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© Divulgação - New Tribes Mission Missionária com o rosto pintado simula ser uma
indígena do povo Yanomami em treinamento promovido pela organização New Tribes
Mission na Pensilvânia, nos EUA
Lideranças indígenas contrárias às iniciativas temem que elas venham a ganhar fôlego
no governo de Jair Bolsonaro, após a indicação da pastora evangélica Damares Alves
para o ministério encarregado pela política indigenista.
Uma das entidades filiadas é a Asas de Socorro, criada por missionários americanos em
1955 e que mantém em Anápolis (GO) uma escola para formar pilotos e mecânicos
dedicados "à causa do evangelismo nas aldeias, comunidades ribeirinhas e povos
tradicionais, habitantes em regiões isoladas ou em situação de risco na Amazônia".
A formação completa dura quatro anos e custa cerca de R$ 1.500 ao mês, valor
subsidiado pela organização, e garante ao aluno licenças de piloto comercial, voo por
instumento e instrutor de voo.
Os pilotos também podem fazer cursos para participar da evangelização direta dos
grupos, além de atuar em emergências, resgatando missionários ou indígenas doentes.
As operações são financiadas por doadores individuais e igrejas parceiras da Asas de
Socorro.
Com sede nos EUA, a agência missionária Association of Baptists for World
Evangelism (Associação Batista para o Evangelismo Global) também emprega
aviadores missionários no Brasil.
Em seu site a organização conclama voluntários a servir no país, descrito como um local
onde "religiões tradicionais e o espiritismo ainda abarcam parte da população".
Muitas organizações filiadas à AMTB têm sede no exterior - caso da WEC (Worldwide
Evangelisation for Christ), criada por um britânico em 1913 e que diz ter como meta
"envolver-se com 33 novos povos" em 2018 em parceria com as igrejas brasileiras.
"Nunca houve uma época em que os missionários fossem tão bem preparados como
agora", diz à BBC News Brasil o presidente da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)
e vice-presidente da Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB),
Edward Luz.
Luz diz que mais de 1.700 missionários já foram formados pelo Instituto Bíblico Peniel,
braço educacional da MNTB, fundada em 1953 e hoje presente em 50 etnias brasileiras.
O curso dura quatro anos e meio e tem aulas de teologia, antropologia e linguística.
© Divulgação - Asas de Socorro Aviões de pequeno porte são usados por missionários
em deslocamentos pela Amazônia para atingir comunidades remotas em processo de
evangelização e ajuda
Foi essa a estratégia que eles aplicaram, por exemplo, entre os Wari' (também
conhecidos como Pacaas Nova), grupo contatado pela MNTB em 1956, em Rondônia.
"A igreja deles é totalmente Pacaa Nova. Eu nunca seria pastor numa aldeia indígena",
diz Luz.
Salvação do inferno
© BBC Folheto com conteúdo religioso na língua Xavante distribuído por missionários
Testemunhas de Jeová em aldeias desse grupo indígena, no Mato Grosso
A entidade montou na Pensilvânia uma réplica de uma aldeia Yanomami, povo que
habita o Brasil e a Venezuela. Nela, voluntários interagem com atores que se passam
por membros do grupo indígena.
Segundo Lidório, 103 etnias brasileiras não têm a presença de qualquer missionário.
"Quarenta delas estão abertas para o Evangelho, mas a realidade é que não há
missionários", afirmou.
Não há dados oficiais sobre o avanço de igrejas evangélicas entre povos indígenas
brasileiros. Em alguns povos, porém - caso dos Terena, em Mato Grosso do Sul, e dos
Baniwa, no Amazonas - a maioria dos integrantes se declara evangélica.
Em algumas regiões, como no Alto Rio Negro, há forte presença católica entre os
indígenas por influência de missões instaladas nos últimos séculos. Hoje, porém, a
Igreja Católica diz ter abandonado a evangelização de indígenas e valorizar as crenças
ancestrais dos grupos.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica, diz atuar
junto a mais de 180 povos indígenas brasileiros respeitando o protagonismo dos grupos
e "dentro de uma perspectiva mais ampla de uma sociedade democrática, justa,
solidária, pluriétnica e pluricultural".
© Divulgação - Asas de Socorro Avião da Asas de Socorro, entidade missionária fundada em
1955 e que oferece cursos para formar mecânicos e pilotos dedicados "à causa do evangelismo
nas aldeias"
Para ingressar nas demais terras indígenas, eles precisam de uma autorização da Funai
ou da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
Segundo servidores da Funai que não quiseram ser identificados, muitos missionários
obtêm autorizações com a justificativa de prestar serviços à comunidade, como
assistência em saúde.
Linguistas missionários
Outras entidades recebem autorização para entrar em terras indígenas com base em
convites da própria comunidade. Em alguns casos, indígenas que moram em cidades e
já foram catequizados servem de ponte entre os missionários e suas aldeias de origem.
Há ainda missionários que conseguem autorizações com o pretexto de estudar línguas
indígenas - prática que chegou a ser apoiada por um dos patronos do indigenismo
brasileiro, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1977).
A aliança do Estado brasileiro com o grupo foi rompida, mas o SIL se mantém ativo no
país. Outra influente entidade no ramo é a Associação Linguística Missionária
Evangélica (Alem), criada a partir de uma subdivisão do SIL, a Wycliffe Bible
Translators.
A Alem diz em seu site que há no Brasil 69 línguas indígenas sem a bíblia traduzida, de
um total de 274. A organização diz trabalhar "com o sonho de tornar a Palavra acessível
a todos os povos e línguas ainda não alcançados".
© Divulgação - Instituto Peniel Peça teatral Clamor de Batum, encenada por alunos de um
instituto ligado à Missão Novas Tribos do Brasil e que descreve trabalho de missionários entre
aborígenes de Papua Nova Guiné
Zonas cinzentas
Segundo servidores da Funai, missionários se aproveitam de zonas cinzentas na
legislação para expandir suas operações entre indígenas.
Muitas vezes, dizem eles, religiosos que entram nas aldeias com a justificativa de
prestar serviços ou estudar línguas aproveitam o acesso para tentar converter indígenas
durante sua estadia ou conseguir o aval para a instalação de uma missão. A Funai só é
acionada nos casos em que essa atuação gera conflitos.
A SIL e a ALEM não responderam a pedidos de entrevista da BBC News Brasil sobre
suas práticas.
Ele afirma que, embora indígenas brasileiros lidem com missionários desde 1500, nos
últimos anos, evangelizadores têm se articulado com outro grupo poderoso na política
brasileira, o agronegócio, impondo riscos adicionais às comunidades.
"Eles não querem mais só evangelizar, eles querem trazer as comunidades para o meio
urbano e liberar nossas terras para plantar soja, tirar minérios, criar gado."
Ele afirma que missionários deveriam ser livres para atuar em qualquer comunidade
indígena, inclusive as isoladas, e que esse trabalho pode salvar alguns grupos da
extinção.
"Qualquer povo com menos de 400 pessoas está fadado ao extermínio por razões
óbvias, como a consanguinidade. Têm que haver uma política de aproximação desses
povos", defende.
© Diocese de São Gabriel da Cachoeira Padres salesianos no Alto Rio Negro, em 1914; ação
dos religiosos difundiu o catolicismo entre povos indígenas da região
Edward Luz protagonizou um dos episódios que fizeram a Funai mudar sua política em
relação a índios isolados, estabelecendo restrições ao contato. Ele diz ter sido o primeiro
não indígena a contatar o povo Zo'é, no norte do Pará, em 1982.
Em 1987, a Funai determinou que iniciativas de contato com povos isolados deveriam
partir sempre dos próprios grupos - e que cabia ao Estado somente proteger e demarcar
suas terras.
Sobre os relatos de privilégios que os missionários teriam entre os indígenas, ele diz que
se tratava de cuidados para conciliar "dois mundos completamente diferentes".
"Eles queriam isso ou aquilo e você não pode, dentro da perspectiva sociocultural, dar
ou distribuir esssas coisas, como alguns erroneamente fazem. E se ele (índio) te dá algo,
espera receber algo na frente. Éramos parcimoniosos para não criar uma dependência
econômica."
Luz diz que os missionários reverteram "o processo de extinção completa daquele povo"
e que a expulsão do grupo se deveu a fatores políticos.
"Havia interesses de pessoas para estudar aqueles povos e não queriam a presença de
missionários no meio deles. Até então, a Funai nos elogiava, temos relatos e afirmações
fantásticas deles a nosso respeito", diz.