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A IGREJA o PAIS E o MUNDO H

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DESAFIOS A UMA FÉ ENGAJADA
." -

O paIS
e O l1\uQdo
I DESAFIOS A UMA FÉ ENGAJADA I
" A Igreja não é o reino de Deus,
mas expressão, vanguarda,
antecipação e sinal desse
mesmo reino. Nem todos os que
nela visivelmente estão, de fato
são; nem todos os que dela são,
visivelmente estão. Nela
encontramos diversos dons,
vocações e níveis de
maturidade.
O Brasil tem sido um país de
'donos'. O nosso legado é
religioso, mas de uma
religiosidade superficial e de
conteúdo ético débil. Os
cristãos, espalhados pelas várias
classes sociais, vamos
reproduzindo a ideologia, os ,
interesses e os discursos das
nossas respectivas classes. Não A IGREJA O PAIS
1

E o MUNDO
percebemos que o compromisso
com o reino de Deus nos chama
para a denúncia, a pronúncia, a
proposta e a ação.
Entre as nações e dentro das DESAFIOS A UMA FÉ ENGAJADA
nações o conceito de justiça
social é considerado uma
aberração. A competitividade
pressupõe o individualismo ea
solidariedade é algo
contraproducente. O mundo
'normal' requer a luta de todos
contra todos, com a
sobrevivência dos mais fortes.
O lema da nossa época parece
ser: 'Cada um por si e diabo
ó

por alguns'.
A ação iluminada pela adoração
e pela reflexão nos dará
melhores condições para ver,
julgar e agir, sem sacralizarmos
sistemas ou épocas, mas sendo
sal e luz, a partir de um
eterno que tenha sempre o
frescor da atualidade. "
Copyright © 2000 by Robínson Cavalcanti

Projeto Gráfico:
Editora Ultimato

P Edição:
julho de 2000

Revisão:
Antônio Carlos \17. C. Azeredo
Bernadete Ribetro Tadim.
Délnia M. C. Bastos

" O medo de ser julgado mata a


l,ícha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação espontaneidade; impede os homens de se
c Classificação da Biblioteca Central da UFV
manifestar e de se exprimir livremente, tal
Cavalcanti, Robinson, 1944- como são. É preciso muita coragem para
C376i 1\ Igreja, o país e o mundo; desafios a uma fé engajada/
2000 Robinson Cavalcanti. - Viçosa: Ultimato, 2000.
pintar um quadro, para escrever um livro,
l(,Or· para construir um edifício com linha
ISBN S5-S6539-14-7 arquitetônica nova ou para formular uma
1. Cristianismo c política. 2. Cristianismo e cultura. 3. Ética cristã. opinião independente, uma idéia original. "
4. Fé. 5. Vida cristã. I. Título.
(DO. 19.ed. 261.7
con 20.ed. 261.7
Paul Tournier

2001

Publicado com autorização e com todos os direitos reservados

EDITOR.-\ UI:W,IATO J .rr».


Caixa Postal 43 - 36570-000 Viçosa - Me
Telefone: (31) 3891-3149 - Fax (31) 3891-1557
E-mail: ultimato@ultimato.com.br
Ao
Rev. [ohn Stott,
Estadista do Reino,
pelos 30 anos de inspiradora amizade
o autor
Robínson Cavalcanti é casado. tem dois filhos e se identifica
como "um nordestino alabucano (nascido em Pernambuco e
criado em Alagoas). oriundo da classe média (com primos
pobres e primos ricos). filho de pai médium espírita e mãe
católica tradicional (que. posteriormente. se converteram ao
Evangelho)" .
Por causa de seu espírito interdenominacional.
trabalhou por mais de dez anos com a Aliança Bíblica
Universitária do Brasil (ABUB)e participou da Fraternidade
Teológica Latino-americana (FTL). da Comissão de Lausanne
para a Evangelização Mundial (LCWE). da Aliança Evangélica
Mundial (WEF) e da Fraternidade Evangélica da Comunhão
Anglicana (EFAC).
Licenciado em ciências sociais. bacharel em direito e mestre
em ciência política. Robínson Cavalcanti é professor adjunto
da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Reside em Olínda e é bispo da
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.

9
Sumário

Prefácio 13

A IGREJA
1. Os cristãos e o estado da igreja 17
2. O exótico protestantismo de Contra-reforma 21
3. Cristianismo: exc1usivismo vetsus inc1usivismo 25
Outros livros ôo autor: 4. O culto evangélico no Brasil 29
5. Evangelicalismo, cultura e julgamento 39
> Cristo na universidade brasileira
6. Os caluniadores de Satanás 45
> Uma bênção chamada sexo
> O cristão, esse chato! 7. As potestades do mal e os poderes da terra 51
> As origens do coronelismo
> Cristianismo e política o PAÍS
> Igreja - agência de transformação histórica 8. Os cristãos e o estado do país 57
> Igreja - comunidade da liberdade 9. Aprendendo com a história: 1964, nunca mais 61
> Libertação e sexualidade 10. A situação sócio-econômica e política da A. Latina 67
> A utopia possível- em busca de um 11. O papel profético da Igreja nas relações lgreja-Estadrv 83
cristianismo íntegral
12. Os evangélicos e o projeto histórico 95
13. A hora e a vez do Brasil 99

10
11
o MUNDO
14. Os cristãos e o estado do mundo 105
15. A globalização e os desafios do neoliberalismo 109
16. Civilização em transição
119
17. Construindo a era pós-secular 129
18. A espiritualidade na pós-modernidade 133

APÊNDICE

Respostas honestas a perguntas honestas 137

Posfácio
Notas
157 Prefácio
159

,
bíblico e sabido que não só da fuga do inferno e da
E esperança do céu, ou da Nova Jerusalém, vivem os cristãos, .
se estes pretendem realmente viver e não apenas existir.
Chamados e transformados pelo Deus da graça, eles são
enviados para a Igreja. o país e o mundo pelo Deus da
Providência e Senhor da história. para encarnarem. por
palavras e ações, o Evangelho. com as decorrentes alegrias e
dores. com os previsíveis martírios e glórias.
Neste trabalho. procuramos refletir sobre nossas crenças.
nossa identidade. nossos problemas e nossos desafios para a
vivência (engajamento) de uma fé madura. sadia e relevante.
Nele. há uma busca de uma mais adequada compreensão da
Igreja. do país e do mundo. com o propósito de uma melhor e
obediente inserção transformadora.

12 13
Reflexões sobre estes e outros desafios foram, também,
o propósito dos nossos nove livros anteriores, de um
sem-número de artigos e palestras, expressando posições,
tomando partido. levantando bandeiras, propondo soluções.
Este décimo livro, publicado nestes tempos de incertezas
globais, não foge à biografia do autor, sua maneira de ser e de
pensar, afetada, mas não alterada, pelo exercício do
episcopado.
Um livro não engloba tudo o que pensa o autor, mas este é
uma boa síntese de nossas reflexões, cujo espaço de veículação
tem sido, nos últimos quatorze anos, principalmente a revista
Ultimato.
Esperamos, com humildade, contribuir para essa
tumultuada travessia de século e de milênio, na companhia do
povo da nova e eterna aliança.

Paripueira (AL). 26 de maio de 2000


Festa de Agostinho, primeiro arcebispo de Cantuária
Robinson Cavalcanti
A IGREJA
Bispo da Diocese Anglicana do Recife

14
1.

Os cristãos e o
estado da Igreja

A Igreja, de origem divina e composição humana, é um mistério,


um povo e um pacto: una, santa, católica e apostólica. Ela não
é o reino de Deus, mas expressão, vanguarda, antecipação e sinal
desse mesmo reino. Criada segundo o coração de Deus. dentro
da economia da salvação, ela é formada de gente, com suas
personalidades, temperamentos e histórias de vida, situada no
tempo e no espaço, na cultura e na conjuntura.
Nem todos os que nela visivelmente estão, de fato são, nem
todos os que são dela, visivelmente estão. Nela encontramos
diversos níveis de maturidade, de dons e de vocações.
Essencialmente missionária - enviada com um conteúdo e
um propósito -, ela expressa essa missão em: a) uma dimensão
koinônics. a comunhão dos santos, que se apóiam, se respeitam
e se identificam; b) uma dimensão didática: a aprendizagem
cognitiva existencial do conteúdo da revelação; c) uma dimensão
dieconsl. o amor concreto, a solidariedade, o serviço, as obras
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

de misericórdia: d) uma dimensão kerigmetice. o anúncio. a Se quisermos ser honestos para com Deus e para conosco
proclamação do evangelho do reino: e) uma dimensão profética: mesmos. teremos de reconhecer a distância entre o ideal e o real
a defesa da vida e a denúncia dos sistemas de opressão. em nossos dias e a ausência de consciência e de desejo de
Alguns obstáculos são constantes ameaças à realização da mudanças. Sabemos que. sem compromisso com o reino. a Igreja
Igreja: o sectarísmo-denomínacíonalísmo. o ísolactonísmo- não é Igreja. que o reino caminha pela afirmação de valores. e
egocentrísmo-ínsensíbílídade. a compreensão parcializada ou que não há reino sem cruz.
equivocada da revelação. o Iegalísmo-moralísmo, a falta de objeti-
vos. o medo dos riscos e do martírio. o Brasil
Para sua saúde espiritual. a Igreja tem buscado um equilíbrio Entre nós. o materialismo, o ateísmo e o agnosticismo. que
entre adoração e ação. razão e emoção. ações internas e ações nunca foram fortes. praticamente desapareceram. O ocultismo
externas. individualidade e coletividade. tradição e inovação. pla- e o esoterismo vivem um momento de perversa pujança. O
nejamento e espontaneidade. Tem procurado superar as mercado religioso explode, com seitas, cultos e igrejas para todos
parcializações do seu conteúdo. sendo. ao mesmo tempo. porta- os gostos.
dora de uma religião de salvação, uma religião de libertação e Já tivemos uma religião oficial (a católica romana. até 1889).
uma religião de resultados. uma religião hegemônica ou "oficiosa" (a mesma romana). e
agora vivemos a tumultuada travessia para o multículturalismo
o mundo religioso e o pluralismo eclesiástico, sem que grande parte dos
A crise da modernidade tem feito a Igreja voltar à pré- nossos líderes pareçam preparados para tanto. O quadro se nos
modemídade. ao dogmatismo e ao misticismo, ao mundo mágí- afigura como caótico. desordenado. anárquico até, com a multi-
co-mítico medieval. com um "Cristo" débil. demônios fortes e plicação .de "microempresas religiosas" (Eu & Deus Ltda.). sob
anjos importantes. A teologia da prosperidade. a teologia do líderes autoproclamados, imaturos. pretensiosos. intolerantes e
dornínío (reconstrucíonísrno). a batalha espiritual. com seus vaidosos.
"demônios territoriais" (geopolítica infernal) e suas "maldições As novidades esdrúxulas de origem norte-americana são
hereditárias". nos enchem de justífícadas preocupações. acriticamente aceitas como válidas. O legado da Reforma parece
O aposentado bispo protestante Leslíe Newbegin (que foi mis- ter-se perdido.
sionário na Índia). analisando recentemente a situação mundial A Bíblia e a tradição viva dão lugar ao experimentalismo
da Igreja. afirmou que: 1) a Igreja está aprisionada pelo mundo individualista e aos espetáculos coletivos, com seus profissionais.
científico consumista e neo-líberal. 2) as únicas contestações a O liberalismo/modernismo está morto. A teologia da libertação é
este mundo aprisionante estão vindo do Islã: 3) a Igreja está di- uma pálida memória para abraçadores de árvore. Roma. alegre e
ante dos desafios de se libertar desse aprisionamento. impactar perplexa com a derrocada do comunismo e a ascensão do materi-
novamente a história e a civilização. e dar uma resposta superior alismo hedonista, redescobre os pecados do "lado de cá" (capita-
às do Islã. lismo). E o protestantismo balança entre o ímobílísmo, o aprisio-
Não podemos reduzir a Igreja a um clube religioso de iguais. namento às fórmulas e formas do passado e o rompimento infe-
que se refugia do mundo. põe a fé em: um compartimento e liz com suas raízes. arrebentando com a sua identidade.
espera a morte e o além. enquanto promove entretenimento Temos funcionado como expressão ideológica de uma classe
e espetáculos alienantes, sem profundidade e sem visão. (a burguesia). uma civilização (o OCidente). uma raça (os brancos).

18 19
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

uma cultura (a anglo-saxônia) e um modo de produção (o


capitalismo), cujos valores, estilo de vida e moral são identifica-
dos, equivocadamente, com o próprio cristianismo. Anossa "dis-
ciplina", com seu controle social e seu enquadramento coletivo
intolerante, está a serviço dessa cosmovisão e desse projeto. 2.
Com o poder político constituído, tem-se relacionado de for-
ma subserviente, trocando favores, em aproximação com os gru-
pos dominantes e opressores, na bajulação de César. Na caça às
almas isoladas e descarnadas, não se tem uma proposta
transformadora de promoção social e de cristianização macro-
o exótico protestantismo
estrutural. Com o apelo egoísta às bênçãos materiais,
obstaculizamos a vida de simplicidade e de serviço como ideais de Contra-Reforma
cristãos. A falsa sacralização do estrangeiro nos aliena do Brasil e
nos torna estrangeiros em nossa própria pátria. O nosso
patrulhamento moralista bloqueia a afetívídade, mata o amor,
tornando a agressívídade e a chatice terríveis marcas dos que
seriam atingidos pela graça.
Não há saída sem que se debruce sobre as páginas
esclarecedoras da história da Igreja, sobre a totalidade das pági-
nas das Sagradas Escrituras, sem que se reconheça a diversidade conjunto das igrejas evangélicas brasileiras afirma o seu
legítima no interior do povo de Deus, sem que se elabore uma
eclesiologia da valorização da Igreja e da sua unidade, sem que se
O vínculo histórico com a Reforma Protestante do século XVI. A
realidade, porém, é que esse vínculo, se existente, é cada vez
busque o esclarecimento e o poder do Espírito Santo para ser sal mais débil pela quase completa ignorância entre nós de fatos,
e luz, motores da história, transformadores da civilização. A saí- personagens e idéias daquele movimento reformado r da igreja
da pressupõe a superação da estreiteza de mente. cristã. A cada divisão denomínacíonal. a cada nova "microempresa
O estado da Igreja no mundo é preocupante. mais do ponto eclesíal". menos protestante se fica. As novíssírnas igrejas são
de vista qualitativo do que quantitativo. O quadro brasileiro não como Adão não possuem umbigo e não têm história.
é dos melhores. Assumir essa realidade, comprometer-se diante No lugar da fé e da confessionalídade, promovem-se a
de Deus com a sua mudança é sinal de uma fé obediente que experiência e os resultados.
quer tornar o evangelho relevante a esta geração.
Protestantes anti-reformados?
Qual é o jovem cristão hoje que pode minimamente discorrer
sobre Lutero, Calvíno. Melanchton ou Beza? Qual é o fiel de hoje
que conhece os catecismos ou as confissões de fé como os de
Westminster, de Augsburgo ou os XXXIVArtigos de Religião?

21
20
A IGREJA, O PAIs E O MUNDO A IGREJA

Quem possui algum conhecimento das idéias e costumes dos Se já encontramos pensadores que duvidam de que o
reformadores sabe que eles seriam "disciplinados" na maioria de crescimento das igrejas evangélicas signifique. necessariamente.
nossas igrejas hoje. Por sua vez. os reformadores dificilmente se o crescimento do Evangelho no Brasil. a outros fica a quase
reconheceriam em grande parte do protestantismo brasileiro. certeza de que o crescimento das igrejas evangélicas não significa
Em relação à Reforma. o nosso protestantismo é como o o crescimento do protestantismo. Cremos que a lealdade à
computador prlmítívo. não possui memória. apenas uma vaga Reforma implica uma deslealdade a muitas expressões do pro-
lembrança ...
testantismo atual. com todas as tensões e riscos inerentes. inclu-
Klaas Runia. renomado teólogo reformado australiano. em seu sive o sofrimento de medidas ínquísítoriaís (sendo a Inquísíção
livro Reformation today. afirma que o Ocidente não está preci- uma marca da Contra-Reforma).
sando de reavívamento. mas de reforma: uma reatualização da
vida cristã a partir dos princípios (não da forma) do movimento
protestante. Lágrimas de Lutero e Calvino

Por seu lado. um número cada vez maior de sociólogos da Há sinais. práticas e ensinos (autóctones ou importados) em
religião nega o caráter reformado do protestantismo latino- igrejas evangélicas brasileiras hoje que. de certo. causariam
americano. denominado por eles de "catolicismo de substi- tristeza. revolta ou desalento aos reformadores. que até os
tuição": "casca" (retórica. gestos. símbolos) protestante com um levariam às lágrimas. exclamando: "Não era bem isso o que nós
"miolo" (cosmovisão. atitude) católico pré-reformado. queríamos!"
Pode-se. assim. falar na existência de algo aparentemente Tais sinais ora representam retrocessos. ora representam
contraditório. estranho. exótico: um protestantismo tridentind inovações no ceme das doutrinas reformadas.
ou um protestantismo de Contra-Reforma. em que o espírito me- Seriam retrocessos: a) o centralismo. o clericalismo. o
dieval. caracterizado por dogmatísmo, autoritarismo. misticismo. híerarquísmo. que atentam contra um dos pilares do protestan-
anti-intelectualismo. ascetísmo, tradicionalismo. sacralização de tismo: a doutrina do sacerdócio universal dos crentes; b) o
instituições e de costumes. é promovido justamente pelos tradícíonalísmo, que atenta contra o princípio protestante da
pretensos herdeiros do movimento surgido para combatê-lo, para subordinação da tradição às Escrituras; c) a redemonização do
superá-Ia e impulsionar o mundo religioso cristão em direção a mundo. que atenta contra os princípios reformados da vitória da
um contínuo processo tanto de lealdade ao Calvário, quanto de cruz e do ministério dos anjos; d) o sectarismo denomina-
criação do novo histórico. cíonalísta, que nega a reafírmação reformada de ser a igreja una.
O que significaria para os evangélicos brasileiros hoje a Sola santa. católica e apostólica; e) o isolacionismo. que atenta contra
Scripturs (Somente as Escrituras). a Sola Gratia (Somente a o ensino reformado da santidade ativa no mundo; f) o ascetismo
Graça) e a Sola Fide (Somente a Fé) ou o princípio Bccclesu legalista. que atenta contra a postura reformada da liberdade e
Reformada Semper Reformanda (a Igreja Reformada Sempre da lícítude do prazer. como dádivas de Deus.
se Reformando)? Não seria um novo e necessário momento. Ensinos como batalha espiritual. demônios geográficos. de-
até mesmo revolucionário para muitos. a redescoberta dos mônios familiares. maldições hereditárias. apagamento erótico.
ideais dos reformadores sobre temas tão vastos como política. rosa ungidaetc. trariam sofrimento e dor aos reformadores.
responsabilidade social. educação. sexualidade. trabalho. lazer. sempre preocupados com a símplícídade e a sobriedade da
comida ou bebida?
vida cristã.

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A IGREJA, O PAÍS E O MUNDO

Seriam inovações: a) tanto a rigidez quanto a anarquia litúrgica,


quando ora se fecha ao sopro renovador do Espírito Santo, ora se
abandona, iconoclasticamente, toda a rica herança da adoração
da igreja; b) a teologia da prosperidade, que agride a memória
dos mártires e produz riscos ao díscípulado: c) a teologia do do-
mínio, que nega o chamado cristão ao serviço sacnficíal: d) a ali-
3.
enação política ou adesísmo. contrários à crença reformada na
doutrina dos "dois reinos" e ao chamamento ao profetísmo: e) a
insensibilidade social. em contraste às obras de misericórdia, que
eram componentes centrais do ensino e vida dos reformadores:
f) o preconceito ao conhecimento científico, particularmente às
Cristianismo:
ciências humanas, que confunde ignorância com santidade,
enquanto que os reformadores detinham títulos de doutores e
exclusivismo versus
fundaram universidades.
Proibições de bater palmas ou usar determinados instrumen-
inclusivismo
tos musicais na igreja, "louvorzôes" superficiais e verticalistas,
sopros e paletós derrubadores, unções sobre talões de cheques,
promoção de privilégios, bajulação aos poderosos, ausência de
senso crítico trariam espanto e lamento aos reformadores, advo-
gados de uma concepção integral da missão da Igreja e exemplos
de vívêncía inculturada da fé.
A crescente adesão acrítica de muitas igrejas evangélicas aos
"Encontros de Casais com Cristo" implica, talvez por desconheci-
mento, inegável adesão à doutrina católica romana tradicional
sobre sexualidade e família, e um abíssal dístancíamento dos
O princípio da exclusividade tem marcado a vida das nações
e das organizações. As monarquias absolutas, as ditaduras e
as tiranias cultivaram, ao longo da história, a uniformização, ,a
questionamentos e pontos de vista dos reformadores. intolerância e a repressão aos dissidentes. Teriam direito à vida
Não pretendemos atribuir aos ensinos dos reformadores status - biológica, social e política - exclusivamente os iguais, os leais
canônico, mas sua lealdade à Palavra nos permite aprofundá-los, e os submissos. Os outros deveriam ser excluídos.
amplíá-los. atualízá-los. nunca negá-los, voltar atrás nem deles A grande revolução cultural vivida pelo Ocidente na
nos afastar. Diante desse quadro, a unidade cristã fica mais modernidade (desdobramento do Renascímento, da Reforma e
difícil. e os segmentos que levam a sério a Reforma deverão do Iluminismo) foi justamente a substituição do princípio da
aprofundar a sua caminhada, mesmo solitários e exclusividade pelo princípio da ínclusívídade. Noções como
íncornpreendídos. democracia, constituição, estado de direito, liberdades públicas,
Castelo forte é o nosso Deus! direitos e garantias individuais, e igualdade perante a lei são
recentes e vivenciadas ainda por uma minoria de países. Tais
noções implicam a inclusão de todos os habitantes nos conceitos

24 25
A IGREJA, O PAIs E O MUNDO A IGREJA

de cidadania. a despeito de sua cor. classe. religião. opinião ou Embora o princípio da inclusividade seja encontrado erttre
estilo de vida. dentro dos limites do respeito aos direitos dos luteranos, metodistas. presbiterianos e outros grupos. é na co-
demais. munhão anglicana que é legitimado. Em razão da sua história. o
Esses princípios. contidos na Declaração de Direitos da Orga- anglicanismo afirma como valor e parte do seu ethos o direito à
nização das Nações Unidas (ONU). estão ameaçados e questiona- investigação teológica. filosófica e científica. o direito à liberda-
dos como valores universais. pelo recrudescimento dos de de pensamento e de expressão e o direito à convivência res-
fundamentalismos religiosos em todo o mundo. Para estes. só os peitosa e fraterna. dentro da mesma família eclesial. de pessoas
iguais. os "nossos". teriam direitos. Aos outros. a rendição. a ex- e grupos que possuem leituras. pontos de vista e orientações di-
pulsão ou a morte. Perguntam os analistas: estaríamos voltando ferentes. desde que confessem o mesmo Senhor. a mesma fé e o
à barbárie ou a uma nova Idade Média? mesmo batismo.
O arcebispo anglicano da África do Sul. Desmond Tutu afir- O princípio da inclusividade. na esfera eclesiástica. requer
mou que uma das marcas do nosso tempo é o crescimento da serenidade. humildade. maturidade. largueza de espírito e amor.
intolerância quanto aos diferentes. À insegurança da globalízação O protestantismo brasileiro. no passado. foi um entusiasta
reage-se com a confraria dos iguais e com a negação do direito à defensor do Estado Iaíco, enquanto hoje sofre de tentação
diferença. teocrática. desejando impor os seus pontos de vista ao conjunto
A teocracta, governo civil sob leis religiosas. vem sendo da população. não pela persuasão. mas pela via do poder público.
defendida. desde a revolução do Irã. por extremistas religiosos Na esfera política temos involuído do princípio da inclusividade
de vários credos. Seria o fim do Estado laíco e democrático e do para o princípio da exclusividade. Na esfera eclesial é pior. pois
princípio da ínclusívídade. Voltaria a vigorar. na esfera legal e somos. na grande maioria. originários de missões exclusivistas.
política. o princípio da exclusividade. Os direitos humanos e a sofremos a influência cultural do exclusivismo católico romano
paz entre as nações encontram-se seriamente ameaçados. popular ibérico e. por fim. e de maior peso. recebemos a marca
brutal do fundamentalismo e de seu espírito inquisitorial.
Unidade versusuniformidade
As denominações cristãs contemporâneas também se dividi- A fé versus a tribo
ram entre os que praticam internamente o princípio da exclusi- Sua Graça George Carey. arcebispo de Cantuária e líderespíri-
vidade e os que advogam para si o princípio da índusívídade. As tual dos anglicanos (um convertido evangélico que teve uma ex-
primeiras típífícaram o conceito sociológico de seita ou de seita periência carismática. valoriza a líturgía e advoga o compromisso
estsbelecids e as últimas. o conceito de igreja. O princípio da social). escreveu que muitos dos nossos líderes começaram a sua
exclusividade é a marca do fundamentalismo cristão e do vida espiritual no evangelicalismo. permaneceram fiéis a essa
evangelicalismo conservador. e o princípio da ínclusívídade é leitura da fé toda a sua vida. mas terminaram por se afastar da
defendido pelos liberais e pelo evangelícalísmo progressista. O subcultura Ctrtbo") evangelícal para poderem exercer a líberda-
exclusivismo é mais forte nos Estados Unidos e o inclusivismo é de de investigação. para optarem por posições políticas mais à
mais encontrado na Europa. esquerda ou por não concordarem com a uniformização dos usos
A própria fragmentação denominacional é resultado do e costumes.
exclusivismo. Como duas ou três correntes não conseguem con- Os profissionais que continuam nesses guetos tendem a
viver no mesmo espaço. funda-se outra instituição. dícotomízar, separando o seu mundo científico do seu mundo

26 27
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

religioso. subordinando o primeiro ao segundo. incapazes de


ousar ou fazer sínteses. em razão de suas fragilidades interiores
ou pelo temor do controle social eclesíal. que os excluiria ou os
faria perder clientes.
Vale ressaltar.
evangelicalismo
por outro lado. que os integrantes
nas igrejas inclusivistas se identificam
do
4.
confessionalmente com seus irmãos evangelícaís das igrejas
exclusívístas, mas terminam por preferir a tensão com os dife-
rentes à repressão dos iguais. Seria o caso. no Brasil. dos
evangelicais luteranos e anglicanos. Os inclusivistas se sentem
desconfortáveis com os exclusívístas. enquanto estes. por sua
o culto
vez. se sentem ameaçados pelos primeiros. pois para eles a dife-
rença é uma ameaça. evangélico
O problema é mais grave no Brasil. pois na maioria das
nossas regiões só há igrejas exclusivistas ou os ínclusívístas no Brasil
se constituem em ínfima e exótica minoria. incompreendidos.
tidos como hereges ou liberais e mantidos à margem.
Enquanto isso. em todo o mundo. sólidos. santos e ortodoxos
evangelicais continuam a exercer seus profícuos ministérios nas
igrejas históricas inclusivistas. procurando um modus vivendi
fraternal interno com os diferentes e buscando. sempre que pos-
sível. a fraternidade com o conjunto do evangelicalismo
exclusivista. Quanto à subcultura ("tribo") evangélica. respeitam
quem goste. mas não sentem que ela faça o seu gênero.
Respirar é preciso.
o s cultos são formas de homenagens que se prestam à
divindade. Isso pressupõe a existência de um conjunto
estável de adoradores. um grau mínimo de organização
(ínstítucionalízação), crenças comuns. uma divisão social do
trabalho cúltico (papéis sociais religiosos) e a elaboração de ritos
e rituais. Os cultos possuem uma dimensão histórica (eles ocorrem
em um tempo que se sucede) e uma dimensão antropológica
(a sua íntima relação com as diversas culturas. até mesmo
caracterizando-as). Outros elementos e dimensões igualmente
lhes perpassam: a dimensão econômica. a dimensão política. a
dimensão ética etc.
Os cultos são encontrados em todas as civilizações e culturas.
como que significando uma necessidade humana e social básica.
um elemento integrador. dimensão fundamental do imaginário

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A IGREJA, O PAis E O MUNDO A IGREJA

coletivo. Os cultos respondem às diversas conjunturas. possuem oração comum da Igreja da Inglaterra. Os cultos estavam no livro.
um aspecto de rigidez (sacralídade) e um aspecto de flexibilidade. emanavam do livro e eram. de certa forma. aprisionados pelo
são suscetíveis de alterações no contato com outros cultos e. ou. livro.
de inserção em outro tempo e lugar. Os cultos no livro. que representam Pequena parte da
No Brasil. por tempos ímemoríaís. os povos ameríndíos que pluralídade cúltíca da brasílídade. são marcados pelo reduzido
aqui estavam quando da chegada dos invasores europeus elabo- impacto no conjunto das nossas expressões religiosas. em virtu-
raram seus cultos. A colonização significou a tentativa de de do isolamento espacial e cultural das suas comunidades. Isso
trap.sll.1igraç~o do culto católico- romano ibérico. A imigração for- se dá não apenas em r:eJ4ção<l0~culto~ não refprIlla,cl:()s. Ill.~~~ ,"
çada de etnías africanas resultou na inserção de seus elementos semelhantemente, aos diversos cultos reformados de outras
cúltícos no solo brasileiro. a despeito da repressão como povos matizes.
social e economicamente oprimidos. Outras marcas menores. O suceder de gerações leva à tradução vocabular dos livros e à
como a do judaísmo (cristãos-novos) e do íslamísmo, podem ser tensão permanente entre possibilidade e limitações para a tra-
regístradas. dução conceitual dos livros e de sua possibilidade de aculturação/
A importação cultural. a superficialidade, o reducionismo inculturação.
(ritos de passagem) e o sincretismo conviveram com uma ínegá- A nostálgica fidelidade ao passado, o ímobílísmo. a rigidez. a
vel hegemonia católico- romana (maioria + relação com o Esta- rotina. a acusação de irrelevância e o esvaziar de congregações
do), e com os focos de resistência cultural de afros e ameríndíos. são os fantasmas permanentes a assombrar esse segmento de
A presença dos cultos reformados (franceses e holandeses) foi adoradores.
epísódíca e descontínua. O culto do livro. Congregacionais. presbíteríanos. batistas (e.
À semelhança de outros povos da periferia do sistema capíta- até certo ponto. metodistas) representam rupturas mais radicais
lista, o culto e a religiosidade são de tal enraizamento na realída- com a catolícídade cristã e com a sua herança. A ausência ou a
de nacional. que nos permitiram mitigar a secularização e a reduzida importância dos manuais Ittúrgícos, a permanente po-
modernídade. com inegáveis inibições ao secularísmo. larização (diferenciação compulsiva) em relação ao romanismo e
a maior participação do laícado marcaram esses cultos. com a
o culto protestante opção por uma pretensa espontaneidade. que de espontâneo ti-
nha muito pouco. A "espontaneidade". na prática. era a rotinização
Tardio em sua presença histórica e reduzido em seu impacto da pobreza lítúrgíca.
cultural. o culto protestante no Brasil pode ser caracterizado como A própria idéia de adoração e adoradores parece ser estranha
diverso, exógeno e exótico. Poderíamos. grosso modo. assim para esse segmento. O culto (chamado de "trabalho") se reduziu
classífícá-lo. a uma reunião despojada. uma reunião de cunho docente. Os
O culto no livro. Luteranos e anglicanos aqui aportaram. ínící- seguidores desses cultos não se percebem como adoradores. mas
almente, como imigrantes. Além da bagagem, trouxeram. com como eternos aprendizes. igrejas-escolas. o Protestantismo de Reta
seu culto, outros elementos daquelas culturas alíenígenas. Os seus Doutrina (Rubem Alves). com sua ênfase pedagógica e de um
cultos tinham história e um longo processo de elaboração. O conhecimento acadêmico (memorização e adesão a conceitos).
ano eclesiástico. um calendário de datas e festas. um clero profís- além de sua Escola Dominical. Uniões de Treinamento e asseme-
sional e. especialmente. um manual Iítúrgíco, como o Livro de lhados, centradas no ensino, transformam o culto em outra aula

30 31
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

a mais. a aula magna. a aula maior. a aula ápice. Cânticos. A paternidade iracunda do Deus-Iavé sobressai no "Novo Israel".
orações e coleta parecem representar contrapontos menores. Na sagrada dialética do absurdo confunde-se a fronteira da alie-
No lugar dos altares. a plataforma; no lugar dos santos. os nação e da resistência enquanto se radícalíza a fetichização do livro.
pastores; no lugar das imagens. o púlpito; no lugar do sacrário. a Uma ponte cultural. afetiva. é estabelecida com as massas e
Bíblia. as Bíblias imensas. Bíblias nos púlpitos. Bíblias debaixo do com a cultura popular. A mística contra-reformada é travestida
braço. Bíblias nos lares. Os críticos mais cáusticos falavam até em da retórica reformada.
bíblíolatría ... como resultado da interação desses cultos com a O culto-espetáculo. Com o passar das gerações. verifica-se
teologia fundamentalista. uma mobilidade social ascendente dos filhos dos cultos das
Com o tempo. esses cultos. já agora também históricos. rece- emoções. sofisticando-Ihes as exigências estéticas. a necessi-
beram o epíteto de tradicionais. pela fidelidade às velhas idéias. dade de uma menor dessemelhança externa com o mundo.
aos velhos ritmos e às velhas formas. em que se exercitavam. enquanto se preservam "no coração" as velhas concepções.
controladamente. os cérebros e reprimiam-se as emoções. Com o Vai-se aos shopping centers. sente-se o impacto da mídía. do
velho órgão. a velha Rude cruz e a velha retórica gongórica dizen- consumismo. do instantaneísmo. da superficialidade da or-
do cada vez menos aos novos tempos. os cultos livrocêntricos dem neoliberal. cumpre-se a peregrinação à Disney. Sente-se
vivem. semelhantemente. suas angústias e sua incertezas. a necessidade de status. de adorar com os iguais e de
O culto das emoções. O culto das emoções se relaciona mais evangelizar. preferencialmente. os iguais. em uma Medellín
com o culto do livro do que com o culto no livro. Neste. fazia-se às avessas.
uma controlada ginástica cerebral e continham-se as emoções. O cenário está pronto para o novo culto: classe média. nível
naquele as emoções explodiam. superior. branco. cheiroso. simpático. Instrumentos e sons im-
A fé. mais do que entendida. é sentida. Os gritos são válidos. pensados por Kalley ou Simonton adentram os palcos (não mais
as lágrimas. respeitadas e os tremores e expressões corporais. altares ou plataformas). Na platéia. uma multidão de jovens usan-
lícitos. No lugar da grande aula. a grande catarse. a terapia de do jeans. tênis e adereços à moda do século se soltam em eclesíal
grupo gratuita. O grande professor dá lugar ao grande animador. aeróbica. No palco revezam-se os santos artistas e os santos mes-
O sagrado é individualizado. ínternalizado. o carisma é socia- tres-de-cerimônias.
lizado. O "suspiro do oprimido". de Marx. torna-se. enfim. O lugar do livro se reduz. A mensagem é curta. sem profundi-
li teral. dade e sem "grilos" questionadores. Apela-se para a paz interior
Os' migrantes e desalojados encontram o seu novo lugar social. de uma burguesia reconciliada com Deus e com a sua própria
novo status. novo papel. novos "irmãos". novo paí/patrão/pastor. classe. O poslúdio alegre se estende a uma pizza ou a um bigmec.
A multífôníca líturgía é feira/festa do interior. O ruralismo eucaristias da prosperidade.
subsiste na urbe. o tradicionalismo se veste de contracultura à O culto-aula ou o culto-catarse dá lugar ao culto-show. em que
sociedade secular e o sacerdócio universal dos crentes recebe nova o que importa é a beleza. não plástica. mas da percepção. Final-
leitura. mente uma parcela do protestantismo desenvolve uma suigeneris
O excluído re-incluído se torna melhor (mais puro. mais estética do sagrado.
salvo) do que o seu opressor. se torna superior aos eruditos que O culto espetacular. Enquanto o culto espetáculo é um desdo-
apenas dominam as línguas dos homens. enquanto ele. sim. fala bramento do culto das emoções para a burguesia branca. o culto
a língua dos anjos. espetacular é a sua vertente para o proletariado pardo. Os

32 33
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

primeiros são gratos pelo que têm. os últimos são crédulos no Função política: conversões e reconsagrações inusitadas têm
que esperam. O culto espetacular é a expressão litúrgica da coincidido com o calendário eleitoral. bem como de figurões dos
religião de resultados. três poderes e postulantes às outras assembléias que não a de Deus.
Nada de elocubrações acadêmicas de genebrinas origens. Nada O conteúdo homilético e a práxis neofranciscana pragmática ("é
de rituais de cantuárias fontes. As emoções são boas. mas "não dando que se recebe") sinalizam a existência de ídolos no circui-
enchem a barriga de ninguém". e "espetáculo não dá camisa". A to. até mesmo em forma de "santínhos".
memória de Israel não faz sentido. O consolo do além não pinta Função econômica: o locusdo culto pode incluir um ampliado
barraco. O culto que atrai é uma versão religiosa do "aqui e ago- staff profissionalizado. cujos salários conseguem. até mesmo.
ra". concreto. simplificado. com o triunfo dos mocinhos (de gra- conter ou retardar crises de vocação: prósperos agradecidos ou
vata) contra os bandidos (endemoninhados). pois os chefes su- miseráveis a fim de: oferta de bens ungidos (óleo. água) passan-
premos (tal qual He-Man) "têm a força". do pelos agregados periféricos. como flanelinhas. pipoqueiros.
Afinal a saúde. o emprego. o filho sem maconha. a filha sem pedintes e profissionais dos ritos de passagem - fotógrafos.
se prostituir ou o marido sem se embriagar são bênçãos existen- cínegrafístas, modistas. decoradores. músicos etc.
ciais instantâneas. conseguidas com a compra de ações na bolsa Função ideológica: na visão de Louis Althusser. o espaço do
de valores celestial. intermediada não por abstrações. mas pela culto. como expressão da instituição religiosa. pode funcionar
concretude dos óleos e águas bentas. nossos velhos conhecidos. como um "aparelho ideológico". socializando a ideologia da clas-
Nada de riscos de repressão policial às manifestações sindicais se dominante. obstaculizando o avanço do processo histórico em
de quem pensa nos outros ("quem quiser a bênção. que também uma direção transformadora e libertadora. pela alienação. pela
venha à igreja"). Nada da dor de quem pensa e tem de tomar passividade. pela legitimação do statu quo. O culto se torna um
decisões. "culto à ordem" e ao lugar social diferenciado (opressores. opri-
O importante é a rotínízação do milagre. a vulgarização da midos. privilegiados. excluídos) ocupado pelos diversos
resposta divina. adoradores. escamoteado pela retórica e pela simbologia de uma
pretensa fraternídade e de uma pretensa "igualdade espiritual".
o extraculto do culto Nesse sentido. a docência do culto e a "disciplina" funcionam
Como sabemos. nos cultos entra de tudo. às vezes até Deus. como mecanismos de enquadramento e controle social. de re-
Supõe-se que neles a divindade seja a homenageada. mas. de pressão aos desviantes e censura aos divergentes. A ínquísíção
vez em quando. ela é apenas um pretexto. dependendo da moti- estaria embutida no culto protestante. em seu crescente proces-
vação. Além do ato adoratório. os cultos podem se prestar a uma so de "íslamízação" - sacralízação de modelos sócio-culturais.
série de funções sociais. de política. economia. usos. costumes etc.
Função sssocistive. desde o único espaço disponível nas Função psicológica: o espaço do culto pode ser o locusda sani-
pequenas comunidades rurais até os implícitos clubes religiosos dade intencionalmente buscada ou da que vem como subproduto.
de classe média nos maiores centros urbanos. o culto pode ser recompondo personalidades. mas tem sido. tantas vezes. o locus
apenas o locus onde se fazem amigos e se influenciam pessoas. da patologia. da alucinação. da histeria. do descontrole. Em que
Dependendo da classe social e da ênfase pastoral. os cultos (como medida. e em quais de suas expressões. o culto protestante brasi-
nas igrejas centradas nos "Encontros de Casais com Cristo") se leiro cura ou adoece? A segunda hipótese. lamentavelmente. pa-
tornam um tipo de reunião com reza. rece ser de maior incidência.

34 35
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

Função litero-stlético-recrestive. o ajuntamento solene musical do culto-espetáculo, parte-se para a importação maciça
pode se resumir, em muitos corações, na oportunidade para um dos ritmos norte-americanos, reforçando o caráter exógeno do
piquenique, para bater uma pelada, ou para encontrar uma "alma culto reformado no Brasil.
gêmea", dentro da normatização do erótico sancionada pela Para um brasileiro alheio às tradições evangélicas, um culto
instituição, protestante não parece um culto, mas apenas uma reunião, E
Sem falarmos no carreirismo religioso ou no narcisismo e aqui entra um elemento central: a reverência. O' sagrado entre
massagem do ego (e do bolso) de poetas, cantores e tocadores. na nós é alvo de silente e até temerosa reverência, A seriedade, a
superstição daqueles que acham que "dá azar" não comparecer solenidade e o silêncio são pré-requisitos que tomamos por sen-
semanalmente ao espaço sagrado: ou na rotina cíclica dos tado. O' culto protestante, no geral. é a antítese dessa tradição. A
ritos de passagem: batízados. casamentos, enterros etc.. que se exótica bagunça de um "Deus meu chapa" e não o temor ao
espera, pela tradição, sejam cumpridos por todas as pessoas grande "Eu sou".
"civilizadas" , O' culto protestante brasileiro é contracultura, anticultura
Talvez se devesse falar, entre nós, sobre a necessidade de ou cabeça-de-ponte de importações culturais, raramente uma
desenvolvermos uma ética motivacional do culto, homenagem nativa ao Cristo Redentor.
É importante reconhecer esse "estranhamento cultural.
o exógeno e o exótico
Por maior que tenha sido a sua disseminação geográfica e o Desafio
seu crescimento numérico, o culto protestante ainda não se Cremos, em suma, na possibilidade, também qualitativa, do
aculturou entre nós, A cultura latino-ibérica, em particular, é culto protestante nas Terras da Santa Cruz, O' culto protestante
marcada por sua plastícídade. Há toda uma rica tradição da arte deve ser: mais católico, Não se podem jogar impunemente 2
sacra: arquitetura, pintura, escultura, roupas, símbolos, Há, mil anos de adoração universal na lata de lixo da história, As
indiscutivelmente, uma marca visual do sagrado, tradições orientais, ortodoxas e latinas encerram uma riqueza
As tradições afra e ameríndía vão na mesma direção, facilitan- inestimável. Cremos que o Espírito Santo assistiu essas igrejas,
do o síncretísmo.
mesmo com suas imperfeições, na arte de adorar o Criador:
Um outro aspecto importante do culto não reformado entre
mais brasileiro, Já é mais do que hora se assumirmos a nossa
nós é a sua expressão dramática, das novenas e procissões à den-
brasílídade, com a história, a literatura e a arte subsidiando o
sa líturgía pascal, passando pelos autos natalinos,
nosso culto. A reconciliação crítica entre o cristianismo evangéli-
Para a cultura brasileira, culto é arte ou arte é culto.
co e a cultura brasileira é ponto focal para o futuro do nosso culto
No geral. o culto protestante brasileiro é percebido como
e da nossa fé: mais culto, Sem desvalorizarmos as reuniões, as
antíarte. porque o nosso protestantismo é antíartístíco, pois a
aulas e as festas, a homenagem à divindade, quando solene, re-
arte, de um lado, faz fronteira com a "idolatria", e, do outro, com
verente, contrita, sincera e humilde, caracteriza o culto como culto,
o lúdíco. com o prazer, ambos anátemas para os herdeiros verde-
Adoração passa por meditação, contemplação, devoção, temor e
amarelos da Reforma, rígidos na defesa das" quatro paredes caia-
das e um sermão", respeito. Chegando-se ao templo meia hora antes para
A demonização das culturas ibérica, africana e ameríndia pelo "desíntoxícar" a alma, como fazem os cristãos da Índia, parece
protestantismo brasileiro gera uma barreira praticamente ser mais culto do que chegar, indolentes ou esbaforidos, meia
intransponível para o processo de aculturação. Na renovação hora depois, como ocorre entre nós,

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Poderíamos recuperar, em seu simbolismo, a inteireza da


Semana Santa: enquanto os romanos choram o "Senhor morto" e
pouco afirmam do Domingo da Ressurreição, gerando um culto
mórbido, os protestantes têm ressurreição sem paixão, resvalando
para um culto superficial e imaturo.
Pode-se construir um culto de um protestantismo católico e
5.
de uma brasílídade ecumênica. Isso não somente é possível. mas
torna-se, cada vez mais, uma imperiosa necessidade.
Para tanto, devemos ser sinceros e humildes, assumir a
realidade e ter a coragem de criar e recriar. Para a maior glória de
Deus.
Evangelicalismo I

cultura e julgamento

evangelicalismo se caracteriza pela valorização da história


O da Igreja e, em particular, da história confessional: a crença
na ação do Espírito Santo, na compreensão das verdades sagradas
contidas nos Credos da Igreja índívísa e nos pontos convergentes
das confissões de fé resultantes da Reforma Religiosa do
século XVI.
O evangelicalismo advoga um acercamento sincero e reverente
o
das Sagradas Escrituras (sem literalismo dos fundamentalistas)
e uma abertura para o papel auxiliar dos instrumentos filosófi-
cos e científicos. Não considera a Bíblia como qualquer livro, mas
como Palavra de Deus (Dei Verbum), relato último e sutoritstivo
da Revelação (Sola Scripture).
A partir dessas premissas, o evangelicalismo desenvolve uma
ontologia pela qual se afirma o caráter único dos seres humanos,
criados à imagem e semelhança de Deus (imsgo Dei), prírnícia da
criação, dotados de sentimento, razão, vontade, espírito e

38 39
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

destinação eterna. Seres a quem o Criador outorgou um mandato concedeu à Igreja um lugar único nesse reino. Distingue-se na
cultural: a administração do mundo, segundo a sua vontade. Para paternidade especial de Deus na redenção. As díve.sas manifesta-
o evangelicalismo, sem entrar em controvérsias quanto aos deta- ções religiosas ao longo da história são evidências da busca
lhes das narrativas, o pecado original. como ruptura da comu- (ainda que insuficientes) da re-ligação da criatura caída com o
nhão plena da criatura com o Criador, afetou especialmente a seu Criador.
natureza humana em todas as suas dimensões. Cristo torna soteriologicamente desnecessários e ultrapassa-
Como seres caídos, as criaturas perderam o seu status de fi- dos todos os sistemas religiosos da história. E o Cristo de Deus
lhos e foram reduzidas ao de meras criaturas privilegiadas. O estava unicamente em Jesus de Nazaré. O cristianismo - como
evangelicalismo afirma a perdição em que se encontram os seres sistema religioso histórico e cultural - pode, e deve, ínteragír
humanos: conhecem a morte física, vêem-se vulneráveis diante com os outros sistemas e deles incorporar os elementos
das potestades espirituais da maldade, vivenciam o cotidiano do enriquecedores convergentes com a cruz ou que tornem mais
poder do pecado, a tirania do ego e das paixões, a ausência da acessíveis a compreensão da cruz e a vivência da fé.
paz interior, a falta de projetos coerentes e conseqüentes para Esta é a essência da sua catolícídade uma fé de todos e para
a existência, o desastre do exercício do mandato cultural. pela todos no Cristo ressuscitado.
construção de sistemas iníquos, e, por fim, podem encarar uma Somente se pode falar em salvação quando ~e reconhece a
eternidade sem Deus. perdição. A salvação é uma salvação de (um estado/situação) e
Os sinais ou evidências, individuais ou sociais, da perdição uma salvação para (outro estado/situação diferente, melhor).
não se podem confundir com a própria ou elidir o seu caráter O evangelicalismo tem denunciado profeticamente as frus-
ontológtco/moral. trantes tentativas humanas de sair da perdição e construir seus
A conversão (metanóia) é a passagem da perdição para a próprios caminhos de salvação: a) quando se assume o caráter
salvação, que tem como conseqüências: o perdão dos pecados e inevitável e "natural" da situação; b) quando se nega e se ignora
a vida eterna com Deus; a vitória sobre os efeitos do pecado e Deus e a eternidade; c) quando se proclama uma 'anistia ampla,
o poder das trevas; a descoberta de dons, vocações e projetos geral e írrestríta" (soteriologia uníversalísta): d) quando se opta
existenciais de serviço no reino de Deus; a possibilidade de por "salvações substitu tívas" (drogas, ideologias, sistemas);
crescimento pessoal rumo à maturidade, à santidade (santífícaçâo/ e) quando se nega a natureza do pecado; f) quando se busca
crístífícação) . uma salvação antropocêntrica (panteísmo. auto-ajuda etc.): ou
g) quando se constroem sistemas religiosos (leis, ritos, costumes)
Sola Gratia, Sola Fide, Solus Christis que conduzem à auto-indulgência.
O evangelicalismo afirma a unicidade de Cristo. Deus mani-
A unicidade de Cristo se relaciona, de forma índíssocíável. com a festa o seu amor para com os seres humanos perdidos por meio
unicidade da Igreja, não como instituição, mas como povo de Deus, da sua graça. que se materializa na encarnação, nz expiação e na
povo da aliança, vanguarda, sinal. antecipação do reino, portadora ressurreição de Jesus Cristo, único caminho de szlvação para os
do evangelho e primícia da nova humanidade. Igreja de pessoas seres humanos de todas as épocas e de todos os lugares: para os
caídas regeneradas, agentes de transformação histórica e arauto da que tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho e optar, e para
esperança em "um novo céu e uma nova terra". os que não tiveram essa oportunidade, mas cuja resposta, se
Deus é o Senhor da história. É o Deus da providência e da graça tivessem ouvido a mensagem da cruz e do túmu.o vazio, Deus,
comum. O seu reino não é igual à Igreja, mas a sua providência em sua onisciência, amor e justiça perfeita, conhece.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

Há uma universalidade no evangelho: ele se dirige a todos e é quanto o sincretismo e advoga para a Igreja um modelo
suficiente para todos. porém só é eficiente para os que se arre- encarnacional: Defende que "a conversão não deve desaculturar
pendem e crêem. os que se convertem. os que se tornam novas o convertido". mas ele deve conciliar criativamente a tensão ine-
criaturas. Deus respeita o dom da liberdade que deu aos seus vitável entre permanência. integração. continuidade e ruptura.
seres humanos. inclusive a liberdade para rejeítá-lo e à salvação. O documento também deplora o pessimismo e o derrotismo. bem
Ninguém se salva se Deus não quiser. mas Deus não salva nin- como o otimismo ingênuo quanto aos resultados da participação
guém que não quer ser salvo. cristã na cultura. Permanecer integrado à sua cultura é tido como
A fé em Cristo é religião de salvação. mas é também. e simul- um ato de obediência. com muitos resultados positivos.
taneamente. religião de libertação das opressões pessoais e es- O evangelícalísmo deplora as atitudes etnocídas do passa-
truturais do pecado. e religião de resultados. como cura dos dra- do e a ausência de sensibilidade transcultural do presente. o
mas. carências e alienações pessoais do cotidiano. preconceito contra a antropologia e a vinculação. tantas vezes. da
Na sua radícalídade trinitária o evangelicalismo confessa a ação empresa missionária com o imperialismo. Mas também chama a
histórica do Espírito Santo no convencimento dos pecadores. na atenção para a impossibilidade de se cobrarem do passado atitu-
consolação da graça e na concessão de discernimento e poder des que pressuponham conhecimentos que temos apenas no pre-
para a tarefa missionária do povo de Deus. sente. Ao apontar para a marca tanto da imago Dei quanto do
pecado nas diversas culturas. resultando nas ambigüidades do
A teologia de Lausanne atual estado da natureza humana. o evangelicalismo condena
O maior evento histórico do evangelícalísmo, o Congresso tanto a divinização quanto a demonização de culturas. e afirma
Internacional para Evangelização Mundial (Lausanne. 1974). que todos devem estar sob o juízo de Deus. sob o paradigma dos
reconhecendo as mais amplas implicações sócío-econômícas do valores do reino. dos quais se aproximam ou se distanciam.
evangelho. não as confunde com salvação. O item 10 do Pacto de A arrogância ocidental não pode ser substituída por um mórbido
Lausanne. que trata de evangelho e cultura. condena a vinculação e paralisante complexo de culpa. e o etnocídio não deve ser
do evangelho a culturas particulares. afirma não haver culturas substituído pelo mito rousseauniano do "bom selvagem". [ohn Stott
superiores ou inferiores e defende que as igrejas devem ser afirma que a conversão nunca se dá em um vácuo cultural. e o Pacto
"profundamente enraizadas em Cristo e relacionadas com a de Lausanne estatui que o Espírito Santo" ...ilumina o povo de Deus
sua cultura". Defende o julgamen to das culturas por valores em cada cultura para perceber atualizadamente sua verdade por meio
absolutos revelados e advoga que. em humildade. os evangelistas dos seus próprios olhos".
e as igrejas devem "procurar transformar as culturas e enriquecê-
Ias para a glória de Deus". Os latino-americanos
O encontro sobre evangelho e cultura promovido conjun- O evangelicalismo deste continente. articulado na Fraternidade
tamente pela Comissão de Lausanne para a Evangelização Teológica Latino-americana (FTL). tem denunciado o "embran-
Mundial (LCWE) e a Aliança Evangélica Mundial (WEF). nas Ilhas quecimento" dos negros e dos índios convertidos. seu
Bermudas em 1978. produziu o Willowbanka Report. no qual desenraizamento cultural e perda de identidade. bem como a
reconhece que as culturas não são estáticas. mas estão em anglo-saxonização dos convertidos brancos e mestiços. Temos
contínuo processo de mudança. Condena tanto o provincialismo deplorado o surgimento de subculturas protestantes

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO

isolacionistas, misto de legalismo fundamentalista e


tradicionalismo íbero-católíco pré-moderno.
Temos chamado a atenção para a necessidade de uma aber-
tura para as ferramentas das ciências sociais, para a necessidade
de uma espiritualidade
reafirmação
integral e uma missão integral, para a
do Estado laico, democrático, pluralista e
6.
multicultural. Temos advogado o respeito mútuo entre cidadãos
divergentes mas civicamente co-beligerantes, ao mesmo tempo
que negamos o relativismo e o impedimento em compartilhar-
mos a mensagem da cruz.
A tradição fundamentalista do etnocídio o e a tradição liberal
Os caluniadores
do universalismo/relativismo/ecumenismo ampliado podem pa-
recer soluções simétricas ou fáceis, mas dificilmente são susten-
de Satanás
táveis à luz das Sagradas Escrituras e do testemunho apostólico,
ou fiéis à memória dos mártires.
A igreja "de todas as culturas para todas as culturas", no
inegociável apego ao túmulo vazio, é tarefa difícil, mas é o único
caminho adequado para uma salvação das culturas, nas culturas
e para as culturas.

ma visão correta da questão do mal tem sido a crescente


U preocupação da reflexão teológica no Brasil, particularmente
diante dos desvios e exageros encontrados nos últimos anos. Essa
preocupação vem sendo explícítada por seguidores da teologia
da missão integral da Igreja, como Paul Freston e Osmar Ludovico,
na revista Ultimato, e por Ricardo Gondim, com o seu
importantíssimo livro crítico da teologia da prosperidade, O
evangelho da Nova Era (Abba Press).
A teologia bíblica tem ensinado uma tríplice manifestação da
maldade: a) a metafísíca. representada pelas hostes satânicas;
b) a individual, representada pela natureza humana caída;
c) a estrutural. representada pelos sistemas sociais distanciados
dos valores do reino (opressão, injustiça, desonestidade).
Uma das tragédias do cristianismo contemporâneo tem sido
o unilateralísmo adotado por diversas tendências no tocante
a essas manifestações do mal: a) os chamados tradicionais

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

reconhecem doutrinariamente o papel satânico. centram sua (todas as áreas do ser) como depravação completa (erradtcaçâoda:
visão na maldade individual (arrependimento pessoal) e acredi- imago Dei). Alguns renovados seguem na mesma linha. outros
tam que a maldade social é mero reflexo linear da maldade indi- crêem em uma contínua aquisição-perda-reaquisição (queda da
vidual (moralísmo). b) os chamados liberais duvidam da atuação graça). algo mentalmente estressante. e outros. ainda (na linha
(e até da existência) do satânico. centram sua atuação na malda- da prosperidade) acreditam na completa erradicação da maldade
de social. acreditando. ao contrário dos anteriores. ser ela o espa- e conseqüente divinização dos nascidos de novo.
ço alimentador da maldade individual: c) os chamados renova- "Batalha espiritual" apenas + "depravação completa"
dos reconhecem doutrinariamente a maldade individual. em ge- descem promisso histórico.
ral reduzida a usos e costumes (legalísmo). se assemelham aos Corn essas parcializações. os cristãos não têm condições de
tradicionais no individualismo ético (homem novo = sociedade elaborar projetos históricos alternativos para uma civilização em
nova) enfatizando. cada vez mais. o papel satânico. crise. resumindo seus alvos ao crescimento quantitativo. ao
O que se tem notado. crescentemente. é que muitos dos ativismo religioso. às elucubrações metafísicas e ao cultivo das
tradicionais estão tendendo a colocar semelhante super- novidades espetaculares. Quando não se tem uma missão na
dimensionamento na ação satânica. história. algo há que ser feito para encher o tempo entre a
Essa parcialização do problema tem implicado resultados ca- conversão e a morte ou o arrebatamento.
tastróficos em termos de amadurecimento e de conteúdo missio-
nário para a igreja cristã. Missão intra-histórica
Tradicionais e renovados não conseguem elaborar alternati- Uma perspectiva correta das Sagradas Escrituras implica
vas sociais positivas porque não trabalham com um conceito de assumirmos o mandato cultural de uma missão íntra-hístónca.
pecado social. Resultado: alienação. constantinismo. Liberais não Isso requer o conhecimento dos tempos para a interseção. a in-
conseguem elaborar alternativas de espiritualidade. nem comba- serção e a projeção. Para tanto. devem os cristãos trabalhar. em
ter. quando necessário. as hostes satânicas. restritos ao álibi cada conjuntura. com dois valores básicos: a justiça e a liberdade.
atívísta. tentando "cozinhar omeletes sadios com ovos podres". O tema da justiça nos leva a perguntar: como seriam os siste-
A auto-indulgência com os pecados individuais e a fuga da mas sócio-políticoceconômicos sem a queda (Éden). ou como será
luta contra os pecados sociais são o resultado de colocar toda a quando a superarmos (Nova Terra)? e. o que significa. concreta-
ênfase na "batalha espiritual" (sem "batalha pessoal" e "batalha mente. para o cidadão cristão a prática da oração "Seja feita a tua
social"). Os demônios passam a ser os únicos culpados. Estes já vontade. assim na terra como no céu"? Implica dizer que vivem
possuem sua devida quota de maldade e não devem ser "caluni- em pecado os promotores de um sistema em que alguns possu-
ados" pelos cristãos que. maldosamente. estão atribuindo a eles em jatos particulares e outros não têm sequer uma passagem de
feitos e defeitos que não são de sua responsabilidade ... ônibus. em que alguns possuem vários imóveis e um pedreiro
Um corolário a essa questão é a extensão da maldade nos se- chega à velhice sem um barraco. em que muitos morrem de
res humanos e o resíduo de maldade nos convertidos. Liberais subnutrição enquanto alguns procuram spes de luxo para redu-
mínímízarn a queda (simples escorrego). com uma visão otimista zir os efeitos da supernutrição. Não porém apenas os promotores
do potencial humano em sua ação histórica (acrescida de uma de tal sistema. senão também os que se omitem diante dele. A
escatologia pós-rnílenísta). Tradicionais. muitas vezes. são tão partir da Palavra. são os cristãos que possuem autoridade para
hipercalvinistas. ao ponto de compreender a depravação total chamar o capitalismo de pecado. lutando para mínímízar os seus

46 47
A IGREJA, O PAís E O MUNDO A IGREJA

efeitos mais perversos. É do coração compassivo dos discípulos do Não caluniando Satanás nem domesticando nossos "pecados
Encarnado que podem sair projetos para substituir aquele sistema de estimação", poderemos substituir a desordem dos homens
por sistemas mais consentâneos com o modelo da igreja primitiva. pela ordem de Deus. Vale a pena tentar.
O tema da liberdade nos leva a pensar nos valores da
críatívídade, da diversidade. do respeito à pessoa humana, sua
dignidade e sua identidade. Liberdade implica valorização da
diversidade e do pluralismo, dons, vocações e opiniões. liberda-
de implica humildade diante da nossa contínua errâncie na com-
preensão de Deus e sua revelação. Por isso os cristãos chamaram
de pecado ao nazismo, ao comunismo e a todas as ditaduras. Por
isso chama-se pecado às comunidades religiosas uníforrnízadoras.
repressivas e intolerantes.
Para Níebuhr. a democracia tanto é possível pelo que resta da
imago Dei em nós, quanto necessária para coibir o quanto de
pecado resta em nós. Desconcentrar e controlar o poder limita o
pecado: usar o poder para a promoção do bem comum atesta a
graça e sinaliza o reino.
A democracia subsiste à base de ética e pão. Para o psiquiatra
francês Yves Pelicier, a absolutização do "mercado" pelo
neoliberalismo torna aguda a crise ética: os valores se relativizam,
pois "tudo está à venda. É uma questão de preço, de mercado e
de oportunidade". Da Itália à América Latina, a sociedade civil
pede ética na política. Enquanto isso, a não-resposta às necessi-
dades materiais do povo atesta as limitações da democracia ape-
nas lega1. Um ex-sacerdote salesiano foi deposto da presidência
do Haítí: um aventureiro eleito com o apoio dos evangélicos (a
quem manipulou e traiu) deu um "autogolpe" no Peru: a mesma
receita foi tentada sem êxito pelo presidente pentecostal da
Guatemala (o ex-ditador militar deste último país, da mesma fé
religiosa, o exortou: "Honre a constituição que você jurou defen-
der". Pergunta-se: quanto vale o juramento de um evangélico em
favor da democracia?).
Com Satanás neutralizado e o "velho homem" permanente-
mente transformado, substituindo as obras da carne pelo fruto
do Espírito (Gl5.19-23l. a nossa justiça excederá, em muito, a dos
escribas e fariseus da ordem secular.

48 49
7.

As potesdades do mal
eos poderes da terra

á forças satânicas atuando no mundo, apoiando a maldade


H dos homens. Há uma relação entre as potestades do mal e os
poderes da terra: poderes políticos, econômicos e culturais. Há
uma comunhão (nem sempre consciente) entre as potestades da
maldade e os poderes promotores da perversidade.

Dimensões da maldade
O egoísmo, a agressividade, a desonestidade, a violência e a
corrupção atestam a queda moral e espiritual dos indivíduos. O
imperialismo, o colonialismo, o desemprego, a fome e a miséria
são os edifícios sociais construídos pelos pecadores. Não só as
pessoas pecam isoladamente, mas as nações, as classes sociais,
as religiões, as etnias, as famílias também pecam coletivamente.
A noção de pecado social ou, em uma linguagem contemporâ-
nea, de pecado estrutural. é um conceito claro no Antigo
Testamento e tragicamente (íntencíonalmentet) esquecido ou
"esquecido" pela Igreja de hoje.

51
A IGREJA, O PAís E O MUNDO
A IGREJA

Daí as contradições: o cristão honesto que trabalha em uma dois poderes se unem para oprimir e corromper o mundo (tem
fábrica de armamentos e o cristão casto, cumpridor dos seus sido assim com todos os impérios). A riqueza do mundo é sugada.
deveres em um escritório contábíl que presta serviços a um Os povos se tornam escravos, não pelos mecanismos brutais do
narcotrafícante. A teologia marcada pelo individualismo cultural passado, mas pelos sutis e sofisticados mecanismos do presente.
do Ocidente burguês não ajuda o discernimento. Em cada país se encontram os seus Herodes. áulicos dos seus
Na recuperação da totalidade do ensino bíblico e da experiên- Pilatos. Em cada país se encontram os seus saduceus helenizados
cia histórica. cabe à Igreja perceber, díscernír. denunciar, corri- (americanizados). servos do império, tropas de ocupação dos seus
gir. apoiar e propor. A ministração espiritual eficaz é social e his- próprios irmãos, defensores da "idéia única", do falso e imposto
tórica, concreta e real. não no solilóquio das subjetividades espi- consenso.
rituais, não no futuro, não no além, não nas nuvens. Dentro do império, os seus Cidadãos são mantidos na igno-
A relação potestades espirituais da maldade versus poderes rância, pela ação da escola e da imprensa. Não sabem o que acon-
terrestres não será eficaz se somente combatida em um só dos tece no resto do mundo, se acham o centro dele, vendo-se em
planos: combate metafísico versos combate social. mas em am- uma "missão ctvílízatórta" de colonizar os bárbaros aos seus re-
bos, simultaneamente, com igual determinação e coragem. frigerantes e aos seus sanduíches.
Quando a Igreja não percebe essa relação ínseparável, ela Dentro do império, as igrejas estão cheias de cultores da
parcializa a luta. Os extremos do evangelismo individual vetsus forma da lei, de atletas de exercícios metafísícos, cegos à sua
evangelismo social. teologia da libertação versus teologia da conivência com as potestades. São desobedientes arrogantes. São
batalha espiritual foram demonstrações de falta de discernimento, pecadores julgadores, a exportar para a periferia (com a hipócrita
de cegueira espiritual ou de desobediência. luz verde da moeda) seus modismos e esquisitices, suas heresias
A maldade do mundo é um fato. Se a Igreja não leva isso em e suas neuroses. Como não denunciam nem contradizem as
conta, ela parece irrelevante, como museu ou clube religioso. Se potestades terrenas (antes com elas vivem uma relação promís-
ela sabe da maldade e silencia, é pior. É o que se pode chamar de cua). têm de ocupar o seu tempo e energias com invencionices
pecado eclesiástico da omissão ou conivência, por alienação, alíenantes.
ignorância, medo ou comprometimento. Se ela apóia o mal. aí A globalização é uma farsa. Nunca vi rede de franquia de
nem se fala. E a história, de Constantino a Hítler. do racismo caldo-de-cana e pão doce em Washington, de tapioca em Londres
norte-americano ao sul-africano, atesta essa tragédia: igrejas ou de acarajé em Paris, Nunca vi festival de xaxado em Roma.
ortodoxas e cristãos piedosos a serviço do mal. Globaliza-se em mão única o poder, os interesses e a cultura
O chamamento à conversão e ao novo nascimento a todas as (cultura?) da Nova Roma.
criaturas, independente de suas classes ou ideologias, não subs- Os exploradores associados e os privilegiados da periferia,
titui nem excluí o chamamento e a denúncia profética aos peca- desenraizados culturalmente, gringos morenos, são um tragicô-
dos estruturais das classes ou ideologias às quais se vinculam mico espetáculo do vazio, da vaidade e da superficialidade. Algu-
essas criaturas. mas igrejas são o espaço" sagrado" para significativa (e crescente)
parcela dessa gente, servos de Deus e de Mamom, cultores de
o império do mal um evangelho mutilado.
Se o centro de poder deste mundo se concentra nos Estados As mentes cristãs narcotizadas não conseguem ser tomadas de
Unidos, é de sua natureza que Satanás ali acampe o seu trono. Os ra santa, não conseguem propor alternativas à heresia neo-líberal.

52 53
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

não conseguem ser solidárias nem devolver esperanças aos que


sofrem, devolver o sonho de um mundo novo, na reafírrnação da
Providência.

Pecado, feiúra e chatice

Não nos serve, tampouco, o exemplo e o modelo de uma civi-


lização que não consegue aceitar o corpo criado por Deus. Andem
pelas ruas do império: corpos muito gordos ou muito magros,
desgraciosos, opacos, roupas deselegantes, para apenas vestir a
matéria má. Corpos apenas instrumentos de trabalho. Tragédia
puritana de Salem a Woodstock. Presidentes assassinados, assas-
sinos seríaís. a maior população carcerária do globo, pena de
morte.
A compulsiva rigidez do recalque. O outro como inimigo e
concorrente. A lei e não a graça. Trabalho sem prazer. /

O dístorcído cristianismo do império ínsídíosarnente vai ven-


do crescer os seus seguidores nessa periferia de Santa Cruz. Dis- o PAIS
cípulos da intolerância, ínquísídores, [ulgadores, pretensos pu-
ros, cabeças irresolvidas a perseguir, discriminar e acusar os seus·
irmãos. Inseguros na convivência com a diferença. Incapazes do
exercício do livre arbítrio. Jactanciosos, aprísíonadores do texto
sagrado (escríbas e fariseus).
Este maravilhoso país, com sua beleza natural e a alegria exu-
berante do seu povo deve ter no cristianismo evangélico uma
presença iluminadora e aperfeiçoadora do seu jeito de ser, de
sua cultura e de sua identidade nacional.
Celebração da fé e da alegria.
- Livra-nos, Senhor, das opressões do império, do fanatismo
e da chatice religiosa. Lívra-nos do mal. Amém.

54 55
8.

Os cristãos e o
estado do país

orno seres humanos plenos. os cristãos assumem. de forma


( responsável. o exercício da cidadania. Isso implica em uma
tomada de consciência. pelo conhecimento crítico da realidade
que nos cerca. e uma resposta conseqüente. pelo comprome-
timento com ideais superiores. Que país é o Brasil e o que
podemos fazer por ele?

o legado
Temos um passado marcado pela violência do colonizador
contra os nativos indígenas e as etnias africanas escravizadas.
Esses. bem como as mulheres e os pobres. têm sido excluídos.
marginalizados ou discriminados. ao longo da nossa história.
O autoritarismo. o preconceito. o privilégio são marcas muito for-
tes (tantas vezes negadas ou disfarçadas) neste país de poucas
casas-grandes e inúmeras senzalas. Tem sido uma luta incluir

57
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

toda a população no exercício pleno da cidadania e combater as de morte, apela-se para os grupos de extermínio, tolera-se a
desigualdades. tortura.
Este tem sido um país de "donos", onde "todos são iguais Para o negro e para o pobre, a marginalização é confundida
perante a lei. mas alguns são mais iguais do que outros". Um com a marginalidade.
país, cujo imaginário político descrê na organização do povo, Os cristãos, espalhados pelas várias classes sociais, vão
mítífíca as elites ilustradas e busca "salvadores" (messíanísmo). reproduzindo a ideologia, os interesses e os discursos das suas
O nosso legado é religioso, mas de uma religiosidade superfi- respectivas classes. Não percebem que o compromisso com o
cial e débil de conteúdo ético. A escravidão e a servidão tiveram reino de Deus - que condena a tudo isso como sinais e manífes-
seus argumentos religiosos, com a fé travestida em ideologia dos taçõesdo pecado -, nos chama para a denúncia, a pronúncia, a
dominadores.
proposta e a ação.
o cenário
A propaganda
Centenas e centenas de pequenas cidades do interior -
Procura-se hipnotizar a todos com as vitrines, os anúncios e a
especialmente no Norte e no Nordeste - parecem paradas no
propaganda. O que parece valer é a beleza, a simpatia e o charme
tempo. A decadência ali chegou e o progresso nunca veio. A
do príncipe, as bem elaboradas peças publicitárias, a mídía or-
desnutrição, o analfabetismo, o desemprego, a falta de perspecti-
questrada. O que vale não é a realidade, mas o "real".
vas, economias arruinadas, sob o esquecimento do poder públi-
Somos uma nação que gosta de enganar a si mesma? Quando
co. No campo, o latifúndio e os sem-terra; nos núcleos urbanos, a
a mentira torna-se uma instituição nacional. desconfia-se do se-
ociosidade e os sem-esperança. Como pode faltar comida em um
nhorio do "pai" da mesma. Onde está o cristianismo dos cris-
país dessas dimensões?
tãos?
As grandes cidades, por sua vez, são rodeadas pelos cinturões
Glamoriza-se a festa e o lúdíco, foge-se da responsabilidade,
de favelas, continuamente inchadas pela migração do campo e
evita-se a participação. Unimo-nos pelo futebol. pelo carnaval.
pela falta de oportunidades. Famílias desagregadas, prostituição,
pela novela, pelos bares dos fins-de-semana. Volta-se com raiva
alcoolismo, violência. A miséria tem endereço. Paisagens que não
dos que chamam o mal pelo nome, dos que denunciam a nudez
constam dos roteiros turísticos, nem dos cartões-postais.
do rei e apontam para a justiça e a honestidade.
Os centros das metrópoles se tornam degradados, física e
humanamente, com trombadinhas, cheira-colas, mendigos, de-
sempregados, ambulantes, traficantes, menores e maiores A Igreja
abandonados, o "povo da rua". Em centenas de municípios do interior, ou não se tem igrejas
As elites vão fugindo para os novos condomínios fechados, ou as igrejas são pequenos mosteiros de anciães e de pessoas
que lembram os castelos medievais. Cresce a indústria da segu- exóticas, que se isolam e nada propõem como boas novas para o
rança. Nesses enclaves do nosso epsrtheid social. vive-se já no quadro desolador em que vivem.
Primeiro Mundo, e passa-se as férias no próprio. Nas favelas, salva-se dos vícios e se desagregam as redes de
As classes médias, inseguras e amedrontadas, sucumbem aos solidariedade. Acalentam-se com a esperança do além ou de uma
falsos apelos do consumismo dos "de cima", horrorizadas com a prosperidade futura, sem se encarnar nas associações de mora-
ameaça das turbas ignaras dos "de baixo". Sonha-se com a pena dores, nos sindicatos ou nos movimentos e partidos populares.

58 59
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Nos condomínios fechados e nas igrejas de elite, vive-se o


conforto, a caça de bênçãos, a fogueira de vaidades, a alienação
daqueles cujas cabeças já vivem, ideológica e teologicamente, "no
outro mundo" (o do Norte).
As classes médias cristãs vão-se aproximando dos mesmos
padrões: clubes religiosos ou confrarias de iguais, canalizando
9.
suas energias para os exercícios místicos, as elocubrações
metafísícas e a ascese moralista individualista.

o futuro
A pós-modemídade irrompe no espaço que nem chegou à
Aprendendo
modernidade, e o neo-líberalísrno no espaço que nem chegou ao
velho-liberalismo, das relações autoritárias e na desvalorização
com a história:
do trabalho e dos trabalhadores.
As estatais são "privatízadas" com a venda às estatais estran-
1964, nunca mais
geiras. As oligarquias combatem os "privilégios" dos professores
e dos datilógrafos públicos. Os latifundiários denunciam a "for-
mação de quadrilha" pelo MST. Somos, sem dúvida, um caso de
humor.
Camelôs e sacoleiros são apontados como mícro-ernpresários.
sucesso da livre-iniciativa e da economia informal. As aves
(governamentais) daqui. afinadas, gorgeíam como as de lá ...
Ilha de Vera Cruz. Terra de Santa Cruz. País abençoado por " Um povo sem passado é um povo sem futuro" e "um povo
Deus e bonito por natureza. sem história é um povo sem identidade" - são afirmativas
Enquanto isso, o aumento do número dos cristãos não tem que encerram grandes verdades, ao mesmo tempo que temos
diminuído o número dos nossos problemas. Dá no que pensar. sido ensinados que "aqueles que não aprendem com a sua história
Qual será o futuro do nosso país? arriscam a repeti-Ia". A construção da nossa cidadania tem sido
Continuo crendo no evangelho e na necessidade do novo nas- fragtlízada por um tipo deliberado de "amnésia cívica", pelas
cimento, no valor da conversão, sem sombra de dúvidas. Mas, o dístorções dos livros didáticos e pela manipulação alíenante da
que fazer com os convertidos? E o que os convertidos têm feito? mídía eletrônica.
Se algo não for feito com os que deveriam fazer, esses nada farão. Primeiro de abril de 1964 foi. primeiramente, uma ruptura da
Precisamos converter os convertidos ao país, à cultura, ao povo, à ordem constitucional entre nós implantada a partir da Constitui-
justiça, à história e à vida. ção Federal de 1946. Tínhamos um presidente da República, um
Congresso Nacional. Administrações Estaduais e Municipais e
um Poder Judiciário funcionando em sua plenitude, dentro dos
marcos da legalidade constitucional. Os partidos políticos, os

60 61
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

sindicatos e o movimento estudantil vivenciavam, entre outros. exclusão da maioria. Os setores religiosos mais conservadores e
um momento de pujança da sociedade civil. Mais uma vez a lega- a grande imprensa concorreram para a legitimação do Golpe, com
lidade do Estado brasileiro era rompida por um golpe de Estado. a mobílízação da classe média atemorizada pela pretensa República
o que, lamentavelmente, não era novidade em nossa centenária Sindicalista e crente no caráter i-ncruento, transitório e breve de
existência como nação soberana. uma "intervenção cirúrgica" contra os corruptos e os subversivos.
O Golpe de Estado se dá em uma particular conjuntura inter- A história tem demonstrado o caráter autofágico dos golpes.
nacional: o apogeu da Guerra Fria. a polarização Leste-Oeste, o com rupturas se dando no próprio sistema autoritário de poder,
impacto da revolução cubana. a divisão das áreas de influência que. em nosso caso, culmina com o Ato lnstítucíonal n? 5, de
entre as grandes potências, com a América Latina reservada à dezembro de 1968: demissões, censuras, carreiras estudantis e
tutela norte-americana. profissionais interrompidas, descontinuidade da vida partidária,
Mais ainda. os anos 60 se constituíram em um momento muito intervenção e tutela nos sindicatos. A produção artística, cultu-
peculiar na história do Ocidente: de fervor revolucionário, de ral e científica é afetada. os movimentos sociais são reprimidos.
idealismo, de crença e esperança na construção de um mundo Por algum tempo, o "milagre econômico" anestesía e coopta
novo - um mundo de justiça. paz e fraternidade. Idealismo, par- amplos setores da classe média, enquanto acelera o processo do
ticularmente. da juventude, percebida como ameaça ao sistema que hoje se denomina de apartação social, de exclusão dos
capitalista e à sua classe dirigente. desprivilegiados. Com o fim do falso "milagre". que nos endivida
No plano interno. destacaríamos o impacto do síndícalísmo externamente, a classe média, ela própria, também sofreria o seu
rural, finalmente implantado, com 40 anos de atraso em relação processo de proletarização.
ao urbano, abrindo caminho à consciência de cidadania por parte As Forças Armadas são desviadas de sua destinação consti-
do campesinato. Os setores mais arcaicos da velha ordem de ori- tucional para o exercício da força em favor dos poderosos.
gem senhorial se sentiam cada vez mais vulneráveis diante da Generais-presidentes são impostos à nação, no simulacro das
possibilidade da implantação das reformas de base, como a refor- eleições indiretas por um Colégio Eleitoral mutilado e amedron-
ma agrária, a reforma urbana, a reforma tributária, e tantas ou- tado. Processo similar se repete com a escolha dos governadores
tras. que tentariam desconcentrar a renda e a propriedade, com dos Estados e dos prefeitos das capitais.
o fortalecimento do mercado interno, ao lado de uma política Em um balanço objetivo do regime, poderíamos dizer que o
externa afirmativa de nossa soberania. que ele trouxe de peculiar não era bom, e o que ele trouxe de
O Golpe, porém, não foi algo repentino ou que necessitasse bom não era peculiar. Investimentos em estradas e telecomu-
de pretexto. Era uma morte anunciada. Anunciada e planejada nicações não têm como pré-requisitos a tortura e o silêncio
desde a posse de Getúlio Vargas em 1951. tantas vezes protelada, dos dissidentes: muito pelo contrário são, ou devem ser. uma
mas nunca rejeitada. realidade nos regimes democráticos.
Era um conflito entre duas propostas, dois modelos de Estado: As alterações na conjuntura internacional e o esgotamento
aquele do ISEB e de outros setores progressistas, de caráter naci- das tentativas de legitimação pelo êxito reacendem os ânimos da
onal e popular. e aquele dos setores defensores de uma integração sociedade civil na luta pelo Estado de Direito. A classe média se
acelerada e subalterna ao capitalismo internacional. Para aquela redime das Marchas da Família com os atos pela anistia e as pas-
gente, ontem como hoje, a democracia política formal somente seatas pelas "Diretas Já". A Igreja Romana se redímíu da Cruzada
deve subsistir com a intocabílídade de seus privilégios e a do Rosário em Família com o corajoso posicionamento da CNBB,

62 63
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

bem como dos progressistas das várias igrejas. A ABI. a OAB, a perdido e o processo interrompido e, mais ainda, para salvar o
SBPC, a imprensa alternativa, as comunidades de base, a velha projeto nacional. a própria existência como nação soberana.
frente do MDB, são canais possíveis do esforço da nação para pôr No lugar da autocrítica, da humildade, do exame de consciên-
fim ao pesadelo autoritário. cia, do arrependimento que perdoa e dignifica, vemos hoje vozes
Mais uma vez, porém, a transição institucional se dá sem agourentas tentando dístorcer a história, sonhando, talvez, com
rupturas ou alterações de hegemonia. O país, que tivera sua a reedíção da tragédia.
independência pelas mãos de um príncipe português, sua Para nós, cristãos, o sangue dos mártires tem sido a semente
república proclamada por um general monarquista, sua revolu- da fé. O ciclo dos regimes da ideologia da Segurança Nacional na
ção burguesa parcial encabeçada pelo ministro da Fazenda do América Latina foi marcado pelo sangue dos mártires, incluindo
governo oligárquico deposto, e que inauguraria na história o cristãos, como o padre Camílo Torres, o arcebispo Oscar Romero,
modelo do autogolpe, com o Estado Novo, cujo ditador seria o presbítero protestante Paulo Stuart Wright. Que o seu sangue
deposto pelos seus próprios generais, essa nação conhecerá não tenha sido em vão. Honremos o seu sacrifício, valorizemos o
uma Nova República com o antigo Colégio Eleitoral. tendo como seu legado.
presidente um áulíco do regime militar, que forçará uma Assem- Com a crise das utopias globais e dos paradigmas da
bléia Constituinte Congressual. modernidade, muitos são tomados pela apatia, tentados pela
Malgrado os obstáculos, dístorçôes e limitações, chegamos à cooptação ou pela alienação, quando nos cabe reescrever os pro-
Constituição Federal de 1988, restauramos o Estado de Direito, a jetos, construir a história, devolver a esperança. A opressão dos
democracia formal e as liberdades públicas. privilegiados não mudou. A desigualdade do capítalísmo não
De três coisas, porém, o Brasil não se livra: da desigualdade mudou. As limitações e inadequações de um remédio tentado e
social. da dívida externa agravada pelo período de exceção, e da falhado não nos pode levar à adesão à doença ou ao fim das pes-
presença no poder das criaturas políticas do Golpe, destacando- quisas terapêuticas, Porque também não mudou a capacidade
se a tragédia de ColIor de Mello. Cristures descendentes dos humana de se indignar com a miséria, nem a aspiração humana
barões do Império e dos coronéis da República Velha. Cristurss por um mundo mais justo, mais livre e mais fraterno.
hábeis, que hoje usam e abusam do decadente e danoso recei- A democracia, a consciência histórica e o compromisso com a
tuário neoliberal para atentar contra a soberania nacional e cidadania nos levam a uma única conclusão: 1964 ... nunca mais!
as conquistas dos trabalhadores, aprofundando o fosso entre
os privilegiados e os oprimidos e excluídos.
Nesse competente processo de manutenção e circulação de
elites - descrita por Pareto - promovem-se agora alianças
espúrias, promiscuidades ideológicas, maculações de biografias,
com a cooptação de democratas e progressistas de outrora para
servirem de fachada para novas fórmulas de manutenção do
poder. Com eventuais concessões periféricas.
Longa e dolorosa tem sido a caminhada da nação para se reen-
contrar consigo mesma, para sarar suas feridas sem varrer o lixo
para debaixo do tapete, para tirar lições, para recuperar o tempo

64 65
1 O.
-

A situação
r l/\.I

socio-economicc
e política da
América Latina

omos um continente em construção. Ao contrário das antigas


Scivilizações asiáticas e da velha Europa. que contam com séculos
e séculos de história. uma cultura e instituições estabelecidas. o
Novo Mundo - apesar de 500 anos de sua "descoberta" -
continua a ser uma região marcada pela instabilidade e por
grandes interrogações em relação ao seu futuro.
Antes da presença ibérica. nunca fomos uma unidade. Vi-
víamos divididos em etnias e unidades políticas em estágios
culturais bastante diferenciados. A essa diversidade original
adicione-se a diversidade da empresa colonial de dois povos
ibéricos - espanhóis e portugueses - cujas acentuadas dife-
renças não devem ser minimizadas. A interação entre os diver-
sos colonizadores e os diversos nativos se refletirá na díversífícada

67
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

face dos vice-reinados castelhanos e das diversas capitanias uma casa real e mecanismos parlamentares de alternância de
lusitanas na América. facções das elites no poder (a "gangorra imperial', tão frisada por
Uma diferenciação adicional se dará com a importação da João Camillo de Oliveira Torres), foi possível à jarte lusitana da
mão-de-obra escrava africana (por sua vez oriunda de diversos América consolidar sua unidade política, rnalgrado as diferenças
contextos do continente negro), de presença muito significativa locais, as tensões e as tentativas de sucessão.
principalmente em nossa costa atlântica. O projeto colonial se fez a partir da escravidão e da servidão,
América Latina: seria apenas a porção de terra que fica entre o de sociedades rigidamente estratífícadas. con a aristocracia
continente antártico e os Estados Unidos? Temos em comum a fundíáría e o estamento burocrático no topo, o; homens livres
língua (que são duas), a religião (cuja percentagem, influência e brancos (artesãos. comerciantes, funcionários Iatífundíáríos)
características não são uniformes) e a pobreza (assimetricamente no meio, seguindo-se os mestiços assimilados e, na base, os mes-
dividida), que nos diz que estamos na periferia do sistema tiços menos assimilados, os negros e os índios. Os novos Esta-
internacional. dos, o sistema econômico, o exército e a Igreja Católica Romana
A diversidade de um continente em construção. Isso quer di- funcionaram como legitimadores, garantidores e reforçadores
zer que o que havia foi destruido. o que foi trazido não pode ser dessa sociedade, afinal um eco do híerarquísrro caracterizado r
transplantado e o novo ainda não se consolidou. da ordem cristã medieval européia.
Essa construção também nos distancia dos novíssimos países Somos o último grande projeto de cristanchde. A Reforma
africanos, frutos da recente descolonização. A artífícíalídade de Protestante do século XVI retirou a metade norte da Europa do
suas fronteiras, a debilidade dos seus Estados nacionais, a carên- domínio papal (o Leste já era ortodoxo) e permi:íu aos povos do
cia dos seus quadros e uma liderança nativa, os diferenciam de Sul uma crescente soberania. As armas ibéricas vieram até aqui
nossa América adolescente, de elite creolla (mazornba). para expandir "a fé do império". Nesse absolutc monismo ideo-
lógico e monolitismo institucional não havia lutar para a distin-
Independência e dependência ção entre Igreja, Estado e sociedade civil. A Santa Inquísíção ser-
A aquisição formal de nossa soberania no século XIX reflete o viu de instrumento de reforço a essa ordem pié-modema. pré-
esgotamento da empresa colonial ibérica, a ascensão de novos científica, pré-democrática e pré-capitalista.
impérios e a divergência de interesses entre as elites metropoli- Parafraseando, poderíamos afirmar que o prqeto colonial ibé-
tanas e as elites locais, até mesmo pela articulação destas com rico foi "a vanguarda do atraso".
aqueles outros impérios, como é o caso do Brasil em relação à A independência dos Estados americanos rão foi liderada
Grã-Bretanha. pelos povos nativos, mas pelos descendente; da elite trans-
À independência segue-se o fracionamento político do antigo plantada. A mudança na América Latina se faz aoenas no âmbito
império espanhol. As múltiplas bandeiras, equipes de futebol ou do direito constitucional público pela aquísíçio formal da so-
cadeiras nas Nações Unidas não compensam a fragílízação des- berania, pela presença de bandeiras e hinos pióprios. Espanha
ses atores diante das grandes potências do sistema internacio- e Portugal continuaram a nos governar por íntemédío dos seus
nal. No caso do império português, uma tradição mais unitária filhos. O príncipe-regente do Brasil. Pedro, no:so primeiro im-
daquela nacíonalídade construída no embate contra os mouros e perador abdicará do trono, voltará para Portural onde se fará
os castelhanos se reproduz no Novo Mundo. Como única monar- rei. morrerá e deixará o seu filho Pedro II no trono brasileiro
quia continental. com uma retórica de potência (Império do Brasil), e sua filha Maria da Glória no trono português

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

A independência mantém intocada a estrutura social. as À independência se segue a continuação da dependência, tanto
relações de produção e as relações de poder, nesse modelo deno- ídeológíca (seguindo com atraso as últimas modas européias)
minado por Raymundo Faoro de patrimonial-estamental. a partir quanto econômica, com a Espanha e Portugal dando lugar à
de uma abordagem weberíana o estamento técnico-burocrático- Grã-Bretanha, primeiro, e aos Estados Unidos, depois.
militar integrado - até mesmo e principalmente por laços de
A competência das elites
sangue - à aristocracia fundíáría e mineradora e ao alto clero.
Daí. para usar a distinção de Grarnscí. já nascemos com um Reforma, renas cimento, capitalismo, revolução industrial.
Estado forte e uma sociedade civil débil. democracia, socialismo. As grandes idéias e movimentos que vão
O processo de abolição da escravatura será lento, e a abolição abalando e impulsionando o hemisfério Norte-ocidental passam
da servidão muito mais lenta ainda, subsistindo até os nossos de largo: porque refletem outra estrutura, outra conjuntura e
dias. Os negros, os índios, os mestiços e as mulheres lutam, há outros pensamentos. Nós somos a atualidade de ontem.
Separada e dominadora das massas de escravos e servos, a
cinco séculos, pela aquisição de uma cidadania plena, excluídos
nossa elite sempre se viu européia, Para lá mandavam seus
legalmente, primeiro, e discriminados socialmente, depois. Por
filhos a estudar e a tomar "banhos de civilização". De lá importa-
muito tempo o nosso viciado sistema eleitoral restringia-se aos
vam modos, modas e modismos, Dentro das mesmas famílias,
"varões bons" (homens brancos e proprietários). Outra face da
enraizadas no mesmo latifúndio, vimos surgir uma divisão
discriminação legal e, ou, social se dará no âmbito da religião
retórica dessa elite entre conservadores e liberais, estes mais
e da ideologia política (participação apenas de católicos e
urbanos e cosmopolitas.
conservadores) .
As nossas constituições nacionais foram belos exemplos
Há um caráter predatório na empresa colonial. O ibérico,
formais dessa importação de atualidade, aqui pairando sobre a
sentindo-se superior, vinha explorar e fazer riqueza. Vianna Moog
realidade, ora como réplicas mestiças da carta de Filadélfia, ora
nos chama a atenção para o contraste com o colonizador norte- como um reflexo da experiência britânica e francesa (como no
americano. Neste, a ruptura com o passado e o desejo de criar caso brasileiro de 1824). Intelectuais orgânicos, não das massas,
uma nova pátria; naquele, a extensão do passado e da pátria-mãe. mas da ordem, sempre os tivemos, maiormente entre os gradua-
O capitalismo ia rapidamente substituindo a ordem medieval dos de direito, com sua notória capacidade de malabarismos de
no Velho Mundo, com as classes em mobilidade substituindo os redação, os chamados "casuísmos". Enquanto os nossos consti-
velhos e rígidos estamentos. A burguesia em ascensão, com sua tuintes de 1891 eram contra a extensão do voto às mulheres,
ética de valorização do trabalho e da poupança. Ética construída pois na sua opinião (dos conservadores) isso destruiria a família,
com forte contribuição calvínísta. conforme Weber, Tawney e os liberais votavam esse direito para as mulheres empresárias ou
outros. Enquanto isso nós nunca conseguimos passar do estágio portadoras de diploma de nível superior, quando no Brasil não
mercantil do capitalismo, presos aos resquícios do feudalismo havia mulher com aquelas qualificações.
e à ética aristocrática de desvalorização do trabalho e da ostentação Neste século, algumas modificações significativas ocorreram,
da riqueza. No lugar de colégios técnicos, as raras escolas superiores com o eixo do poder se deslocando lentamente do campo para a
da época colonial se dedicavam à teologia, ao direito, às letras, às cidade. A expansão do comércio, da indústria e dos serviços re-
humanidades e à formação militar. Vamos entrando no capitalis- sultará na expansão de uma burguesia que progressivamente se
mo empurrados pela história, despreparados e resistentes ao ní- tornará hegernôníca em relação à velha aristocracia, sem que
vel de nossas elites e de sua ideologia. nunca venha a com ela romper.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

Na América Latina. melhor se aplica a "teoria da circulação juventude das classes médias e dos setores mais conscientes e
das elites". de Pareto. as antigas elites perdem a hegemonia. mas articulados do operariado e do campesínato. Uma facção da elite
não desaparecem quando sabem absorver as contra-elites em ex- industrial agro-exportadora e financeira acelera sua integração
pansão e se livrar dos seus setores mais retrógrados. Todos so- associada e dependente ao sistema capitalista internacional. O
bem e ninguém desce. É essa contra-elite dos setores médios em "desenvolvimento" deveria se fazer por essa via (modernização
expansão que será responsável por avanços institucionais. como conservadora). o que incluiria a captação de recursos externos.
o voto universal e secreto. a separação entre Igreja e Estado e a via empréstimos. e uma compressão salarial interna. como
inclusão de dispositivos sociais nas constituições. forma de acumulação de capital. o que requereria uma contenção
As elites se ampliam e diversificam seus interesses. sem que das demandas sociais pelo emprego dos únicos setores prepara-
esses "conflitos compostos" (na expressão de Luciano Martins) dos para isso: as Forças Armadas,
signifiquem qualquer ameaça à ordem vigente ou possibilidade Em uma década. quase toda a América Latina cairia sob dita-
de ascensão revolucionária dos setores populares. duras militares. com os aplausos de suas elites. a aprovação
Situações climáticas adversas. a opressão dos latifundiários. a da pequena burguesia amedrontada e o beneplácito do grande
atração por melhores salários e direitos sociais concorreram para irmão do Norte. além das bênçãos da Santa Madre Igreja, Essa
um fenomenal processo de urbanização do nosso continente. sem versão retardada e periférica da Guerra Fria elabora uma "doutri-
precedentes no Terceiro Mundo. Em seu primeiro período mais na da segurança nacional" e a legitimação da eficiência. com seus
lento. entre as duas grandes guerras esse novo proletariado "milagres econômicos". miragens que a tanto de nós hipnotizou ..,
se associou aos setores liberais das elites e aos setores médios A tradição do formalismo constitucional liberal-democrático
reformistas (sob a hegemonia dos primeiros) no processo de foi interrompida, Os direitos humanos foram violados, As pe-
expansão controlada das reivindicações de cidadania. que se quenas e médias empresas nacionais. levadas à falência. à
tornou conhecido pelo nome de populismo. integração forçada aos setores internacionalizados. ou reduzidas
Uma vertente mais lúcida desse fenômeno. em uma elabo- à subalternidade e à impotência, Parlamentos fechados. impren-
ração mais científica. mais acurada e com assessoria técnica. sa sob censura. atividade partidária e sindical suspensa ou sob
propugnou por uma proposta desenvolvimentista. que envolveu intervenção,
cepalinos. comunistas e nacionalistas. favorecendo uma aliança A crise do petróleo (1974) esvazia o "milagre". a face cruel do
da burguesia dita progressista com o operariado. o campesinato e brutal endívtdamento externo se faz visível. a burguesia reclama
a intelectualidade - uma saída nacional. em aparente conflito a prisão e a tortura dos seus filhos e a nossa "má imagem"
com os centros internacionais do poder. mas. ao mesmo tempo. perante os povos "civilizados". as tendências nacionalistas dos
crendo-se como etapa a caminho dos padrões vividos por aqueles militares incomodam as elites internacionalizadas. pois esta-
centros, A ala mais nacionalista dessa proposta integrará o vam atrapalhando a lógica daquela opção, Uma democratização
movimento dos países "não-alinhados". expressão do que ficou controlada "pelo alto" era a maneira mais segura de resguardar
conhecido como terceíro-mundísmo. interesses. assim entendia a Trilateral.
Os anos 60 conhecerão o esgotamento do desenvolvímentísrno. Os anos 80. economicamente. são considerados a década per-
O populismo entra em crise pela impossibilidade de atender às dida para a América Latina, Mas. uma vez que estava reprimida.
crescentes reivindicações populares sem pôr em perigo os privi- controlada. cooptada. manipulada ou esvaziada a revolução cul-
légios e a ordem, A revolução cubana empolgará a imaginação da tural dos anos 60 e início dos anos 70. com seu potenciallibertário.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

poder-se-ia encetar a volta à democracia liberal e ao regime civil: fuga pelo misticismo ou pelas drogas, a violência, a cooptação
porém, como advogava o general Golbery do Couto e Silva, por pelo sistema. Com o reforço manipulador da mídía, domestica-se
meio de uma transição, lenta, segura e gradual. Ou seja, uma uma geração condenada à nulidade histórica.
mudança para que tudo continuasse no mesmo lugar, a perma- O farol cultural é deslocado da Europa para os Estados Unidos.
nência dos mesmos no poder, assegurada pela democracia e pelo Os nossos jovens tecnocratas estudam lá e são colegas dos jovens
voto . tecnocratas de lá. O rolo compressor do discurso neoliberal inva-
.Faces novas (novos "produtos" políticos) são lançadas no mer- de a imprensa. as livrarias, as universidades. os parlamentos:
cado, como salvadores, com ar voto dos "descarnísados". a nova menos Estado e mais Mercado, menos leis sociais e mais compe-
classe miserável de migração recente. ideologicamente conserva- tição. menos regulação e mais livre iniciativa. menos solidarieda-
dora. subempregada ou empregada no mercado informal. desor- de e mais efíctênría. A desigualdade é inevitável. e o preço a ser
ganizada. As ditaduras conservadoras criaram a base social de pago para o novo determinismo histórico e a nova síntese é: o
sua sustentação pela via eleitoral democrática. capitalismo liberal-democrático (o "fim da história". de Francis
Fukuyama).
A onda neoliberal Novos presidentes de república comprometidos com essa
Enquanto isso, o mundo capitalista ia vivenciando uma maré proposta governam quase todo õ continente.
ideológica conservadora: a era Reagan-Tatcher-Khol-João Paulo Il. Se o neoliberalismo apenas deixou para os Estados Unidos a
E há ainda o vírus da Aids (Sida) ... Um mundo retrógrado, restauração do orgulho nacional. ao lado (como analisou John
reacionário, cinzento. Kenneth Galbraith) do colossal endividamento e fenomenal
Nesse mundo ficara o triste legado social do ciclo militar lati- déficit público, aumentando o fosso entre os ricos e os pobres,
no-americano, legado dos mais trágicos: a estrutura fundíáría imagine-se o que acontecerá com essa receita para a já combalida
intocada, a estagnação das comunidades rurais, a invasão dos América Latina?
territórios indígenas, a deterioração da qualidade de vida das gran-
Instituições e atores políticos
des cidades. desemprego. fome, violência. infância e velhice aban-
donadas. analfabetismo. falta de habitação e transporte, decadên- Podemos perceber que o edifício jurídico-formal constitucional
cia dos serviços públicos, particularmente da educação e da saú- dos países latino-americanos se destina ao consumo externo,
de, justiça lenta. prisões abarrotadas. corrupção generalizada, como sinal de "civilização" perante o Primeiro.Mundo e os orga-
inflação. O Estado, que foi privatizado pelas elites. está sendo nismos internacionais. bem como à satisfação da auto-imagem
destruído em sua função social. A concentração da renda é cres- das nossas elites. Esse sistema jurídico. liberal e democrático não
cente, não só com a míserabilízação dos pobres, mas com o em- é resultado de um autêntico pacto social de todos os atores
pobrecimento da classe média. O grosso da renda nacional - políticos nacionais. nem há, em decorrência. um compromisso
mesmo dos países com melhor desempenho econômico - se moral de sua manutenção a qualquer custo. Golpes de Estado
destina ao pagamento interminável dos juros da dívida externa. militares ou bonapartistas têm interrompido a vigência da
A queda do muro de Berlim e a decadência da vertente bolche- ordem constitucional. quando do interesse das elites.
vique do socialismo geram uma crise mundial das utopias. com Ou seja. a democracia liberal será válida quando e enquanto a
reflexos na juventude latino-americana, privada de ideais e de maioria do povo vote "livremente" pela ordem de desigualdade,
esperança. Nessas condições. prolifera a apatia, a acomodação, a pela manutenção dos privilégios das elites e pela sua própria

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO
o PAís

auto-exclusão da partilha do poder, da propriedade e da renda, límítadores de autonomia dos Estados-membros, particularmente
ou seja, das dimensões econômicas e sociais da democracia.
de natureza financeira e tributária. Os donos do poder central
Democracia conquanto que o povo fique no seu lugar. não dependem dos donos do poder regional e local. mas dá-se
O sistema eleitoral censitário ou capedtirio excluiu, por muito
uma inversão dessa pirâmide de autoridade, com a tutela e o
tempo, a maioria da população. O voto universal foi duramente
mandonísmo a partir de cima.
conquistado, e se constitui em um perigo em potencial. quando
Um obstáculo à consolidação democrática em nossos países
o povo resolve não votar corretamente, ou seja, contra si mesmo. tem sido a presença de fortes resquícios de poder patrímoníal o
O presidencialismo, como sistema de governo, tem funciona- Estado como extensão do patrimônio das elites, uma ação entre
do como uma fachada pseudo-democrática para o autoritarismo parentes e amigos ("Para os amigos, tudo; para os inimigos, a
unípessoal, para a legítímação do caudilhismo. O poder executi-
lei"). A lei é violada, burlada, manipulada ou mudada, desde que
vo tem vívencíado diversos graus de hípertrofía em todos os nos-
aqueles interesses não sejam tocados. Falta conduzir a transição
sos países. O poder legíslatívo, mesmo integrado majoritariamente
em direção à burocratização administrativa, com o império
pelas elites (com ocasionais minorias de classe média e de traba- ísonômíco da lei e um corpo de funcionários de carreira, que
lhadores), aparece sempre fragílízado. desempenhando um pa-
ingressem por concurso no serviço público e nele ascendam
pel político secundário e subalterno, a reboque do executivo, e
apenas por mérito.
apresentado ao povo como bode expíatórío da corrupção ou da "Se Karl Marx vivesse na América Latina" - disse um obser-
íngovernabílídade. Semelhante dependência sofrerá o poder ju-
vador norte-americano - "ele defenderia o caráter de terminante
diciário, com a cúpula oriunda das mesmas elites, tecnicamente da variável familiar, e não da variável econômica". A
desaparelhado, lento, tantas vezes impotente e sem credíbílídade consagüínídade, o compadrio, a amizade são laços decisivos na
perante o povo, como guardíão da lei e recurso último dos que
teia do poder em nossos países, em todos os níveis.
sofreram violações dos seus direitos. Daí a ênfase do programa da Frente Brasil Popular, nas
No presidencialismo apenas se escolhe, periodicamente, den- eleições presidenciais brasileiras de 1989, na desprivatização do
tre uma lista de candidatos apresentados pelos partidos Estado. O Estado foi prívatízado pelas elites olígárquicas. com os
olígárquícos. quem irá ser o nosso imperador para o próximo incentivos fiscais, com um dírecíonamento privado das cargas
período. Esse sistema permite o ressurgimento cíclico do tributárias (sem falar na sonegação de impostos), pelas dívidas
messíanísmo como traço da nossa cultura política: não é o povo prevídenctárías e empréstimos não cobrados, pela decisão de
organizado que consegue uma saída para os seus problemas, mas emprego orçamentário para este ou aquele setor, pela reserva de
um príncipe providencial. No caso da cultura lusa, o denomina- mercado (monopolizado ou olígopolízado). pela falta de trans-
mos de sebsstisntsmo. em virtude do mito do regresso de D. Se- parência das decisões e pela ausência no processo decisório
bastião (derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quíbír)
de representantes de todas as partes interessadas.
para salvar a pátria portuguesa. Processo decisório sempre excludente. Seja pelas limitações
Alie-se ao executivo forte a prática da centralização adminis- formais à participação, seja pela fraude que torna viciado o
trativa. A maioria dos nossos países optou pela forma unitária de processo participatório e injustos os seus resultados.
Estado, com um poder central forte e províncias e rnunícípalídades Os nossos partidos políticos - atores políticos constitucio-
sem autonomia política. Aqueles poucos que optaram pela forma nais por excelência - surgem como resposta formal a um requi-
federativa têm presenciado dispositivos constitucionais sito legal. como clubes de facções das elites, que giram em torno

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

de figuras caudílhescas, visando o exercício monopolístico do po- foram escritas por esse movimento, na afirmação do seu direito
der e a partilha dos benesses do Estado. Bem depois é que vere- à existência na luta por seu espaço como interlocutor social e
mos a criação de partidos agrupadores das classes médias, com ator político, e em defesa de conquistas trabalhistas e
um papel secundário. Os partidos de base popular serão mais previdenciárias. Avanços foram conseguidos em articulação com
tardios e mais limitados ainda no seu papel de representantes de setores liberais mais lúcidos dos estratos médios e da própria
interesses. burguesia.
Falta à maioria dos nossos partidos políticos explicitação O síndícalísmo católico, o sindicalismo de resultados, as leis
programática. clareza ideológica e compromisso de representação limitadoras e atrelátivas ao Estado (influência da Carta Del Lavara
política, além da inorganicidade, pois só funcionam às vésperas fascista) e o paternalismo dos caudilhos obstaculizaram um
das eleições. Como as diversas siglas e agremiações formam, no maior avanço do nosso síndícalísmo. violentamente reprimido
fundo, um só e grande partido - o "Partido dos Poderosos" _ durante as ditaduras militares, em virtude de sua força crescen-
há quase uma freqüente e despudorada troca de camisas por te, de sua cada vez maior presença entre o carnpesínato. e pela
parte de seus integrantes. Suas divergências são localizadas e vinculação dos seus líderes a partidos de orientação marxista,
secundárias. em torno do mesmo sistema. Ou, como se disse com a defesa do socialismo em um contexto de Guerra Fria.
em relação aos partidos norte-americanos: "A diferença entre O ocaso do ciclo militar viu ressurgir um sindicalismo inde-
o Partido Democrático e o Partido Republicano é a mesma dife- pendente e combativo em vários países do continente, com cres-
rença que há entre a Coca-Cola e a Pepsí-Cola". cente importância política (como a CUI brasileira e sua relação
Os partidos representativos dos setores médios e populares com o PI), atualmente sob forte pressão das elites conservado-
ora são excluídos do processo, acusados de "subversivos", ora res, que estimulam a sua divisão e prestigíam os setores bem
têm essa participação limitada por casuísmos legais, falta de con- comportados (pelegos) ou modernos (de resultados) daquele
dições materiais e ausência de espaço na mídía. movimento.
Aí se entra na questão da hegemonia ideológica, essa capaci- As ditaduras militares, a censura à imprensa, o fechamento
dade das elites de passarem a sua cosmovisão para as classes dos parlamentos e partidos (ou sua repressão), o férreo controle
subalternas: o oprimido encarando o mundo, a vida e o seu lugar dos sindicatos concorreram para o surgimento, na América
a partir da ótica de interesses do opressor. Nesse processo, Latina, nos anos 70, de fortes movimentos sociais, de base,
importantíssimo papel é desempenhado pelos veículos de co- como canais de expressão, de participação política e de defesa de
municação em massa, pelas manifestações artísticas, pela escola interesses. Associações de moradoras, conselhos de vizinhança,
(ideologia dos professores e dos livros didáticos) e pela própria clubes de mães, comunidades eclesíaís. movimentos étnicos
igreja. Os jornais são muito mais "quadros de aviso da burguesia" (de negros, de índios, de imigrantes). movimentos de grupos
(registrem-se os conflitos entre os proprietários e os jornalistas sexuais (feministas, de homossexuais etc.) , grupos pacifistas e
independentes), mas o rádio e, particularmente, a televisão, fa- ecologistas permitiram uma redínarnízação do processo político
zem a cabeça do povo, mistificando, alienando, anestesiando. e concorreram para a reabertura dos regimes e para alterações
Imigrantes e viajantes, imbuídos de ideais libertários, como o nos sistemas constitucionais.
anarquismo e o socialismo, foram os responsáveis pelo surgimento A coesão e a dinamicidade desses movimentos durante as
do sindicalismo latino-americano, inicialmente nos núcleos ur- ditaduras (unidos contra um inimigo determinado) não foram
banos em incipiente processo de industrialização. Páginas épicas mantidas com a reabertura democrática (inimigos dífusos. divisões,

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

cooptação, mudança do clima internacional etc.) , com a falta se esmerar em uma teologia da vocação, em uma preparação
de renovação de suas lideranças e com uma crescente apatia de quadros que ultrapassem os compromissos corporativos,
ou desânimo de amplas camadas populares. mas que busquem a promoção do bem comum.
Essas mudanças podem também ser percebidas no âmbito dos Co-belígerantes com parceiros seculares, estes cristãos políti-
grupos religiosos. A Igreja Romana, sob o impacto do Vaticano II e cos devem renovar a disposição de luta por uma ordem mundial
de Medellín, se moveu do aristocratismo e do anticomunismo capaz de garantir efetivamente o direito à igualdade entre os
para o apoio aos movimentos populares, e, sob João Paulo lI, países, à nossa autodeterminação e à nossa íntegração mundial
vai-se movendo de volta a posturas cada vez mais espiritualistas não subalterna. Utopia que é acúmulo e renovação crítica da his-
e tradicionalistas. O protestantismo se move do "destino mani- tória das propostas líbertárías da civilização: liberdade, pluralismo,
festo" cívílízatórío para o constantínísmo e deste evolui para uma organização, justiça social. amplos mecanismos de representação
maior consciência política, com dificuldades para a vívêncía do e participação, transparência e responsabilidade dos órgãos de
pluralismo que a democracia requer e para o reconhecimento de governo, lazer, qualidade de vida, defesa da natureza, fim da dis-
que todo discurso teológico é ideologicamente condicionado. criminação, igualdade de oportunidades, pluralidade de formas
Outra grande incógnita para o futuro político do nosso conti- não monopolísticas e não oligopolísticas da vida econômica,
nente é o papel das Forças Armadas, com seu passado histórico promoção da cidadania.
de intervenção e tutela sobre as instituições, fortemente influ- Poderão esses temas, diante de uma conjuntura que os redu-
enciadas pelo espírito da Guerra Fria. Garantiram a moderniza- zem a "ossos secos" da história (Ez 37.1-14), reviver e avançar
ção conservadora, saíram desgastadas e com a imagem arranha- pela ação de cristãos autênticos?
da pelo período, além do que suas posturas nacionalistas se tor- A fé, uma capacidade de santa indignação e uma antropologia
naram incompatíveis com o escancarado entreguismo dos civis bíblica serão fundamentais nessa tarefa de construção histórica
neoliberais, seus antigos aliados. Resta saber se as mudanças no de um socialismo renovado para o nosso continente, pois, como
cenário internacional. as novas experiências democráticas em reconhece recente documento partidário, "o socialismo, para ser
seus países e a presença dos seus oficiais e sargentos nas univer- humanístico e democrático, terá de ser uma sociedade na qual
sidades poderão concorrer para uma alteração em sua mentalida- governem e se realizem os seres humanos reais - com suas
de e na autopercepção do seu papel constitucional. paixões, seus desejos, suas grandezas e seus defeitos - e não
um mítico ser humano perfeito, que não é outra coisa senão uma
Utopias para a América Latina negação do ser humano".
Transição e diversidade, crise e construção - parecem ser as Não teria sido justamente aí - pela não compreensão da
marcas do continente em nossos dias. Com uma SOCiedade com- natureza humana - que teriam falhado as utopias? Para buscar
plexa, e problemas aparentemente insolúveis, sentimos uma frus- novas saídas não teremos de ir além do homo economicus ou do
trante sensação de fatalidade, ficando fora da festa do clube dos antropos poltttkotü
ricos, sem poder rebelar-nos contra ele, juntar-nos a ele, mas dele Rose-Marie Murare. a pensadora católica progressista, crê
dependendo, em permanente vulnerabílídade e subalternidade. que a diferenciação social começa já com os recém-nascidos:
Neste continente estão os cristãos políticos. Aliados da Provi- o choro do bebê rico é sempre e prontamente atendido com leite,
dência, vendo a história em seu conjunto, e comprometidos água, remédio e carinho, o que predispõe para a consciência do
com os valores do reino de Deus, os cristãos políticos devem domínio; o choro do bebê pobre tantas vezes não resulta em

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A IGREJA, O PAís li O MUNDO

resposta, demonstrando o caráter vão de suas demandas e


protestos, o que o predispõe para uma consciência de fatalismo e
submissão.
Psicanalistas advogam que nem o opressor nem o oprimido
querem estar conscientes de sua situação: o opressor quer se
livrar do peso da consciência: o oprimido, do dever da rebelião,
1 1.
que o poderia conduzir à prisão e à morte.
O nutricionista Nelson Chaves, estudando as crianças filhas
de camponeses da zona canavíeíra do Nordeste do Brasil. consta-
tou que a subnutrição
rebrais irreversíveis,
na primeira infância provocava lesões ce-
tornando-as adultos apáticos. de reduzido
o papel profético da
raciocínio.
Se adicionarmos essas variáveis à realidade da hegemonia
Igreja nas relações
ideológica e da psicanalisticamente nunca solucionada questão
principio do prazer x principio da dor x principio da reelidsde.
Igreja-Estado
daremos conta de que discursos e passeatas poderão ser insufici-
entes para acordar o povo latino-americano e fazê-lo marchar em
direção à terra prometida.
Poderão nossos ritos e rezas atingir esse povo em um nível
mais profundo, com uma mística lúdica engajada? Para tanto,
poderemos superar conflitos intra-eclesiásticos? Romper com
tradições, vivenciando uma moderada iconoclastia e uma santa
anarquia na construção de um socialismo democrático moreno?
Ou seria essa uma tarefa para mais 500 anos? T odos os povos se organizam politicamente: um dos eixos da
vida social é o poder. O poder se faz presente, também, na
esfera privada (família, empresas, clubes etc.) , mas é peculiar ao
poder político o monopólio legal do uso da força: a coercíbílídade.
Para o cientista político francês Maurice Duverger, os povos
viveram três etapas históricas quanto à forma de organização
política: a) o poder diiuso. dos povos primitivos: b) o poder
personslizsdo. que vai desde as chefias tríbaís mais simples até o
absolutismo monárquico da Idade Moderna; e c) o poder institu-
aonslissdo. representado contemporaneamente pelo Estado.

o Estado
Com a decadência do poder temporal do papa, o declínio
do Sacro-Império Germânico-Romano e o fim da autoridade

82 83
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

dos senhores feudais. o Estado emerge como o ator político prin- A Igreja e o Estado
cipal dos últimos séculos. com suas características de: a) sobera- Em seus 2 mil anos de história. a Igreja tem vivido uma
nia: está acima de todos os poderes internos e é igual a todos diversidade de situações quanto à sua relação com o poder
os poderes externos (independência); b) governo: capacidade de político: a) uma situação de minoria frágil e de escassa influência
autogestão de seus próprios negócios internos. ou capacidade sob o poder imperial de Roma; b) uma relação de intimidade tu-
de elaboração legal: c) população fixa de cidadãos. detentores de telada no cesaropapismo do Império Bizantíno: c) uma relação
direitos e deveres legais; d) território delimitado por fronteiras de intimidade tutelante com o poder temporal do papa no Sacro-
internacionalmente reconhecidas. Império do Ocidente; d) uma relação de intimidade ambígua com
Em um primeiro momento. o Estado chama a atenção por os Estados confessionais (católicos. protestantes e ortodoxos) a
seus aspectos simbólicos: bandeira. hino. selo. representação partir da Idade Moderna; e) uma relação de minoria oprimida e.
diplomática etc. Em um segundo momento. chama a atenção ou. discriminada sob Estados confessionais não-cristãos ou ateus;
para a diferença do peso de cada um no conjunto dos Estados: f) uma relação de influência declínante. como uma organização
tamanho do território. tamanho da população. recursos naturais. social entre várias. nos Estados não-confessionais secularizados.
tecnologia. poderio militar. Um terceiro aspecto diz respeito Ao longo da nossa história. ternos tido opções teocráticas.
à estratificação da população (castas. classes. estarnentos). ao temos optado pela alienação e a não-influência. temos lutado por
controle sobre os bens da produção. seu acesso ao poder. à uma cidadania plena. temos sido martirizados. temos sido não
propriedade. à renda e ao saber. Um quarto aspecto inclui a levados a sério. temos tido de concorrer com outras correntes de
dimensão legal/política dos sistemas de força do estado consti- opinião dentro da lógica do pluralismo.
tucional de direito. em que os súditos são substituídos pelos A verdade é que a Igreja vive a tensão permanente entre a sua
cidadãos. origem divina e a sua vívêncía humana histórica e que cada cris-
Como há uma distribuição assimétrica da população na escala tão é portador de passaportes de dois reinos. E o "dai a César o
social. os Estados expressam em cada época. um pacto de domi- que é de César. e a Deus o que é de Deus" (Mt 22.21) continua a
nação. em que os de baixo aceitam ser dominados pelos de ser um desafio para cada geração nos diversos contextos.
cima. como se tal situação fosse do seu interesse. Isso ocorre A Reforma nos legou uma tradição aristocrático-nacionalista
em virtude da ideologia hegemônica. em que os de baixo pensam com o luteranismo e o anglicanismo. uma tradição liberal-bur-
segundo as idéias dos de cima. Os pactos de dominação expres- guesa com o calvínísmo e uma tradição reformista-revolucioná-
sam a legitimação do poder político. Max Weber vê na histó- ria popular com o anabatismo.
ria três processos de legitimação: a) tradicional: b) cansmátíca. Condutas diferentes são exígídas da Igreja. conforme seja ela
c) racional/legal, esta própria dos estados de direito. uma maioria ou uma minoria. ou se vive em um Estado
O século XX viu ruir os grande impérios (incluídos impérios confessional cristão. um Estado confessional não-cristão ou um
"cristãos"). Com o nacionalismo e o processo de descolonização. Estado laíco.
especialmente após a Segunda Guerra Mundial. presenciamos a Em todas as épocas. porém. se exige da Igreja uma teologia do
multiplicação do número de Estados até as centenas que hoje poder político e uma ética social para interagir com esse poder.
têm assento na Organização das Nações Unidas. dentro de uma doutrina de mandato cultural. que procura pro-
As diversas igrejas cristãs vivem dentro de fronteiras nacio- mover os valores do reino de Deus. dentro de uma perspectiva
nais. e os cristãos são cidadãos dos vários Estados. mais ampla do que seja a sua missão.

84 85
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

Temos tido a tentação da cristandade, quando procuramos A própria consciência desses direitos é, em muito, resultado
sacralizar certas ordens políticas como equivalentes ao reino. da ação didática da Igreja, que torna possíveis sinais e anteci-
Temos tido a tentação da neocristsndsde, quando procuramos pações do reino. Como atestado do pecado, esses direitos. (no
sacralizar ordens políticas alternativas (tanto milenarismos todo ou em algumas de suas partes) não têm sido atingidos ou
religiosos quanto utopias seculares) com o reino. Temos tido a são violados, até mesmo em Estados nominalmente de maioria
tentação da subserviência, da covardia e do silêncio culposo cristã ou governados por políticos que confessam a fé cristã.
diante de diversos poderes, sob o falso argumento da obediência A questão da moralidade pública. A ausência de valores mo-
ao que prescreve Romanos 13. Temos tido a tentação da indife- rais é outro atestado do pecado na vida pública: a desonestidade,
rença diante da (des)ordem social do pecado, sob o argumento de a corrupção, a mentira, a falta de transparência e de prestação de
que "nosso reino não é deste mundo".
contas. Na vida social. presencia-se o aumento da prostituição
(muitas vezes relacionada à pobreza). da violência urbana, do al-
Problemas do Estado
coolismo, da pornografia nas artes, do alto índice de divórcio,
A questão das nacionalidades. É preciso saber que: a) há que são sinais preocupantes, que requerem respostas tanto em
Estados integrados por uma só nacíonalídade, b) há Estados formas de políticas públicas adequadas quanto da voz profética
formados por várias nacíonalídades em distintos espaços regio- da Igreja. •
nais; c) há nacíonalídades fragmentadas em vários espaços esta- A questão do modo de produção. Abandonando a forma co-
tais; d) há nacionalidades que nunca conseguiram seus Estados; munitária de produção, a humanidade conheceu três sistemas
e) há Estados vivenciando distintos processos de integração econômicos fundados no princípio da desigualdade, da exclusão
m ulticultura1. e da exploração: o escravísmo, a servidão e o capitalismo. O ta-
As fronteiras de alguns Estados mais novos foram arbitraria- manho da igreja, a composição social dos seus membros e sua
mente delimitadas pelas antigas potências imperiais, desrespei- relação com o poder político condicíonaram a sua atuação, no
tando-se as unidades étnicas e nacionais, subsistindo questões conjunto ou entre os seus segmentos, em termos de apoio, con-
como tentativas de secessão e opressão de nações sobre outras denação ou indiferença a esses sistemas.
dentro do mesmo Estado, ora estando a Igreja em ambos os la- No caso particular e mais recente do capitalismo, dois fatores
dos, ora estando apenas de um dos lados, seja da nação opresso- inibiram tanto o resgate (ou a atualização) da rica herança cristã
ra, seja da nação oprimida. de condenação a esse sistema, quanto a sinalização de alternati-
A questão dos direitos humanos, A noção do estado de vas pertinentes. Tais fatores são: uma identificação histórica mais
direito tem implicado atribuírem-se aos Cidadãos direitos políti- estreita e o predomínio, por algumas décadas, da alternativa de
cos, direitos sociais e direitos econômicos. Nos primeiros, estaria inspiração marxista (materialista e totalitária).
a igualdade perante a lei. o direito de votar e ser votado, de ter Encontramos, na atualidade, três posições proféticas em rela-
respeitada a integridade física, a liberdade de reunião e de ção ao capitalismo: a) os profetas do capitalismo, representados,
opinião, entre outros. Na segunda, estaria o direito à educação, à em especial. pela teologia da prosperidade, legitimando-o como
saúde, à segurança, ao saneamento básico, ao transporte de o modelo mais condizente com o reino; b) os profetas no capita-
massas etc. Entre as últimas, estaria o direito ao trabalho e a lismo, apenas críticos de seus sintomas e problemas, procurando
uma participação justa na produção e no usufruto da riqueza reforrná-lo, humanizá-Io ou cristianizá-Io (democratas-cristãos,
naciona1. sociais-democratas, liberais keyn estanos): c) os profetas ao

86 87
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

capitalismo, representados pelos que julgam que o fracasso estariam de volta e seriam, outra vez, levados a sério. Mas essa
circunstancial de um remédio inadequado ou de danosos efeitos revalorização não se dá pela volta ao cristianismo histórico
colaterais (o comunismo) não transforma a enfermidade (o capi- (no OCidente) mas a um "mercado" competitivo de religiões, com
talismo) em sanidade, mas que a doença deve continuar sendo especial ênfase no esoterismo e em espiritualidades místicas
combatida, pesquísando-se novos remédios à luz da experiência e subjetívístas, que resultem em paz interior e prosperidade
acumulada. Os "de baixo" devem ser convertidos da aspiração ao pessoal.
domínio à causa da justiça, e os "de cima" devem se conscientizar O presente como futuro do passado. O vazio das utopias
do caráter transitório, dispensável e danoso de sua classe social. rompe com a idéia de valores universais, caindo-se na diversida-
procurando não só humanízá-la de imediato, mas interceder e de cultural em si. O fanatismo ou extremismo religioso totalitá-
trabalhar por sua extínção. rio (inadequadamente denominado de fundarnentalísmo). com
Os problemas entre os Estados ou dentro dos Estados desa- sua visão estática da história, seu dogmatismo, sua intolerância,
fiam o reino de justiça, paz, liberdade, honestidade e amor. rechaça a contribuição das ciências humanas. Presencia-se uma
certa contra-revolução cultural antíílumínísta. em que a "idade de
Mudanças na pós-modernidade ouro" está em algum lugar do passado um passado pré-urbano.
As mudanças que ocorrem no cenário político são: pré-índustnal e pré-democrático.
O enfraquecimento do Estado. A formação de grandes A pós-modernídade usa instrumentos da tecnologia moderna
blocos regionais (Comunidade Econômica Européia, NAFTA, com conteúdo de idéias pré-modemas.
Tigres Asiáticos) e a expansão das empresas multínacíonaís. bem Pode-se exercer o papel profético da Igreja com a teologia da
como o fortalecimento de entidades internacionais (FMI, Banco prosperidade, a teologia da dominação e a teologia da batalha
Mundial), além do capital especulativo sem fronteiras, têm espiritual?
resultado no enfraquecimento do Estado como ente político,
restringindo ou limitando o próprio conceito de soberania. Dever do profetismo
Se há um enfraquecimento para fora, há, por outro lado, um
enfraquecimento para dentro: o localismo, ou a busca do fortaleci- Uma igreja contextualizada, historicamente consciente, soci-
mento das regiões, províncias, municipalidades e comunidades. almente ínserída e relevante responde à (des)ordem do pecado e
A recorrência cultural. O vazio deixado pela crise das uto- às necessidades humanas de três maneiras: a) com a Iilsntropte.
pias tem levado a uma tentativa de volta à pré-modernídade ou obras de misericórdia diante das carências urgentes; b) com
(tradição, ordem, autoridade), como resposta à insegurança ações promocionsis. ou projetos de desenvolvimento, visando a
provocada pelas mudanças rápidas e profundas. O nacionalismo organização do povo para a realização de soluções permanentes
exacerbado, o racismo, o extremismo religioso provocam conflitos para suas necessidades príorítárías (trabalho, moradia, saúde,
entre os países ou dentro deles, ameaçando a paz e a segurança segurança, transporte, saneamento básico); c) pela ação política,
mundiais, a unidade nacional e as próprias conquistas do estado pela conscientização e mobílízação social. pela ação direta ou
de direito. indireta sobre as instituições do poder político, procurando
No cenário religioso, têm-se as seguintes mudanças: alterar o desenho sócio-econômico do Estado na promoção do
A revalorização do sagrado. Fala-se em um "reencantamento" bem-comum. A ação profética é parte da ação política, da ação
do mundo, uma "relegítírnação" do sagrado. Deus e a religião ética na polis.

88 89
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

Uma espiritualidade integral pressupõe adoração, reflexão e redução da capacidade crítica da Igreja. Nesse caso, os ministros
ação, sem se cair nos unilateralismos do misticismo, do não remunerados poderiam ter melhores condições para expres-
acadernícísrno ou do ativismo. A missão integral da Igreja inclui sarem opiniões independentes.
não somente a proclamação, o ensino, a comunhão e o serviço, Como demonstra a história de Israel. o profetismo tem,
mas, também, o profetismo e o compromisso com a vida. também, uma dimensão para dentro, para o interior do próprio
Há uma ordem da criação perdida e uma ordem da restaura- espaço do povo da aliança, no exercício iluminado de constante
ção esperada, que inspiram e desafiam, como ídealízaçôes. a ação autocrítica ou necessária discordância e sinalização de novos rumos.
do povo de Deus na ordem histórica. A "cidade dos homens" O martírio dos profetas não tem sido sempre nas mãos de
deve se aproximar da "cidade de Deus" e se afastar da "cidade do César. Somos herdeiros de uma história de inquísíções. em que a
diabo". intolerância à díscordâncía parte dos domésticos da fé.
O mandato cultural entregue à humanidade, de bem gerir o Profetas se sentem abandonados pelos seus irmãos quando
mundo, descumprido ou mal cumprido em razão do pecado, é obedecem à voz do Senhor, ou são vítimas de alianças espúrias
retomado pelas alianças, primeiro com Israel e por fim com a entre tronos e altares.
Igreja. A ausência de uma teologia do profetismo e o neo-
Mas um profetismo que é denúncia e que é proposta pelo herodianismo têm dificultado o exercício das vocações proféticas.
reino e para o reino no meio do mundo e em luta com o anti-
Modos proféticos
reino, que ultrapassa o mero espaço individual ou das
microrrelações e abarca a totalidade da vida e da organização so- A atividade profética, em primeiro lugar, nasce de uma
cial. Profetismo que pressupõe os agentes humanos (individuais consciência interna na Igreja: a consciência da humanidade dos
cristãos, a consciência dos nossos deveres de ética social e a
e coletivos) chamados e enviados, uma Palavra revelada e uma
consciência da ação responsável da cidadania como expressão de
fonte de inspiração, iluminação e poder: o Espírito Santo.
santidade. Isso pressupõe: a) uma tarefa diditic». o ensino de
Profetismo que pressupõe mensagem, convicção, coragem e vi-
todo conselho de Deus, todo conteúdo ético social das Sagradas
são, em que os poderes são relativizados e os riscos do martírio
Escrituras, relacionando-o com o nosso tempo e lugar, e o conhe-
sempre presentes.
cimento da história política do cristianismo nas diversas épocas
A missão profética da Igreja encontra amplo respaldo nas Sa-
e regiões (autores, obras, pensamentos, exemplos e episódios); .
gradas Escrituras e em escritos, pronunciamentos e episódios de b) uma tarefa intercessáris. a inclusão na agenda das orações pes-
sua história. O seu não-exercício, como podemos analisar em re- soais, familiares e eclesiais dos assuntos políticos mais prementes.
trospectiva, tem significado uma desobediência ao seu mandato A atividade profética, em segundo lugar, se volta para uma
e uma mutilação em seu conteúdo missionário. ação externa, que poder ser: a) de denúncia contra instituições,
Ainda assim, amplas são as resistências a esse ministério, por práticas, princípios e políticas públicas, que sejam aberrações ou
parte de cristãos tímidos, temerosos ou privilegiados. A ação pro- imperfeições éticas, que entrem em conflito com os valores do
fética é sempre desinstaladora, questionadora e, ao absolutizar o reino de Deus ou fiquem aquém deles, trazendo danos para as
reino, relativiza o status quo. Em uma sociedade capitalista, a pessoas, as comunidades e as nações; b) de propostas alternati-
instituição eclesiástica e os seus funcionários são mantidos, em vas e substitutivas, sem entrar em detalhes técnicos ou opções
grande parte, pelas contribuições do capital. que repassa uma ideológicas, mas que, em forma de contribuição e subsídio,
parcela da acumulação social. Essa vinculação implica uma sinalizem e ampliem horizontes. devolvendo esperanças.

90 91
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

Essas ações podem se dar: a) de forma tnstitucionsl. reuniões, psrousii. mas podem vir a se constituir em avanços possíveis e
pronunciamentos, documentos, comissões oficiais das deno- sinais antecipados do reino na história,
minações, igrejas locais, missões, seminários, conselhos de Em nossa atividade profética, deve-se manter atual o
pastores etc., que expressem o consenso, a convicção generaliza- método proposto pela Ação Católica no pós-guerra: ver - julgar
da ou maioria expressiva dos seus membros sobre determinada - agir.
questão; b) de forma individual: cristãos doutrinariamente ins-
truídos e espiritualmente apoiados por seus pastores e comuni- Conclusão
dades, no exercício de suas lícitas vocações, que participem dos
órgãos do governo, dos partidos políticos, dos sindicatos, dos O evangelicalismo tem deixado de ser o que deveria ser em
movimentos sociais, de preferência junto com outros cristãos essência - uma leitura da fé e um discurso sobre a fé do Evange-
de opiniões assemelhadas, procurando encarnar. sempre que lho -, para se tornar em uma subcultura, uma das "tribos" do
possível (respeitando-se as objeções de consciência), as ori- multicu1turalismo da pós-modernídade. uma das mais exóticas e
entações emanadas das instituições cristãs; c) de forma orgânica: das mais antiquadas, Temos deixado de propor. e nos tornamos
por meio de movimentos, comitês e organizações, sem víncu- apenas reativos ao secular e ac: teologicamente liberal.
los oficiais com as instituições eclesiásticas, mas que ultra- O nosso crescimento quantitativo nem sempre tem
passem o individualismo e que ag1utinem, de forma sistemá- correspondído ao aumento do nosso impacto e influência na vida
tica, cristãos da mesma opção ideológica, na promoção de te- social. Não pode haver influência quando não se quer ou não se
mas específicos, como ecologia, direitos humanos, classe, re- sabe o que influenciar e como fazê-lo. Uma séria inclusão do
gião, etnia etc. profetismo no conteúdo da nossa missão contribui para a conso-
Entrevistas e publicações de documentos na mídía religiosa lidação da nossa própria identidade, pois não podemos nos con-
ou secular. passeatas, comícios, abaixo-assinados, visitas às auto- tentar em sermos apenas a ala "moderada" ou "civilizada" do
ridades, disseminação de boletins, cartazes externos, revistas, fundamen talísmo.
livros, são alguns dos canais lícitos que podem ser empregados, A Igreja Reformada não somente deve constantemente se re-
com competência, sensibilidade, senso de oportunidade e formar, mas constantemente reformar. Entende-se a Igreja Re-
criatividade, para o exercício da ação profética da Igreja, formada como uma comunidade da liberdade e uma agência de
A tarefa pode, eventualmente, incluir a criação de "laboratórios transformação histórica,
sociais" ou projetos experimentais/didáticos de comunidades Os conflitos entre Estado e Igreja são inevítáveis: e a colabora-
alternativas ou modos de produção alternativos (fazendas comu- ção entre Igreja e Estado, uma necessidade possível de atender. É
nitárias, fábricas autogestionadas, por exemplo), preciso discernimento para o modo de conflítar e o modo de co-
Vale ressaltar o papel das ciências humanas como auxílio laborar. Por outro lado, nos debilitamos para a tarefa profética
instrumental para os profetas na compreensão e aplicação das em virtude dos nossos próprios conflitos internos,
Escrituras, O preconceito evangélico contra as ciências sociais é Oremos para que a Igreja seja uma comunidade de estadistas
algo lamentável e que deve ser superado, As ideologias seculares do reino de Deus,
podem ter, também, um valor instrumental. mas não devem ser O "princípio protestante", como nos chamava a atenção Paulo
absolutízadas. As utopias humanas, por melhores que sejam não Tillich, é de uma dupla vocação: criar sempre, questionar o
podem, em razão das suas limitações, ser ídentífícadas com a criado sempre,

92 93
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Na presente crise da civilização, com o esgotamento do


ceticismo liberal e o risco da tentação reacionária, a história pode
estar concedendo a palavra ao profetismo evangélico.
Que sejamos sensíveis, obedientes e competentes para
interpretarmos o discurso do céu que faz sentido na terra. 12.
-

Os evangélicos e o
projeto histórico
ESTADISTAS, ALIENADOS OU CARREIRISTAS?

povo de Deus deveria ser um povo de estadistas: capaz de


O uma compreensão correta e de uma participação ética e
competente no tratamento da coisa pública. Deveria ter um
envolvimento ativo na vida em sociedade, na promoção do bem
comum. As desinformações, os preconceitos, os medos, o ódio, a
corrupção, a maledicência e os interesses subalternos não
deveriam se fazer presentes no meio do povo de Deus, pois
deformam o exercício da sua cidadania e são sinais e evidências
sociais do pecado.

Cidadania e projeto

A crise da cidadania entre os evangélicos - apontam os


analistas - decorre da falta de um projeto histórico: de que modo
a sua presença alteraria os rumos da nação e do Estado no Brasil?

94 95
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o PAís

Não está em discussão o projeto espiritual. metafísico ou comunistas). Na República Populista 0946-64) queríamos apenas
escatológico - o além e o futuro - mas o aquém e o presente. um lugar ao sol. ser considerados normais, reconhecidos pelas
Não está em discussão a conversão pessoal e o projeto subjetivo autoridades (como no caso da visita de Juscelino à Catedral
e individual de cada crente, mas o objetivo e o coletivo. Somos Presbíteríana do Rio de Janeiro, em 1959) ou mostrar que éramos
um povo ou apenas uma colagem de indivíduos? numerosos (enchendo o Maracanã com os batistas e Bil1yGraham,
As eleições, especialmente as presidenciais, se constituem em 1960).
num importante momento para uma sincera auto-avaliação, caso
queiramos crescer. Apoliticismo e realismo
Tivemos projetos coletivos no Brasil no passado? Sim. Fomos, então, atingidos em cheio pela Guerra Fria, com a
No Segundo Reinado (sob a Constituição de 1824). o projeto polarização entre uma direita e uma esquerda protestantes. A
político dos evangélicos era o de adquirir a plenitude da cidada- Conferência do Nordeste, da Confederação Evangélica do Brasil
nia, o exercício pleno dos direitos que nos eram vedados pela lei. (1962, em Recife, PE) e o Manifesto dos Pastores Batistas 0963,
Levantamos a bandeira da separação entre Igreja e Estado, em em Vitória, ES) foram sinais daquele tempo de fecunda inqui-
composição com uma frente que incluía os liberais, os republica- etação, diante de um mundo que p"assava por uma profunda
nos, os maçons e os livres-pensadores. Esse projeto foi ampliado revolução cultural.
com a condenação da escravatura e a defesa da República. A abo- Durante a ditadura militar (1964-1985), mandamos às favas o
lição, a República e a Constituição de 1891 tornaram esse projeto nosso compromisso histórico com a democracia e o
vitorioso. constitucionalismo, nos aliamos à direita católica romana, perse-
Na Primeira República - apesar de se ter abolido uma reli- guindo os dissidentes "corruptos" e "subversivos". Assim, o
gião oficial- sentimos o peso do preconceito social e da discri- fundamentalismo, ora alienante ora adesísta, foi imposto como
minação por parte das autoridades. Levantamos a bandeira do teologia única às denominações, com a assistência "técnica" dos
Estado lsico, e continuamos a disseminar, entre os setores for- irmãos do Norte. Toda uma geração foi despolitizada.
madores de opinião, a ideologia do progresso e da democracia Com a redemocratização, espalhamos a mentira do acordo
como decorrências do protestantismo. As escolas e colégios fo- secreto entre Tancredo Neves e a Igreja Romana, trocamos votos
ram os principais veículos pioneiros desse projeto: mistas, de nossa bancada parlamentar - uma rádio por um ano de
proftssíonalízantes, valorizadoras dos esportes e da educação fí- mandato. O bem comum já tinha ido para o lixo. Agora era o
sica, que influenciaram as reformas educacionais promovidas corporativismo do "bem nosso" mesmo.
pelos governos nos anos 20. A emergente classe média se sentia A agressividade e a falta de ética marcaram nossa participação
atraída pela proposta. nas eleições presidenciais de 1989, quando fomos co-responsá-
De 1855 a 1930 tivemos projetos históricos, que foram sendo veis pela vitória de um desequilibrado e aétíco. apresentado nos
absorvidos pelo setor público e por outros segmentos sociais, púlpitos como "um homem de Deus". Caímos no messianismo
e nos esgotamos como vanguarda sinalízadora do novo e do da nossa cultura e nas promessas de "um lugar no teu reino"".
melhor para o país. O trauma do impeschment nos permitiu, em 1994, uma
Durante a Ditadura Vargas 0930-1945) ficamos no discurso eleição mais moderada e civilizada entre os evangélicos, com a
de que os países protestantes eram mais progressistas (de maioria das denominações (ao menos formalmente) respeitando
escassa ressonância diante da polarização integralistas versus o pluralismo no seu interior, embora um setor ainda insistisse

96 97
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

no clima da "guerra santa". Segmentos expressivos, contudo,


se encantaram com o charme do príncipe intelectual (ex-ateu
confesso, "convertido" a uma Iítínha do Senhor do Bonfím).

da pátria?
Luzes

Esperamos que, nos próximos processos eleitorais, tenhamos


13.
-
amadurecido em cultura política e em ética, em conhecimento
do nosso legado histórico e em leitura abrangente das Sagradas
Escrituras. Que haja um clima de respeito no interior das igrejas
e um sentido de crítica e independência fora delas. A hora e a vez do Brasil
O Brasil se encontra sem um projeto nacional. O nacional-
desenvolvimentismo, legado por Vargas, está parcialmente esgo-
tado: uma parte - as conquistas sociais - é alvo da destruição
dos seus adversários no poder. A subserviência aos donos do poder
mundial. a arrogância, o falso discurso, as falências das empresas
nacionais, o desemprego, a falta de uma política agrária e agríco-
la, o desprezo ao servidor público e aos aposentados, a violência,
o sucateamento da saúde e da educação públicas são evidentes.
Intelectuais, políticos, artistas, setores organizados da socie-
dade civil têm elaborado alternativas, que são ignoradas ou ridi-
cularizadas.
D eus reina sobre as nações como Senhor da história, como o
Deus da providência. Não há história fechada, nem
determinismo histórico, em razão de ideologias ou de fatores
Os evangélicos não podem se comportar de modo individua- políticos ou econômicos. A história parecia (ou se apregoava)
lista, insensível e irresponsável. nem podem apenas buscar "marchar" para determinado fim, segundo preconizavam os
vantagens pessoais ou para a sua corporação religiosa. O nosso poderosos e os impérios da ocasião. A história é um cemitério de
compromisso é com o fomento do reino de Deus, de justiça e poderosos, de impérios e de ideologias. A providência gosta de
paz. E Deus nos colocou neste país com um propósito: salgá-I o e pregar peças neles.
ílumíná-lo. conhecendo-o, amando-o, comprometendo-se e Somente a insensatez e a cegueira das mentes limitadas e
identificando-se com ele, portando sua identidade. Conscientes turvadas pelo pecado faz com que os arautos do neoliberalismo
do nosso papel transformador, vamos agir lançando mão da pretendam, mais uma vez, o controle sobre a história, na sutileza
intermediação científica para a compreensão e da de sua intolerância e na idolatria de sua idéia "única".
ínterrnedíação das organizações sociais para a participação. É interessante notar que os cristãos realmente bíblicos não se
Inconformados com o presente, profetas do Altíssimo, impressionaram com as idéias "únicas" do nazismo ou do
colaboremos para a elaboração de um projeto alternativo, para stalínísmo. nem hoje se deixam impressionar pela idéia "única"
darmos novos rumos à pátria terrena que amamos e que os maus do neoliberalismo. Outra não poderia ser a atitude dos que
brasileiros querem destruir. acreditam na Providência, no senhorio de Deus sobre a história e
na destinação dos seres humanos à criatividade e à diversidade.

98 99
A IGREJA, O PAís E O MUNDO
o PAís

Na destinação dos seres humanos ao incoformismo diante das O Brasil, como a Antioquia, a Roma e a Inglaterra, no passado,
injustiças. Na destinação dos seres humanos ao sonho com um poderá ser o farol da evangelização para o século XXI.
mundo melhor, que, enquanto a psrousie não chega, vai sendo Para que isso aconteça é pré-condíção que os cristãos evangé-
construído nas contradições de sua ambigüidade moral. que são licos se reconciliem com a sua cultura nacional e as subculturas
sinais e antecipações do reino. regionais, iluminando-as: se reconciliem com as suas raizes, sal-
Denunciar a idolatria da idéia "única", fomentar, pelo Espíri- gando-as a partir de dentro: se reconciliem com a sua identidade,
to, um santo inconformismo, organizar os inconformados, devol- resistindo às influências sutis, nefastas e perversas das teologias
ver os sonhos, as esperanças e as possibilidades, a partir de um e ideologias, usos, costumes e preconceitos exportados do impé-
Deus que ouve o clamor do povo e intervém - eis a tarefa da rio atual. Que os evangélicos missionários não se comportem
Igreja nesses anos cinzentos. Tarefa que contrasta com o como morenos moços de recado do templo de César. mas como
hedonismo dos que aderiram à idéia "única" ou com o fanatismo porta-vozes independentes e autênticos de um evangelho ama-
dos inconformados enfermos. durecido nas terras de Santa Cruz. Evangelho da paz, do amor e
da alegria. Evangelho da sanidade, divino, porém humano. Co-
A Providência e o Brasil nhecedores da nossa história, apreciadores da nossa literatura,
O Brasil é um país peculiar, por sua extensão geográfica e admiradores da nossa arte. participantes do nosso folclore, mili-
populacional. seu clima, seus recursos naturais (sem vulcões, ter- tantes dos nossos movimentos sociais, contempladores da nossa
remotos, tufões, geleiras ou desertos). sua cultura ao mesmo tem- natureza, prontos para o sorriso, valorizadores do prazer, do bom
po homogênea e díversífícada. pela fraternidade e hospitalidade e do belo.
do seu povo, por suas raízes religiosas. Aspectos positivos ine- Isso pressupõe unidade e reconstrução de um protestantismo
gáveis, apesar da concentração do poder, da propriedade e da católico, de um cristianismo reformado a partir das nossas raízes
renda, que tem impedido o seu desenvolvimento harmônico ibéricas (e não contra elas). aperfeiçoando a nossa herança luso-
sustentado. O que Deus criou por aqui foi excelente. O que os afro-ameríndía. e não tentando (inutilmente) demonizá-la ou
homens pecadores fizeram, nem tanto ... substituí-Ia pela cultura anglo-saxã - muito mais enferma -,
Nossa espiritualidade nos permitiu atravessar a secularização sob aparente religiosidade.
moderna sem cairmos no secularismo cético e antí-relígíoso. Nossa Somos uma cultura plástica, das muitas cores e das cores for-
vocação lúdíca nos permitiu a urbanização e a industrialização, tes, dos muitos sons e dos sons fortes, que apela para as emoções
sem a chatice ascética e laborlátrica do Primeiro Mundo. Nosso e os sentidos, que busca no passado e abre possibilidades novas
senso crítico não nos permitiu cair na armadilha das idéias para a líturgía. como trabalho do povo na adoração.
"únicas" do nazismo e do stalínísmo. e nos faz. ainda, resistir,
O moralismo anacrônico, monástico, mórbido, patológico ou
pela mesma lógica e pelos mesmos argumentos. à idéia "única"
moderno e pequeno-burguês: o legalismo que anula a graça e re-
do neoliberalismo.
trocede à lei. que oprime e impede a maturidade, que infantiliza
O palco da história da Providência pode, muito provavelmen-
e reprime, que recalca e enferma: o sectarismo que isola, divide,
te, estar reservando um lugar único para o Brasil nesse momen-
to. Lugar de resistência e de devolução de esperanças para o agride, mata, seca, fere, atestando a insegurança dos seus pro-
mundo pós-moderno, destinado a construir a "civilização do motores - tudo isso é incompatível com a brastlídade e com
lazer". que sucederá a "civilização do trabalho". o evangelho.

100 101
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Protestantismo não é americanismo. Evangelicalismo não é


fundamentalismo. Mística não é esoterismo. Fé não é fanatismo.
É preliminar conhecer a história da Igreja, toda a história e a
história de todos, que liberta do bitolamento. É preciso conhecer
todo o mundo cristão e o mundo cristão de todos, que liberta do
paroquialismo, do províncíanísmo, do caipirismo religioso. É pre-
ciso ler (de tudo), escutar (a todos), dialogar (com todos), o que
nos torna humanos e sãos.

Autênticos ou imitadores?

Peregrinos no "mundo" do pecado (individual ou SOCial),mas


não turistas na terra que os viu nascer, como resultado da má
interpretação das Escrituras, da colonização teológica, da tutela
ideológica por parte dos "irmãos" da nova Roma - assim deve-
mos ser. Não como pobres e coitadinhos, deslumbrados, tenta-
dos pelos bolsos (ou pelo bolso) da corte de César. pelo "prestí-
gio" de se verem associados aos "grandes" do sínédrío do Norte.
Não como estrangeiros no seu próprio país, os de mente coloni-
o MUNDO
zada, sempre ávidos pelas novidades importadas, de costas para
o seu povo, o seu cheiro, o seu som e as suas dores.
Deus usará o Brasil quando o seu povo aqui for brasileiro. Se
não formos nós mesmos, mas a ridícula imitação de outra coisa,
Ele nos dispensará e usará a outra coisa, pois Ele sempre prefere
o original.

102
14.

Os cristãos e o
estado do mundo

"0 mundo dá muitas voltas". é o antigo ensinamento. Como


se encontra a velha terra nesse final de milênio? Como os
cristãos estão se posicionando ou deveriam se posicionar diante
da atual conjuntura mundial?

Os donos
Esse é um mundo de donos. Com o fim do império soviético.
os Estados Unidos da América se tornaram a nova Roma: única
superpotência militar. tecnologicamente hegemônica. Não há
outra potência que se contraponha ao poder norte-americano.
cujo presidente é o novo César, cujas "legiões" poderão invadir
qualquer parte do globo. a qualquer momento. com suas armas
sofisticadas de altíssimo poder destrutivo. Todos os povos se sen-
tem fragilizados e vulneráveis.
O "Clube dos Ricos" é conhecido como G-7 (Grupo dos Sete):
EUA. Alemanha. Japão. Canadá. Grã-Bretanha. França e Itália.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO o MUNDO

o resto é resto. São três grandes blocos econômicos: NAFTA A competitividade pressupõe individualismo (o outro como
(Estados Unidos, Canadá e México). Comunidade Econômica concorrente), sendo a solidariedade algo contraproducente.
Européia e Japão + Tigres Asiáticos. Eles realizam entre si O mundo "normal" requer a luta de todos contra todos (o que
85% do comércio internacional. move o progresso), com a sobrevivência dos mais fortes e dos
Os países do antigo COMECOM (aliados à União Soviética) mais capazes (neodarwinismo social). As antigas conquistas soci-
estão em decadência social. econômica e moral (pobreza, vio- ais devem ser erradícadas. atacadas como "privilégios", e consi-
lência, corrupção). com a implantação rápida da mais selvagem deradas como obstáculos.
forma de capitalismo. O lema da nossa época poderia ser: "Cada um por si e o diabo
A maior parte da África, partes da Ásia e da América Latina (o por alguns".
antigo "Quarto Mundo") estão excluídas e apenas sobrevivem,
no meio de guerras, atraso tecnológico e fome. A religião
Ao antigo "Terceiro Mundo" (incluindo o Brasil) resta um
papel secundário, uma integração subalterna à nova ordem, em Diante da ausência de saídas históricas, muitos se voltam para
que os Estados nacionais são cada vez menos soberanos. Blocos dentro e para o além. O resultado é a expansão das técnicas de
regionais, como o MERCOSUL, são tentativas dos países periféri- auto-ajuda (antropocentrismo, õ "deus" dentro de cada um) e do
cos de manter um mínimo de interesse próprio diante da misticismo: anjos, duendes, fadas, meditação transcendental.
avalanche dos grandes centros do poder mundial. gnosticismo, esoterismo, discos voadores. A salada mística elabo-
ra uma nova filosofia e uma nova escatologia, sob a rubrica de
A ideologia uma "Nova Era" (ou "Nova Consciência"), hostil à revelação cris-
O capitalismo como modo de produção vive um tã e à unicidade de Jesus.
"reavívamento" sob a denominação do neoliberalismo. É visto A pós-modernídade é marcada pelo pluralismo e relativismo
como a síntese do pensamento humano, superior e ínsubstítuível. exacerbados, e pela negação de critérios objetivos de verdade.
da própria natureza das coisas, a forma possível e a única saída A insegurança diante do novo e do imponderável. a identida-
para a humanidade. de ameaçada pela globalização fazem ressurgir certas práticas
Isso pressupõe a globalização da economia: abertura para a culturais tídas como pré-modernas. nacionalismo, regionalismo,
troca de mercadorias e fechamento para a circulação de pessoas. tríbalísmo. famílísmo. racismo etc. O fanatismo religioso é parte
O Estado deve ser "mínimo" (defesa, segurança pública e garan- dessa reação, e está crescendo em todo o mundo: a sacralidade
tia dos contratos). com a propriedade privada dos meios de pro- do próprio grupo e da própria idéia, a demonização dos demais e
dução e o mínimo possível de regulamentação. Reduz-se a esfera das demais idéias, o outro a ser destruído como uma ameaça.
do político (decisões do conjunto dos cidadãos) e impõe-se o es- A democracia, o estado de direito, a igualdade perante a lei.
paço do econômico: o mercado no lugar do Estado e da socieda- tidos como valores universais, estão ameaçados. O racionalismo
de, e o produtor/consumidor no lugar do cidadão. é substituído pela irracionalidade.
Sendo a desigualdade considerada inevitável. entre as nações Entre as massas excluídas pela (des) ordem neoliberal. o fana-
e dentro das nações, as pessoas se dividirão entre os "incluídos" tismo vai recrutar os seus seguidores. É no Islã, particularmente,
e os "excluídos", estes últimos cidadãos não-plenos, a merecer a que se vai encontrar maior negação ao novo materialismo
caridade. O conceito de justiça social é considerado uma aberração. consumista.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Os cristãos
Nem todos os cristãos estão conscientes do estado do mundo
e das profundas mudanças por que passa a civilização. Alguns
estão conscientes, porém perplexos, desorientados, apáticos,
desesperançados: outros. conscientes ou não, já se 15.
"rnundanízaram". já aderiram ao espírito da época, às idéias e
práticas do novo tempo.
A Igreja, por indiferença ou por interesse, está prisioneira do
século.
Um remanescente crítico mantém uma equivocada e infrutí- A globalização
fera ênfase em soluções do passado.
É preciso serenidade e fé na Providência, no Deus que é o e os desafios do
Senhor da história. Conhecer os tempos para uma inserção se-
gundo a sua vontade para as nossas vidas, dentro do projeto his- neoliberalismo
tórico do reino. Isso passa pelo reconhecimento do neoliberalismo
capitalista como uma ideologia des-humana, destrutiva e satâni-
ca, contrária aos valores do reino e ao projeto histórico de Deus.
Viver nesse mundo neoliberal sem se sentir parte do seu sis-
tema, criar uma diferenciação interior, orar por sua superação
(como foram superados o escravísrno e a servidão), denuncíá-lo,
desmítífícá-lo. apontar para outras saídas - eis a tarefa dos cris-
tãos, mesmo sob os riscos do martírio. reio que todos nós temos tomado por certas duas
Os ensinos sociais das Sagradas Escrituras, o ideal edênico e o
ideal da Nova Jerusalém, o legado das revoltas camponesas
C premissas: 1) uma concepção integral ou abrangente da missão
da igreja, ao mesmo tempo kerigm.itics. didática, koinônica.
anabatístas. dos niveladores e cavadores, do humanismo inte- díaconal e profética: 2) a convicção de que o exercício missionário
gral e do solidarismo, do socialismo religioso nos alentam e nos ou evangelizador da Igreja não se dá em um vácuo, mas na história,
motivam, enquanto o Senhor não volta, a impulsionar as gentes nas culturas e nas conjunturas. A partir daí. a compreensão da
à liberdade e à justiça, em direção a um mundo sem fome e sem época em que se vive e as respostas à agenda do seu tempo são
donos. fundamentais para um exercício relevante da missão do povo de
Novos Moisés serão levantados, segundo o coração de Deus. Deus.
Se é verdade que a história está sempre em movimento, que
as culturas são dinâmicas e as conjunturas mutáveís. é também
verdade que há momentos em que essas mudanças são mais
rápidas, mais profundas e mais abrangentes, sendo estas deno-
minadas de "crises de civilização". Cremos que, nesta virada de
milênio, estamos passando por uma dessas crises.

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o desaparecimento da União Soviética e do Pacto de Varsóvia suficiente no mundo para que não mais se acredite no mito do
resultam em uma nova ordem internacional. sob a hegemonía progresso. Não há dúvida de que o mito das utopias globais clás-
militar de uma só potência, os Estados Unidos da América, qual sicas é insustentável. E, de particular importância, assiste-se à
Roma após a derrota de Cartago. A economia mundial vem a ser decadência do mito da razão.
dominada por três grandes blocos: Comunidade Européia, NAFTA. Se, em uma visão díalétíca da história, toma-se a pré-
Japão + Tigres Asiáticos, sob o domínio do "Grupo dos Sete" modernídade. o medíevo cristão, judaico e íslâmíco, como o tem-
(G-7). ao mesmo tempo em que se formam blocos menores na po-tese, centrado na ordem, na hierarquia, no dogma, na místi-
periferia do sistema, como o MERCOSUL. ca, atrofíadores da razão, e a modernidade ocidental. hegemôníca
Os Estados nacionais perdem importância como atores políti- com o imperialismo, como o tempo-antítese, da tirania da razão
cos, e o próprio conceito de soberania está sendo questionado. e da arrogância dos racíonalístas. debate-se hoje, entre a insis-
Os blocos econômicos, a tutela dos órgãos internacionais de tência frustrante nos paradígmas modernos, o temor do regresso
monítoramento, como o Fundo Monetário Internacional e o Ban- a uma nova Idade Média ou a possibilidade de uma pós-
co Mundial. o poder e o caráter transacional do capital resultam modernídade como tempo-síntese, em que se recupere e se res-
na fragílizaçâo das antigas estruturas. peite a riqueza do além-racional das pessoas: seus símbolos, seu
A essa ameaça os povos têm respondido com o fortalecimen- imaginário, seus sentimentos e emoções, sua mística, suas
to do localísmo. com o famíhsmo. o tríbalísrno. o regionalismo, o intuições, sua ludícídade, sua erotização.
nacionalismo e o racismo. A crise da modernídade. esse momento de transição. tem co-
Vivem-se os movimentos contraditórios da ínteração dos ca- nhecido reações extremadas, como o fundamentalismo religioso
pitais e dos produtos e as barreiras à livre circulação das pessoas. e o misticismo esotérico.
Com a inclusão subalterna ou a exclusão dos periféricos da festa
dos ricos, dá-se razão a Alaín Tourrene. quando afirma: "O que o reino de Mamon
chamamos hoje de globalízação é o que chamávamos antigamen-
te de imperialismo". O realismo e o bom senso nos levam a tomar por verdade
As utopias foram pelo ralo, restando o desencantamento, o alguns fatos evidentes: uma nova revolução tecnológica em cur-
cinismo, o pragmatismo, o consumísrno, que, aliados ao mono- so, particularmente nos campos da informática, das telecomuni-
pólio da mídía e da propaganda, resultam na crença na fatalida- cações, da robótíca e da máquina fina, uma integração planetária
de, em um novo determínísmo. O capitalismo inevitável e supe- das informações, cujos instrumentos-símbolos são a CNN e a
rior, fim da história, vive o apogeu de um inesperado ínternet. o caráter transnacional das empresas,. nas diversas eta-
reavivamento. pas e componentes dos seus produtos, a existência de um capital
investidor volátil. que desconhece fronteiras.
Há, por outro lado, constatações que lamentamos: a exclusão
Crise e novo pensamento
de áreas e populações, o desemprego estrutural crescente, a
Movimento simultâneo de mudanças profundas diz respeito concentração de renda nos âmbitos interno e externo, as re-
à forma de pensar. A era ílumínísta. a era da razão moderna, formas constitucionais e infraconstitucionais tentadas em todo
conhece o seu ocaso. Há maldade suficiente no mundo para que o mundo, com o propósito deliberado da redução dos direitos
não se acredite mais no mito da bondade natural. Há decadência sociais, particularmente os trabalhistas e prevídencíáríos.

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o locus principal da nossa preocupação, contudo, se dá na Fanfani e Gramsci adquirem nova atualidade, agora com a
esfera ideológica: 1) a desigualdade social como da natureza das explícita legitimação religiosa do capitalismo.
coisas: 2) a competição, e não a solidariedade, como valor, legiti- Num segundo grupo, encontramos os profetas no
mando-se um neodarwinismo social: 3) a valorização dos bens e neoliberalismo. São cristãos com alguma consciência social. mas
a desvalorização das pessoas: 4) o mito do mercado: 5) o que não ultrapassam os limites da fílantropía ou da denúncia
determinismo histórico e a uniformização de modelo como for- dos sintomas ou os aspectos periféricos do modelo. Insurgem-se
mas de fatalismo, levando à desesperança na criação do novo, do - às vezes com veemência - contra a febre ou a dor de cabeça,
diferente e do melhor. mas se inibem em chamar a gripe de gripe. Questões de natureza
Se não há solução coletiva, se a organização social não leva a teológica, ideológica ou financeira condicionam esses profetas a
nada, se as instituições públicas não respondem às necessidades uma ação tolerável pelos poderosos.
da cidadania, salve-se quem puder. Instala-se a lei da selva. Num terceiro grupo, encontramos os profetas ao
Vive-se um verdadeiro e profundo materialismo. neoliberalismo, lançando mão de ferramentas científicas de aná-
A livre concorrência, a desnacionalização, a privatização são lise, confrontando o modelo com a ética do reino. São eles ora
caminhos para uma nova e mítica idade de ouro futura, com a herdeiros da teologia da libertação, .ora herdeiros da teologia da
classe proprietária (e não a proletária) como condutora, e a mais- missão integral da Igreja.
valia como inevitável instrumento para a construção do bem. O profetismo ao neoliberalismo, contudo, padece de suas de-
Os sindicatos declinam, e procura-se cooptar ou amedrontar bilidades.
o mundo do trabalho, com as reengenharias, as qualidades totais Um aspecto preliminar é que não conseguimos, ainda, supe-
e as terceirizações. O setor público é tido como vilão e bode rar as parcializações do cristianismo que caracterizaram este sé-
expiatório. culo: religião de salvação, religião de libertação e religião de re-
De neo esse liberalismo só tem nome. É um retrocesso, um sultados, todas expressões verdadeiras, porém unilaterais, (da
retorno ao passado, uma nova fase de hegemonia burguesa, um nossa proposta), cuja ausência de síntese não nos permite
novo ciclo de acumulação do capital. agora legitimado e sem ame- avançar.
aças de utopias ou topias alternativas. Não conseguimos, por outro lado, elaborar uma espiritualidade
Mamon vive a sua glória. integral. que contemple a adoração, a reflexão e a ação, sem cair,
outra vez de forma unilateral. no misticismo, no academicismo
Fragilidades dos cristãos ou no ativismo.
Não conseguimos, ainda, integrar o evangelísmo, o ensino, a
A mesma figura aplicada às posições proféticxas dos cristãos comunhão, o serviço, o profetismo e o compromisso com a vida e
em relação ao capitalismo. pode ser aplicada também aos novos a natureza (proposta de Lambeth). superando a dilacerante
tempos. dícotornía entre Evangelho individual e Evangelho social. que
Num primeiro grupo encontramos os profetas do tem fissurado o cristianismo contemporâneo em uma guerra nada
neolíberalísmo, como Michael Novack, no cenário acadêmico, ou santa entre fundamentalistas da direita e fundamentalistas da
os seguidores da teologia da prosperidade, no cenário eclesiásti- esquerda teológica.
co, sejam eles seguidores da seita dos mscedisnos. ou homens Devemos, também, reconhecer a excessiva dependência do
evangélicos dos negócios plenos. Os estudos de Weber, Tawney, instrumental marxista e do então chamado "socialismo real", que

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têm paralisado ou levado a um desencantamento, enquanto e resultados, aplicando a multíforme graça de Deus à diversidade
alguns, num outro extremo, têm renegado toda a contribuição de situações pessoais e sociais; f) com a busca de uma pastoral da
daquela rica tradição. esperança, que devolva ao homem pós-moderno sua auto-estima
Ressaltamos que, se a crise da modernidade tem levado os como ator da construção histórica, um ser de possibilidades
conservadores a uma carreira em direção ao passado, ao pré-mo- múltiplas; g) com a busca da elaboração de novas utopias, de
derno, o pensamento progressista, por sua vez, não tem conse- novas propostas e modelos históricos alternativos.
guido, ainda, se libertar das amarras da tradição iluminista.
A batalha contra o neolíberalísmo se trava no advento da pós- As novas utopias
modernidade que está chegando, gostemos ou não gostemos dela. Se o papel da esquerda cristã é o de devolver esperanças, isso
Não avançaremos, presos ao passado, e não seremos vitoriosos passa pela reconstrução de utopias, devolvendo ao povo a capa-
se não superarmos nossos dilemas internos. cidade de sonhar com um mundo melhor, a partir da fé. Que
avanços poderemos implementar?
Confrontando o neoliberalismo Aspectos sócio-políticos. Devemos estabelecer, como cris-
O enfrentamento ao neoliberalismo, por parte dos cristãos, tãos, um compromisso inegociável com a democracia como valor
terá de se fazer nos âmbitos da teoria e da práxís. da epistemologia universal. indo além dos seus aspectos jurídicos e políticos, lu-
e da utopia: a) com a elaboração de uma nova antropologia, que tando por seus aspectos econômicos e sociais. O neoliberalismo
contemple a ambigüidade moral do ser humano (fim do "bom quer fazer regredir o atual estágio da democracia sob a hegemonia
selvagem" e volta da noção de pecado), suas possibilidades e li- burguesa para o estágio anterior da mera democracia burguesa.
mitações. Uma antropologia mais realista e mais humilde, que A ampliação da cidadania passa por uma luta por sua exten-
contemple a multídímensíonalídade da pessoa (além do homo são às minorias ou setores discriminados, como os negros, as
economicus) e afirme a sua dignidade, a sua liberdade e a sua mulheres, os indígenas, os estrangeiros e os grupos de comporta-
críatívídade: b) com a elaboração de uma decorrente filosofia da mento alternativo, sem falar na massa dos excluídos. Passa, tam-
história, que contemple vitórias e fracassos, ascensões e quedas, bém, pela luta por melhor qualidade de vida, em termos de segu-
e que rechasse toda e qualquer forma de deterrnínísmo: c) com a rança e serviços públicos, como a educação, a saúde, a habitação,
elaboração de uma epistemologia pluralista, teoricamente plu- os transportes, o meio ambiente e o lazer. Passa pela compreen-
ral. interdíscíplínar. em que haja lugar para o diálogo e o são, agora crescente em todo o mundo, do município como Jocus
íntercâmbíco entre as diversas correntes teológicas, filosóficas e prioritário das lutas cívicas e dos avanços possíveis.
científicas, das tradições ocidental e oriental. dentro de uma pers- Os partidos, sindicatos, associações, ONG's (organizações não-
pectiva holístíca: d) com a explicitação de uma teologia do reino, governamentais) são canais ainda importantes diante da onda
que contraste de forma clara os seus valores com os antivalores individualista e desagregadora.
do neoliberalismo, firmando convicções e demarcando dife- As igrejas não terão autoridade moral se não praticarem a
renças inconciliáveis: e) com a explicitação de uma concepção democracia interna, se forem espaços de intolerância, discrimi-
integral de espiritualidade e de missão da Igreja, bem assim nação e repressão.
com o compromisso com tal concepção, mas desde que ela Utopias cristãs e humanistas superarão o economicismo e
contemple, simultaneamente e sem preconceitos, as carênci- valorizarão as necessidades espirituais e lúdícas. como os espor-
as materiais, emocionais e espirituais de salvação, libertação tes e as artes. A fé que se alia à festa (Frei Betto) deve lutar pela

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socialização tanto do pão quanto do orgasmo (Reích). A ascese No âmbito da CUT. discute-se a criação do Banco do Trabalhador
das nossas tradições se constituem em barreiras mentais à e a necessidade de órgãos da mídía de propriedade dos trabalha-
legitimação do prazer. dores. Um pastor presbiteriano organiza uma "empresa Robín
Se a ampliação da cidadania é importante. ficar apenas nela Hood". buscando o lucro capitalista para gerar recursos filantró-
seria cair na armadilha do "melhorísmo". minorando a perversi- picos.
dade noliberal. As esquerdas. mais do que a crítica ao neoliberalismo. preci-
Aspectos econômicos. O dado central é o modo de produção. sam urgentemente superar a "síndrome da mulher de Ló", parar
Reafirmamos a condenação do escravismo. da servidão e do capi- de olhar para trás. recuperar a esperança e começar a reorganizar
talismo como sistemas demoníacos. Reafirmamos o caráter imo- o mundo do trabalho.
ral da compra e venda do trabalho como mercadoria. Reafirma- Como escrevia recentemente um magistrado pernambucano.
mos que só cessará de haver desemprego quando não houver "Cremos que o passo seguinte em direção a uma sociedade com
necessidade de emprego. Reafirmamos o ideal socialista. menos exploradores e explorados. uma verdadeira sociedade pós-
Para tanto. é importante a revalorização dos chamados "socia- capitalista na acepção da palavra. dinâmica e solidária. só será
listas utópicos". o reestudo dos socialismos religiosos (cristãos. dado com a abolição definitiva do trabalho assalariado".
judaicos e íslâmícos) e o aproveitamento dos aspectos válidos do
marxismo.
Neoliberalismo e esquerda cristã
Partimos da constatação de que o atual estágio do capitalismo.
além dos opressores e oprimidos. inclui os privilegiados e os ex- A onda neoliberal já começa a arrefecer. Diante dos seus trági-
cluídos. e de que é ínadíável a compreensão do papel histórico cos resultados. já se fala. na América Latina. em um neoliberalismo
das classes médias. social e. na Europa. em um pós-neoliberalismo. repensando o
Poderemos avançar dentro do capitalismo para írnplodí-lo papel do Estado e as compensações sociais. A dialética da surpre-
amanhã? Creio que sim. pelo fortalecimento das empresas que sa se expressa no fenômeno das correntes fundamentalistas. que. 11'
superem a mais-valia. Assim. reconhecemos: a) a importância das fruto do neolíberalísmo. se insurgem contra ele. Serão nossos
empresas estatais estratégicas. desde que democratizadas e sob aliados táticos? É mais um dilema que temos de resolver.
controle e destinação social: b) a importância dos artífices. artesãos Cremos que a esquerda subsistirá porque as situações de pri-
e profissionais liberais como trabalhadores autônomos; c) a im- vação e opressão subsistem. assim como a capacidade humana
portância das empresas familiares: d) a importância das coopera- para se (in)conformar e buscar ideais generosos. vencendo a
tivas de produção. comercialização e serviço. tentação da acomodação. do fatalismo e da cooptação.
Mais do que lutar contra os monopólios e oligopólios. cremos Cremos que a esquerda saberá aprender com a história.
que o futuro do socialismo passa. prioritariamente: a) pela am- saberá resistir e pagar um preço. tendo a competência para (re)criar
pliação das empresas públicas não estatais. sob controle social e apontar para o futuro.
direto de entidades e associações; b) pela ampliação das empre- A esquerda cristã. detentora de uma mística. de fé e de valores.
sas autogestionárias. de propriedade dos próprios trabalhadores. terá um papel relevante. forjando novas gerações revolucionárias
cujas experiências entre nós têm sido de êxito. de santos rebeldes. uma geração de entusiastas e visionários.
Fala-se. por exemplo. que o MST poderá acabar com a figura A resistência ao neoliberalismo e sua superação são a tarefa
do atravessador. criando um sistema direto de comercialização. central para os cristãos progressistas desta geração.

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16.

Civilização
em transição

e repente o muro (de Berl írn) desabou, encerrando a


O modernidade iniciada com a queda de outro muro (da
Bastílha). Descobriu-se que o ser humano não era tão bom assim
(versus antropologia de Rousseau): que a história não caminhava
nem de forma linear e ascendente (Comte), nem de forma
determinística (Marx): a razão não era tudo no ser humano, nem
a ciência era a única e perfeita forma de conhecimento. E, o que
é pior, que as utopias globais estavam distantes de suas utopias,
e nem globais eram.
Essas coisas dão nós na cabeça das pessoas. Ainda por cima,
esse negócio de fim de século e fim de milênio lembra fim de
época ou "fim de mundo", e o mistério do tempo.
O economicismo dos dois lados vai-se esgotando e os seres 1·('
humanos se descobrem como além-cerebrais. A fossa dos ídealís- , I

tas é grande e o triunfalismo dos reacionários vive efêmera


euforia. E a moçada vive a (des)esperança, caindo no consumismo,

119
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o MUNDO

no ímedíatísmo. no hedonismo, sem bandeiras ou causas para as famosas "maldições hereditárias". Avô picareta, avó idólatra (lato
viver ou morrer. O passado se foi e o futuro ainda não chegou. sensu)- não dá outra: neto na pior. É preciso conhecer os pecados
Vive-se o ocaso da mcdernídade e o parto doloroso da pós- dos velhos, líbertá-los. para que seus descendentes prosperem.
modemídade. Nesta conjuntura, os cristãos poderão ser parteíros Nada de sentimento de solidariedade ou de compromisso social.
ou coveiros. As teologias da crise emergem e falam para este tem- Opção pelos pobres? VadeRetrai Heresia pura.
po de escassas certezas e inúmeras interrogações. Preparando o terreno para esse individualismo, tivemos, há
poucos anos, a disseminação da teoria de que "crente não peca"
Teologia da prosperidade ("não-pequismo"). No mesmo contexto, temos a teoria da "bata-
lha espiritual", em que a obra vícáría de Cristo é reduzida, fican-
A teologia da prosperidade é a versão religiosa do
do nas mãos dos cristãos a tarefa de "batalhar" contra as hostes
neoliberalismo. O capitalismo é o pano de fundo, tomado por
angelícaís da maldade, até "amarrá-Ias". Assim, tudo é explicado
sentado, nesse novo determínísmo e escatologia (o "fim da histó-
pela demonização. Há uma fuga da história.
ria", do Fukuyama). O índívídualíísmo) no lugar do coletivo. No
A teologia da prosperidade é uma teologia de resultados para
fundo, é um neodarwinismo social: que sobrevivam os mais ap-
cristãos ricos e cristãos pobres. Os ricos se sentem "abençoados";
tos, os mais fortes, os mais sabidos, os mais "vivos". É isso - no os pobres buscam a "bênção" para si e seus familiares. Nada de
meio do "mercado livre" - que gera progresso. Quem sobrar, luta de classes ou mobílízação coletiva. A palavra é a mobilidade
azar! Sobrou. ascendente para os "eleitos".
Talvez as consciências não suportem tão duro realismo. É pre- O capitalismo adquire uma respeitabilidade que não tem e
ciso legitimar o capitalismo em seu "reavívamento". Não há me- não merece. Os cristãos ricos são anestesíados e os cristãos
lhor legitimação que a chancela do sagrado. pobres têm a "cabeça feita como ricos a caminho ..."
Se a desigualdade e a exploração são da natureza das coisas, e Há uma peculiar releitura seletiva da Bíblia. Enquanto as igre-
a "lei de Gerson" é de valor universal. e para onde vão os cris- jas dos pobres ungem carteiras profissionais de desempregados,
tãos? Ahl Os cristãos são predestinados para a riqueza, os bens as igrejas dos ricos pregam a "paz interior".
materiais, a felíddade. a saúde, já, aqui e agora. Esse negócio de Igrejas neopentecostais fazem da prosperidade uma doutrina
alienação religiosa, para o além, para o outro mundo, já era. Abai- eclesiástica. Ainda mais, a vida espiritual é uma transação finan-
xo o ascetismo! A cruz foi para Cristo; para nós, só as "bênçãos". ceira com o céu: quanto maior a oferta, maior a bênção. As mes-
Somos "filhos do Rei". Se vamos mesmo para o céu, por que já mas igrejas, de modo original. desestimulam o trabalho assalari-
não antecipamos um pouco nesta vida? ado e estimulam os seus membros à criação de microempresas
E os pobres? Ahl Esses sempre teremos conosco. São os "per- como canal para a prosperidade. Lembrei-me de um bispo de uma
didos". São os preguiçosos, os viciados, os idólatras. Se vão mes- igreja neopentecostal do Sudeste, que me dava uma carona em
mo para o inferno, por que não ensaiar um pouco por aqui? um luxuoso carro do ano, proclamando orgulhoso: "Eu ensino a
E se os cristãos não ficarem ricos? Isso não pode ser. Falta de prosperidade e vivo a prosperidade".
fé. Não estão se apropriando da bênção, ou possuem "pecados A verdade é que a teologia da prosperidade tem funcionado
ocultos". Urge confessá-los. todos. Uma vez confessados, é tiro e melhor na Calífórnía do que no Piauí. No Congresso Lausanne lI,
queda, o cristão passa a conhecer a prosperidade, mesmo sendo em Manila (Filipinas), Luiz Palau, evangelista argentino natu-
professor. Confessaram, confessaram e não prosperaram. Como ralizado norte-americano, pregava, para êxtase dos irmãos do
entender? O que fazer? Simples: a culpa é dos antepassados. São Primeiro Mundo: "O Terceiro Mundo é pobre porque é idólatra".

120 121
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o MUNDO

Em São Paulo, capital. dois nordestinos de classe média baixa a idéia de um "destino manifesto" entre nós: o Brasilsótem jeito
sentenciavam: "A culpa para a pobreza do Nordeste é a devoção com os crentes no poder.
idólatra ao padre Cícero do [uazeíro". Ao que contestei: "E a cul- Há uma visão sectária, com uma auto-imagem de superiorida-
pa para a riqueza de São Paulo é a idolatria de Aparecida?" de moral e de iluminação do céu para o correto gerirda coisa
Outro princípio dos ptosperistss é a chamada "confissão po- pública, Na verdade, há uma fome de poder, há uma tentação
sitiva", uma espécie de versão mágica do "poder do pensamento constantiniana. A ausência de reconhecimento histórico e a
positivo", algo semelhante ao que se encontra no Seicho-no-Iê: a ídealízação do Reino de Israel concorrem para opçõesautocráti-
pessoa deve pensar positivamente sobre as coisas, declarando cas, cujo primeiro teste foi o apoio às ditaduras militares latino-
solenemente esse pensamento, e ele aparecerá. É uma forma cristã americanas nos anos de 1960 e 1970. A partir dos
de liberar "energias positivas" e combater o "baixo astral". neofundamentalistas, tanto históricos quanto pentecostais, rom-
No campo da saúde, ensinam que o cristão deve ser são, que a pe-se com o compromisso de defesa da democracia daspriweiras
doença é obra satânica. Quanto mais consagrado ou santificado gerações de evangélicos brasileiros.
ele for, mais saudável será. Um cristão normal não deve morrer O maníqueísmo mental leva à polarização: o "bem"(nós) con-
tra o "mal" (os outros). sem lugar para o pluralismo. O mal não é
antes dos 70 anos, e os consagrados, nunca antes dos 80.
para se conviver com ele, mas para se combater e, se possível.
O lema teológico é: "Vida longa e próspera". Não deixa de ser
destruir. Ausente o conceito de adversários, fica o deinimigo.
uma proposta simpática de religião.
Apesar da profusão de livros, fitas e conferências nos últimos
Misticismo e fundamentalismo
anos por todo o país, o surpreendentemente positivo tem sido a
reação de amplos círculos evangélicos - inclusive pentecostaís Diante da crise de algo estabelecido - a modernidade ~ e da
- à teologia da prosperidade. Em relação à "batalha espiritual" e insegurança gerada pelo ruir de velhas verdades e certezas, a ten-
à "confissão positiva", contudo, a reação tem sido menor. dência natural é uma volta ao passado, no caso, um retorno ao
pré-moderno. Velhos esqueletos, há muito dados como mortos e
Reconstrucionismo esquecidos no armário, estão a reviver e a assombrar: o racismo,
o regionalismo, o nacionalismo xenófobo, o Iamílísmo etc. No
O Reconstrucionismo é a face política da teologia da prosperi- campo especificamente religioso, presencia-se um revigoraJJ1ento
dade. É expressão da teologia do domínio: Deus não fez seu povo do misticismo e do fundamentalismo entre íslâmicos, judeus,
para ser "cauda", mas para ser "cabeça" do mundo. Os cristãos híndus. budistas e cristãos.
são predestinados a ocupar os postos de mando da Terra: presi- O misticismo forma a moldura da "batalha espiritual", que
dência, ministérios, comandos militares, chefias de repartição, serve de pano de fundo para a forma de fazer política da teologia
legíslatívo. judiciário etc. Aos "perdidos", cabe impor obediência da prosperidade. É ele, também, que leva os cristãos conservado-
e evitar que façam males maiores, a si mesmos, a nós e ao con- res a eleger o movimento da Nova Era como novo inimigo, que
junto da população. substitui o comunismo, como pólo necessário para uma visão
O reconstrucionismo, também chamado de restauracionismo, reducionista e maniqueísta das coisas. À Nova Era se tem atribuído,
é a defesa da teocracia para os nossos tempos. No Brasil. desde a paranoícarnente. uma conspiração mundial. que incluiria tudo
adoção de candidaturas "oficiais" ou oficiosas de evangélicos para aquilo com que a cultura fundamentalista não concorda: o Rotary
a eleição da Assembléia Constitucional. em 1986, vem crescendo Club. a maçonaria, a UNESCO, os ecologistas, o feminismo etc.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO
o MUNDO

o fundamentalismo religioso procura atacar uma das mais Se as utopias globais fracassaram. se os políticos são demagogos.
caras conquistas da modernídade. o Estado nacionallaico e secu-
se o Estado não responde às necessidades. se as forças pro-
lar. Negam-se a autonomia do político e a igualdade de todos pe-
gressistas são débeis e as conservadoras. fortes. esqueçamos
rante a lei. Volta-se a uma concepção teocrática. pretende-se uma
as soluções coletivas. as mobilizações de grupos ou categorias.
tutela clerical sobre o Estado outra vez confessional e a desigual-
Literalmente. "salve-se quem puder".
dade perante a lei. privilegiando-se os seguidores da religião" cor-
É o filho maconheiro. o marido alcoólatra. a vizinha invejosa.
reta". no caso a própria. e o uso do braço secular para limitar.
o salário curto ou inexistente. Os ouvidos ficam surdos ao apelo
enquadrar ou destruir os infiéis.
da racionalidade: "Eu quero a solução para o meu problema. Se
A teologia do domínio. o reconstrucionismo. se situa nesse
os outros quiserem resolver os deles. é problema deles; que
projeto de volta à pré-modernídade. com uma visão estática. imu-
façam como eu." Em suma. os velhos princípios da Reforma -
tável da história. dos sistemas e das instituições sociais. em que
fé e confessionalidade - foram para a Cucuia. A palavra agora é:
a criação. a reforma e a mudança são tídas como sacrilégio.
sensações e resultados. '
A ressacralização (ou reencantamento) do mundo está em
Não teriam as igrejas históricas pecado por ceticismo ou
marcha. talvez em boa hora. Há uma fome de transcendência e
excesso de racíonalídade, carentes de sentimentos. de emoções.
de certezas. Combatê-Ia. além de infrutífero. apenas concorre para
como "religião do coração"? Estudos teológicos dogmáticos e abs-
a promoção de respostas extremadas e doentias.
tratos não respondiam às carências emocionais e econômicas dos
fiéis. Há resultado e resultado. A resposta a uma religião de resul-
Compensando frustrações
tados alienantes não seria uma religião de não-resultados. mas
É claro que a teologia da prosperidade e o reconstrucionismo uma religião de resultados conscientizadores. Começa-se com o
passam à distância de idéias como doação. serviço. sacrifício. imediato e projeta-se para o medíato.
encarnação. Martírio. então. seria uma retumbante prova de fra-
casso. Inverte-se o princípio bíblico. quando o nosso destino não Religião e pós-modernidade
seria o de servir. mas o de servir-se. como privilegiados no mun-
Dentro de uma perspectiva díalétíca. pode-se tomar a pré-
do. São teólogos do egoísmo. em que o coração de pedra não se
modernidade como uma etapa histórica. tese valorizadora do
transformou em coração de carne. mas continua de pedra mes-
dogma. da autoridade. da hierarquia. do místico. enquanto que a
mo. Caim se tornou o grande herói não confessado de milhares
modernidade seria uma etapa antítese. valorizadora da razão. do
de cristãos: "Sou eu porventura guardador do meu irmão?"
secular e da autonomia criativa do humano.
(Gn4.9l. Proposta boa de vida religiosa seria a de Pedro no Monte
De certa forma. as controvérsias teológicas entre
da Transfiguração: acampamento permanente. enlevo espiritual
neofundamentalistas e liberais foram uma luta entre uma visão
e louvorzão sem fim.
pré-moderna e uma visão moderna do sagrado. Os
Mas é claro. também. que a teologia da prosperidade e o
neofundamentalistas desfrutam neste momento de um efêrnero
reconstrucionismo compensam frustrações: de minorias religio-
gosto de vitória. A teologia da prosperidade e o reconstrucionismo
sas discriminadas. de minorias sociais marginalizadas etc. Desde
são expressões do pré-moderno em roupagem adequada ao homem
a nova burguesia protestante ainda não reconhecida pelos pode-
ex-moderno.
res políticos os negros. as mulheres frustradas. até os desempre-
Como a história "somente se repete como farsa" e os ponteiros
gados etc., todos buscam resultados. de preferência. imediatos.
do tempo não rodam para trás. percebemos que tanto a tentativa

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125
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o MUNDO

dos neofundamentalistas quanto o ímobílísmo dos liberais de resultados apenas. Conflito que terá episódios dramáticos e
passam, ambos, a se constituir em anacronismos. Ambos se agudos, em virtude da natureza política e dos interesses econô-
aferram ao passado, o mais recente ou o mais remoto. Ambos micos envolvidos. Toda causa da unidade cristã, do movimento
não respondem aos novos tempos. ecumênico, vive a crise dessas novas linhas divisórias, que
A pós-modernídade. em doloroso processo de construção, passa tornam obsoletas as antigas divisões.
a ser um período histórico de síntese, em que os traços materiais O lamentável é que cada um dos grupos tem uma das lícitas
da modernidade (tecnología) são mantidos, mas os culturais ênfases da proposta cristã, mas, ao se esquecerem das demais ou
imateriais (valores, sistemas) são questionados e substituídos. A ao menosprezarem-nas, distorcem e empobrecem o cristianismo.
razão não é negada, mas é reconhecida como mera parcela de um Há um desafio teológico no sentido da compreensão global e
ser humano maior, em sua constituição, necessidades e expres- na construção de pontes possíveis entre essas propostas, o que
sões: espiritual. lúdíco, erótico etc. A ciência ocidental não é re- inclui. até mesmo, a corajosa denúncia profética das dístorções,
jeitada, antes tída como insuficiente. Abre-se uma perspectiva particularmente aqueles que atentem contra a sanidade e a ética.
holística. O hospital pós-moderno apelará para a alopatia, a Será esta primeira geração de teólogos pós-modernos capaz
homeopatía. a psicanálise, as ervas e as rezas. de elaborar uma nova síntese?
\, . Em termos de cenários possíveis para o futuro, ou teremos a Por algum tempo, temos afirmado que a utopia brasileira se
primeira civilização pluralista da história ou poderemos cair em dará quando pudermos fazer convergir historicamente a torcida
uma "nova Idade Média". Para tanto, precisaremos de uma teolo- do Flamengo, os sambistas da Mangueira, os militantes da CUT e
... gia, de uma pastoral e de uma práxís capazes de se recíclar. se os fiéis da Assembléia de Deus, o que hoje incluiria também os
abrir e concorrer para a construção de uma nova etapa do cristia- militantes do MST, os eleitores do PT e os fiéis da Igreja Univer-
nismo. sal do Reino de Deus.
Um cristianismo pós-moderno deverá ser, ao mesmo tempo, A virtude da tarefa teológica consiste exatamente nisto: ela
uma religião de salvação, uma religião de libertação e uma reli- nunca é monótona, notadamente em tempos de transição.
gião de resultados, em sua abrangência e diversidade.
A busca da sanidade, da integralidade, da atualidade e da rele-
vância da fé cristã passa por uma aceitação do fiel como pessoa,
com legítimas necessidades e aspirações individuais. Somente
com essa aceitação (e nunca com a sua negação) se poderá desen-
volver e promover essa pessoa com a confessíonalídade. a
aculturação e a práxís libertadora que a fé requer. Somente a com-
preensão da individualidade permitirá o combate ao individua-
lismo. Somente a valorização da mística permitirá o combate ao
misticismo. Somente a aceitação da cura divina permitirá o com-
bate ao curandeirismo. Somente a crença na ação demoníaca per-
mitirá o combate ao demonismo.
Cremos que, por algum tempo, teremos uma inevitável
separação e um conflito entre os proponentes de uma religião

126 127
I II

17.

Construindo a era
pós-secular
\.

D o ponto de vista dos ciclos históricos, o século XX já terminou.


Além da angústia sempre presenciada nos fins de século e
fins de milênio, estão ruindo os pilares da civilização
contemporânea no Ocidente: a) a crise da concepção de homem
- naturalmente bom, conforme ensinava Rousseau. b) a crise
da concepção da história - linearmente sempre ascendente,
conforme ensinava Corn te . c) a crise da concepção do
conhecimento, de possibilidades ilimitadas pelo método
científico; d) a crise das utopias. notadamente do marxismo-
leninismo. Por esse conjunto de propostas, "um homem bom",
dotado de um conhecimento ilimitado, construiria uma história
ascendente em direção a uma idade de ouro. Tudo isso falhou.
Foi um tempo de "certezas" reforçadas pelo maniqueísmo ine-
rente à Guerra Fria Cmundo livre" versus "comunistas"), com
cada um se achando o certo, e vendo, no outro lado, o erro. Como
compensação para a insegurança diante do que se foi e do que

129
A IGREJA. O PAís E O MUNDO o MUNDO

ainda não chegou (transição histórica), presenciamos o ressurgimento o sistema capitalista; para destruir todo pensamento fundado na
do tradicional e do primitivo, como já mencionamos: racismo, esperança e na solidariedade; para matar todo o pensamento al-
nacionalismo, fundamentalismo, misticismo. Tomamos como po- ternativo, que permita pensar em um futuro diferente do siste-
sitivo uma nova abertura ao religioso, ao sagrado, ao místico, ao ma atual dominante, porque uma coisa é a crise do marxismo, e
intuitivo, ao afetivo, uma nova valorização da teologia e da filoso- outra coisa é a manipulação ideológica que faz o capitalismo des-
fia, uma abertura aos estudos ínterdíscíplínares. à diversidade sa crise".
de teorias e métodos e às culturas não-ocidentais. Que fazer diante do dilema: geração shopping centerversus
O materialismo está em baixa. A fé é legitimada. Há uma arrastões versus galeras?
reviravolta na cabeça do mundo.
O muro de Berlim caiu, mas novos muros estão em constru- Os cristãos respondem
ção: a) o muro que separa os países ricos dos países pobres, com
as dificuldades para a migração e com as agressões xenófobas. A Diante das crises de civilização, os cristãos são tentados a:
riqueza acumulada pelos séculos de colonialismo e a) dar as respostas certas com anos de atraso; b) isolar-se, voltar-
neocolonialismo não é para ser dividida pelos que concentram se para dentro, encapsulando-se no ativismo religioso; c) cair na
mais de 80% do comércio mundial: b) o muro que separa as rotina da vida familiar e profíssíonal Cos cuidados desta vida");
" regiões ricas das regiões pobres de um mesmo país (separatismo,
preconceito contra nordestinos ou sícílíanos). c) o muro que se-
d) entrar em crise de fé, por meio de "fugas pesadas" (álcool.
drogas) ou "fugas leves" (adesão ao Sistema); e) exacerbar o
para as classes ricas das massas marginalizadas (apartheidsocial. escatologismo e o catastrofismo (Nova Era no lugar dos comunis-
.'
condomínios fechados, clubes privés, igrejas monoclassistas). tas); f) tentar repetir experiências bem-sucedidas de outros luga-
A nova ordem mundial se caracteriza por três potências eco- res e épocas (volta aos "puritanos", por exemplo).
nômicas e uma só potência militar (os Estados Unidos), que pas- Diante dos novos "muros", encontramos entre os cristãos três
sa a funcionar como política internacional. até mesmo (por deci- situações: a) os que estão dentro dos muros, e que oram: "Obriga-
são de sua Suprema Corte) violando a soberania dos demais paí- do, Senhor, pela bênção de estar do lado de dentro"; b) os que
ses na captura de acusados. O ex-Terceíro Mundo sai da depen- estão fora do muro, mas são conservadores, e que oram: "Senhor,
dência para pior: se torna prescindível. De nós se querem apenas queremos passar para dentro, dá-nos a bênção; somos filhos do
os recursos naturais para o turismo, a mão-de-obra barata e al- Rei": c) os que estão fora do muro, e são progressistas, e oram:
gum mercado restrito de nossas elites. A "ajuda" que vier é para "Senhor. derruba os muros".
conter a pressão migratória e evitar comoções sociais das hordas Em termos de ferramentas teológicas, verificamos que a teo-
"bárbaras" (lembraí-vos de Roma). O capitalismo não tem mais logia da libertação foi afetada pela crise dos pilares da civilização
concorrentes para forçá-lo a mostrar uma "face humana". A e tem hoje a oportunidade de se revisar e amadurecer ou correr o
. desigualdade e a exploração voltam a ser "naturais". risco de radicalizar no sincretismo universalista e no
O novo momento procura ridicularizar como ultrapassados (e horizontalismo. A teologia liberal. com suas dúvidas, não respon-
até exterminar) os que insistem na denúncia e na pronúncia por de à fome de certezas nem, com seu racionalismo, a fome místi-
um mundo solidário. Ideologicamente, nos adverte um pensa- ca. A teologia conservadora demonstra sinais de esclerose e este-
dor: "A crise do marxismo tem sido manipulada para reprimir rilidade, na mesmice repetitiva do seu separatismo e do seu
todo pensamento crítico e libertador, desde o oprimido e contra legalismo, do seu dogmatismo e denominacionalismo.

130 131
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Os jovens cristãos querem participar da tarefa de construir


um mundo novo, inspirados nos valores do reino, na obediência
ao mandato cultural. tornando o evangelho relevante à sua
geração.
A nossa fé não é abalada pela história, pois adoramos o Se- 18.
nhor e Redentor da história, que nos salva e nos vocaciona para
re-construir a história, com discernimento e coragem, com
discernimento e abertura, com coragem e esperança.
Os países pobres integrarão os seus parcos mercados, comba-
terão as desigualdades, construindo sociedades modestas, porém A espiritualidade na
dignas. Os impérios deste mundo - todos eles - passarão. No-
vas forças e atores sociais poderão emergir tangidos pela necessi- pós- modernidade
dade e pela fome do bem. Novas utopias serão elaboradas, com
bandeiras, causas e idéias pelas quais valha a pena viver e morrer.
Qual o papel dos cristãos brasileiros nesse processo de enge-
\
nharia histórica, de construção de mundo? Será a nossa igreja
uma escola de sadios estadistas?
É tempo de pararmos com nosso atívísmo. nossa sôfrega im-
portação de pacotes religiosos estrangeiros, nossas fantásticas
elaborações metafísicas. É tempo de lutarmos contra as tentações
do poder, da responsabilidade, da aceitação da corte de César ou
de Herodes. É tempo de clamarmos o presente para Deus, assu- A partir

período
do Ocidente,
últimos duzentos
o mundo contemporâneo viveu, nos
anos, sob o signo da modernidade.
da civilização foi marcado por fenômenos
Esse
como a
mindo o mundo que Ele amou e pelo qual deu a vida.
Se acordarmos e formos obedientes, seremos nós - e não os urbanização, a industrialização, a universalização da educação, a
novos místicos ou novos materialistas - que reconstruiremos a secularização da cultura, o pluralismo ideológico, o regime
civilização. Será isso possível? democrático, a abolição da escravatura, a emancipação feminina.
Um tempo que expressou seu ídeárío na Declaração Universal
dos Direitos do Homem e do Cidadão. Mas a modernidade
significou, também, racíonalísmo, individualismo, perda de fé
no transcendente e deslocação da fé para o próprio homem, a
ciência, a história e as utopias.
É claro que esses "tempos modernos" não foram um fenôme-
no universal. De país para país, de região para região, de classe
social para classe social, verificamos uma enorme dísparídade de
integração ou não integração a essa maneira de ser, de pensar e
de agir. Dos povos indígenas às comunidades rurais tradicionais,

132 133
"1
A IGREJA, O PAís E O MUNDO o MUNDO

aos assentamentos marginais das grandes metrópoles. O A pós-modernidade está chegando de forma confusa,
moderno não foi vivenciado por todos, de igual modo. mas desordenada, contraditória, gerando perplexidade, temor, inse-
foi a cosmovisão predominante, a ideologia hegemônica de gurança. O racismo, o misticismo, o fundamentalismo passam a
uma época. conviver com a tecnologia de ponta. Horóscopos são programa-
Os cristãos reagiram à modernídade de várias maneiras: dos em sofisticados computadores.
a) pela negação dos novos tempos e pela valorização do antigo: E os cristãos, como interagirão com os novíssimos tempos?
romantismo, integrismo, fundamentalismo, tanto nos círculos Os cristãos tradicionalistas continuarão isolados, relacionan-
protestantes quanto nos católicos romanos. O "correto" não era o do-se com os setores tradicionais da sociedade. Como portadores
moderno, mas "algum lugar no passado", como a Igreja Primitiva, de um cristianismo pré-moderno, formarão sua base e se comu-
a Idade Média, a Reforma do século XVI etc.: b) pela adesão aos nicarão com os segmentos igualmente pré-modernos dos seus
novos tempos e valorização do presente: as diversas correntes da respectivos países.
teologia liberal, crendo que a única maneira de comunicar o cris- Os cristãos modernos estarão no meio da mesma crise de
tianismo ao homem moderno seria se adequando à sua lingua- decadência por que passa o conjunto secular da mcdernídade.
gem e à sua maneira de pensar, o que resultou em uma com seus paradígmas sendo crescentemente questiDnados.
radícalízação da írnanêncía e uma desvalorização do dado revela- Resta saber se aquela terceira vertente de cristãos, os que
\
\ do, particularmente dos milagres: c) pela convivência crítica com se relacionavam criticamente com a mcdernídade. terão a ca-
os novos tempos, tentando se relacionar com ele de forma ma- pacidade de um novo relacionamento, ao mesmo tempo crítico e
I
dura e relevante, colaborando para a construção do seu lado posi- fecundo com a pós-modernídade.
,/
tivo e combatendo o seu lado negativo. Esta terceira posição ti- No futuro imediato, durante a transição de civJização, pre-
nha de se deparar não somente com o enfrentamento da cultura senciaremos a convivência forçada entre três conjuntos da popu-
secular, mas com o combate ou a incompreensão das outras duas lação, tanto no âmbito secular quanto no religioso: o pré-moder-
correntes cristãs. no, o moderno e o pós-moderno. No campo religioso, o pós-secu-
A questão central está em uma filosofia da história, quando lar se abre para o sagrado, para o transcendente e para o místico,
se crê que nunca existiu época perfeita ou época abandonada mas isso não significa um dírecíonamento ao cristianismo. Como
pela graça comum. a tendência fundamentalísta pode ser dada no marco do
islamismo, do hinduísmo ou do judaísmo, embora todos eles (as-
A pós-modernidade sim como os cristãos assemelhados) tenham em comum o
antiíntelectualismo, o monísrno filosófico e o sonho teocrático.
Agora estamos a vívencíar novas mudanças. A urbanização O pós-moderno não será construído pela negação ou pela des-
deteriora a qualidade de vida, e se busca o subúrbio ou as Cidades truição do moderno e um regresso à pré-modernídade. Isso será
de porte médio. A auto mação, a robótica e a informática levam a impossível. As conquistas tecnológicas da modernidade estão
uma segunda, ou terceira, revolução industrial. Fala-se de uma incorporadas ao patrimônio da humanidade. O debate se dará no
economia terceirízada. em uma civilização não do trabalho, mas campo das idéias e das instituições sociais, culturais, políticas e
do lazer. E, acima de tudo, podemos reafirmar que a crença no jurídicas. Quanto desse patrimônio cultural será ou não incorpora-
homem bom, na ciência infalível, na história ascendente e nas do pela civilização? Os cristãos pós-modernos deverão trabalhar
utopias realizáveis deterministicamente se esvaem. a partir dessa incorporação e não pela negação conservadora.

134 135
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Ninguém quer voltar à escravidão. ao absolutismo e à fogueira


das ínquísíções dos Estados confessionais.

Uma nova espiritual idade


O cristão não pode se situar no tempo sem uma
espiritualidade. que não pode ser confundida com misticismo
alienante. mas que é uma vivência iluminada pelo Espírito.
Essa espiritualidade madura deverá. necessariamente. cons- Apêndice
tar de: a) uma prática de adoração. que inclua a contemplação. a
meditação. a oração. a verticalidade do relacionamento Deus-ho-
mem e homem-Deus. nas esferas individual e comunitária. recu-
perando a própria tradição contemplativa da Igreja. O que não se
deve. porém. é reduzir a espiritualidade apenas à adoração. Isso
sempre redunda em misticismo alíenante: b) uma prática de re- RESPOSTAS HONESTAS
flexão. que inclua a aprendizagem e a compreensão do "sagrado
\ depósito". a apreensão do conjunto das Escrituras. da história da A PERGUNTAS HONESTAS
Igreja. da doutrina e da ética. que ultrapasse a mera memorização .
~
. o dogmatismo e denominacionalismo. Uma compreensão que
/
inclua o emprego do instrumental filosófico e científico. Refle- CONVERSÃO E CONViCÇÕES
xão apenas. sem adoração. resulta em árido academícísmo:
c) uma ação presença. mílitâncía. engajamento na construção do Como foi a sua conversão?
O estudo da Bíblia e da história da Igreja. o diálogo com evangélicos.
reino de Deus. por seus valores, em todas as áreas da vida, den-
o estudo em um dos seus colégios (XVde Novembro. presbíteríano, em
tro e fora da Igreja. por proclamação, serviço e denúncia. Adverti-
Garanhuns. PElo o impacto da pregação (Rev. Antônio Elías, Igreja
dos. também, de que a ação não acompanhada de adoração e de Presbiteriana do Brasil). me levaram à convicção da salvação unicamen-
reflexão se constitui em mero atívísmo. te pela graça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo. a uma decisão
A ação, iluminada pela adoração e pela reflexão. nos dará me- consciente (em 21 de abril de 1960). a um processo de conversão.
lhores condições para ver, julgar e agir. sem sacralizarmos siste- Por que o senhor decidiu deixar a Igreja Romana?
mas ou épocas, mas sendo sal' e luz, a partir de um eterno que Aos 18 anos decidi deixar a Igreja Romana (e as eventuais sessões
tenha sempre o frescor da atualidade. espíritas da família paterna) e me fílíar a uma igreja reformada. Por 12
À luz da história secular e da história da Igreja, estamos certos anos militei na Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB)e há 24 estou
na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB).onde hoje sou um minis-
de que alguns cristãos serão capazes de fazer essa travessia, ape-
tro ordenado.
sar dos tempos e apesar dos outros cristãos.
Não deixei a Igreja Romana sob pressão. emoção ou conflito. mas
por uma serena e profunda convicção interior. por questão de honesti-
dade para comigo mesmo e para com a própria igreja. Se já não cria em
nenhum dos dogmas peculiares do romanismo. como me apresentar
como romano?

136 137
A IGREJA, O PAís E O MUNDO ApÊNDICE

o senhor fala de uma tendência evangélica no Brasil, a que Sua postura de que para nos acercarmos do texto bíblico são
denominou "neopentecostal, erótica e de esquerda". O que é isso? necessárias certas mediações não é algo liberal, teologicamente
Em primeiro lugar pentecostsl tem que ver com o fato de existir falando? O senhor crê na inspiração da Bíblia?
hoje no Brasil uma crença consensual na contemporaneidade dos dons Os liberais ficariam muito surpresos se alguém dissesse que sou um
espirituais, mesmo nas igrejas que oficialmente não crêem nisso. En- liberal. Considero-me um evangélico conservador, no sentido de que
tretanto, há também rejeição das posições políticas alienadas ou con- sou um convertido e que confesso os credos históricos da Igreja. Creio
servadoras e de usos e costumes repressivos. Por isso, trata-se de um na autoridade das Escrituras, mas creio também que não há uma leitura
neopentecostalismo. Erótico não é o mesmo que erotismo, e sim algo neutra das Escrituras. Todos nós temos uma história de vida com condi-
em que o corpo e o prazer têm lugar. Assim, essa nova tendência inclui cionamento, posições, personalidades e leituras. Assim, de forma mais
pessoas que crêem num homem integral- intelecto, alma e corpo -, ou menos sistemática, expomo-nos a elementos de aproximação quan-
e que esse corpo tem de ser bem nutrido, fazer ginástica, "pegar" uma do lemos a Bíblia. Daí devemos reconhecer com humildade que todo
praia, jogar bola, embelezar-se, buscar o prazer estético da música, das discurso teológico é provisório. Certos fundamentalistas extremados já
artes e da valorização da sexualidade. Como dizia Lutero, o prazer foi estão abertos ao uso de algumas ferramentas como a história, a arqueo-
criado por Deus, mas o demônio foi tão inteligente ao ponto de conven- logia, a geografia e, às vezes, a lingüística. O que é novo talvez para os
cer que tudo que é desprazer é de Deus e tudo que é prazer é dele. conservadores é o uso das ferramentas das ciências humanas. A teolo-
E, finalmente. de esquerda, no sentido de um apoio a partidos e gia, até o século passado, usava praticamente a filosofia como discipli-
movimentos sociais, sindicatos etc., que defendam a justiça social, na auxiliar. Mas, se hoje dominamos ~utros elementos da revelação
natural oferecida por Deus para o conhecimento da verdade, por meio
\ combatam a desigualdade e façam críticas ao capitalismo. Ou seja,
uma esquerda democrática. Tanto pastores como leigos estão cons- das ciências sociais e humanas em geral, façamos uso desses elementos
~ truindo postura teológica e experiência de vida nas quaís estes três para melhor compreender o texto bíblico. Não se trata, pois, de uma
.''~i aspectos são fundamentais: a fé - conversão, ortodoxia e valorização contestação da Bíblia, mas de uma busca para conhecê-Ia mais.
do Espírito Santo -, a percepção da integralidade do ser humano e O que é conversão para o senhor?
a mílítâncta progressista.
Conversão para mim é central. É a aceitação de Jesus Cristo como
O Bispo Robinson se achegou à renovação espiritual, ou foi a Senhor e Salvador, resultando na inserção do convertido à igreja e no
renovação espiritual que se adaptou ao pastor Robinson? serviço responsável no mundo. Para mim, conversão é exatamente um
Eu confesso que o ministério de renovação espiritual trouxe uma ato de nascer de novo, ser regenerado, ter os pecados perdoados. En-
esperança de alento na sua época, principalmente na busca de uma fé tretanto, penso que a questão maior, hoje, é a do que acontece com
mais pessoal. mais viva, mais dinâmica. O que nós temos lamentado, o convertido depois de ele nascer de novo. Quais são geralmente as
nessa época, é que o movimento gerou muito fracionamento na Igreja, atitudes que a igreja cobra do neófíto. como atestado da sua conversão?
e um subproduto de facciosismo, de sectarismo, de legalismo. Confesso É a mudança de um tipo de roupa, é o corte do cabelo? Às vezes é
que creio na contemporaneidade dos dons espirituais, na necessidade um ascetismo pessoal como não beber ou não fumar ou a integração
de um ministério mais amplo com o Espírito Santo, e creio que esse é perfeita na igreja. Enfim, algo bem individualista.
um movimento da Igreja no mundo inteiro. No Brasil, ele precisa corri- Quais são os sinais da conversão na vida do rico?
gir certos desvios de rota: um seria esse separatismo e esse legalismo, e Eu fico pensando em Zaqueu. O que aconteceu quando ele se con-
o outro seria a alienação em relação à questão social. No momento que verteu? Ele devolveu a roubalheira toda com juros, movido pelo Espíri-
nós tivermos aliado a busca da unção espiritual com a unidade da Igreja to Santo. Há também o exemplo da Igreja Primitiva. Eles não tinham o
e o compromisso com os que sofrem, teremos atingido um avivamento seu como se seu fosse, mas havia um partilhar constante. Desses dois
genuíno. De modo que a minha postura é de abertura e de cooperação, exemplos nós podemos afirmar que a conversão atinge diretamente o
mas. uma postura crítica leal àqueles aspectos que nós consideramos bolso. Acho que devemos tentar converter os ricos a Cristo para que
danosos à própria obra do Senhor. também eles se convertam aos pobres e repensem todo o seu papel no

138 139
A IGREJA, O PAís E O MUNDO
ApÊNDICE

sistema capitalista. Eu não entendo como é que o sujeito se converte Temos duas perspectivas aí. Uma é a da ascensão da mulher pela via
e continua tão explorador como era antes, e ainda mais feliz porque sacerdotal. No fundo, a preocupação da ordenação da mulher significa
agora está salvo. Eu não tenho nenhuma intenção de perder minha vida que o ordenado é uma pessoa que tem statusreligioso. Eu tenho brinca-
concorrendo com os traficantes de tóxico, para ver quem distribui mais do muito dizendo que sou contra a ordenação das mulheres e a favor da
ópio entre o povo. Acho que a mensagem do Evangelho não pode levar desordenação dos homens. Quer dizer, preocupa-me que a discussão,
o rico a uma consciência tranqüila. por um lado, seja mais sociológica do que teológica, muito mais
Para o senhor, qual é a diferença entre evangelização e obra de machismo contra feminismo. Ora, não é muito bom construir doutrina
proselitismo? à base de sociologia. E, segundo, em vez de rediscutir a questão do mi-
A motivação do evangelismo é a de levar a pessoa a ter uma experi- nistério como carisma (dessa forma não há homem, mulher, nem gre-
ência com Jesus Cristo, enquanto que a motivação do proselitismo, em go, nem escravo). no fundo se mantém a visão sacerdotal, como se fos-
geral, é de aumento quantitativo em prol da denominação. Há pessoas se uma casta de religiosos, e que agora a mulher vai ascender em pé de
que são membros de igreja, que foram integradas por uma obra de igualdade com essa casta, sem discutir o valor dessa casta que é o cleri-
proselitismo e que não se converteram, como há também convertidos calismo. Então minha preocupação no momento é que, antes de discu-
verdadeiros que não se integraram na igreja. Penso que essa questão da tir a ordenação das mulheres, temos de discutir a questão do clericalis-
motivação (evangelística ou proselitista) deve ser muito bem analisada. mo. Quer dizer, a igualdade vem não para baixo, pela visão dos carismas
O que é que nos move? A expansão do reino ou da denominação? Eu, do povo de Deus, mas vem pela elevação delas também ao nível cleri-
pessoalmente, não tenho nenhuma preocupação proselitista. Meu in- cal. que é o nível que os homens impuseram ao longo da história. As-
teresse é que a pessoa conheça a Cristo. Se ela vai permanecer em tal ou sim, acho que a discussão deveria ser precedida pela busca da definição
"\ qual igreja, é uma questão que compete à atuação do Espírito na vida do que é o ministério religioso. Se o ministério é reconhecimento de
\ dela.
carísmas, de dons, talvez a via fosse muito mais essa idéia de uma
I
~.·I
pluralidade de dons e carismas na Igreja do que a idéia de ter uma casta
,/ Como é que o senhor vê o ecumenismo? O senhor é ecumênico? da qual as mulheres agora também são sócias.
Eu não gosto muito de usar esse termo, porque no Brasil ele adquí-
Como o senhor vê a missão da Igreja hoje?
riu um significado diferente do seu uso original, tornando-se até mes-
Sigo a linha da teologia holística, que entende a missão total da Igre-
mo pejorativo. Por ignorância histórica, a igreja evangélica no Brasil não
ja em cinco pontos principais: a) a proclamação do evangelho do reino,
sabe que quem iniciou o ecumenismo foi o movimento protestante
e isso implica refletir o que é reino; b) batismo e inserção do convertido
conservador. A Aliança Evangélica Britânica e a Aliança Evangélica Euro-
na igreja, implicando doutrinação e alimentação espiritual. Enten-
péia, criadas em meados do século XIX, foram os primeiros movimen-
demos igreja, aqui, como uma comunidade terapêutica, um espaço de
tos ecumênicos. A tdealízação das Conferências Míssíonárías, que gera-
reconstrução da pessoa e não como uma comunidade patogênica, aque-
ram o Conselho Mundial de Igrejas, foram propostas dos evangélicos la que produz neuróticos; c) suscítação no convertido de um espírito
conservadores, movidos por um profundo quebrantamento diante da amoroso. um desejo de servir; d) luta pela transformação das estrutu-
divisão da Igreja. Agora. o fato de que o Conselho Mundial de Igrejas ras políticas e sociais injustas; e) comprometimento com a defesa da
seja dirigido por grupos um pouco mais modernistas não deve levar- vida e da natureza.
nos a romper com o movimento, porque afinal a origem é nossa e tam-
bém porque a unidade da igreja cristã é algo bíblico e o denominacionalismo O homem desta época está em busca do espiritual. melhor dizendo.
é algo estranho às Sagradas Escrituras, é fruto do pecado. Eu acho que de Deus. Quais as possibilidades reais de encontrá-Io?
deve haver menos preconceito ao se tratar dessa questão na igreja brasi- Há um vazio em cada ser, uma "nostalgia do Éden perdido", uma
leira. Vocês podem ter certeza de que 90% das pessoas que combatem o busca de respostas às questões existenciais básicas, uma preocupação
ecumenismo nunca leram uma página escrita pelos ecumênicos. Mas, diante da morte, a necessidade de um projeto de vida. Deus estava em
dentro do movimento ecumêníco, sou contra qualquer relatívísmo, qual-' Cristo, o Jesus histórico de Nazaré, como verdadeiro Deus, mas, tam-
quer universalismo ou qualquer sincretismo. bém, como verdadeiro homem (o que nem sempre aprendemos), e Cristo
se manifesta por sua Igreja. O homem desta época poderá encontrar
O senhor é de uma igreja que já ordena mulheres. Qual a sua opinião Deus em uma igreja que siga o modelo do Jesus histórico, e não em um
sobre esse tema? clube religioso pequeno-burguês, reacionário, legalista e moralista.

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO APÊNDICE

A teologia holística propõe. então. unir a piedade ao compromisso choca com os princípios bíblicos. É assim que devemos nos aproximar
social? de todas as culturas. Nossa história evangélica - por preconceito e, ou,
Exatamente. Veja bem: quando um jovem cristão se inquieta e se ignorância - tende a associar toda expressão da cultura negra ou indí-
sente constrangido a comprometer-se com a sociedade (e eu creio que gena com paganismo ou satanismo, o que é uma tragédia, pois o preço
essa inquietação é fruto do Espírito). ele procura uma literatura no meio da conversão é a desaculturação.
evangélico que trate desses assuntos. Mas não encontra. porque o que O senhor escreveu um artigo propondo a evangelização de negros
existe no exterior não é traduzido no Brasil. devido a um boicote das por meio de "terreiros de Jesus", O que isso significa?
editoras evangélicas tradicionais e por razões até mesmo comerciais.
Então. onde é que ele vai encontrar literatura? Nos meios seculares ou A questão toda é a seguinte: como comunicar um evangelho sem a
nas tradições protestantes liberais. Ele procura apoio nos meios evan- roupagem anglo-saxã, ou seja, sem a bagagem cultural característica de
gélicos. mas o que recebe é um chute. Logicamente, ele vai integrar-se outras regiões? Os missionários. em todas as épocas. sempre carrega-
nos meios liberais, que além de fornecer-lhe literatura ainda lhe dão o ram, consciente ou inconscientemente, essas manifestações culturais
apoio necessário. Infelizmente, o único espaço que se construiu no Bra- em sua bagagem.
sil para uma visão do compromisso histórico foi pela tradição liberal. Assim. pois. junto com a Bíblia. eles trazem paletó. gravata. órgão,
bem mais tolerante, e porque os evangélicos geralmente alinham-se à piano etc. Toda vez que há esse fenômeno. o resultado é a cristianização
direita. Então a teologia holística (teologia da missão integral da Igreja), acompanhada de uma desaculturação. ou seja. o indivíduo se converte
hoje, propõe fornecer uma boa literatura sobre o assunto. dando, tam- ao evangelho e à cultura do missionário. Quando há uma certa consci-
bém. o apoio espiritual necessário, ou seja, unir a piedade com o com- ência por parte do missionário, esse fenômeno pode ser minimizado. A
\\ promisso. grande contribuição da antropologia cultural para a míssíología. hoje, é
justamente chamar a atenção para esse problema. No caso brasileiro. a
I Quais os desafios da igreja evangélica no Brasil? cultura negra foi violentada, primeiramente pela cultura católica com o
'~·I
.I Podemos listar vários: o desafio da unidade, o desafio da imperialismo português e depois pelos próprios missionários protes-
contextualização cultural. o desafio da missão integral. o desafio do tantes. Hoje, no Brasil. não existe uma experiência evangélica negra
engajamento social. o desafio da atualização, tornando o evangelho re- propriamente dita. O que há são pessoas de pele preta sem nenhuma
levante para esta geração, o desafio da democratização interna (chega convivência com sua cultura original. ou seja. negros que usam terno e
de cacíquísmo), o desafio de uma construção ética abrangente e o desa- gravata, cantam Rude cruz etc. Isso continua a ser incentivado hoje,
fio da sanidade (igreja como comunidade terapêutica), já que estamos porque os brancos são constantemente realimentados pelo contato com
enchendo os hospitais psiquiátricos e os consultórios dos psicólogos sua fontes (Europa e América do Norte). por meio de intercâmbio ecle-
com nossos fiéis cheios de sentimento de culpa e alucinações, em parte siástico, enquanto que o negro perdeu todo o seu contato com a África.
causados pela sexualidade reprimida e por um sem-número de Pois bem, qual é então a proposta dos "terreiros de Jesus"? Quando
proibições e tabus opressores. estive nos E.U.A., conheci o movimento da Sinagoga Messíâníca, forma-
da por cristãos judeus. que mantiveram vários elementos do judaísmo
no culto cristão. Justamente aqueles símbolos e aquelas tradições não
conflítantes com o cristianismo. Fazendo a transposição dessa experi-
CULTURA, USOS E COSTUMES
ência para o Brasil. teríamos aqui os "terreiros de Jesus". Nós, evangéli-
cos, perdemos a raça negra, e ela hoje está contra-atacando, por meio
Quais atitudes ou posturas o cristão deve adotar nas questões do dos cultos afro-brasileiros que sobreviveram, e a cada dia ganham mais
negro e do índio? adeptos. Daí que a proposta dos "terreiros de Jesus" é a de um ambien-
É nosso dever combater a mentira, até mesmo a de que não há pre- te negro, marcado pela cultura negra, com seus ritmos, comidas, tradi-
conceito e discriminação no Brasil. O negro deve assumir a sua negritude ções familiares, instrumentos, com sua espontaneidade, mas em que o
e o índio o seu indigenato. Temos de ouvir o que os setores conscientes núcleo da fé seria Jesus Cristo e a Palavra. Em suma, seria um "terreiro"
e articulados dessas comunidades acham, senão cairemos em uma onde os negros poderiam tocar seus atabaques e dançar para Jesus. Nós
atitude paternalista. Devemos respeitar a cultura em tudo o que não se nos assustamos com uma proposta desse tipo porque desconhecemos

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO APÊNDICE

Nós percebemos que as igrejas históricas se fecharam no tradícíonalísmo tecnologia, as emoções e os sentimentos. O afeto será valorizado. O
por muitos anos. A lealdade à fé reformada foi confundida com a lealdade risco da igreja é que, no lugar dessa construção para a frente, nós esteja-
à forma traz ida pelos missionários: a sua maneira de adoração, de culto, de mos indo para trás, tentando agredir a razão, porque sempre tivemos
hinos, a sua teologia e uma certa ínflexíbílízação sobre a nova ênfase na medo dela durante a modernidade. A crise está no fato de nós, cristãos,
doutrina do Espírito Santo. Esse enrijecimento nos deixou um pouco à nunca termos digerido a modernidade.
margem do processo que depois explodiu em cultos mais dinâmicos, em-
bora esses cultos sejam fragílízados teologicamente. Eu creio que este é O Sr. diz que as igrejas desenvolvem, ao mesmo tempo, um papel
um momento de grande auto crítica para as igrejas históricas. Que nós pos- libertador e opressor. Que caminhos devem ser trilhados para a
samos ter humildade para aprender com os movimentos novos aquilo que reversão desse quadro?
podemos incorporar a essa herança. Mas também devemos ter serenidade Creio que o mundo protestante da América Latina foi muito
e lealdade à nossa história, para que, diante das ondas que vêm e que impactado nos últimos anos pelo fundamentalísmo. por uma atitude
acabam sempre passando, nós possamos contribuir com o acervo da teolo- muito sectária, muito moralista e uma atitude de barreira em relação à
gia histórica para amadurecer esses grupos novos que estão por aí. contribuição das ciências humanas. Fazemos, então, tanto uma pastoral
como uma dogmática que não incorporam o que a psicologia e a antro-
O enrijecimento das igrejas históricas tem que ver com o fato de o
pologia nos estão ensinando. Aí. nos falta o sal do amor na ministração
neopentecostalismo ter-se tornado a nova face do protestantismo
da verdade. Creio que, no momento, para voltarmos a impactar, temos
brasileiro nos últimos anos?
de ter a humildade de deixar o triunfalismo de que somos os bons e
Exatamente. O fenômeno pentecostal é muito complexo. Primeiro
começar a repensar o que fazer. Veja bem, chegamos ao final do século
\I
vieram as igrejas mais antigas, como a Assembléia de Deus. Depois hou-
XX com a comunidade protestante crescida quantitativamente, com mui-
ve uma renovação nos anos 60 e agora esses movimentos novos, como
tos recursos, mas nós precisamos de uma maior quantidade de pessoas
I a Igreja Universal do Reino de Deus, que conseguiram atingir um públi-
t, indo para as ciências humanas. O protestante foge das ciências huma-
,/ co que as igrejas históricas não atingiram. Fomos nos tornando denomi-
nas para a tecnologia, para a saúde, porque as ciências humanas levam
nação urbana e de classe média, sem um discurso voltado especialmen-
ao pensamento, ao questionamento. Temos de desenvolver uma elite
te para o povo muito carente. A pessoa que está desempregada, que
pensante no meio evangélico, não elite financeira, mas uma elite de
está enferma, que está com o filho drogado, que tem um marido violen-
compromisso e de disciplina intelectual. para que nós possamos cons-
to, está querendo uma palavra e orações naquela direção, e não somen-
truir teologias e pautas novas, e, obviamente, aprender a lidar com o
te um estudo teórico sobre os fundamentos da Reforma do século XVl.
tempo místico e não com o tempo ateu. Esta é uma transição que não
Então, a nós cabe um ministério que responda à angústia de um povo
sabemos quanto tempo durará. Estamos no meio dela e é importante
sofrido e marginalizado.
disseminar essa consciência da transição, para que não multipliquemos
E isso está, de alguma forma, relacionado com a crise de ativismo os núcleos de resistência de criatividade.
presente nas igrejas evangélicas de uma ~aneira geral?
Sim. O ativismo é uma fuga da missão no mundo. Somos chamados
para influenciar o mundo; e, como estamos fugindo, enchemos o nosso
SEXUALIDADE E SANIDADE
tempo com atividades internas na igreja. Isso cansa, estabiliza e não
impacta.
Como as igrejas evangélicas lidam com o tema da sexualidade?
Não se constata hoje o risco de um uso desequilibrado tanto da razão
Eu diria que, na grande maioria, o que temos é silêncio. A sexualida-
como da emoção?
de é um não-tema. Pode-se viver e morrer numa igreja evangélica por 70
Sim, corremos esse risco. Creio que a humanidade foi muito antí- anos e nunca ouvir um estudo sobre o assunto. A grande realidade:
racional no período denominado de pré-modernídade: foi racionalista ainda é um tema-tabu. A minoria que estuda, o faz, em geral, com dois
demais durante a modernídade. e deve chegar a um equilíbrio em que a defeitos: primeiro, não leva em conta a contribuição científica e, segun-
razão terá o seu lugar, na pós-modernidade. Estão aí a ciência, a do, 99% dos livros e palestras que estão por aí são de uma linha só, que

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ApÊNDICE
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

é a conservadora. A Igreja ainda não aprendeu a ouvir os diversos pon- estudantes da ABU, que reclamavam da ausência de literatura nessa
tos de vista que foram sendo construídos na teologia. Então, é um qua- área. Percebemos na ocasião que, por não haver outros livros, as pesso-
as tinham muitas dúvidas e, por isso, eram mais liberais. Depois houve
dro gerador de culpas e neuroses: aí estão os psicólogos e psiquiatras
uma obratraduzida pelo Jaime Kemp, do fundamentalismo. A grande
seculares para atestar isso. Esse tema representa a última fronteira da
constatação é que a geração leitora dos anos 90 é mais conservadora do
teologia e da pastoral. em que, lamentavelmente, seu desenvolvimento
que a dos anos 70. Foi exposta a uma linha só. E embora eu não diga em
vem sendo dificultado. Estamos avançando aos trancos e barrancos na
Libertação e sexualidade muita coisa além do que disse no primeiro
política e na sociedade. e essa é a última fronteira. Sentimos que a
livro, a reação foi muito maior. O que nós propúnhamos no livro: a)
reação que ela provoca é mais violenta do que a da própria questão
reabrir a discussão; b) mostrar que a posição conservadora, que é
política.
hegemônica, não é a única na história da igreja (daí o livro ser muito
O senhor mencionou a falta de saúde na igreja, quanto à sexualidade. mais baseado numa farta bibliografia, num compartilhar de outras posi-
Como se evidencia isso? ções). Isso para que a Igreja, se hoje é mais madura para discutir formas
Tenho três fontes. A primeira são amigos profissionais da área de de batismo, liturgia etc., tenha também maturidade para discussão so-
psiquiatria e psicologia, que brincam dizendo: "Gosto muito dos evan- bre sexualidade; c) fazer um estudo ínterdíscíplínar, usando antropolo-
gélicos, porque eles servem para me fornecer clientes". Algumas pes- gia, teologia e psicanálise. O livro tem sido reeditado e muito vendido,
quisas indicam que, embora o Brasil seja um país de minoria católica, o apesar das reações contrárias de instituições e lideranças. No entanto,
maior grupo de pessoas em tratamento psiquiátrico é formado por além de conversas, tenho recebido cartas e telefonemas de gente que
umbandistas. seguidos por evangélicos. A segunda fonte são profissio- tem sido muito abençoada com a sua leitura. É o que me estimula a
\ prosseguir. Na verdade, agora me preparo para entrar na terceira fase
\ nais evangélicos, psicólogos e psicanalistas, que me têm relatado o dra-
I
ma humano dessa gente. Por fim, vêm as minhas próprias observações, da polêmica: o livro sobre usos e costumes.

."1
já que viajo pelo Brasil. com trânsito entre os mais distintos grupos Que tipo de bênçãos a leitura do livro tem provocado?
I,
,I evangélicos. Encontro desde a luta para proibir educação física, por cau- As pessoas se sentiram enríquecídas. tiveram outra ótica, questio-
sa dos shorts, até a suspensão da comunhão aplicada a mulheres por naram certas coisas. É o caso, por exemplo, no meio pentecostal. dessa
andar de bicicleta (pode estimular a masturbação feminina). Nessa li- teoria do "apagamento erótico", defendida pela Valnice Milhomens, pela
nha surge uma série de "doutrinas", como: não pode namorar; só pode qual. ao se converter, o crente - solteiro ou viúvo - pede a Deus que
ler livro de sexualidade se for noivo; pedir a Deus, ao converter-se, que desligue a sua libido, para só ligá-Ia de novo quando se casar. Isso tem
apague sua libido. gerado muitas neuroses, e o livro mostra outra ótica. Há um alívio de
culpas, uma visão mais compreensiva das coisas. Vale citar este teste-
Seu livro Libertação e sexualíJaJe causou muitas reações ...
munho de um pastor: "Eu era radicalmente contrário ao divórcio. Que-
Quando terminei meu trabalho com a Aliança Bíblica Universitária ria varrer da minha igreja os divorciados e nunca mais abrir as portas
(ABU).depois de 10 anos, perguntei a meus amigos quais eram as três para eles. Hoje, meu braço direito é uma senhora divorciada, e o ex-
principais lacunas em que tínhamos de trabalhar. Queria fazer uma agen- marido dela, tesoureiro da igreja. São uns pilares. E mais: eu não teria
da de meu ministério pessoal para os próximos 10 anos. O pessoal res- essa abertura se não tivesse lido o livro." Há ainda a história de uma
pondeu: política, sexualidade e usos e costumes. Difícil atacar os três senhora católica, professora, que recebeu educação em colégio de frei-
de uma vez. Eu seria estraçalhado! Então foi o momento da abertura ras e de família tradicional. com bloqueios, medos, preconceitos, que a
política, anistia, "Diretas Já", essa coisa todínha. e eu senti que a priori- levaram à frigidez: de repente, o livro fez com que ela reconciliasse sua
dade histórica era a questão política. Aí saiu Cristianismo e política, teologia com sua sexualidade e, em conseqüência, se sentisse realizada.
hoje em sua terceira edição, revista, com atualização histórica e biblio- Depoimentos como esses me trazem compensações e ocasionais caras
gráfica, que saiu pela Temática. Assim, deflagrou-se todo um debate que feias de líderes evangélicos.
hoje está aí consolidado. Entramos, então, na segunda linha: a sexuali-
O senhor fala em "10 Teses para Reflexão". Quais são elas?
dade. Na verdade foi uma retomada. Eu tinha sido o primeiro autor
Primeira Tese: Todos os seres humanos foram criados por Deus como
evangélico brasileiro a escrever um livro sobre o tema. Lancei Uma
seres sexuados.
bênção chamada sexo em 1976 (hoje na 8° edição) por um desafio dos

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A IGREJA, O PAís E O MUNDO ApÊNDICE

Segunda Tese: Todos os seres humanos são destinados à realização estudioso no Terceiro Mundo. Meu pai foi vereador. Tenho tido famili-
plena da sua sexualidade. ares na política por gerações. Nascido após o Estado Novo, contemporâ-
Terceira Tese: A vívêncía da sexualidade é um fato histórico e cultu- neo do stalinismo e do macartismo, pertenço a uma geração que apren-
ral e, por isso. diverso e em constante processo de mudança. deu a amar a liberdade. Desde criança tenho me envolvido em movi-
Quarta Tese: Almejando a felicidade humana e considerando a mentos reivindicatórios (fiz minha primeira greve aos 12 anos e a se-
negatividade da presença do pecado em todos os setores. as Sagradas gunda. aos 14). Política era um assunto do dia-a-dia na casa dos meus
Escrituras, na linguagem e nos textos em que foram escritas, estabele- pais. Ocupei cargos de liderança no então forte movimento estudantil
cem normas restritivas ao comportamento sexual. secundarista, tanto em Alagoas como em Pernambuco. Integrei o
Quinta Tese: O matrimônio, união voluntária de afetos, aspirações Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da UFPE. Fui candidato a
e projetos. com ânimo de permanência. entre os que confessam Jesus deputado estadual. militante partidário engatado em campanhas eleito-
Cristo como Senhor, constitui, com todas as limitações, o paradigma rais e assessor de um dos prefeitos do Recife. Fiquei empolgado com a
máximo para a expressão da sexualidade. Os ritos, procedimentos e ciência política como aluno de Ciências Sociais na UNICAP e de Direito
documentos, apesar de importantes, não são o núcleo do casamento, e na UFPE. Fiz mestrado no Rio de Janeiro (IUPERJ),defendendo a tese
sua ausência não o descaracteriza. Alagoas - A guarda nacional e as origens do coronelismo. Tenho lecio-
Sexta Tese: Há uniões feitas por Deus, pelos próprios homens e pelo nado ciência política por 30 anos, em muitos aspectos em caráter pio-
demônio. Por melhores que sejam as intenções dos cônjuges, seus de- neiro. Coordenei o curso de mestrado em ciência política da UFPE por
feitos, patologias e fragilidades poderão resultar em fracasso matrimo- três anos, dirigi o Centro de Filosofia-e Ciências Humanas por quatro
nial. anos, fui candidato a vice-prefeito da cidade de Olinda, PE, e tive a hon-
Sétima Tese: Amplo consenso histórico da Igreja tem legitimado a ra de integrar a coordenação da campanha presidencial de Lula. no se-
exclusividade das uniões heteroeróticas. A reafírrnação do padrão tor religioso, de 89 a 94.
heteroerótico não pode significar preconceito, discriminação. agressão Tenho sentido uma grande responsabilidade de realizar um traba-
ou marginalização dos homossexuais. lho assim no Nordeste e no meio evangélico. As circunstâncias em que
Oitava Tese: Os estudos mais aprofundados e honestos da história, isso se deu demonstraram inequivocamente a vontade de Deus.
da antropologia e das Sagradas Escrituras têm diferenciado adultério de
Em sua opinião, a atuação política dos evangélicos tem sido
poligamia, e, como fizeram os reformadores do século XVI, pode-se
satisfatóría? Por quê?
questionar a sua convivência. não porém a sua licitude em certas cir-
Os evangélicos chegaram ao Brasil falando em progresso e democra-
cunstâncias históricas.
cia. Participaram da Abolição e da República. Ajudaram a organizar as
Nona Tese: Todos os valores cristãos são de igual importância, mas
nem sempre se podem vivenciar todos ao mesmo tempo, exercitando- ligas camponesas e os sindicatos rurais, refletiram sobre a revolução
se opções possíveis. brasileira. Com o tempo, a influência do fundamentalismo e a alienação
Décima Tese: Na construção e reconstrução dos costumes - dinâ- de uma escatologia que crê que os piores acontecimentos do mundo
mica e plural- devem os cristãos optar, preferencialmente, por ações marcam para cada vez mais perto a volta de Cristo - e que, por assim
conjuntas e transparentes, sendo a clandestinidade exceção compreen- pensar, descompromete-se de restaurar este mundo - prepararam o
dida em agudos momentos de transíção e diante da repressão e do des- caminho para a cooptação do protestantismo pelas ditaduras militares
respeito à privacidade. deste continente. Irmãos denunciaram irmãos e perseguiram irmãos.
Passou-se, conforme dito atrás, a ensinar que "crente não se mete em
política". Manipulou-se Romanos 13 em favor da ARENA (partido da
POLíTICA, TEOLOGIA E IDEOLOGIA
ditadura). Toda uma geração foi criada na ignorância. A história política
da Igreja foi para o lixo.
Que caminhos o levaram a optar pela ciência política? Quando hoje um evangélico se torna um militante político (estu-
Tenho sido um militante primeiro e um cientista depois. A Palavra, dantil, sindical, partidário etc.), o faz com a cara e a coragem, sem apoio
a ciência e a necessidade do povo me impeliram também à prática e sem formação. Os que dão certo é pela graça de Deus. A Igreja não
política. e não apenas à pesquisa pura. Creio que esse é o caminho do tem autoridade moral para crítícá-los. Muitos evangélicos estão par-

150 151
A IGREJA, O PAís E O MUNDO ApÊNDICE

ticipando da política para tirar vantagem para si e para a igreja, e não fazer para aproximar as leis dos homens da lei de Deus? O que fazer
pelo ideal do servir. Há, porém, sinais encorajadores de que a coisa está para tornar visíveis sinais do reino entre nós, aqui e agora? Sinais que
mudando, a partir da juventude, apesar da oposição daqueles que que- são "justiça, paz e alegria no Espírito Santo"? Alguns exemplos: o estu-
rem acrescentar o direitismo como "sinal" da fé cristã ... do do plano de Deus para Israel como modelo alternativo. O estudo do
Ano Sabático e do Ano do Jubileu como proposta divina contra a con-
Muitos evangélicos têm sido eleitos para os mais diversos cargos
centração de propriedade e de renda. Os ensinos claros dos profetas. A
públicos. Alguma coisa mudou com eles no poder?
ética social do Sermão do Monte. A independência dos apóstolos diante
Nós tivemos, graças a Deus, um aumento da preocupação política.
dos poderes políticos relatada em Atos. Os ensinos de Tiago. Etc.
Muitas igrejas que tinham barreiras políticas, começaram a participar;
Ao lermos a Bíblia sempre temos de distinguir o compromisso do
houve um maior número de candidatos e um número maior de eleitos.
autor com o ideal do reino de Deus, as visões de mundo a que estavam
Se bem que, em questão de qualidade, eu diria que muitos evangélicos
condicionados e as soluções pastorais possíveis naquela conjuntura
competentes deixaram de se candidatar, por comodismo ou por (Paulo e a escravidão, por exemplo), bem como distinguir os textos
preconceitos; e que alguns dos candidatos, deixam a desejar quanto aos descritivos (aquilo que era uma concessão) dos textos normativos,
aspectos acadêmico e ético. Mas eu acrescentaria que isso é apenas prescritivos. Ao lado das Escrituras, devemos aprender com a experiên-
parte de uma caminhada, já que estivemos afastados durante muito cia histórica da Igreja. Hoje, lamentavelmente, somos uma geração sem
tempo. Estamos voltando àquela participação que tínhamos no passa- memória.
do. Precisamos, portanto, estar vigilantes e Iazer-lhes nossa cobrança.
Não podemos porém querer que, duma vez, possamos ter o amadureci- Onde está o reino de Deus quando a igreja apóia diferentes
candidatos em um pleito?
mento. Eu sempre digo que a igreja evangélica, na política, está como
A providência de Deus sobre a história não é sinônimo de fatalismo,
um doente que teve um derrame e que agora faz fisioterapia para
robotização ou transformação dos seres humanos em marionetes. Deus
reaprender a andar e falar. Cabe pois, a nós, cobrar desses políticos
age mantendo o dom da liberdade que nos deu, até mesmo diante do
e ter uma certa caridade com eles. Mas sentimos que ainda há uma
pecado que cometemos no uso dessa liberdade. Basta dar uma olhada
longa caminhada para que tenhamos um grupo maior de políticos
na história de Israel e na história da igreja. O reino de Deus no interregno
evangélicos e de melhor nível.
histórico aponta para valores como justiça, honestidade, verdade etc.,
Muitos crentes acham que político evangélico só aparece na hora da com o Éden e a Nova Jerusalém como modelos ideais. Ninguém tem
eleição, na busca de votos, usando os mais diferente artifícios. São dúvida de que o perfil sócio-econômico do Brasil é perverso e pecami-
eles que estão errados, ou são os crentes, em geral, que não sabem noso, com uma minoria de privilegiados, uma maioria de miseráveis e
como procurá-Ios? uma classe média sufocada. Uma realidade distante dos padrões sociais
Essa questão é muito ampla. Porque a própria igreja não tem ensina- de Deus. Nas eleições não implantamos o reino, promovemos as suas
do e preparado a sua liderança política, nós nos viciamos com a cultura possibilidades. Basta atentar para os programas e para as classes sociais
política brasileira de pedir favores para tijolos, telhas, terreno, emprego e interesses por trás de cada candidato.
para os filhos e filhas e, assim, nos satisfazemos com esses trabalhos
Acha viável para o protestantismo brasileiro a opção preferencial
dos parlamentares que mandam o seu cartãozinho e que aprecem de
pelos pobres?
quatro em quatro anos. Precisaríamos, isto sim, ter movimentos organi-
Ora, se nós temos no Brasil dois terços de pobres e de jovens, a
zados de evangélicos e que o candidato não fosse candidato de si mes-
opção pelos pobres e pelos jovens é resultado de dados estatísticos: É
mo, mas de um grupo que o pudesse apoiar, que pudesse exortá-lo e resultado de um raciocínio inteligente, desde que essa opção seja pri-
pudesse cobrar dele durante todo o período do seu mandato, e não mordial e não exclusiva. Se quero atingir o máximo de pessoas, tenho
apenas a cada quatro anos. de procurar atingir as classes majoritárias. Não concordo é com uma
Que bases bíblicas podem auxiliar o crente a posicionar-se opção soteriológíca, ou seja, uma predestinação calvinista pelo avesso,
politicamente de forma mais efetiva? do tipo que diz que o pobre já está salvo só porque é pobre, e não con-
O crente deve refletir sobre o tema do reino de Deus ao longo das cordaria, também, com uma opção excludente. O que penso que deve
Escrituras, seu modelo ideal e suas possibilidades históricas. O que haver é uma opção preferencial por procurar reproduzir o amor de Deus,

152 153
A IGREJA, O PAís E O MUNDO ApÊNDICE

ou seja, o amor de Deus deve se manifestar mais abundantemente onde modo que a caminhada da teologia holística não tem propostas concre-
dele mais se carece, isto é, na situação da pobreza e da miséria. Com tas. porque ela é. antes de tudo. uma teologia e não uma ideologia. Den-
relação ao rico, acho que não devemos ser agressivos, porque, como o tro da teologia holística existe uma diversidade de pessoas. das quaís
próprio marxismo ensina, o rico é vítima do sistema capitalista, que o umas acham que o melhor caminho para encarná-Ia é o socialismo. ou-
tornou rico para fazê-lo sustentador. tras a social-democracia. outros ainda uma democracia cristã. Entre-
A evangelização da América Latina contribuiu para libertar ou para tanto, todas as pessoas que seguem uma linha holística têm uma coisa
reprimir? em comum, que é a lealdade aos valores do reino. Na hora de aterrissar
Eu diria que, nos primórdios da presença protestante na América se permite uma diversidade de alternativas. Nesse momento é o pro-
Latina, a evangelização foi líbertadora. Depois que começamos a fazer cesso histórico que vai dizer quem tem razão. O que tentamos evitar é a
alianças com o sistema, depois que começamos a ficar burgueses e a sacramentalização de ideologias.
importar o que há de mais reacionário na teologia norte-americana,
fomos perdendo a memória daquele glorioso passado libertador, tor-
nando-nos opressores. Basta comparar as propostas dos primeiros mis-
sionários com o que se tem por aí, hoje. Outro fator que provocou essa
mudança de comportamento nas igrejas evangélicas, além do que já
mencionei, é que, com o tempo, a igreja protestante passou a absorver
os valores mais integrados na Igreja Católica, ou seja, o protestantismo
\I tornou-se tradicionalista, intolerante, díreítísta etc.
Qual a postura ideológica da teologia bolística na questão social e
I
como ela vê o fundamentalismo e a teologia da libertação?
/" Nós somos todos concorrentes no mercado. O fundamentalismo e a
teologia da libertação tendem a identificar o reino com uma das propos-
tas históricas existentes: o capitalismo liberal ou o socialismo real. e
isso implica uma seletividade do uso de disciplinas e correntes teóricas
no trabalho hermenêutico. Cremos que não é bom que isso aconteça.
Defendemos que, na tarefa herrnenêutíca. precisamos estar abertos a
todas as ferramentas científicas. Afirmamos também que, emtodos os
sistemas sociais, há sinais do reino e do anti-reino, porque o homem foi
criado à imagem e semelhança de Deus, e alguma coisa de bom perma-
neceu depois da queda; e no momento em que associa algum sistema
ao reino você não está levando em conta a antropologia bíblica, que
afirma que. apesar de tudo, o homem é corrompido. Além disso. você
perde a capacidade de assumir uma postura profética em relação ao
sistema.
Eu creio que a teologia da libertação deu uma contribuição muito
importante ao cristianismo. chamando a atenção para a nossa realidade
de dependência, opressão e desigualdades internas, bem como para
certos temas bíblicos que estavam esquecidos. dando abertura às
ciências sociais e usando-as no trabalho hermenêutíco, dando até mes-
mo uma abertura positiva à reflexão marxista. Também não hostilizamos
o fundamentalista, porque recebemos dele alguns pontos positivos. De

154 155
Posfácio

m relação à modernidade e à expressão religiosa, o Brasil


E passou pelas seguintes etapas:
Primeira: o pré-moderno no pré-moderno. Até o início do
século XX o Brasil viveu na pré-modernidade - pré-industnal.
pré-urbano, pré-secular, pré-científico e pré-democrático. O
catolicismo ibérico, as religiões africanas e ameríndías eram
expressões religiosas pré-modernas
Segunda: o moderno no pré-moderno dentro do contexto nacional
pré-moderno, no século XIX. aqui chegam o posítívísmo. o kardecismo
e o protestantismo histórico, oriundos de um contexto ideológico de
modernidade. e que eram propostas de modernização pela burguesia;
Terceira: o pré-moderno, com a presença do pentecostalismo
clássico, a partir de 1910, quando o Brasil iniciava o seu processo de
modernização (urbanização, industrialização, secularização,
democratização). Dos anos 30 aos anos 60, o catolicismo romano
conheceu o conflito teológico entre o integrismo (pré-moderno) eo
humanismo integral (modernízante):
Quarta: a modernização pela base, por meio da teologia da
libertação e das Comunidades Eclesíaís de Base, com uma
hípervalorízação do sócio-econômico em detrimento de outras
variáveis (como a cultura, por exemplo), sob forte influência do
marxismo e da antropologia otimista (o "bom" pobre). Essa proposta
foi fortemente afetada pela crise da modemídadde:
Quinta: o pré-moderno no pós-moderno, com o pentecostalismo
popular, a Renovação Carismática Católica (RCC), o misticismo oriental.
o fundamentalismo protestante, as novas pastorais de elite (íamílísmo.
por exemplo). É o apelo ao passado no vazio da modernidade e antes
da consolidação da ímprevísível pós-modernidade.

157
A IGREJA, O PAís E O MUNDO

Vive-se nesta virada de século e de milênio uma tensão entre os


cristãos de expressão pré-moderna, moderna e pós-moderna. Uma
tensa convivência porque os estratos sociais vivem em distintos
"tempos" culturais. O tradicional terá um certo impacto, mas não será
capaz de responder ao novo. O Brasil- como grande parte do mundo
- está construindo uma nova cultura religiosa pluralista, e nem
todos aceitam esse fato. O pós-moderno, por sua vez, vai construindo Notas
(ou demandando) uma síntese de uma religião de salvação, libertação
e resultados, com a pessoa humana mais enríquecída, com o racional
complementado pelo afetivo. pelo simbólico, pelo imaginário. pelo
lúdico. pelo erótico, pelo místico etc.
Não há lugar para pessimismo ou para temor quando se tem o
compromisso com a eternidade, e não com a antigüidade. Esperamos
que haja abertura, bom senso e competência para construirmos, da
melhor maneira possível. esse cristianismo integrado e integral. que Copitulo 1. Copitulo 12.
Ultimato nO248. setembro 1997 Ultimato n2 254. outubro 1998
faça sentido para o homem pós-moderno.
Capítulo 2. C'apítulo 13.
A pós-modernidade não é um problema. É mais uma etapa Ultimato nO231. novembro 1994 Ultimato n2 252. maio 1998
histórica, com os seus problemas. Problema, e grave, isto sim, é o
Capítulo 3. Capítulo 14.
desafio do neoliberalismo. Ultimato nO246. novembro 1996 Ultimato nO246. maio 1997
O cristianismo já concorreu para superar historicamente o modo Capítulo 4. Capítulo 15.
de produção escravísta e o modo de produção feudal (servidão). Sem Palestra na Consulta sobre o culto Texto apresentando na Consulta
Evangélico do Brasil. FTl-B. São Paulo. Koinonia FTl-B. São Paulo. 12-13/04/96
perdermos de vista a esperança escatológica do novo céu e da nova 10-12 de abril 1996
terra, oramos pela superação, também, do capitalismo. Capítulo 16.
CapítuloS. Contexto Pastoral.
O desencanto com as ideologias e utopias seculares coloca em Revista Tempo e Presença (Koinonio).
setembro-outubro/96. Capítulo 17.
nossas mãos a tarefa de, a partir das nossas raizes proféticas,
Ultimato nO222, maio 1993
sinalizarmos esperança e mudança. Capítulo 6.
Ultimato nO224. setembro 1993 CapítulO 18.
Se o profeta é como o poeta, façamos nossas as palavras dos Ultimato nO 223.julho 1993
Copifulo 7.
autores de Coração Civil: Apêndice
Ultimato nO250. janeiro 1998
... Se o poeta é o que sonha o que vai ser real Trechos de entrevistas concedidas a:
Capítulo 8. revista Juventude (Convenção Batista
bom sonhar coisas boas que o homem faz Ultimato n2 247.julho 1997 Brasileira). ano VII, n2 33; revista Viver
e esperar pelos frutos ... Capítulo 9.
(Igreja de Nova Vida). ano 11.nO 8;
revista Signos de Vida (Conselho
... Assim dizendo a minha utopia Conferência proferida na Assembléia
latino-americano de Igrejas Cristãs).
eu vou levando a vida, eu vou viver bem melhor legislativa de Pernambuco. sessão
n2 1, 92; jornal Contexto Pastoral
solene de 29/03/94
doido para ver o meu sonho teimoso um dia se realizar. (CEDI/CEBEP); jornal O Estandarte
Capítulo 10. (Igreja Presbiteriana Independente).
Amém. Palestra na Consulta da EFAC. jul/88; revista Unijovem (Convenção
Johannesburgo. África do Sul. 2-9/09/95. Batista Brasileira); jornal O Cristão
publicada no EFACBulletin. 96 (União das Igrejas Congregacionais do
Brasil); Revista Teológica (Sociedade
Copitulo 11. dos Estudantes de Teologia
Palestra na II Consulta latino-americana Evangélica). vol, VIII. nO23; jornal A
de Evangélicos Políticos. FTl. Buenos Semente. out/87; Contexto Pastorale
Aires. 24-27/10/91 revista Ultimato.

158 159
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111

II
Robinson Cavalcanti é casado, pai
CARO LEITOR:
de dois filhos e se identifica como
Conheça e assine a revista Ultimato. Peça também nosso catálogo ,I
um nordestino alabucano (nascido
com todos os títulos da Editora Ultimato. Ligue ou escreva e receba em Perri'ambuco e criado em
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Universidade Federal de
Pernambuco e da Universidade
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Federal Rural de Pernambuco.
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Igreja Episcopal Anglicana do
Telefone: (31) 3891-3149
BrasiI. É autor de, entre outros,
Fax: (31) 3891-1557
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I
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~
A IGREJA, O PAís E O MUNDO
ApÊNDICE

totalmente a realidade da igreja africana, hoje. A África é. hoje, um dos O senhor tem pesquisa do a questão cultural quanto a usos e
lugares onde o cristianismo mais cresce, passando para trás até mesmo costumes na igreja. Poderia dar alguns exemplos?
o islamismo e o animismo. Essa é a realidade que o negro cristão brasi-
leiro desconhece. O branco também não sabe que a África, hoje, é uma Eu tinha grande preocupação para saber onde inventaram a Ceia
África cristã, mas de um cristianismo afncanízado. em que os atabaques com suco de uva. Então rodei o mundo, lendo e conversando, por vários
são tocados para Jesus e os fiéis dançam na igreja com os seus ritmos anos. No Oriente Médio e na Europa isso não existe; há 2 mil anos
nativos. O problema é que nós, no Brasil. não temos intercâmbio algum sempre se usa vinho. Como é que começou? Pelo menos as memórias
com cristãos africanos. históricas dizem que até o século XVIII nunca ninguém tinha visto Ceia
Quantos missionários africanos vocês já viram pregando por aqui? com suco de uva. Nem mesmo nas quatro tradições reformadas. Final-
Pouquíssimos. Agora. de americanos e europeus, o Brasil está cheio. Nós mente. vim descobrir através da leitura do livro (muito recomendado)
não conhecemos a experiência religiosa africana nem essa experiência A formação do protestantismo no Brasil. de Prócoro Velasquez e Gouveia
teológica. de Mendonça, que tinha sido numa igreja metodista nos Estados Uni-
dos, em meados do século passado. Ministrando num ambiente de
Como o senhor vê o movimento que propõe um louvor brasileiro na faroeste, onde havia uísque e revólver, e onde muitos dos convertidos
igreja? eram ex-alcóolatras, a igreja achou por bem mudar o vinho para o
Acho que nós evoluímos na música, e o louvor brasileiro atesta isso. suco de uva, para evitar ... tentações. Esse fato gerou uma onda nos
Há alguns anos o louvor evangélico limitava-se a meia dúzia de discos EUA principalmente no SuL coincidindo com o crescimento missionário,
de má qualidade, reduzidos a dois gêneros: o solista masculino (modelo este último responsável pela remessa ao-Brasíl de grande contingente
Luiz de Carvalho, Edgar Martins e Feliciano Amaral) e o gênero "quarteto de missionários. Como implantaram o suco de uva, com todo um pre-
americano". Os hinos eram todos traduzidos e os ritmos geralmente conceito contra o vinho, as gerações brasileiras acharam que foi sempre
remontavam ao século XVI. Já nestes últimos anos, a hinologia melho- assim. Não se consegue mais ir atrás na história da igreja.
rou muito, possibilitando a introdução de novos ritmos e novos instru- E sobre a posição teológica e o comportamento de Martinho Lutero
mentos e, o que é mais importante, com a letra extraída diretamente da quanto à bebida? Muitos dos seus hinos foram compostos, e livros es-
Bíblia. Nunca se cantou tanto a Palavra como nestes últimos anos. A critos, com ele tomando cerveja. Calvino tinha no contrato dele com a
resistência que ainda há com relação a hinos em ritmos brasileiros é igreja de Genebra a inclusão de duas garrafas de vinho por dia. Então, o
um reflexo da compreensão do evangelho a partir do padrão que nos resultado da análise é a conclusão de que foi uma razão justa que levou
foi passado pelos missionários. Há pouco tempo, um dirigente de uma a igreja dos Estados Unidos a mudar costumes (o que era explicável e
igreja chegou até a me dizer que, ao encorajar o louvor brasileiro, nós até necessário naquela conjuntura), experiência que, no entanto, foi
estamos prejudicando a igreja e desviando os jovens. Eu disse a ele: universalizada e permaneceu, mesmo fora do seu contexto.
"Ora, é isso que está fazendo com que o pessoal fique na igreja e que Outra questão é a da roupa. Por que as mulheres da Assembléia de
mais jovens se convertam". Agora, penso que esse movimento foi bem Deus no Brasil se vestem assim, quando em outros países do mundo,
até um certo ponto. mas que ainda é tímido, porque nós ainda não in- até mesmo da América Latina, não o fazem? É um costume da Assem-
corporamos todos os instrumentos existentes. E também porque ainda bléia de Deus no Brasil. Aí. você vai descobrir que essa denominação
não valorizamos muito um estilo de música jovem, internacional. Ain- não começa no SuL mas no Norte e no Nordeste, na zona rural. Conver-
da temos medo de usar o som brasileiro. A conseqüência é que é muito teram-se pessoas que vinham da Igreja Católica, da religião popular. E
mais fácil aceitar um rock na igreja do que um samba ou um baíão. quem viveu no interior do Nordeste, nos anos 40-60, percebe que a
Outro problema que denota essa timidez é a letra. Muitos conjuntos beata católica tinha como características não se pintar, usar cabelos lon-
ficaram no verticalismo musical. jogando tudo para o céu. gos presos e roupas longas. Tal costume, então, dessa denominação é,
O que é smcretísmo para o senhor? na verdade, uma absorção da cultura católica popular, que depois se
tornou doutrina.
Costumo fazer uma distinção entre sincretismo e aculturação. A
aculturação é a capacidade de manter o mesmo conteúdo em outra for- Muitas denominações históricas estão vivendo um momento crítico
ma cultural. Já o sincretismo seria uma mistura acrítica. uma geléia tendo em vista a onda neopentecostal. Que futuros caminhos há
geral. para a fé reformada, considerada a mais tradicional?

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