no início dos anos York: Norton, 1984.
1970:
CAMPION-VICENT, Véronique. La Légende des vols d’organes.
Um homem sai cedo pela manhã para Paris: Les Belles Lettres, 1997.
fazer seu cooper. No parque, ele se
choca contra um outro corredor. Ele CAMPION-VICENT, Véronique; RENARD, Jean-Bruno.
percebe que não tem mais sua cartei- Légendes urbaines: Rumeurs d’aujourd’hui. Paris: Payot, 1992.

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 29 • abril 2006 • quadrimestral 27


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