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RESENHA todavia, as diferentes combinações dos critérios


tradicionais de idade, riqueza e saber, mostraram-
se insuficientes para abonar todas as situações
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Democracia. São emergentes. De modo a avalizar a própria razão
Paulo: Boitempo Editorial, 2014. 125 p. de ser da política, necessário se fez, portanto, a
criação de um princípio suplementar de autoridade,
Salviana de Maria Pastor Santos Sousa1 mais justo, capaz de garantir o poder de governar
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) outras pessoas àqueles que não possuíam nenhum
dos títulos reconhecidos. Trata-se do procedimento
Nascido em Argel em 1940, formado nos democrático pelo qual “[...] um povo de iguais decide
anos 1960, em Paris, e aposentado como professor a distribuição de lugares.” (p. 55).
emérito da Universidade de Paris VIII, Jacques Na medida, portanto, em que a concretização
Rancière é dos mais importantes filósofos da da democracia não exige nenhum princípio uno da
atualidade. Publicou variados trabalhos, entre os comunidade que legitime a ação dos governantes,
quais: O Desentendimento - Política e Filosofia, seu surgimento, segundo o autor, constituiu-se uma
A partilha do Sensível, A Noite dos Proletários, forma de autorização, mas também um escândalo.
Políticas da Escrita, O destino das Imagens, A Este reside no fato de as pessoas de bem não
Fábula Cinematográfica. admitirem que “[...] seu nascimento, sua ancianidade
O livro que referencia a presente resenha ou sua ciência tenha que se inclinar diante da lei da
denomina-se O Ódio à Democracia. Foi publicado sorte.” (p. 56).
em 2005, na França e lançado no Brasil, em 2014, Essa forma de ruptura com os dois princípios
pela Boitempo Editorial. Como é do seu feitio, centrais que autorizam o exercício do poder é o
Rancière traz ao debate público, de forma densa e que, do ponto de vista de Rancière, aqui ou alhures,
tensionada, nesse trabalho, o tema da democracia, hoje como ontem, faz com que a democracia
fazendo um circuito letrado pela história da filosofia conviva com dois adversários de peso: um inimigo
política. claramente identificado, conforme a época- tirania,
Nesse circuito ilustrado, apresentam-se ditadura ou totalitarismo- e um mal abstruso- a vida
vivamente autores de diferentes épocas que democrática-, principalmente em seus momentos de
trazem respeitáveis contribuições para a reflexão maior intensidade. E é a vida democrática o tema
sobre a democracia, entre os quais se destacam: que mobiliza aqueles que odeiam e os que criticam
Platão, Aristóteles, Rousseau, Maquiavel, Karl essa forma de convivência societária.
Marx, Friedrich Engels, Hannah Arendt, Benjamin Para o autor, nas duas formas históricas da
Constant, Michel Crozier, Samuel Huntington, Pierre crítica à democracia, encontram-se, de um lado, os
Rosanvallon, John Adams, Jean-Claude Milner, que reconhecem sua existência com o escopo de
François Furet, Claude Lefort, Alfred Fouillée, Jules definir limites, contê-la para preservar dois bens
Ferry. considerados sinônimos: o governo dos melhores
Nas 125 páginas do texto, Rancière recupera, e a defesa da ordem proprietária. De outro lado,
com maestria, a indisposição que a democracia há o pensamento marxiano que buscou desvendar
provoca naqueles que, independentemente do a essência por trás da aparência de democracia
tempo e do lugar de nascimento, consideram- no reino da propriedade, que é o fundamento da
se titulares do poder de outorgar vida e morte ao constituição republicana. Sendo que na diretriz
restante dos mortais. Congrega esse debate nos central que orienta esse pensamento, é a luta contra
quatro capítulos centrais do livro, assim, nomeados: a aparência de democracia legitimadora da ordem
Da democracia vitoriosa à democracia criminosa; A burguesa que se constitui a via para a construção de
política ou o pastor perdido; Democracia, república, uma democracia real.
representação e As razões do ódio. Para Rancière, a democracia apresenta
Rancière relembra que, em Platão, o primeiro uma antinomia que se desnuda na relação entre
a inventar esse modo proclamado de leitura seu ideal, que é o poder do povo, e seu desenho
sociológica próprio da era moderna, a democracia estatal. Isto porque o poder do povo deve ter suporte
é a inversão de todas as relações que estruturam em organismos e formas de ação independentes
a sociedade. Isso porque a história conheceu dois do Estado, enquanto a ação estatal é sempre
grandes títulos de governo dos homens: um que se oligárquica - uma maneira de privatização do
deve à filiação humana ou divina- a superioridade poder de todos em favor de uma minoria, na
pelo nascimento-e outro relacionado à organização atualidade, assentada na denominada democracia
das atividades produtoras e reprodutoras. O primeiro representativa. Tal instituição que é justificada em
fundamenta a ordem da cidade na lei da filiação. razão da complexidade da opção pela escolha
O segundo proclama, não o que nasceu antes- ou popular, na verdade, segundo o autor, seria um
melhor-, mas aquele que é melhor. subterfúgio para que as soluções que dependem
As sociedades sempre foram governadas exclusivamente das decisões dos especialistas não
mediante uma concertação desses dois títulos, sejam submetidas ao voto popular.

R. Pol. Públ., São Luís, v. 19, n 2, p. 529-530, jul/dez de 2015


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Dessa forma, a República, construção política da desigualdade estrutural, em sociedades cada
que melhor encarna esse reino da democracia vez mais marcadas pela concorrência e não pela
representativa, da lei igual para todos, com o solidariedade. Onde o homem democrático é
reconhecimento da soberania popular e das incentivado cada vez mais a constituir-se como “[...]
liberdades individuais, seria assim, na concepção ser insaciável, de mercadorias, direitos humanos e
do autor, um “[...] termo ambíguo, perseguido pela espetáculos televisivos.” (p.111).
tensão implicada pela vontade de incluir nas formas Enfim, pode-se concluir que o texto em exame
instituídas do político o excesso da política.” (p. 82). configura-se como uma proclamação de amor do
Da mesma forma que a autor pela democracia, construção que, segundo
ele, é o que há de mais positivo já produzido em
[...] liquidação do denominado Estado- matéria de política. Longe de ser a forma de luta dos
providência, longe de ser um recuo do indivíduos empenhados na sua felicidade privada,
Estado, é a redistribuição entre a lógica como é pensada por alguns, do seu ponto de vista,
capitalista do seguro e a gestão estatal
a democracia é o processo de luta contra essa
direta de instituições e funcionamentos
que se interpunham entre as duas. (p.
privatização, a ampliação da esfera pública, a luta
105). contra a divisão do público e do privado, divisão que
sempre garantiu a dupla dominação oligárquica no
Mas, o novo ódio à democracia que se constitui Estado e na sociedade.
o fundamento mesmo do livro em tela, segundo o Nesse sentido, para o autor, essa sociedade
autor, tem porta-vozes, em todos os países e se de iguais continua sendo uma utopia que se deixa
volta contra o povo e seus costumes, não contra as apenas vislumbrar através de um conjunto de
instituições democráticas propriamente ditas. relações traçadas sob a forma de atos igualitários
singulares e precários.
Para eles, a democracia não é uma Por fim, uma consideração, reafirmada
forma de governo corrompido, mas ao final do trabalho de resenhista. A obra O ódio
uma crise da civilização que afeta a à Democracia, de Jacques RANCIÈRE, pela
sociedade e o Estado através dela. (p. contribuição singular que apresenta ao denso
10). debate teórico-político sobre o tema da democracia,
constitui-se leitura fundamental à compreensão dos
Porém, caminhos, dilemas e implicações que se mostram
no tempo presente e nas experiências concretas de
[...] os mesmos críticos que não se sociedades e governos que se querem democratas.
cansam de denunciar essa América
democrática da qual viria todo o mal do
respeito das diferenças, do direito das
NOTA
minorias e da afirmathe action [ação
afirmativa] que mina nosso universalismo 1
Assistente Social, Doutora em Políticas Públicas
republicano, são os primeiros a aplaudir
pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
quando essa mesma América trata de
Professora Titular do Departamento de Serviço Social
espalhar sua democracia pelo mundo
e do Programa de Pós-Graduação em Políticas
através da força das armas. (p. 10).
Públicas (PPGPP) da UFMA. E-mail: salvi200@globo.
com
Desse modo, esse discurso duplo traz uma
versão mais perturbadora da fórmula de que a
democracia é pior dos governos, com exceção de
todos os outros: só existe uma democracia boa, a
que reprime a catástrofe da civilização democrática.
E são “[...] governantes e especialistas que calculam
o bom equilíbrio entre o limite e o ilimitado.” (p. 99).
Nesse contexto,

[...] as liberdades dos indivíduos são


respeitadas, à custa de notáveis
exceções em tudo que diga respeito à
proteção das fronteiras e à segurança
do território. (p. 94).

Tal individualismo democrático, imperante nos


países exportadores da democracia, sob a forma de
igualitarismo, exaure os valores coletivos e urde um
novo totalitarismo que se concretiza quando a plena
igualdade jurídica acentua o apoio para a manutenção

R. Pol. Públ., São Luís, v. 19, n 2, p. 529-530, jul/dez de 2015

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