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Carta aberta à senadora Ana Amélia

19 de abril de 2018
Exma senadora Ana Amélia,
Como jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização
internacional, acompanhei com imensa tristeza e pesar o discurso de
incitação de ódio proferido pela senhora na noite de ontem.
Para minha imensa perplexidade, a senhora parece ter se transformado
na grande voz da mais violenta, xenófoba, e perigosa extrema-direita
brasileira, tendo incentivado, há algumas semanas a violência contra
as pessoas que participavam de uma manifestação no sul do Brasil e
foram covardemente agredidas.
Mas o que aconteceu ontem no senado brasileiro é ainda mais
desolador. A senhora, talvez por puro despreparo intelectual e não por
má-fé, associou profissionais árabes respeitados pelo mundo todo ao
terrorismo, a senhora confundiu semanticamente uma organização
jornalística internacional como a TV árabe Al Jazeera, uma das mais
respeitadas redes do mundo, considerada pela ONU como uma das
grandes vozes da multipolaridade e da multiculturalidade do mundo e
com sucursais em toda a Europa, com o grupo terrorista Al Qaeda.
Sim, senadora, as duas expressões começam com o artigo árabe " al",
que corresponde a todos os artigos, a os, as, e também aos artigos no
singular em português.
Se a senhora acredita que ter um nome ou uma marca iniciada pelo
artigo " al " é um indício de terrorismo, tenho uma péssima notícia para
a senhora.
A nossa linda língua portuguesa também está repleta de palavras
iniciadas por " al”, pois os árabes deram uma imensa contribuição
científica, médica e arquitetônica ao mundo. Palavras, ideias,
invenções científicas e conceitos matemáticos usados pela senhora
todos os dias foram criados pelos árabes e adotados no mundo todo,
palavras como algoritmo, alquimia, almoxarifado, álgebra, almirante,
alcaide, alface, alfarrábio, alambrado e muitas outras são vocábulos
árabes, mas não se preocupe, pois não há indícios de que essas
palavras sejam terroristas. Eu poderia citar centenas de vocábulos
árabes adotados na língua portuguesa e no mundo todo, mas prefiro
que a senhora os estude um pouco pois poderá lhe fazer bem.
Como nós duas somos cristãs (sim, senadora, existem milhões de
árabes no mundo que são cristãos, como eu), talvez a senhora também
goste de aprender que a palavra Bíblia, por exemplo, vem do nome da
cidade árabe e libanesa de Byblos, cidade onde foram produzidos os
papiros dos primeiros textos sagrados.
Enfim, senadora, é triste e estarrecedor que a senhora demonstre um
conhecimento tão raso da comunidade árabe no Brasil e que tenha tão
pouca empatia pela dor de milhões de refugiados muçulmanos e
cristãos, que hoje sofrem não apenas com os conflitos, mas também
com o preconceito de pessoas sem capacidade nenhuma de processar
informações básicas e refletir sobre o que de fato está acontecendo no
Oriente Médio. Pergunto-me, com imensa tristeza, se a senadora
acredita que milhões de pessoas nascidas no mundo árabe ou que a
imensa comunidade árabe do Brasil, formada por 8 milhões de
pessoas, que sempre viveram em paz e harmonia no Brasil e que
amam profundamente esse lindo país, uma comunidade que chegou
ainda no início do século XIX, formada por grandes médicos, escritores,
jornalistas, cientistas, professores ou empresários como meu pai, um
menino sírio que um dia sonhou com uma nova pátria, sonhou em
ajudar a construir um novo país e hoje cria empregos e sonhos para
mais de 500 mil brasileiros, sejam todos terroristas.
É muito perigoso que uma senadora de uma nação linda e multicultural
como a nossa, que acolheu em seu seio pessoas de todas as religiões,
etnias e raças, incite o ódio e a intolerância religiosa no Brasil em um
momento de conflitos bélicos promovidos apenas por interesses
econômicos e de tanta tristeza para todos os humanos.

LÚCIA HELENA ISSA


Jornalista, escritora e ativista pela paz. Foi colaboradora da Folha de
S.Paulo em Roma. Autora do livro "Quando amanhece na Sicília"

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