As antinomias da liberdade e a hierarquia dos valores
Viveremos uma crise de valores?
À medida que toma consciência da sua dimensão moral, o ser
humano vai formando e ordenando uma tábua de valores a qual será tanto mais sólida e coerente quanto mais madura e esclarecida for a sua liberdade e a sua responsabilidade. Na verdade, o ser humano, enquanto ser moral e racional, define a qualidade das coisas, atribuindo a estas coisas um valor de acordo com a sua importância antropológica ou existencial. A definição objectiva dos valores e seu escalonamento hierárquico são uma função transcendente (muito importante, divina) e inalienável (que não pode ser feito por mais ninguém, a não ser pela própria pessoa) da consciência. Contudo, na actualidade, a hierarquia dos valores (a ordenação dos valores por ordem de importância, dos mais para os menos importantes) está miseravelmente pervertida ou adulterada. O que seduz a maioria das pessoas não são ideais de Espírito, ideais de Sabedoria e de Verdade porque a opção por estes valores não produz resultados imediatos ou instantâneos. O que leva as multidões, despersonalizadas, a formar anarquicamente (sem qualquer organização, «atabalhoadamente», «ao calhas») uma tábua de valores prende-se com objectivos hedonistas (que buscam apenas os prazeres sensuais) e utilitários (fazem-se amizades a pensar nos benefícios que ela me pode trazer), ou, então, o que é mais grave, de acordo com critérios de escolha acentuadamente materialistas e ateus (que negam Deus, tanto na teoria como na prática). É claro que a opção por este estilo de vida (pagão, materialista, sensual) proporciona quase instantaneamente os resultados que se desejam ver alcançados. De facto, o que vale pouco custa pouco a alcançar. Mas o mais grave é que este vale pouco (que para essas pessoas pagãs vale muito) chega a inflacionar-se de tal maneira até que se chega a uma situação limite insustentável em que somos obrigados, pela energia subtil da consciência, a apelidá-lo de anti-valor. Por exemplo, uma pessoa que se entregue à droga fica de tal modo dependente dessa substância que, em pouco tempo, já não é ela que consome droga, mas é a droga que a consome e a transforma num farrapo humano. Estas vivências, em que o absurdo impera, são frequentes na nossa aventura terrena e sinal da nossa fragilidade física, psicológica e moral. Uma amizade, por exemplo, não se constrói num curto espaço de tempo nem a partir de um fugaz impulso erótico (mera atracção física). Pelo contrário, demora anos e anos a espiritualizar-se, a humanizar-se, a tornar-se divinamente autêntica e altruísta (contrário de egoísta, isto é, que pensa mais nos outros do que em si própria). A aposta prioritária nas realidades materiais e hedonistas (realidades que só reconhecem valor, respectivamente, no ter e no prazer) não só desvirtua a nobreza do ser humano como o faz assemelhar-se à mais pura e instintiva animalidade. As conquistas feitas pelo ser humano nos domínios da ciência e da técnica são de louvar e de incentivar até ao ponto em que delas nos tornarmos desgraçados escravos. Por exemplo, os jovens e os adultos, hoje, parece que não conseguem passar sem «próteses» no seu próprio corpo: auscultadores nos ouvidos, computadores no regaço, auriculares nas orelhas, etc.). A aplicação massificada desses admiráveis modelos teóricos e técnicos, cada vez mais robotizados (automatizados), está aos poucos a neutralizar as nossas virtudes e a comprometer as nossas potencialidades genuinamente humanas. Por isso não admira que a relação personalizada e o contacto face-a-face seja cada vez mais desvalorizado, tornando-se uma realidade rara no contexto das relações humanas. O sentido teológico da existência – visão originariamente cristã – está terrivelmente ameaçado e comprometido. Alguns defendem a posição de que o progresso científico-tecnológico relegou a filosofia , a ética e a religião para um plano de inferioridade tornando-se até dispensáveis, retrógradas ou fora de moda. Pois eu considero justamente o contrário: a filosofia, na sua matriz grega, está no apogeu da sua antiga e longa História. A cultura do audiovisual, dos media, a cultura da prova e da verificação são realidades tão reais quanto ameaçadoras e surreais. De facto, esta filosofia (identificada com a ciência), que mais tarde seria eudeusada (venerada) pelo positivismo e pelo iluminismo dos séculos XVIII, XIX e XX (manifestada na crença cega no progresso), tende a considerar apenas as realidades susceptíveis de confirmação empírica e racional, excluindo as que não se enquadrarem nestes redutores critérios epistemológicos ou científicos. Por exemplo, estes cientistas e filósofos são semelhantes a São Tomé que só acreditou na aparição de Jesus aos discípulos depois de ter metido o dedo nas Suas Divinas Chagas e não pelo relato dos Apóstolos…) Isto é, estes pensadores, iluminados, só acreditam no que vêem e dizem que a fé é própria das crianças que ainda não despertaram para a razão. Realidades como o amor, a liberdade, a justiça, o bem, a honestidade, o belo, Deus, a alma, o espírito não passam de fantasias e de divagações próprias dos filósofos e dos crentes as quais não se podem provar nem pela razão nem pela experiência. Os que trabalham na filosofia – ela não cessa de nos pregar rasteiras, decompondo os nossos frágeis raciocínios – podem constatar que, frequentes vezes, a nossa costela helénica entra em conflito com a tradição judaico-cristã de que somos herdeiros e até mensageiros e profetas. Os gregos sempre tentaram investigar o princípio constitutivo da realidade, a arché, ou elemento primordial a partir do qual se formaria o cosmos. O saber deles era uma verdadeira arqueologia pois tentaram sondar as origens do real, identificando a substância que estaria na origem do Universo. Era a atitude daqueles que, com os olhos na razão, viam para além das aparências. Muitos são os exemplos que dão forma a este modelo de pesquisa racional autónoma. Pelo contrário, a religião, a doutrina revelada na tradição judaico-cristã sempre se apoiou no mistério, na fé, no oculto, no invisível, no insondável, na esperança de uma existência mais autêntica e mais pura. Efectivamente, ter fé é dar um salto no escuro confiando no Verbo Iluminador e estendendo esta sinergia (energia que irradia) aos outros, nossos companheiros nesta aventura terrena, cheia de angústias, de inquietações, de dúvidas, de sonhos mas também de ideais e de certezas. A atitude de fé consiste numa sintonia crescente da nossa inteligência e da nossa sensibilidade com o Sopro terno, suave mas ardente do Espírito. Nunca poderemos acender uma fogueira se ela não permitir a circulação do ar no seu interior. Da mesma forma, a semente da fé não frutificará se não for cuidadosamente regada e se não se abrir à fecundidade da voz do Espírito que habita, subtil, no nosso íntimo. Ora, hoje em dia, urge recolocar o problema do sentido da existência, perspectiva singularmente cristã (porque não fazia acepção de pessoas tratando toda a gente com a mesma dignidade, atribuindo- lhe inclusive uma filiação divina), porque vivemos numa sociedade orientada por critérios economicistas, laicistas (visão do Estado Moderno que separa a Igreja do Estado, visando, em última instância, o silenciamento daquela) e pragmáticos. Por outro lado, o marxismo nunca esteve tão efervescente e tão próximo de nós: as pessoas estão convencidas de que é a base económica e produtiva que determina o seu estatuto social e, o que é mais grave, são essas infra-estruturas que condicionam e determinam a natureza das consciências individuais. Paralelamente, as modernas sociedades capitalistas enfatizam a lógica do ter sobre o ser, do dinheiro sobre a dignidade, da vontade do poder sobre a humildade do servir, a comodidade da mentira sobre a frontalidade da Verdade. Pilatos, quando interrogava Jesus no Pretório, julgou que esta realidade antropológica e divina (a Verdade) seria conceptualizável ou definível, mas o Seu interlocutor respondeu-lhe com um sábio e eloquente silêncio, dando a entender que a Verdade atinge-se pela coerência de vida e não apenas pela pura reflexão, divorciada da existência concreta. Descobrir a sua essência significa vertê-la para a existência, o que se traduz na capacidade de assumirmos compromissos com os outros baseados em valores humanistas, sempre abertos à transcendência. A cultura espiritual está, contudo, muito abafada e a este sufoco não é, com certeza, alheio o culto pagão das aparências e dos bens supérfluos, cuja importância é multidimensionada no ecrã mágico, através das mais variadas estratégias visuais e acústicas. Solicitado pelos mais diversificados agentes sócio-culturais, o ser humano queixa-se pelo que tem, o que usufrui é sempre pouco, lamenta-se que não tem tempo, numa palavra, o ser humano só está bem onde não está, e este «estar» não deve ser entendido num sentido unicamente físico. É que a criatura humana marca presença de muitas maneiras, mesmo estando fisicamente ausente, temporária ou definitivamente... A vida humana está pulverizada (saturada, cheia de) de meios que se tornaram maleficamente (advérbio de mal) fins em si mesmos. Qualquer doutrina ética que se preze tem obrigatoriamente que definir com rigor e clareza o que entende ou toma por bem. Em função disto é que podemos ou devemos aferir (julgar, avaliar, averiguar) da legitimidade ou incongruência (falta de coerência) de certos meios mesmo que estes sejam eleitos para a prossecução de fins benéficos. É que nem sempre os fins justificam os meios. Os valores superiores que constituem o fim legítimo da Humanidade exigem uma humanização dos meios. Como facilmente se depreende – esta logicidade (coerência) escamoteia-se (perde-se, dilui-se) muitas vezes na acção concreta – só o homem pode dignificar e humanizar as coisas porque só nele podem operar a clarividência da razão e a bondade do coração em saudável harmonia. É a partir desta simbiose inteligência-coração, razão-fé, ciência- sabedoria, que o ser humano se pode considerar e assumir como criador de valores, adaptando à sua vida modelos cristãos de vivência, cheios de significado e fantasticamente actuantes. O grande equívoco do pensamento filosófico grego de propensão sofística, mas não só…, foi ter considerado o homem como microcosmos privilegiado, como medida de todas as coisas. Ao tomarmos o ser humano como criador axiológico por excelência, excluímos logo à partida qualquer modalidade de indiferença ou de neutralismo ético. Como diz Jesus Cristo, quem não é por mim é contra mim. Não há possibilidade de assumirmos uma postura de indiferença porque a própria indiferença é já uma atitude com um significado antropológico bem explícito. A criação de uma cultura espiritual, assente em valores autênticos e perenes, pressupõe a existência de uma aristocracia do espírito. Este sentido peculiarmente aristocrático não significa que os valores só existam para uma elite, antes explicitam o quão exigentes eles são de alcançar. Daí que o grande criador seja sempre individual (as multidões são frequentes vezes irracionais e muito emotivas), livre e responsável porquanto não suporta constrangimentos, e é aristocrático na medida em que rejeita qualquer promiscuidade ou acosmia social o que não quer dizer, muito longe disso, que se envaideça com a nobreza interior de que Deus o fez depositário.
Luís Miguel da Silva Rodrigues de Almeida.
Inspirado substancialmente nas Cinco meditações para a existência de