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"A punição à Revolta da Cachaça: Negociação e conflito sobre a ótica do Antigo

Regime"

Autor: João Henrique Ferreira de Castro1

No ano de 1660, uma revolta no Rio de Janeiro motivada por insatisfação de súditos
locais com as ações do governador Salvador Correia de Sá tomou proporções que levaram a
tomada de decisões drásticas do oficial régio como a condenação à pena capital de Jerônimo
Barbalho, um dos líderes do movimento.

A presente comunicação objetiva tratar da negociação que levou o evento a ter tal
desfecho à luz das práticas punitivas nas sociedades de Antigo Regime europeias, colocando
assim em questão concepções historiográficas que consideram à repressão violenta como
mero resultado de uma inclinação natural de agentes destas Coroas em reprimir movimentos
de questionamento de forma violenta.

Neste sentido, analisar a morte de Jerônimo Barbalho e as outras punições aplicadas


aos revoltosos demanda um esforço para resgatar o cenário de negociação entre os revoltosos
e os oficiais responsáveis pela manutenção da ordem, especialmente tendo em vista que
muitas das revoltas daquele período não tiveram desfecho semelhante, culminando até mesmo
com o perdão dos envolvidos.

De fato, o cuidado em resgatar o contexto desta revolta é fundamental para


compreender o resultado final do movimento. As punições não eram definidas a priori por
uma monarquia cujo castigo era o pilar de ação na contenção das revoltas, mas, antes disto,
expediente não recomendado pela tradição política escolástica, o que torna a análise do evento
ainda mais complexa.

Em linhas gerais, portanto, esta presente comunicação objetiva compreender o


desenvolvimento da revolta em questão e, principalmente, as consequências que atingiram
especialmente o governador Salvador Correa de Sá, responsável pela aplicação do castigo.
O debate sobre a melhor forma de conter os episódios de revolta naquele momento

1
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e
professor do Colégio Pedro II. Bolsista CAPES.
ainda começava a preocupar os conselheiros da monarquia lusa, mas eventos como a Revolta
da Cachaça vão marcar e influenciar as posições dos oficiais da monarquia. Entender,
portanto, o peso deste evento nas discussões sobre a melhor forma de administrar o Estado do
Brasil e, principalmente, sua relação com a cultura portuguesa que começava a questionar o
perdão como instrumento de negociação com revoltosos também se apresenta aqui como
questão fundamental e cerne para compreender tal levantamento em um quadro mais geral de
movimentos de insatisfação registrados no Império Ultramarino Português.

Torna-se necessário, em um primeiro momento, contextualizar a revolta em questão.


Ocorrida na capitania do Rio de Janeiro no início da década de 60 do século XVII, a Revolta
da Cachaça estava longe de se constituir como uma forma inédita de reivindicação no Estado
do Brasil, especialmente na região Sudeste onde alguns levantamentos haviam se
desenvolvido em anos anteriores, especialmente após a Guerra da Restauração em Portugal
que restabeleceu a independência da Coroa lusa em relação ao domínio espanhol em 1640.

Dentre os movimentos de insatisfação ocorridos no pós-Restauração, destaca-se o


evento que ficou conhecido como a Aclamação de Amador Bueno, quando partidários da
Coroa espanhola declararam o interesse em proclamar o referido proprietário de terras e
agente da administração colonial como Rei no ano de 1641, não reconhecendo, assim, o
domínio dos Bragança sobre a região.

Tal manifestação, porém, teve pouco sucesso, a começar pela recusa do próprio
coroado em assumir o trono que lhe ofereciam. A pendenga, no entanto, tinha outras bases
que apareciam de forma recorrente nos conflitos políticos da Capitania de São Paulo e,
posteriormente no Rio de Janeiro, a saber, o uso da mão-de-obra indígena e a conduta de
determinados oficiais régios.

Dentre tantas questões que podiam resultar em manifestações de insatisfação por parte
dos súditos cariocas, no entanto, poucas chamam tanta a atenção quanto o descontentamento
com o governo de Salvador Correia de Sá e a sua indisposição com determinados grupos
políticos da capitania do Rio de Janeiro. Não à toa, costuma-se atualmente referir-se à Revolta
da Cachaça como Insurreição de Jerônimo Barbalho, um dos protagonistas do movimento.
Em sua terceira passagem pelo governo da capitania, Salvador já era um personagem
com imagem desgastada entre os súditos da região. Herdeiro de vastas propriedades em
função da atuação de seus antepassados desde a fundação do Rio de Janeiro, o que nos
permite constatar, segundo Antônio Pereira Caetano, “que seus antecessores construíram um
verdadeiro império na capitania do Rio de Janeiro, transformando essa cidade em uma espécie
de reduto dos Sá,” (CAETANO, 2008. p. 14) Salvador já havia enfrentado em seus dois
primeiros governos (1637-1642 e 1648) motins com as mais variadas reivindicações como a
utilização da mão-de-obra indígena, o valor do soldo militar e, principalmente, contra a
oligarquia construída em torno da família Sá, praticamente detentora de um monopólio na
distribuição dos principais postos de governo, do qual questionavam também os gastos e a
gestão dos recursos.

Sobre as motivações da revolta, no entanto, o trabalho de Caetano é uma referência


que permite a esta comunicação não se dedicar efetivamente a análise do que levou Jerônimo
Barbalho e os demais participantes do movimento a se engajar contra o governo de Salvador
Correia de Sá. Interessa aqui, antes disto, compreender porque o evento teve o desfecho
conhecido, a saber, a execução de um dos seus principais líderes, bem como compreender as
consequências desta decisão, relacionando a reação da monarquia portuguesa com a sua
concepção sobre a melhor forma de conter os motins ocorridos no ultramar.

É bem verdade que o senso comum nos sugere que a condenação à pena capital de um
líder de um movimento de insatisfação contra um oficial da Coroa portuguesa fosse uma
conduta normal e corriqueira por parte dos responsáveis por sua repressão. A própria
legislação portuguesa sugeria que tais punições fossem comuns, afinal a quantidade de crimes
que poderiam ser punidos com a morte dos responsáveis era tamanha que, como bem salienta
António Manuel Hespanha, construía situações como a do rei “Frederico o Grande, da
Prússia, [que] ao ler o livro V das Ordenações, teria perguntado se, em Portugal, ainda havia
gente viva”. (HESPANHA, 1998. p. 273)

Os estudos recentes sobre a cultura política portuguesa, no entanto, demonstram que


havia uma clara distinção entre norma e prática na gestão política em Portugal e no ultramar e
que, antes de defender os castigos aos súditos rebeldes, ao longo do século XVII era
extremamente comum a defesa do perdão a amotinados, o que representaria, inclusive,
respeito à uma virtude régia importante, a saber, a benevolência.

É importante lembrar, por exemplo, que a defesa do direito de se revoltar contra o


governante tirano era não só um princípio importante da teoria escolástica como também a
base das reivindicações dos insurgentes contra o domínio Habsburgo e a legitimação dos
partidários da Casa de Bragança na luta contra os espanhóis na Guerra de Restauração. Não
era fortuito, portanto, que teóricos da política como Antônio Pinho da Costa tivessem especial
influência nos debates políticos portugueses nas décadas imediatamente posteriores ao fim da
União Ibérica, recomendando justamente a benevolência aos oficiais da Coroa.

Em sua obra mais conhecida, intitulada Da Verdadeira Nobreza e datada de 1651, o


político português recomendava ao governante lembrar-se que deveria ter virtudes
compatíveis com a fé cristã. Em relação às afrontas, por exemplo, Costa aconselhava: “sede
misericordiosos, assim como o é vosso celestial pai: de que se preza Deus tanto que diz São
Bernardo que se não se intitula Deus de vinganças e justiça, senão de misericórdias.”
(COSTA, 1655. p. 30)

É bem verdade que Pinho da Costa também enfatizava que fosse justo “castigar os que
erram” (COSTA, 1655. p. 29), ainda que fosse recomendável “perdoar as injúrias” (COSTA,
1655. p. 29). Tal conselho reproduzia aspectos importantes da teoria escolástica, como o culto
a benevolência, e que legitimavam, por exemplo, a luta pela Restauração portuguesa alguns
anos antes, por ser entendido como direito dos povos a luta contra a tirania. É para evitar esta
acusação, aliás, que Pinho da Costa recomenda a cautela no uso das penas, destacando ainda
que agir com moderação no uso das penas reproduzia a vontade de Deus. Segundo o teórico:

é tão agradável a Deus o homem piedoso que se está em graça se lhe faz nova
mercê pelo merecimento, que com ela ganha, satisfazendo também pelas penas
que deve e se está em pecado mortal inclina muito a divina Misericórdia para
lhe dar tal ajuda, que saia da culpa e venha em sua amizade. Assim o nota o
Angélico Doutor São Thomas. (COSTA, 1655. p. 30-31)

Outros exemplos do valor da benevolência na cultura política portuguesa poderiam ser


aqui mencionados, mas fugiriam do propósito de analisar o processo de negociação de
Salvador Correia de Sá com os insurrectos liderados por Jerônimo Barbalho, bem como das
consequências de sua decisão. Coube até aqui enfatizar apenas a visão negativa que havia no
Império Português da aplicação de penas severas aos súditos revoltosos, especialmente no
período imediato pós-Restauração, o que se verificaria após a repressão coordenada pelo
governador ao movimento.

Iniciada em fins de 1660, a Insurreição de Jerônimo Barbalho não despertou imediata


preocupação em Salvador de Sá. Mesmo com os revoltosos afirmando que não reconheciam
mais a autoridade do governador e “que o Rio se governava muito melhor só por meio de seus
vereadores.” (CALLADO, 1983. p. 30), a reação inicial do oficial foi de subestimar o
movimento, recusando-se a negociar com os levantados provavelmente por, como indica
Caetano, não ter tido “muito a noção da importância que o motim reservava para os rumos da
capitania do Rio de Janeiro.” (CAETANO, 2009. p. 180)

A passagem dos dias, no entanto, mostrou o equívoco de Salvador nesta interpretação.


O movimento crescia e, mais do que isso, recusava a autoridade do Governador sobre a
capitania, chegando ao ponto de aclamar Agostinho Barbalho como nova autoridade de
governo e protocolar uma procuração formal enviada a Lisboa denunciando mais de 34
atitudes questionáveis de Correia de Sá como as “proibições e conquista de privilégios na
economia da aguardente, chantagem e coação aos camaristas, imposição de fintas, não ter
prestado homenagem a Thomé Correia de Alvarenga quando chegou ao Rio de Janeiro”
(CAETANO, 2009. p. 186) entre outros pontos de uma extensa lista.

O encaminhamento de reivindicações à Corte era prática comum nas revoltas


ultramarinas e, mais do que isto, expediente que lhes conferia legitimidade. Em situações
como esta, o convencional era que a procuração fosse encerrada com um pedido de perdão ao
movimento, o que constava na reclamação dos revoltosos e foi atendido por Correia de Sá.

Desprezando a tradição que valorizava o perdão na cultura portuguesa, Caetano chega


a cogitar que tal ação por parte do governador não passava de um blefe e que

o perdão que Salvador de Sá manifestava aos revoltosos, pode ser


considerado um grande artifício do governador para tentar escamotear ou
amenizar os boatos que circulavam pela capitania de que o mesmo estava
organizando um exército de índios, conjuntamente com os jesuítas, para
atacar o Rio de Janeiro. (CAETANO, 2009. p. 190)

O entendimento de que os governadores concediam perdão apenas para ganhar tempo


de aparelhar forças de resistência contra o movimento não é uma novidade na interpretação de
Caetano e mostra um estabelecido desconhecimento por parte dos historiadores destes
movimentos da tradição e do valor da benevolência na cultura política portuguesa. De fato,
algumas evidências posteriores indicam que é provável que Salvador Correia de Sá não
cogitava atacar os revoltosos naquele momento e, mais que isto, que a decisão de romper com
o perdão e punir os líderes da revolta causou estranhamento e rejeição na Corte portuguesa.

Mesmo com o perdão concedido por Correia de Sá, a Insurreição não cessou. Tal
manifestação é a prova cabal de que os revoltosos não pareciam dispostos a ceder no
movimento enquanto o governo seguisse de posse do então governador. A revolta, porém,
circunscrevia-se no Rio de Janeiro e regiões vizinhas e o objetivo posterior à proclamação de
Agostinho Barbalho por parte dos revoltosos passou a ser angariar apoio dos paulistas ao
levantamento.

A boa imagem de Correia de Sá entre os paulistas, porém, não permitiu que os


revoltosos tivessem sucesso em seu plano. Antes disso, estes “colocaram-se à disposição para
acompanhar o governador na empreitada de retomada da capitania do Rio de Janeiro.”
(CAETANO, 2009. p. 192) O governador, no entanto, recusa o pedido alegando, segundo
Antônio Caetano, acreditar que a publicação do seu perdão seria suficiente para conter o
movimento.

O passar do tempo atestaria que Correia de Sá estava equivocado. O governo


provisório de Agostinho Barbalho foi deposto pelos próprios revoltosos, pois consideravam
que o mesmo não defendia os interesses dos levantados. Ao invés de recuarem, no entanto,
colocam no poder “uma junta formada por homens bons fluminenses, os procuradores do
povo”. (CAETANO, 2009. p. 194)

A experiência de um governo autônomo, ainda que sem a defesa do rompimento com


Portugal, fez com que Salvador Correia de Sá temesse o destino do levantamento. Mesmo o
Conselho Ultramarino, aliás, ao ter conhecimento desta realidade demonstra preocupação e o
medo de que uma possível influência externa fomentasse a ação dos revoltosos. Os
conselheiros, entretanto, recomendariam antes uma ação cautelosa do que o enfrentamento
direto contra os sublevados, respeitando a tradição escolástica da negociação ao invés da
imposição do poder pela força.

Com sua autoridade enfraquecida, porém, Correia de Sá resolve atacar. Com tropas
pessoais, o governador invade o Rio de Janeiro, depõe a junta de governo e condena Jerônimo
Barbalho Bezerra, a principal liderança do movimento, à morte, acreditando que com isto
“não só conseguira quietação, mas um geral exemplo as conquistas de Vossa Majestade.”
(SÁ, 1661. p. 195-196)

É possível concluir, a luz dos debates políticos presentes em Portugal naquele período,
que Correia de Sá interpretasse, tal qual os pensadores mais associados ao pragmatismo, que o
castigo fosse à forma mais eficiente de conter movimentos persistentes de insatisfação.
Poucos anos depois, Sebastião César de Meneses demonstraria a difusão deste pensamento em
Portugal “em 1666, no livro Sugillatio Ingratitudinis (no qual) aponta a submissão dos
súditos como pilar fundamental para a manutenção do bem comum” (XAVIER, 1998. p.
133)

Os tempos da Revolta da Cachaça, no entanto, eram outros e a atitude de Salvador


Correia de Sá não foi bem recebida na Corte, motivando D. Luísa de Gusmão a aceitar as
reivindicações dos revoltosos, retirando Correia de Sá do cargo e nomeando Pedro de Melo
para o seu lugar.

Antônio Caetano afirma que tal postura mostrava que “a coroa portuguesa reconhecia
a superioridade destes homens para a manutenção do mundo ultramarino português”
(CAETANO, 2009. p. 197) Mais que isto, que D. Luísa, ao atender os anseios dos revoltosos,
confirmava “o discurso de teólogos medievais de que residia no povo à salvaguarda do poder
real.” (CAETANO, 2009. p. 197) No entanto, não podemos desprezar que o mesmo considera
que o perdão promulgado durante o processo de negociação era mero expediente para ganhar
tempo na repressão ao movimento.
A discordância desta conclusão se manifesta ao perceber a recusa da Coroa em apoiar
a ação do governador, afastando-o do cargo logo em seguida. Mais que um blefe de Salvador
Correia de Sá, o perdão parece ter sido também uma tentativa de resolver as disputas sem
recorrer ao uso da força, afinal de contas é improvável que o governador desconhecesse que o
uso da força não gozaria de prestígio na Corte.

Neste sentido, às consequências para a carreira de Salvador de Sá desta decisão


apontadas por Charles Boxer escancaram que punir, especialmente com a pena capital, era um
instrumento a ser evitado. Afinal de contas, ainda que “tenha esmagado completamente a
revolta, a execução de Barbalho, em vingança, ficou tristemente na memória dos habitantes
do Rio de Janeiro e não lhe criou atmosfera favorável na corte de Lisboa.” (BOXER, 1973. p.
335)

Independente disto, o recurso ao castigo na contenção da revolta passaria a influenciar


os debates sobre a repressão à revoltas futuras no Império Português. Se naquele período o
uso de penas severas contra súditos da Coroa não gozava de grande prestígio entre os oficiais
da Coroa, o mesmo não se verificará em contextos posteriores, especialmente a partir de fins
do século XVII onde o avanço do pragmatismo político em terras lusas seria uma realidade.
Esta preocupação, no entanto, fica para outro momento.

Referências bibliográficas

BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo:
EDUSP, 1973.

CAETANO, Antônio Filipe Pereira. Entre a Sombra e o Sol: A Revolta da Cachaça e a crise
política fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Maceió, Gráfica. 2009.

CAETANO, Antônio Filipe Pereira. “Entre “Bernardas” e Revoluções: a Revolta da Cachaça


e a historiografia colonial.” In: Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Nº3.
Rio de Janeiro. 2008.
CALLADO, Antônio. A Revolta da Cachaça – Teatro Negro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.

COSTA, Antônio de Pinho da. A verdadeira nobreza. Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1655

HESPANHA, António Manuel. “Disciplina e punição”. In: MATTOSO, José (org). História
de Portugal: O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

“Notícia de um motim no Rio de Janeiro enviado à rainha regente, D. Luísa de Gusmão por
Salvador Correia de Sá. Rio de Janeiro, 10 de Abril de 1661.” Arquivo Nacional da Torre do
Tombo. Códice 10563/83. p.195-196

XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer...” Razões da política no
Portugal seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998.

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