Você está na página 1de 13

Universidade Federal do ABC

Bacharelado em Ciências & Humanidades


Lucas Silva Souza
RA: 21001912
Disciplina: Filosofia Política
Professor: Bruno Nadai

Não nos representam: O pensamento


contratualista de Hobbes e Rousseau frente a crise da
democracia representativa
Introdução.

A crise de representatividade é um tema que está bastante em voga na atualidade,


principalmente no contexto brasileiro, marcado pelos incessantes escândalos de
corrupção e também pela má gestão dos recursos públicos. Neste cenário, é crescente a
desconfiança da população com a classe política, ou seja, aumenta o descrédito dos
políticos profissionais como um todo, sejam estes pertencentes ao poder executivo ou
legislativo, o que leva a população a se sentir cada vez menos representada por eles.
Os teóricos clássicos da filosofia política apresentam em suas obras distintas
justificações à respeito do que legitima, ou não, a ideia de representação. Dois deles em
especial, chamam a atenção por parecerem partir de pressupostos semelhantes e
chegarem em conclusões aparentemente opostas: Hobbes e seu Leviatã de autoridade
incomensurável e Rousseau, para o qual o poder soberano emana do povo e é imanente
a este.
Analisarei neste artigo a questão da representação para estes dois autores,
destacando o papel da vontade na obra de ambos. Para tanto, farei uma introdução à
cerca do contratualismo defendido pelos filósofos supracitados nas obras “Do Cidadão” e
“Do contrato social”, em seguida, culminarei com uma crítica ao modelo de representação
defendido tanto pelo filósofo inglês, quanto pelo genebrino, à luz da crise de
representatividade pela qual passam os Estados modernos desde seu surgimento, e
principalmente na atualidade.
Hobbes e a emergência do Leviatã

Thomas Hobbes nos apresenta em suas obras “Do Cidadão” e “Leviatã” os


pressupostos que sustentam a sua teoria contratualista do Estado. A teoria política
hobbesiana almeja, segundo Frateschi (2010), substituir o princípio de que os homens
são seres políticos por natureza, como é defendido por Aristóteles, pelo princípio do
benefício próprio, segundo o qual a natureza humana conduz à procura do que o homem
considera bom para si mesmo, sendo todo o restante desejado em consequência desse
fim, inclusive a união em sociedade.
O filósofo argumenta nos primeiros parágrafos de sua obra “Do Cidadão” que a
associação civil não ocorre de forma natural, ou seja, porque não poderia ser de outro
modo, mas acontece por acaso. Isso aconteceria, segundo Hobbes, pois os homens
desejariam a companhia de outros homens apenas buscando honra e proveito próprio. A
prova apresentada pelo autor de que a sociedade civil não seria naturalmente
necessária, é a de que muitas vezes a guerra e o domínio são utilizados para o mesmo
fim, o benefício próprio.
Ainda segundo o autor, os homens buscam incessantemente pelas coisas que
seriam boas para si e fogem do que seria mal, sendo a morte considerada o pior dos
males. Os homens seriam iguais em direitos por natureza, porém, a partir de suas
diferenças intelectuais e físicas, nenhum homem poderia se julgar superior a algum outro,
pois até o mais fraco pode derrotar alguém mais forte se sua astúcia for maior ou aliando-
se a outro homem, daí decorre uma das explicações do porque no estado de natureza os
homens temem por suas vidas recíprocamente. Hobbes afirma também que alguns
homens teriam a tendência de dominar outros homens, e estes, por sua vez, teriam o
direito legítimo de contra-atacá-los visando preservar a própria vida. O filósofo afirma
também que no estado de natureza todos tem direito à todas as coisas. Essas seriam as
razões, segundo Frateschi (2010) pelas quais Hobbes define o estado de natureza como
sendo um estado de guerra de todos contra todos.
Dessa formulação, Hobbes infere a sua primeira “lei da natureza”, segundo a qual:

“devemos procurar a paz, quando esta possa ser


encontrada, e se não for possível tê-la, que
equipemos com os meios necessários para a guerra”
(Hobbes, 2002, pag. 38).

A partir desta lei, decorre-se a primeira lei especial da natureza, segundo a qual
nenhum homem deve conservar o seu direito sobre todas as coisas, pois, se este direito
fosse mantido, alguns homens se julgariam no direito de invadir a propriedade de outros
homens, e estes teriam o direito de se defender daqueles, o que levaria a um cenário de
guerra iminente.
Nos capítulos seguintes de “Do Cidadão”, Hobbes pretende nos convencer através
de seus argumentos, que a mera compreensão das leis da natureza não leva
consequentemente à paz, mas seria necessário um poder superior coercitivo que as
fizessem cumprir. Logo no início do capítulo V, Hobbes declara que as ações dos homens
decorrem sempre da esperança ou do medo, ou seja, se um homem espera obter um
bem maior ou um mal menor ao violar determinada lei, ele certamente assim o fará, pois
como vimos anteriormente, os homens estão sempre em busca de seu próprio benefício.
Dessa forma, segundo Hobbes, enquanto não houver garantia contra a agressão
praticada por outros homens, cada um conserva seu direito primordial à autodefesa por
todos os meios que puder ou quiser utilizar, isto é, um direito a todas as coisas, ou direito
à guerra.
Na sequência, Hobbes vai argumentar o que proporciona a segurança necessária
para que a lei natural possa ser exercida. Segundo o autor, essa segurança só é
garantida a partir do consentimento de muitas pessoas, pois se essa concórdia existir
entre dois ou três, esse pequeno grupamento seria facilmente derrotado por algum outro
mais numeroso. Porém, já no parágrafo seguinte, Hobbes argumenta que o
consentimento de muitas pessoas por si só não é suficiente para assegurar a paz entre os
homens, levando em consideração as divergências que podem existir dentro desse
grupamento quanto aos meios necessários para alcançar esse fim. Dessa forma, algo
mais deveria ser feito para que aqueles que consentiram em cooperar uns com os outros
em nome da paz, possam ser contidos pelo medo, de modo que posteriormente não
venham a divergir quando o seu interesse particular for diferente do interesse comum.
Nos parágrafos subsequentes, Hobbes irá discorrer à cerca da necessidade da
união entre os homens, ou seja, de uma vontade única, geral, e irrestrita para que seja
alcançada a paz comum:

“Portanto, se a convergência de muitas vontades rumo


ao mesmo fim não basta para conservar a paz e promover
uma defesa duradoura, é preciso que, naqueles tópicos ne-
cessários que dizem respeito à paz e autodefesa, haja tão-
somente uma vontade de todos os homens. Mas isso não se
pode fazer, a menos que cada um de tal modo submeta sua
vontade a algum outro (seja este um só ou um conselho)
que tudo o que for vontade deste, naquelas coisas que são
necessárias para a paz comum, seja havido como sendo von-
tade de todos em geral, e de cada um em particular. E a
reunião de muitos homens que deliberam sobre o que deve
ser feito, ou omitido, é o que eu chamo de conselho.”
(Hobbes, 2002, pag. 95)

Então Hobbes define a união como sendo a submissão de vontades de todos à de


um homem ou conselho, em que cada um deles se obriga, por contrato, ante cada um
dos demais, a não resistir à vontade do indivíduo ou conselho a quem se submeteu, isto
é, a não lhe recusar o uso de sua riqueza e força contra quaisquer outros. O medo
necessário para assegurar o cumprimento das leis da natureza finalmente toma forma,
pois, nas palavras de Hobbes:

“(…) aquele que submete sua vontade à vontade


de outrem transfere a este último o direito sobre
sua força e suas faculdades de tal modo que,
quando todos os outros tiverem feito o mesmo,
aquele a quem se submeteram terá tanto poder
que, pelo terror que este suscita, poderá
conformar as vontades dos particulares à
unidade e à concórdia.”
(Hobbes, 2002, pág. 96)

Essa união, constituiria o que Hobbes define como sendo a cidade, ou uma
sociedade civil, ou ainda uma pessoa civil, uma vez que, quando de todos os homens
emana uma só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa, distinguindo-se de
todos os particulares, tendo seus próprios direitos e particularidades. Portanto, como
defende Frateschi (2010), o acordo entre os homens para Hobbes seria artificial.
Segundo a comentadora, para que haja acordo entre os interesses de um homem e o
interesse de outros homens, se faz necessário que as suas vontades individuais estejam
submetidas à vontade da pessoa civil, ou melhor, que as vontades individuais cedam
lugar à vontade da pessoa civil. Para isso, seria necessário sair do estado de natureza,
em que cada homem é dirigido pela sua vontade particular, ou seja, seria necessário um
artifício, a criação do Estado.
Para Frateschi (2010), o que caracteriza a vida política na obra hobbesiana é a
instituição do Estado, que traz à tona uma única vontade, a dirigir a vida de todos nas
questões de guerra e paz. O argumento que sustenta a instituição do bem comum,
segundo a comentadora, sustenta-se na ideia de que não é possível ocorrer uma legítima
união das vontades ao redor de um benefício comum, a não ser que todas as vontades
privadas se submetam à vontade daquele ou daqueles que detêm o poder soberano. Isso
aconteceria porque não existiria consenso natural, pois o desejo dos homens (ou de
alguns deles) seria desejo de preponderância, e também porque, seguindo o seu
benefício próprio, os homens prontamente descumprem acordos aos quais não são
obrigados pelo medo de punição.
Chegamos finalmente então à questão da representação em Hobbes. Segundo
Mattos (2011), a unidade expressa como uma “vontade de muitos” permite que a vontade
de um determinado número de pessoas seja entendida como a vontade de uma “única
pessoa” (a pessoa civil) e que esta, por sua vez, seja a expressão da vontade de cada
pessoa. Dessa forma, ainda de acordo com o comentador, para Hobbes uma multidão de
pessoas torna-se uma pessoa artificial a partir do momento em que esta é representada
por uma assembleia ou por uma única pessoa, de modo que esta representação seja
consentida por todos aqueles que participam de tal multidão. O soberano emerge assim
de forma separada da multidão à qual confere unidade política, tendo como prerrogativa
identificar a sua vontade com a vontade dessa mesma multidão.
Contudo, Mattos (2011) afirma que a única maneira de conceber a unidade de uma
certa multidão é através da sua representação política, na forma de uma “pessoa
artificial”, pois, de acordo com Hobbes, seria a unidade do representante e não a do
representado que possibilitaria o surgimento de uma pessoa única. Dessa maneira,
escolher uma pessoa ou uma assembleia como representante legítimo é primeiramente,
compreender a representação como apta em resumir as diversas vontades presentes na
multidão em uma única vontade expressa na pessoa representante do poder soberano.
A representação política para Hobbes pode então ser compreendida por meio de
sua definição de “pessoa artificial”. Segundo o autor, “pessoa artificial” seria aquela cujas
palavras e ações são consideradas como palavras e ações de outro. Desse modo,
podemos inferir que a pessoa natural é aquela que confere a autoridade para que o
representante atue em seu nome, e a “pessoa civil” seria aquela que por direito e
consentimento, possui autoridade para agir em nome do representado. Segundo Mattos
(2011) a representação política hobbesiana deixa transparecer uma nítida relação de
“dependência e necessidade”, entre as ações do Estado e a vontade dos súditos ou
cidadãos que o constituem. De acordo com esse comentador, não haveria como os
detentores do poder soberano cometerem algum tipo de arbitrariedade, pois as suas
ações nunca agiriam contra a vontade dos seus representados, uma vez que estes já
consentiram à autoridade agir em seu nome.

Rousseau e a soberania do povo

É em contraposição a tradição política moderna explanada no tópico anterior, que


Rousseau formula a sua obra. Se, para Hobbes, a soberania permanece extrínseca a
comunidade política, constituindo-se como representante da sua unidade através do seu
distanciamento completo da mesma, para Rousseau, em contrapartida, a soberania deve
ser imanente a esta mesma comunidade. De acordo com Sá (2014), o governo da
comunidade política em Rousseau deve ser apenas uma emanação dessa comunidade,
ou seja, uma simples execução daquilo que seria a “vontade geral” imanente a este
comunidade. Desse modo, enquanto Hobbes fala sobre uma multidão inevitavelmente
plural, cuja representação a partir de um soberano externo garante a sua unidade política,
Rousseau afirma um povo homogêneo, possuidor de uma “vontade geral”, cuja unidade
política intrínseca o constitui já como um soberano.
Rousseau diferencia em sua obra a “vontade geral” do que seria a “vontade de
todos”. A vontade geral expressaria uma vontade comum desvinculada da vontade
particular, que é movida por interesses individuais e particulares. Nas palavras do autor:

“Há muitas vezes grande diferença entre a vontade de todos e a vontade


geral: Esta olha somente o interesse comum, a outra o interesse privado, e
outra coisa não é senão a soma de vontades particulares; mas tirai
dessas mesmas vontades as que em maior ou menor grau reciprocamente
se destroem, e resta como soma das diferenças a vontade geral.”
(Rousseau, 2011, pág. 44)
Deste modo, a vontade geral não é para Rousseau a soma de todas as vontades
individuais, resultado do equilíbrio e do debate entre vontades e opiniões distintas, mas
ela é primeiro a vontade pressuposta de um todo homogêneo, que é representada como
estando subjacente a cada indivíduo pertencente a esse todo. (Sá, 2014)
O povo representado pela democracia de Rousseau não constitui uma sociedade
plural, marcada pela diversidade e mesmo por contradições insuperáveis, mas sim um
todo homogêneo, que tem nessa homogeneidade a condição principal que possibilita a
sua liberdade. Nesses termos, segundo Sá (2014) a liberdade para cada cidadão
corresponde à necessidade de descobrir em si a própria vontade geral, distinta da
vontade particular que provém da sua própria opinião e de seu próprio entendimento das
coisas.
A partir daí, Rousseau nos apresenta o que ficaria conhecido mais tarde como o
“paradoxo da liberdade”. Segundo ele, o pacto social apresenta tacitamente a obrigação
de que quem se recusar a aceitar a vontade geral seja constrangido a isso pelo corpo
social em conjunto, o que significaria para o filósofo nada mais do que forçar essa pessoa
a ser livre.
A liberdade para Rousseau seria então a capacidade do cidadão exercer a sua
soberania coletivamente. E como se dá essa soberania? Através do poder legislativo. O
autor enfatiza em sua obra a conexão entre soberania e poder legislativo para deixar claro
que apenas o que for ratificado pelo povo soberano através do voto pode ser considerado
lei. Dessa forma, segundo Gomes (2006), o legislativo não pode ser representado, já o
executivo, que é submisso a esse poder, pode. O único meio de proteger a liberdade de
um povo é respeitando sua vontade geral, o que, segundo Rousseau, não seria possível
através da representação política.
A representação no poder legislativo retira a legitimidade das escolhas feitas pelo
representantes, não concebendo dessa forma, que as regras formuladas por eles sejam
validadas como leis. Segundo Rousseau, a soberania não pode ser representada pelo
mesmo motivo que não pode ser alienada, pois consiste em sua essência na vontade
geral e a vontade não pode ser representada de forma alguma.
Rousseau crítica a forma como são nomeados os representantes do poder
legislativo, que seriam eleitos não apenas como formuladores das leis, mas também
possuiriam o poder de ratificá-las como tais. De acordo com Gomes (2006), para o
filósofo, um povo que não tem mais o poder legislativo, perde também a sua soberania, e
os indivíduos que o compõem não podem mais ser considerados cidadãos, mas sim
escravos, ou absolutamente nada. Aquele que se submete a leis instauradas por terceiros
não pode se considerar livre, uma vez que está obedecendo a vontade de outrem. Sendo
assim, um povo submetido à leis que não validou tão pouco está livre.
Desse modo, Rousseau está argumentando que a soberania do povo, que
corresponde à sua própria liberdade, só pode ser exercida através do sufrágio popular,
decidindo sobre as leis que irão reger este próprio povo. Compreende-se que o poder
legislativo não é passível de ser delegado à outras pessoas, pois dele emana a “vontade
geral”, ou seja, a própria soberania do povo. A “vontade geral” por sua vez, seria
consultada periódicamente por meio de assembleias, onde o povo decidiria sobre quais
leis são válidas ou não, bem como sobre a forma de governo escolhida e a permanência
dos funcionários públicos que ocuparam os cargos. Um dos argumentos rousseaunianos
contra a representação seria o de que os representantes seriam facilmente corrompidos,
embora dificilmente enganados, em contrapartida, o povo seria facilmente enganado,
porém arduamente corrompido.
Finalmente, resta-nos falar sobre o governo ideal para Rousseau. O autor
genebrino afirma já no título do VIII capítulo da terceira parte de seu “Do contrato social”
que a melhor forma de governo depende do que é mais adequado para cada país. O
filósofo apresenta-nos neste mesmo capítulo uma regra que diz que a medida que
aumenta o número de governantes, diminui a distância entre o povo e o governo. Para o
filósofo em uma democracia não há mediadores, logo não à distância alguma entre o
povo e o governo. Porém, embora demonstre essa predileção pela democracia, Rousseau
afirma no capítulo destinado a falar sobre esta forma de governo, que tal regime político
jamais existiu realmente e nunca existirá.
Para o autor uma verdadeira república democrática deveria ter a participação de
todos, inclusive no que tange ao poder executivo. Então de que forma poderia ocorrer
essa participação? Podemos inferir da obra de Rousseau a inegável clareza com que o
autor aponta a necessidade da participação no legislativo como condição necessária à
soberania. Nesses termos, caberia à população soberana, decidir sobre os projetos de lei
que fossem propostos. Porém, para que isto possa ocorrer da maneira mais justa
possível, o filósofo destaca em suas obras que o povo deveria ser esclarecido, o que
aconteceria por meio de uma educação pública que formasse cidadãos virtuosos. Na
atualidade, de acordo com o pensamento rousseauniano de que cada país deve recorrer
à forma de governo que lhe for mais apropriada, temos visto sem dúvida que o modelo
adotado pela maior parte dos Estados tem sido a democracia representativa.
Nem Hobbes, nem Rousseau, tá bem Locke?

Esclarecido os pontos principais a respeito da ideia de representação para os


autores apresentados, faremos agora uma breve interpretação dos conceitos sugeridos
até aqui, frente a crise da democracia representativa que vêm ganhando cada vez mais
destaque na atualidade.
Primeiramente vamos criticar a concepção de natureza humana defendida por
Hobbes, que é justamente o alicerce de toda construção téorica do autor quanto a
necessidade do consenso na formação de um arranjo estatal para gerir a vida dos
homens em sociedade. Os críticos da noção de estado de natureza argumentam que tal
estado nunca teria existido na prática, não passando apenas de uma abstração teórica
sem correspondência com a realidade. Hobbes da conta em parte dessas críticas
argumentando em seu “Leviatã” que em alguns lugares da América os povos selvagens
que vivem sem o julgo de um governo centralizado se encontrariam nesta exata condição
de bárbarie que ele descrevera até então. Porém, nota-se que o filósofo, ao citar tão
brevemente esses povos “selvagens”, não dá maiores detalhes sobre sua forma de
organização social, seus ritos e cotidiano, o que nos leva a crer que o autor tinha pouco
embasamento para incorrer em inferências desse tipo.
Mais a frente nesta mesma a obra, Hobbes aponta uma outra razão que levaria a
inevitável conclusão da necessidade de um poder supremo para reger a vida em
sociedade:

“Seja como for, é fácil conceber qual era o gênero de vida quando não havia poder comum a
temer, pelo gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo
pacífico costumam deixar-se cair numa guerra civil.” (Hobbes, Leviatã, cap. XIII)

Dessa passagem, podemos inferir claramente que Hobbes está se referindo à sua
experiência durante o conturbado período pelo qual passou a Inglaterra no século XVII.
No início desse século o país enfrentou revoltas populares na Irlanda e Escócia, que
culminaram com uma guerra civil e com a condenação do então soberano à morte.
Podemos inferir desse fato que as conclusões a que Hobbes chegou dizem mais sobre o
dito homem “civilizado” quando na ausência de um poder instituído, do que sobre o
homem supostamente “selvagem” em seu estado de natureza.
Superado esse primeiro obstáculo, voltamos o foco para sua obra “Do Cidadão”,
em que Hobbes sustenta que nas questões que envolvem a guerra e a paz, ou no limite, a
vida e a morte, deve existir apenas uma única vontade entre os homens. Vimos que para
o filósofo, isso aconteceria quando da submissão das vontades particulares à vontade de
um só homem, ou de um conselho de homens. Ora, mas será que pode a vontade de
UM, seja um conselho, ou um homem, corresponder à vontade de todos? Um
representante ou um conjunto de representantes quaisquer nunca poderiam dar conta da
complexidade de vontades existentes em uma população e tão pouco podemos ser
ingênuos a ponto de acreditar que os detentores do poder soberano estariam dispostos a
conformar a sua vontade à vontade do povo.
A questão da vontade nos remete diretamente a Rousseau e sua defesa da
“vontade geral”. Ao contrário de Hobbes, Rousseau aparentemente não fala da submissão
das vontades individuais à vontade de um soberano. Ao menos não diretamente, pois
quando analisamos com calma o conceito de “vontade geral” argumentado pelo
genebrino, podemos notar a semelhança com a vontade soberana descrita por Hobbes.
Esclareço: No pensamento rousseauniano fica clara a necessidade de um arrefecimento
em cada indivíduo de suas vontades particulares, em nome da descoberta em si de uma
suposta “vontade geral”, que por sua vez estaria contida em alguma de suas vontades
privadas.
No entanto, podemos concluir positivamente sobre a necessidade da submissão
das vontades individuais da população à “vontade geral”, o que não deixa esta parte da
obra de Rousseau tão distante do pensamento hobbesiano. Podemos notar também o
quanto essa uniformidade de pensamento é perigosa em ambos os casos, pois inúmeras
vezes na história pudemos ver casos em que uma suposta unanimidade, ou até mesmo
“vontade da maioria” levou a inúmeras atrocidades, tendo como o seu maior exemplo até
hoje, o surgimento dos regimes totalitaristas.
O filósofo genebrino parece fazer jus às críticas que colocam a sua obra como uma
precursora do pensamento autoritarista, uma vez que defende em seus escritos que o
contrato social traria a obrigação de que aquele que se recusa a seguir a “vontade geral”
deve ser forçado a isso pelo restante do corpo político, o que não seria nada mais do que
forçá-lo a ser livre. Forçar alguém a ser livre constitui por si só uma contradição em
termos, que não merece maior aprofundamento.
Finalmente, podemos concordar com o filósofo quando este afirma que um povo
submetido a leis que não aprovou não pode ser considerado livre. Este é justamente o
caso da grande maioria dos Estados-nação modernos, onde os representantes do
legislativo e executivo são eleitos não só como meros criadores das leis, o que por si só já
geraria uma série de distorções, mas também como legitimadores e aplicadores dessas
leis. Esta é na minha opinião, uma das principais causas da crise de representatividade
das democracias modernas, pois os legisladores não dão conta de responder às diversas
demandas sociais existentes, e nem a instituição burocrática em que estão inseridos é
capaz de acompanhar o ritmo de transformações constantes pelo qual passa a sociedade.

Considerações finais

Diante do exposto até então, acredito que a crise de representatividade só será


ultrapassada quando da superação do pensamento contratualista e sua substituição por
outras formas de fazer política, mais ligadas à democracia direta e participativa, essa
mesma desacreditada por Rousseau. Concordo com o genebrino quando ele fala que
esse tipo de regime só é possível em Estados menores, por isso defendo que a crise de
representatividade, ou a crise política de nossos tempos, tem como possível solução uma
redução na escala em que são formados os arranjos políticos. Quanto mais fragmentados
e autônomos os grupamentos humanos, mais fácil a aplicação dos conceitos de
participação defendidos por Rousseau em obra.
Referências bibliográficas:

FRATESCHI, Yara. A Física da Política. Campinas: Unicamp, 2008. 175 p.

GOMES, Fernanda da Silva. Rousseau- Democracia e Representação. 2006. 105 f.


Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Ética e Filosofia Política, Pós-graduação
em Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/88818/225138.pdf?sequence=1>.
Acesso em: 15 dez. 2015.

MATTOS, Delmo. Representação e autoridade política em Hobbes: Justificação e sentido


do poder soberano. Princípios, Natal, v. 18, n. 29, p.63-98, jan. 211. Quadrimestral.
Disponível em: <http://www.periodicos.ufrn.br/principios/index>. Acesso em: 16 dez. 2015.

SÁ, Alexandre Franco de. Rousseau e a questão da representação. Estudos Filosóficos,


São João Del-rei, v. 1, n. 12, p.48-57, dez. 2014. Semanal. Disponível em:
<http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos>. Acesso em: 17 dez. 2015.

Você também pode gostar