CLAUSEWITZ E A POLITICA
OLIVEIROS 8. FERREIRA
Nao se deve iniciar a leitura de Clausewitz simplesmente
porque Engels recomendou a Marx que lesse Vom Kriege, ou porque a
histéria diz que Lenin passou parte de seu exilio em Genebra anotando o
tratado do general alemao para escrever sobre ele, mais tarde, como cita
Camille Rougeron: "Clausewitz, um dos escritores militares mais profun-
dos, um dos maioves, um dos mais noldveis fildsofos e historiadores da
guerra, um escritor cujas idéias fundamentais se tornaram hoje o bem in-
contestado de todo pensador". Lé-lo pelos elogios ¢ o mesmo que nao lé-lo
pelas criticas — severas — as suas concepgdes do que seja a guerra e de
como conduzi-la. Liddell Hart incumbiu-se de mostrar aquilo que a seu
ver tinha sido o erro fundamental de Clausewitz: preconizar a batalha na-
poleénica de aniquilamento, o ataque frontal, quando a li¢do da histéria
ensina que venceu aquela concepgfio que ao encontro frontal preferiu a
aproximago indireta. Foi Sun Tzu, 500 anos AC, quem escreveu que
“submeter o exército inimigo sem combate é o fim do fim". Na leitura
moderna de Clausewitz — que vem em boa parle dos ensinamentos de
Foch na Primeira Grande Guerra e que nos ¢ oferecida pelos comentarios
de Liddell Hart ¢ outros — essa possibilidade assinalada por Sun Tzu nfo
existe. Quem niio ler com atengio o Da Guerra sera obrigado a concordar
com seus criticos. Apenas o leitor atento observaré que numa frase ele dé
por desnecessdria a batalha para o éxito do plano de guerra: se 0 engaja-
mento nao se der porque o inimigo a ele fugiu, é como se tivesse dado eo
inimigo sido derrotado,
De igual maneira nao se deve iniciar a leitura de Vom Kriege s6
porque aprendemos que Clausewitz considerava a guerra como a conti-
nuagiio da polftica per outcas meios, Talvez se devesse |é-lo para aprender
que na guerra sdo os objetivos polfticos que devem predominar, nio os28 LUA NOVA N34 — 94
militares. Ainda hoje se discute nos dois lados do Atlintico se ag decisdes
de Eisenhower, impedindo Patton de ocupar a Tchecoslovaquia, foram
corretas ou nfo. Do ponto de vista militar, o comandante-chefe tinha
raziio, pois a ecupagiio daquele t rio nao tinha grande significado mil
tar, além de comprometer vidas, Patton conhecia as informagGes de que os
alemies tinham tropas reservas no seu desejado caminho — mas sobre as
consideragGes a respeito de ser ou no estrategicamente validos a operagaa
eo seu custo em vidas humanas, ele colocava o problema politica: os so-
viéticos poderdie ocupar a Tchecoslovaquia.
Pessoalmente, creio ser temerario escrever alguma coisa sobre
Clausewitz depois de tudo o que se disse ¢ escreveu, especialmente a
opera magna de Aron, Penser La Guerre — Clausewitz. O convite de Lua
Nava, no entanto, € irrecusdvel e leva a algumas consideragdes que talvez,
sejam titeis a quem se preocupa em conhecer a sociedade, os processos so-
ciais ¢ essencialmente os processos politicos, Parecerd estranho que se
tome um autor ‘militar como referéncia para o estudo da sociedade. Espe-
cialmente numa época em que, no Brasil, a lembranga, quase a memoria
indelével do perfodo militar, torna qualquer preocupagao com estratégia e
arte da guerra, para nado dizer qualquer preocupagiio tedrica com os mili-
lares, objeto de desconfianga.
Se ao risco de despertar velhos rancores afirme que o estudo de
Clausewitz € importante, é porque creio que as ligGes dele sao fecundas; e,
depois, porque ele sabia buscar na sociedade, na politica ¢ na vida
econémica muito em que fundamentar seu raciocinio ¢ construir seus dois
tipos de guerra: a absoluta ¢ a real.
Comecemos pelo mais abstrato, estabelecendo uma petigao de
ptinefpio: o que Clausewitz formula para a guerra é valido para as aniilises
politicas ¢ estratégicas. Acrescento que aquilo que cle estabelece para a
guerra é, ao nivel do método, valido para a polftica, especialmente a con-
ceituagéio do fato politico.
Nao se deve cenfundir a agao politica com ¢ fate politico. A
distingtio, necessiria, obriga a que se procure definir 0 "fato” para que se
possa, ent&o, ver o que, na vida social, é politico, distinguindo esse reina
espeeffico daqueles em que ocorrem outras fatos, econémicos ou simples-
mente sociais. A politica 6, sem divida, agao — agao politica. Como tal,
pode ser "fraca" ¢ "forte" como definia Bertrand de Jouvenel, a agao
politica fraca se exemplificando no ato eleitoral, em que o sujeito da agao
pouca importincia emocional empresta a seu ato de votar, sabendo estar
cumprinde um ritual, necessario, do qual n&o abdica em hipétese alguma,
mas com o qual tem uma ligaggo que seja simpatica, em hipétese alguma
patética. A acao politica forte, pelo contrério, é aquela a que @ sujeito se(CLAUSEWITZ.E A POLITICA 29
liga pateticamente — patcticamente, porque deseja transformar o mundo.
Um ¢ outro tipo de agiio, apesar da diferenga que as separa, sdo fatos
politicos. E a natureza intima delas que importa apreender se se pretende
compreender diferentes formas de ago politica. E isso, em dltima
instiincia ¢ com perdao pela redugiio simplificadora, que Clausewitz faz
com a guerra: sem reduzir ao que tém de comum as acdes que comumente
se chamam guerra, no sera possfvel compreender a esséacia dela, nem as
diferentes formas sob as quais se apresenta na sociedade humana.
O fato politico € essencialmente uma relagdo entre segmentes
sociais (para ficar na linguagem tradicional). Para sermos mais precisos &
atendo-nos & definigio de Lourival Gomes Machado, o fato politico é uma
relag¢déo de aproximagao ou afastamento intersegmentar consciente (ao
nivel da consciéncia individual ou grupal dos valores e objetos culturais
que se pretende conservar ou nao ceder ac opesitor). Nem sempre ¢ uma
relagao em que se tem consciéncia de conflite — e entéio poderfamos
que a agdo que decorre dessa aproximagao ou afastamento correponderia &
agao politica fraca. Freqilentemente, porém, & uma agiio de afastamento ¢
hostilidade — ¢ sera tanto mais hostil quanto maior for o desejo de trans-
formar o mundo. Da mesma maneira com a guerra: “Nao comecemos por
uma definigao pesada e pedante; limitero-nos a sua esséncia, ao duclo. A
guerra ndo é outra coisa senao um duelo a uma mais vasta escala". Nas
"Regras do método", Durkheim escreveu que a forma politica de uma soci-
edade era a forma pela qual os diferentes segmentos se relacionavam uns
com 6s outros — diria eu, trocavam experiéncias, conviviam, em outras.
palavras, se aproximavam ou s¢ afastavami tendo em vista possuir ou ndo
ceder valores ¢ objetos culturais a tereciros. A coalescéncia segmentar cria
campos de aproximagao, mas que tendem a ser cada vex mais restritos; no
limite, diz Durkheim, seriam os direitos individuais tiio-somente. guer-
ra é, pois, um ato de violéncia destinado a constranger 0 adversdrio a exe-
cutar nossa vontade”.
Que outra coisa é a Politica na sua esséncia se no isso, j4 que é
conflito? Ou a ago hegeménica, como diria um disc{pule de Gramsci’? Sei
que associar o nome de Santo Antonio & guerra despertara, como se viu no
passado recente, iras por parte de alguns. Desgragadamente para os nibelun-
gos, porém. Os nibelungos, vives fossem, compreenderiam a proposigiio,
porque morrcram todos diante da ira de uma mulher que lhes queria impor a
sua vontade, politicamente, para vingar-se da afronta maior. Por que nos recu-
sarmos a entender o fato politico como um duele de forma distinta do tergar
armas na academia de esgrima, ou na mais vasta escala que é aguera?
O importante a reter é que o combate entre dois segmentos ou
(a outrora chamada "guerra de classes") é a esséncia do [ato politico