Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A partir desta lei, decorre-se a primeira lei especial da natureza, segundo a qual
nenhum homem deve conservar o seu direito sobre todas as coisas, pois, se este direito
fosse mantido, alguns homens se julgariam no direito de invadir a propriedade de outros
homens, e estes teriam o direito de se defender daqueles, o que levaria a um cenário de
guerra iminente.
Nos capítulos seguintes de “Do Cidadão”, Hobbes pretende nos convencer através
de seus argumentos, que a mera compreensão das leis da natureza não leva
consequentemente à paz, mas seria necessário um poder superior coercitivo que as
fizessem cumprir. Logo no início do capítulo V, Hobbes declara que as ações dos homens
decorrem sempre da esperança ou do medo, ou seja, se um homem espera obter um
bem maior ou um mal menor ao violar determinada lei, ele certamente assim o fará, pois
como vimos anteriormente, os homens estão sempre em busca de seu próprio benefício.
Dessa forma, segundo Hobbes, enquanto não houver garantia contra a agressão
praticada por outros homens, cada um conserva seu direito primordial à autodefesa por
todos os meios que puder ou quiser utilizar, isto é, um direito a todas as coisas, ou direito
à guerra.
Na sequência, Hobbes vai argumentar o que proporciona a segurança necessária
para que a lei natural possa ser exercida. Segundo o autor, essa segurança só é
garantida a partir do consentimento de muitas pessoas, pois se essa concórdia existir
entre dois ou três, esse pequeno grupamento seria facilmente derrotado por algum outro
mais numeroso. Porém, já no parágrafo seguinte, Hobbes argumenta que o
consentimento de muitas pessoas por si só não é suficiente para assegurar a paz entre os
homens, levando em consideração as divergências que podem existir dentro desse
grupamento quanto aos meios necessários para alcançar esse fim. Dessa forma, algo
mais deveria ser feito para que aqueles que consentiram em cooperar uns com os outros
em nome da paz, possam ser contidos pelo medo, de modo que posteriormente não
venham a divergir quando o seu interesse particular for diferente do interesse comum.
Nos parágrafos subsequentes, Hobbes irá discorrer à cerca da necessidade da
união entre os homens, ou seja, de uma vontade única, geral, e irrestrita para que seja
alcançada a paz comum:
Essa união, constituiria o que Hobbes define como sendo a cidade, ou uma
sociedade civil, ou ainda uma pessoa civil, uma vez que, quando de todos os homens
emana uma só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa, distinguindo-se de
todos os particulares, tendo seus próprios direitos e particularidades. Portanto, como
defende Frateschi (2010), o acordo entre os homens para Hobbes seria artificial.
Segundo a comentadora, para que haja acordo entre os interesses de um homem e o
interesse de outros homens, se faz necessário que as suas vontades individuais estejam
submetidas à vontade da pessoa civil, ou melhor, que as vontades individuais cedam
lugar à vontade da pessoa civil. Para isso, seria necessário sair do estado de natureza,
em que cada homem é dirigido pela sua vontade particular, ou seja, seria necessário um
artifício, a criação do Estado.
Para Frateschi (2010), o que caracteriza a vida política na obra hobbesiana é a
instituição do Estado, que traz à tona uma única vontade, a dirigir a vida de todos nas
questões de guerra e paz. O argumento que sustenta a instituição do bem comum,
segundo a comentadora, sustenta-se na ideia de que não é possível ocorrer uma legítima
união das vontades ao redor de um benefício comum, a não ser que todas as vontades
privadas se submetam à vontade daquele ou daqueles que detêm o poder soberano. Isso
aconteceria porque não existiria consenso natural, pois o desejo dos homens (ou de
alguns deles) seria desejo de preponderância, e também porque, seguindo o seu
benefício próprio, os homens prontamente descumprem acordos aos quais não são
obrigados pelo medo de punição.
Chegamos finalmente então à questão da representação em Hobbes. Segundo
Mattos (2011), a unidade expressa como uma “vontade de muitos” permite que a vontade
de um determinado número de pessoas seja entendida como a vontade de uma “única
pessoa” (a pessoa civil) e que esta, por sua vez, seja a expressão da vontade de cada
pessoa. Dessa forma, ainda de acordo com o comentador, para Hobbes uma multidão de
pessoas torna-se uma pessoa artificial a partir do momento em que esta é representada
por uma assembleia ou por uma única pessoa, de modo que esta representação seja
consentida por todos aqueles que participam de tal multidão. O soberano emerge assim
de forma separada da multidão à qual confere unidade política, tendo como prerrogativa
identificar a sua vontade com a vontade dessa mesma multidão.
Contudo, Mattos (2011) afirma que a única maneira de conceber a unidade de uma
certa multidão é através da sua representação política, na forma de uma “pessoa
artificial”, pois, de acordo com Hobbes, seria a unidade do representante e não a do
representado que possibilitaria o surgimento de uma pessoa única. Dessa maneira,
escolher uma pessoa ou uma assembleia como representante legítimo é primeiramente,
compreender a representação como apta em resumir as diversas vontades presentes na
multidão em uma única vontade expressa na pessoa representante do poder soberano.
A representação política para Hobbes pode então ser compreendida por meio de
sua definição de “pessoa artificial”. Segundo o autor, “pessoa artificial” seria aquela cujas
palavras e ações são consideradas como palavras e ações de outro. Desse modo,
podemos inferir que a pessoa natural é aquela que confere a autoridade para que o
representante atue em seu nome, e a “pessoa civil” seria aquela que por direito e
consentimento, possui autoridade para agir em nome do representado. Segundo Mattos
(2011) a representação política hobbesiana deixa transparecer uma nítida relação de
“dependência e necessidade”, entre as ações do Estado e a vontade dos súditos ou
cidadãos que o constituem. De acordo com esse comentador, não haveria como os
detentores do poder soberano cometerem algum tipo de arbitrariedade, pois as suas
ações nunca agiriam contra a vontade dos seus representados, uma vez que estes já
consentiram à autoridade agir em seu nome.
“Seja como for, é fácil conceber qual era o gênero de vida quando não havia poder comum a
temer, pelo gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo
pacífico costumam deixar-se cair numa guerra civil.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII)
Dessa passagem, podemos inferir claramente que Hobbes está se referindo à sua
experiência durante o conturbado período pelo qual passou a Inglaterra no século XVII.
No início desse século o país enfrentou revoltas populares na Irlanda e Escócia, que
culminaram com uma guerra civil e com a condenação do então soberano à morte.
Podemos inferir desse fato que as conclusões a que Hobbes chegou dizem mais sobre o
dito homem “civilizado” quando na ausência de um poder instituído, do que sobre o
homem supostamente “selvagem” em seu estado de natureza.
Superado esse primeiro obstáculo, voltamos o foco para sua obra “Do Cidadão”,
em que Hobbes sustenta que nas questões que envolvem a guerra e a paz, ou no limite, a
vida e a morte, deve existir apenas uma única vontade entre os homens. Vimos que para
o filósofo, isso aconteceria quando da submissão das vontades particulares à vontade de
um só homem, ou de um conselho de homens. Ora, mas será que pode a vontade de
UM, seja um conselho, ou um homem, corresponder à vontade de todos? Um
representante ou um conjunto de representantes quaisquer nunca poderiam dar conta da
complexidade de vontades existentes em uma população e tão pouco podemos ser
ingênuos a ponto de acreditar que os detentores do poder soberano estariam dispostos a
conformar a sua vontade à vontade do povo.
A questão da vontade nos remete diretamente a Rousseau e sua defesa da
“vontade geral”. Ao contrário de Hobbes, Rousseau aparentemente não fala da submissão
das vontades individuais à vontade de um soberano. Ao menos não diretamente, pois
quando analisamos com calma o conceito de “vontade geral” argumentado pelo
genebrino, podemos notar a semelhança com a vontade soberana descrita por Hobbes.
Esclareço: No pensamento rousseauniano fica clara a necessidade de um arrefecimento
em cada indivíduo de suas vontades particulares, em nome da descoberta em si de uma
suposta “vontade geral”, que por sua vez estaria contida em alguma de suas vontades
privadas.
No entanto, podemos concluir positivamente sobre a necessidade da submissão
das vontades individuais da população à “vontade geral”, o que não deixa esta parte da
obra de Rousseau tão distante do pensamento hobbesiano. Podemos notar também o
quanto essa uniformidade de pensamento é perigosa em ambos os casos, pois inúmeras
vezes na história pudemos ver casos em que uma suposta unanimidade, ou até mesmo
“vontade da maioria” levou a inúmeras atrocidades, tendo como o seu maior exemplo até
hoje, o surgimento dos regimes totalitaristas.
O filósofo genebrino parece fazer jus às críticas que colocam a sua obra como uma
precursora do pensamento autoritarista, uma vez que defende em seus escritos que o
contrato social traria a obrigação de que aquele que se recusa a seguir a “vontade geral”
deve ser forçado a isso pelo restante do corpo político, o que não seria nada mais do que
forçá-lo a ser livre. Forçar alguém a ser livre constitui por si só uma contradição em
termos, que não merece maior aprofundamento.
Finalmente, podemos concordar com o filósofo quando este afirma que um povo
submetido a leis que não aprovou não pode ser considerado livre. Este é justamente o
caso da grande maioria dos Estados-nação modernos, onde os representantes do
legislativo e executivo são eleitos não só como meros criadores das leis, o que por si só já
geraria uma série de distorções, mas também como legitimadores e aplicadores dessas
leis. Esta é na minha opinião, uma das principais causas da crise de representatividade
das democracias modernas, pois os legisladores não dão conta de responder às diversas
demandas sociais existentes, e nem a instituição burocrática em que estão inseridos é
capaz de acompanhar o ritmo de transformações constantes pelo qual passa a sociedade.
Considerações finais