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HECTOR-HENRI
MALOT
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Índice
I. Na aldeia........................11
V. A Caminho.........................48
X. Perante a justiça.................81
XI. Em barco.........................92
XII. O meu primeiro amigo...........110
XIII. Enjeitado.....................121
XIV. Neve e lobos...................129
XV.O Senhor Joli-coeur.............146
XVI. Chegada a Paris................158
XVII. As pedreiras de Gentilly......164
XVIII. Lise.........................170
XIX. Jardineiro.....................182
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XX. Dispersão da família............189
Segunda parte
I. Para a frente....................207
III. Aprendiz.......................233
IV. A inundação.....................238
V. Na ladeira.......................250
VI. Libertação......................259
XI. Barberin........................319
XII. Investigações..................331
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XVIII. Vésperas de Natal............381
XX. Bob.............................403
XXI. O cisne........................412
XXIII. Em família...................432
CAPÍTULO 01.
NA ALDEIA.
Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como as outras crianças,
pois,- quando eu chorava, uma mulher me estreitava nos seus braços,
embalando-me com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr.
Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse beijar, e, quando o
vento de Dezembro arrojava a neve contra os vidros embaciados, aquecia-me os
pés ao calor das suas mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e
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letra me recordo ainda.
Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca ao longo dos
caminhos arrelvados ou nas charnecas, e que era surpreendido
pela chuva, corria ela ao meu encontro e forçava-me a abrigar sob
a saia de lã, que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os
ombros.
,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira como me falava,
pelas suas carícias e pela forma como olhava para mim, pela doçura, dos
ralhos, eu imaginava que era minha mãe.
Eis como cheguei a saber a verdade: A minha aldeia, ou, para
melhor dizer, a aldeia onde fui criado-porque eu não tinha terra
natal, como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde passei a
infância, chama-se Chavanon; é uma das mais pobres do centro da
França.
O solo não é profundo, e, para produzir boas colheitas, seriam precisos
adubos ou substâncias que faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia na
época de que falo) um diminuto número de campos cultivados, ao passo que se
vêem por toda a parte extensas charnecas onde só crescem urzes e giestas.
Até aos oito anos nunca vi nenhum homem naquela habitação; contudo
minha mãe não era viúva; mas o marido, que exercia a profissão de pedreiro,
como
muitos outros operários da região, trabalhava em Paris e não voltara à terra
depois de eu estar em idade de ver e compreender o que me rodeava. Apenas
de tempos a tempos ele mandava notícias por qualquer companheiro que
regressava à aldeia.
- Sr.a, Barberin, o seu homem continua de saúde; encarregou-me de lhe
dizer que tudo vai bem, e pediu-me que lhe entregasse o dinheiro; aqui está,
quer contá-lo?
E nada mais. A mãe Barberin contentava-se com isto: o
marido estava de saúde, o trabalho rendia, ele ia ganhando a
vida.
Pelo facto de Barberin se haver demorado tantos anos em Paris, não
se depreenda daí que se desse mal com a mulher. A ausência nada tinha
a ver com a questão de desacordo. Conservava-se longe da
companheira porque o trabalho assim o exigia.
Num dia de Novembro, ao cair da tarde, um desconhecido parou em
frente da cancela do nosso quintal. Eu estava no limiar da porta da casa,.
ocupado em partir achas de lenha. olhando-me por cima da paliçada, o
homem perguntou-me se era ali que morava a sr.a Barberin.
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Mandei-o entrar. Impeliu a cancela e, a passos lentos,
aproximou-se.
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Importância precisa.
Vivíamos tão bem da nossa, a mãe Barberin e eu, que até então eu quase
nunca comera carne. Mas não só nos alimentava como era também uma
camarada, uma amiga - Porque a vaca não é um animal estúpido; pelo
contrário, é cheio de inteligência. ela é fértil em qualidades morais que se
desenvolvem ainda mais se a habituarmos ao nosso trato.
Em suma, estimávamo-la e ela estimava-nos. Contudo foi preciso
separarmo-nos, pois somente pela «venda da vaca» podíamos
satisfazer Barberin.
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um bocado de pão; à tarde, batatas com um pouco de sal.
Já não havia Ruça, nem leite, nem manteiga, nem terça-feira de
Carnaval: era isto que eu dizia, muito tristemente, com os meus
botões.
- Caldo. - E além disso? - Ora... Não sei. - Sabes, sim; mas como és
bom rapazinho não te atreves a dizê-lo. E sabes que hoje é o dia em
que se fazem os coscorões e os sonhos. Como não há agora em casa
nem manteiga nem leite, não me queres falar nisso. Não é verdade?
- Oh! mãezinha! - Como eu já adivinhava tudo isso, arranjei as
coisas de maneira que a terça-feira de Entrudo não fizesse má
figura. Vê o que está no armário.
Abri-o vivamente e vi a xícara de leite, manteiga, ovos e três maçãs.
- Dá-me os ovos - disse-Me ela - e, enquanto os quebro, descasca as
maçãs.
Cortei a fruta em fatias, e, entretanto, ela deitou os ovos na farinha e
pôs-se a bater tudo, misturando de tempos a tempos uma colher de
leite.
Depois da massa pronta, a mãe Barberin colocou o tacho sobre as cinzas
quentes, e nada mais fizemos senão esperar pela tarde, pois era à ceia que
devíamos comer os sonhos e os coscorões. Para falar verdade, devo
confessar. que o dia me pareceu comprido e mais duma vez fui levantar a
roupa que abafava o tacho.
- Tanto queres fazer que a massa não levedará - dizia-me a mãe Barberin.
Mas afinal levedou bem, e aqui e ali viam-se bolhas que vinham
rebentar à superfície. Daquela mistura em fermentação exalava-se o
cheiro agradável de ovos e leite.
- Parte umas cavacas - ordenava ela. - Precisamos de lume bem ateado e
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sem fumo.
Enfim a candeia foi acesa. - Deita lenha no lume! - disse-me a mãe Barberin.
Não foi necessário que ela me repetisse as palavras que eu tão
impacientemente esperava. Bem depressa
Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos pedir lume. Não
me preocupei com isso, porque a mãe Barberin, que mergulhara a colher no
tacho, acabara de deitar na frigideira um pedaço da massa, e não era
altura própria de haver distracções.
Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir, se abriu
bruscamente.
- Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar. Um homem
entrara, e a claridade das chamas, incidindo nele, mostrou-me que estava
vestido com uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado.
CAPÍTULO 02.
UM PAI ADOPTIVO.
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- Quem é aquele? Disseste-me... - Sim... mas não era verdade, porque...
- Ah! não era verdade, não era verdade! Deu alguns passos para mim
com o bordão erguido, e, instintivamente, recuei. Que fizera eu? Em que
era culpado? Porquê aquele acolhimento quando Ia beijá-lo Não tive
tempo de considerar estas perguntas que se apresentaram ao meu
espírito perturbado.
- Vejo que festejam a terça-feira de Carnaval - disse ele. - Calha bem,
porque tenho uma fome levada da breca. Que há para a ceia?
- tou a fazer coscorões. - Isso sei eu; mas não vais dar coscorões
a um homem que calcorreou dez léguas.
- Não há mais nada: não te esperávamos. - O
quê?! Nada para a ceia? Olhou em redor:
- Temos manteiga - disse ele. Levantou os olhos para o sítio do tecto onde
antigamente se dependurava o toucinho; mas havia muito tempo que o gancho
estava sem nada; da trave só pendiam enfiadas de alhos e cebolas.
- E aqui estão cebolas - acrescentou, deitando abaixo algumas
com a ponta do bordão. - Quatro ou
cinco cebolas, um bocado de manteiga e teremos uma bela sopa. Tira daí
os teus coscorões e faz um estrugido.
Tirar os coscorões da caçarola A mãe Barberin não replicou.
Pelo contrário, apressou-se a cumprir as ordens do marido,
enquanto este se sentava no banco, ao canto da lareira.
Não me atrevia a sair do lugar para onde o cajado me forçara a ir; apoiado
contra a mesa, eu contemplava o homem. Teria talvez uns cinquenta anos, a
cara era dura e desagradável; em consequência da ferida, via-se obrigado a
conservar a cabeça inclinada sobre o ombro direito e essa disformidade
contribuía para o seu aspecto pouco tranquilizador.
A mãe Barberin substituíra o tacho que estava ao lume. - É com essa
migalha de manteiga que vais fazer a sopa? - perguntou ele.
E, agarrando no prato onde se encontrava a manteiga, deitou-a toda na
caçarola. Acabara-se a manteiga, já não havia coscorões.
Em qualquer outra ocasião, ter-me-ia afligido por semelhante
catástrofe, mas já não pensava em coscorões nem em sonhos, e a
única coisa que me preocupava era que aquele homem, que parecia
tão mau, fosse meu pai.
«Meu pai, meu pai!» repetia eu, maquinalmente. Quisera beijá-lo e ele
repelira-me com a ponta do cajado. Porquê? A mãe Barberin nunca
me afastava quando eu a ia beijar; pelo contrário, estreitava-me nos
braços e apertava-me de encontro a si.
O quê?! Pois aquele homem era meu pai! Então porque me
tratava tão rudemente?
Com a cara voltada para a parede, esforçava-me por expulsar
estas ideias e adormecer conforme me fora ordenado; mas era
impossível; o sono não vinha; nunca eu me sentira tão desperto.,
Ao fim de certo tempo, ouvi que se aproximavam da minha cama.
Pelos passos lentos, que se arrastavam, pesados, reconheci logo que
não era a mãe Barberin.
Um hálito quente chegou até mim. - Dormes? - perguntou uma voz
sufocada. Abstive-me de responder, pois as terríveis palavras: «senão
zango-me» soavam ainda aos meus ouvidos.
- Ele dorme - disse a mãe Barberin. - Logo que se deita,
adormece; é o seu costume; podes falar sem receio de que o petiz
te oiça.
Sem dúvida, eu deveria dizer que não dormia, porém não me atrevia a
isso; haviam-me mandado dormir; eu não dormia, portanto estava a ser
desobediente.
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- Em que ficou o teu processo? - perguntou a mãe
Barberin.
- Perdido! Os juizes decidiram que eu me colocara indevidamente debaixo
dos andaimes e que o empreiteiro nada me tinha a pagar.
Dizendo isto, o homem deu um murro sobre a mesa e pós-se a vociferar,
proferindo palavras Insensatas.
- Perdi o processo, - continuou ele daí a pouco, - perdi o dinheiro, fiquei
aleijado e na miséria. Como se não fosse bastante, ao entrar em casa encontro
uma criança! Explicar-me-ás porque não fizeste o que te disse?
- Não se abandona assim uma criança que criámos com o nosso leite e
de quem gostamos.
- Não era teu filho.
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bom coração. Trabalhará para nós.
- Entretanto, trabalhamos para ele, e eu já não posso fazer
nada.
-Se os pais o reclamam, que dirás? - Os pais! Tem ele, por acaso, pais? Se os
tivesse, tê-lo-iam procurado, e encontrado com certeza, de há oito anos para
cá. Ah! fiz uma bela tolice em imaginar que o pequeno tinha pais que o
reclamariam e nos pagariam o incómodo de o haver criado. Não passei dum
estúpido, dum ingénuo. Lá porque estava embrulhado em belas roupas
arrendadas, isto não significava que os pais o procurassem. E talvez morressem.
- E se estão vivos? Se um dia vêm buscá-lo? Tenho cá na minha ideia que virão.
- Ora, mandamo-los ao asilo. E basta de conversa. Amanhã levo-o ao
administrador. Agora vou cumprimentar o Francisco. Dentro duma hora
estarei de volta.
A porta abriu-se e tornou a fechar-se. Ele fora-se embora.
Então, soerguendo-me rapidamente, chamei a mãe
Barberin.
- Oh! mamã!
Acorreu para junto da minha cama. - Vai deixar-me ir para o
asilo? - Não, meu filho, não. Beijou-me ternamente e
estreitou-me nos braços.
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e as roupas que o envolviam faziam crer que seria filho de gente rica. Talvez
uma criança roubada, que depois abandonassem». Foi isto que o comissário
explicou. Que destino lhe Iam dar? O comissário escreveu tudo o que
Jerónimo sabia, e também a descrição da criança juntamente com a das
roupinhas que não estavam marcadas, e a seguir declarou que ia enviá-la ao
asilo dos enjeitados, se ninguém, entre os que ali haviam comparecido,
quisesse tomar conta dela. Os pais certamente a iam procurar,
recompensariam
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que corressem atrás de mim, gritando: «Vai para o
convidou-o a entrar.
Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua frente, e, uma
vez dentro do estabelecimento, fechou
a porta.
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Senti-me aliviado; o café não me parecia um lugar perigoso;
e, além disso, sempre era uma casa onde há muito tempo eu
tinha desejos de penetrar.
O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que poderia ser
aquilo?
Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta! Vira gente sair dali,
de cara avermelhada e pernas trémulas; ao passar em frente da porta
ouvira, em muitas ocasiões, gritos e canções que faziam estremecer os
vidros.
Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás Daquelas co
rtinas vermelhas?
Ia sabê-lo. Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do café com o dono, que
o convidara a entrar, fui sentar-me perto do fogão e olhei em redor. No canto
oposto àquele que ocupava, achava-se um velho alto de barba branca, vestido
de forma tão estranha como eu nunca vira.
Sobre os cabelos, que tombavam em compridas madeixas até aos ombros,
tinha um chapéu de feltro cinzento, de copa alta e guarnecido de penas
verdes e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja lã estava
para o lado de dentro. Esse abafo não tinha
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- Ora essa! Visto que ele não tem pais e está a meu cargo,
parece-me ser justo que alguém pague as despesas.
- Pois bem! Creio que jamais obterá a pensão que deseja.
para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se pode tirar
proveito dele, explorando a própria monstruosidade. Mas este não é anão nem
monstro; tem uma figura como toda a gente e portanto não serve para nada.
- Serve para trabalhar. - É muito débil para isso. - Ele, débil! Ora
adeus! Repare, veja as pernas: já viu algumas mais direitas?
E Barberin arregaçou-me as calças. - Excessivamente delgadas -
replicou o velho. - E os braços? - continuou Barberin. - São como as
pernas; poderá resistir a uma vida normal, mas não resistirá à fadiga
e à miséria.
- Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o. O velho passou-me a
mão descarnada nas pernas, tacteando-as, sacudindo a cabeça e
fazendo uma careta.
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fora comprar a nossa vaca. Examinara-a também e apalpara-a. Meneara
também a cabeça e fizera uma careta de desdém: no entanto,
comprara-a e levara-a consigo.
O velho iria comprar-me e levar-me? Ah! mãe Barberin,
mãe Barberin!
Desgraçadamente ela não estava ali para me proteger.
- É uma criança como há muitas - disse o velho-, - eis a verdade; mas uma
criança das cidades: por isso há a certeza de que nunca servirá para os
trabalhos do campo. Ponha-o em frente da charrua, a conduzir os bois, verá
quanto tempo ele durará.
- Mas repare bem no garoto! Eu estava na extremidade da mesa entre
Barberin e o velho, que me empurravam ora para um, ora para outro.
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não é
possível.
- E que espécie de serviços quer o senhor que ele lhe faça?
O Interpelado olhou para Barberin com ar finório, e, esvaziando
o-copo aos golinhos, disse:
- Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às vezes, depois de um dia de
fadiga, quando o tempo está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz
distrair-me-á.
- Lá para esse fim, as pernas serão bastante sólidas.
- Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar e caminhar; em
suma, fará parte da companhia do signor Vitalis.
- E onde está essa companhia? - O signor Vitalis sou eu, como já deve ter
calculado; os actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los.
Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou num animal
estranho que tinha sob o braço esquerdo, de encontro a si.
Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente a pele de
carneiro; mas não era um eãozinho como eu pensara.
Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu via pela primeira vez e
para quem olhava com estupefacção.
Estava vestido com uma blusa vermelha debruada de galão dourado, mas os
braços e as pernas mostravam-se nus, pois pareciam realmente braços e pernas
o que ele tinha, e não patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada.
Possuía uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face
curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas e lábios amarelos; mas o que
mais me impressionou foram os olhos, muito próximos um do outro, duma
grande mobilidade, brilhantes como espelhos.
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sobre o peito, fez sinal para que se aproximassem.
Os outros dois cães, que tinham os olhos fitos naquele, levantaram-se
logo, e, com as patas dianteiras unidas, como se fossem pessoas de mão
dada, avançaram gravemente uns seis passos, depois recuaram e
saudaram os circunstantes.
- Aquele a que chamo Capi - continuou Vitalis - ou Capitano em italiano, é o
chefe dos cães; é ele que, como mais inteligente, transmite as minhas ordens.
Este jovem elegante de pêlo negro é o signor Zerbino, o que significa garboso,
nome que ele merece em absoluto. Quanto a esta criaturinha de ar modesto, é a
signora Dolce, uma encantadora inglesa que não desmerece o seu doce nome. É
com estas personagens, a diversos títulos notáveis, que tenho a fortuna de
percorrer o mundo, ganhando a vida mais ou menos bem ao sabor da sorte.
Capi!
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Eu tinha inteligência suficiente para compreender estas palavras, mas da
compreensão à execução havia uma terrível distância a transpor.
Evidentemente que os alunos do signor Vitalis eram muito
engraçados, e devia ser muito divertido viajar com eles; mas para isso
seria necessário deixar a mãe Barberin.
É verdade que, se eu recusasse, talvez não ficasse com ela, talvez
me mandassem para o asilo.
Como ficasse perturbado, de lágrimas nos olhos, Vitalis bateu-me
docemente na cara com a ponta dos dedos.
- Vamos - disse ele-, o garoto compreende, visto que não grita; a
razão entrará nesta cabecinha, e amanhã... Agora - continuou -
voltemos ao negócio.
- Não, quarenta. Entabulou-se uma discussão. Vitalis, porém,
interrompeu-a:
- O pequeno deve estar maçado aqui. Que vá passear e
brincar para o quintal da estalagem.
Ao mesmo tempo fez um sinal a Barberin. - Sim - disse este-, vai
para o quintal, e não voltes sem que eu te chame, senão
zango-me.
Só me restava ir, sem replicar. Fui então para fora, mas sem desejos
de brincar. Sentei-me numa pedra e pus-me a reflectir.
Era a minha sorte que se decidia nesse instante. Qual o meu
destino? o frio e a angústia faziam-me tiritar.
A discussão entre Vitalis e Barberin durou muito tempo, pois
decorreu mais de uma hora sem que nenhum deles aparecesse.
Por fim Barberin surgiu, sózinho. Viria buscar-me para me
entregar a Vitalis?
- Vamos - disse-me ele. - Voltemos para casa. A casa! Então eu não
abandonaria a mãe Barberin? Quereria interrogá-lo, mas não me
atrevia, pois ele parecia estar de muito mau-humor.
CAPÍTULO 04.
DEIXANDO A CASA.
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- ENTÃO? - perguntou a mãe Barberin quando entrámos.- Que disse o
administrador?
- Não o vimos. - O quê?! Não o viste? - Não, encontrei uns amigos
no café Notre-Dame, e quando saímos era já muito tarde;
voltaremos amanhã.
Assim, Barberin havia renunciado ao seu negócio com o
homem dos cães...
Todavia, apesar das ameaças, falaria das minhas incertezas à mãe
Barberin, se me tivesse podido encontrar sozinho com ela; mas em toda a
noite Barberin não saiu, e eu deitei-me sem que se me apresentasse a ocasião
esperada. Adormeci dizendo de mim para mim que ficariam as confidências
para o dia seguinte.
Mas, de manhã, quando me levantei, não vi a mãe Barberin.
Como eu a procurasse em redor da casa, Barberin perguntou o
que é que queria.
- Oh! meu senhor - exclamei eu, - por amor de Deus não ne leve
consigo! Sou filho Da mãe Barberin!
, Em qualquer caso, não ficarás aqui - objectou Barberin, agarrando-me
brutalmente pela orelha. - Ou o asilo ou aquele senhor; escolhe!
- Não! A mãe Barberin! - Ah! Já me aborreces - exclamou Barberin,
encolerizado. - Se é preciso pôr-te daqui para fora à pancada, é o que vou
fazer.
- O pequeno tem pena de deixar a sua mãe Barberin - disse Vitalis. - Não lhe
deve bater por Isso; tem sentimentos, é bom sinal.
- Se o senhor o lastima, ele vai berrar mais alto. agora, vamos aos
negócios.
E Vitalis poisou na mesa oito moedas de cinco francos que
Barberin, num Instante, fez desaparecer na algibeira.
- Onde está a trouxa? - perguntou Vitalis. - Ei-la - respondeu
Barberin mostrando-lhe un lenço de algodão azul, sarapintado,
amarrado pelas quatro pontas.
Vitalis desfez os nós e olhou para o conteúdo do lenço;
encontravam-se ali duas das minhas camisas, e umas calças de
linho.
- Não era isto que tínhamos combinado - observou Vitalis. - Devia dar"me as
roupas dele, e eu só vejo trapos.
-O pequeno não tem outras. - Se eu o interrogasse, estou certo de
que diria que isso é falso. Mas não quero discutir este assunto. Não
tenho tempo. É preciso pormo-nos a caminho. Vamos, meu rapaz.
Como se chama ele?
- Remi. - Vamos,,,Remi, segura na tua trouxa, e passa para a
frente. Capi marcha!
Estendi as mãos para o velho, depois para Barberin, porém os dois voltaram
a cabeça, e senti que Vitalis me agarrava pelo pulso.
Foi necessário partir.
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caminhemos, meu filho - disse Vitalis.
Então comecei a andar ao lado dele. Felizmente não apressou o
passo, e creio até que o regulou pelo meu.
O caminho que seguíamos elevava-se em ziguezagues; a cada volta,
distinguia a casa da mãe Barberin, que ia diminuindo, diminuindo. Bastantes
vezes fizera eu este percurso e sabia que, no último desvio, veria ainda a casa.
Por sorte a subida era extensa; contudo, tanto andámos que
chegámos ao alto.
Vitalis não me largara o pulso.
- Não quer descansar um bocadinho? - sugeri eu. - De boa vontade,
meu rapaz. Pela primeira vez, descerrou a mão. Mas, ao mesmo tempo, vi
o seu olhar dirigir-se para Capi, e fazer um sinal que este compreendeu.
Imediatamente, como um cão de pastor, Capi abandonou a chefia dos
companheiros e veio colocar-se atrás de mim. Esta manobra acabou de me dar
a perceber o que o sinal já me havia indicado: Capi era o meu guarda; se eu
fizesse um movimento para fugir, ele deveria saltar-me às pernas.
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atravessou rapidamente.
A
CAMINHO.
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Bem depressa tive a prova disso. Fora no alto do monte que separa o Loire
do estuário do Dordogne que ele me retomara a mão, e, quase a seguir,
havíamos começado a descer a vertente exposta ao sul. Depois de termos
andado cerca de um quarto de hora, Vitalis largou-me o braço.
- Agora - disse ele-caminha devagar ao meu lado. Mas não te
esqueças que, se quisesses fugir, Capi e Zerbino apanhavam-te; têm os
dentes aguçados.
Fugir! Eu sentia que era impossível, e, por consequência, inútil tentá-lo.
Suspirei.
- Estás triste - continuou Vitalis. - Compreendo e não te quero mal por
isso. Podes chorar livremente, se tens esse desejo. Mas lembra-te que não
é para tua infelicidade que te levo comigo. Qual seria o teu destino? Muito
provavelmente, irias para o asilo. As
pessoas que te criaram não são teus pais. A tua mamã, conforme dizes, foi
boa para ti e tu sentes-te desgostoso por deixá-la, tudo isso é natural; mas
reflecte que ela não poderia ficar contigo contra a vontade do marido. Aliás
esse homem talvez não seja tão cruel como imaginas. Não tem de que viver,
está aleijado; já não pode trabalhar, e não vai deixar-se morrer de fome para
te alimentar. Compreendes, meu rapaz, que a vida é a maior parte das vezes
uma batalha onde não realizamos o que queremos.
Sem dúvida, o que ele dissera eram palavras de sabedoria, ou
pelo menos de experiência. Contudo, havia um facto que, neste
momento, gritava mais alto do que todos: a separação.
Não veria mais aquela que me criara, me acarinhara, aquela que- eu
amava tanto. E esta ideia apertava-me a garganta, sufocava-me.
- Vê - disse-me Vitalis, apontando-me para a charneca -
como seria inútil tentares fugir. Capi e Zerbino apanhar-te-iam
logo.
Fugir! Já não pensava nisso. E para onde? Para casa de quem?
E talvez aquele velho alto, de barba branca, não fosse tão terrível
como eu imaginara de começo; se era meu patrão, possivelmente
não seria um patrão cruel.
Caminhámos durante muito tempo no meio de tristes ermos
e não vendo em redor senão algumas
colinas distantes, de cumes estéreis.
Era a primeira vez que marchava assim, continuamente, sem descansar. O
patrão avançava com passo regular, levando Joli-Coeur no ombro ou sobre o
saco, e a seu lado os cães trotavam sem se afastarem.
De tempos a tempos Vitalis dizia-lhes uma palavra amiga, em francês, ou
numa linguagem que eu não conhecia.
Nem ele nem os outros pareciam fatigados. Porém não
acontecia o mesmo comigo. Sentia-me esgotado.
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Arrastando os pés, a custo, seguia o meu patrão. No entanto não
me atrevia a pedir que parasse.
- São os tamancos que te fatigam - disse-me ele. -Em Ussel
comprar-te-ei sapatos.
Estas palavras deram-me coragem. De facto, eu sempre desejara
ardentemente uns sapatos. O filho do administrador e o do estalajadeiro
possuíam sapatos, de maneira que, ao domingo, ao chegarem à missa,
deslizavam nas lajes sonoras, enquanto nós outros, camponeses, com os nossos
tamancos, fazíamos um barulho ensurdecedor. - Ussel é ainda muito longe? - Aí
está um grito de alma -observou Vitalis, rindo. - Tens então muita vontade de
ter uns sapatos, pequeno? Pois bem! Eu tos prometo, com pregos na sola. E
prometo-te também umas calças de veludo, um casaco e um chapéu. Espero
que isto te seque as lágrimas e te dê força nas pernas para fazermos as seis
léguas que nos faltam.
Sapatos com pregos por baixo! Fiquei deslumbrado. Eram já uma coisa
prodigiosa para mim, aqueles sapatos; mas, quando ouvi falar de pregos, esqueci
todo o desgosto.
Sapatos, sapatos ferrados! calças de veludo! casaco! chapéu! Ah! se a
mãe Barberin me visse, como ficaria contente e orgulhosa da minha
pessoa!
Apesar dos sapatos e das calças de veludo que estavam a seis
léguas de distância, parecia-me que não poderia andar até tão
longe.
O céu, azul à nossa partida, enchia-se a pouco e pouco de
nuvens cinzentas, e bem depressa caiu uma chuva fina que não mais
parou.
- Constipas-te facilmente? - perguntou o meu patrão.
- Não sei, que me lembre nunca estive constipado. - Bem, bem;
decididamente há boas coisas em ti. Mas não quero expor-te
inutilmente; hoje não Iremos
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deixar entrar, impôs-nos a condição de não termos luz.
- Dê-me os seus fósforos - disse ele a Vitalis- entregar-lhos-ei
amanhã quando se for embora.
Ao menos tínhamos um tecto para nos abrigarmos e a chuva já não nos caía
sobre o corpo. Vitalis era um homem previdente, que não se punha a caminho
sem provisões. Na mochila que trazia aos ombros encontrava-se um grande
naco de pão, que partiu em quatro bocados.
Vi então pela primeira vez como mantinha a obediência e a disciplina na
companhia que havia constituído. Enquanto errávamos de porta em porta,
procurando onde dormir, Zerbino entrara numa casa e saíra quase logo
trazendo uma bela torta entre os dentes. Vitalis apenas dissera:
- Esta noite terás o castigo, Zerbino. Eu já não pensava naquele roubo, quando
vi, no momento em que o nosso dono cortava o pão, Zerbino com ar humilde.
Estávamos sentados em molhos de fetos, Vitalis e eu, ao lado um do outro e
Joli-Coeur entre os dois; os três cães alinhavam-se à nossa frente, Capi e Dolce
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Os dias iriam ser agora todos assim? Caminhar sem descanso, debaixo de
chuva, dormir- num palheiro, tiritar de frio, não ter para cear mais do que um
pedaço de pão
CAPÍTULO 06.
A MINHA ESTREIA.
No dia seguinte, pusemo-nos cedo a caminho. Já Não havia chuva mas céu
azul, e pouca lama, graças ao vento seco que soprara durante a noite. Os
pássaros chilreavam alegremente nas moitas da estrada e os cães pulavam à
nossa volta. De tempos a tempos, Capi erguia-se nas patas traseiras e
lançava-me dois ou três latidos de que eu percebia muito bem a significação.
- Coragem! coragem! - diziam eles. Era um cão inteligente que
compreendia tudo e se fazia sempre compreender. Jamais foi
preciso a palavra entre mim e Capi; desde o primeiro dia que
nos entendemos.
Nunca tendo saído da minha aldeia, sentia-me cheio de
curiosidade de ver uma cidade.
29
Uma Ideia enchia-me o cérebro e enevoava-me os olhos, ou,
pelo menos, não me deixava ver mais do que uma coisa: uma loja
de sapateiro.
os meus sapatos, os sapatos prometidos por VItalis! Chegara a hora de os
calçar. Onde estava a bem-aventurada sapataria que mos
ia fornecer?
Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões, ogivas, colunas,
não tinha interesse para mim.
Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel foi a de uma loja sombria
e denegrida pelo fumo, situada ao pé do mercado. Tinha na montra
espingardas velhas, um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas
lâmpadas, e, em cestos, ferros velhos, principalmente cadeados e chaves
enferrujadas.
Foi preciso descer três degraus para entrar, e então, encontrámo-nos
numa quadra vasta, onde seguramente a luz do sol nunca penetrara desde
que o telhado fora posto sobre a casa.
Como é que uma coisa tão bela como sapatos se podia
vender num recinto tão pavoroso!
Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja, e bem depressa,tive
a felicidade de calçar sapatos ferrados que pesavam dez vezes mais do
que os meus
tamancos.
A generosidade do meu patrão não ficou por ali; depois dos sapatos,
comprou-me um casaquinho de veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de
feltro; enfim, tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara
senão linho; sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera os cabelos a
cobrirem-me a cabeça! Decididamente, era o melhor homem do mundo, o mais
generoso e rico.
É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a lã estava
coçada; é também verdade que seria muito difícil saber qual a cor primitiva do
feltro, de tal maneira apanhara chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos
esplendores,,
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Esta explicação não me desfez o espanto, e ele continuou:
- Que somos nós? Artistas, não é assim? Comediantes que só pelo seu
aspecto devem provocar a curiosidade. Imaginas que, se fôssemos para a
praça pública vestidos como burgueses ou aldeões, forçaríamos as pessoas a
olhar-nos e a parar à nossa volta?
Eis como, sendo eu francês de manhã, me tornei italiano
antes da noite.
Não sei o que poderiam os outros pensar de mim, mas para ser
sincero devo declarar que me achei soberbo; e, com certeza, o
estava, pois o meu amigo Capi, depois de me haver contemplado
muito tempo, estendeu-me a pata com ar satisfeito.
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árvore, ou cortar a pedra, e não concebia outra coisa.
- A peça que vamos representar - continuou Vitalis - tem por título: o criado
do sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é aquele que pensamos. Eis o
assunto: O senhor Joli-Cwur possuiu até hoje um criado que o satisfazia em
absoluto: o criado é
Capi. Mas Capi já está velho, e, por outro lado, o senhor Joli-Coeur deseja
novo servo. Capi encarrega-se de o procurar. Contudo não será um cão que
ele terá por sucessor, será um rapazinho, um camponês chamado Remi.
- Assim como eu? - Não como tu, mas tu mesmo.
Chegas da aldeia para entrar ao serviço de Joli-Coeur.
- Os macacos não têm criados. - Nas comédias, têm-nos. Chegas
então, e o senhor Joli-Coeur acha-te com ar de imbecil.
- Não é divertido, isso. - Que te Importa, visto ser a fingir? Imagina que entras
realmente em casa dum senhor como criado e te dizem, por exemplo, que
ponhas a mesa. Eis justamente aqui uma que deve servir para a representação.
Aproxima-te e dispõe os talheres. Sobre esta mesa, havia pratos, um copo,
uma faca, um garfo e guardanapos.
,Como se arranjaria tudo aquilo? Fazendo esta pergunta a mim
mesmo, fiquei de braços pendentes, Inclinado para a frente,
com a boca aberta, sem saber por onde começar; Vitalis bateu
as palmas, rindo às gargalhadas.
- Bravo! - exclamou. - A tua expressão fisionómica é esplêndida. o rapaz,
que tinha antes de ti, tomava um aspecto astuto e o seu ar dizia claramente:
«Verão como eu vou interpretar bem o papel de palerma»; tu, não dizes nada,
ficas calado com uma expressão de ingenuidade admirável.
- Não sei o que devo fazer. - E é por isso mesmo que estás excelente. Amanhã,
dentro de alguns dias, saberás às mil maravilhas o teu papel. Será então
necessário recordares-te do embaraço que experimentas agora em fingires o
que não sentes nessa altura. Quem és tu na minha comédia? Um moço
camponês que nada viu e nada sabe; chega a casa dum macaco e acha-se mais
Ignorante e desajeitado do que o outro. Mais tolo do que Joli-coeur,
eis o teu papel; para o representar na perfeição, nada mais terás a fazer do que
ficar como estás neste momento. Mas como isso é Impossível, deverás
lembrar-te do que foste e tornares-te pelo teu esforço naquilo que já não
serás
naturalmente.
O criado do sr. Joli-Coeur não era uma comédia extensa, e a sua
representação durava apenas vinte minutos. Mas o ensaio prolongou-se por
mais de três horas; Vitalis fez-nos recomeçar duas, quatro, dez vezes a mesma
coisa, tanto aos cães como a mim. Fiquei bastante surpreendido com a
paciência e doçura do nosso mestre. Não seria assim que tratariam os animais
da minha aldeia, onde as pragas e as pancadas eram os únicos processos de
educação que empregavam para com eles.
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Vitalis, durante o longo ensaio, não se zangou uma só vez;
nem uma só vez praguejou.
- Vamos, recomecemos - dizia ele severamente, quando
algum de nós andava mal. - Capi, você está distraído; Joli-Coeur,
será castigado.
E não passava disto; no entanto, era bastante. - Então?! -
perguntou-me ele quando o ensaio terminou - Achas que te
habituarás a ser actor?
- Não sei. - Isto aborrece-te? - Não, diverte-me. - Nesse caso tudo
decorrerá bem; és Inteligente, e, o que é ainda mais precioso,
atento; com atenção e docilidade conseguimos tudo.
Afoitei-me a dizer-lhe que o que me causara mais admiração no
ensaio fora a inalterável paciência de que ele dera prova, tanto com
Joli-Coeur e os cães, como comigo.
Sorriu meigamente. - Vê-se bem - respondeu Vitalis. - que só conviveste
até hoje com aldeões cruéis para os animais, e que imaginam devê-los
conduzir de cajado sempre erguido. Ora Isto é um triste erro: pouca coisa se
obtém pela brutalidade, mas quase
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crianças, aldeãos embasbacados juntavam-se a elas, e, quando chegámos à
praça, trazíamos atrás e em volta de nós um verdadeiro acompanhamento.
pela inquietação.
Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o pífaro e substituíra-o por
um violino com que acompanhava os exercícios dos cães, ora com músicas
de dança, ora com melodias suaves e doces.
A multidão apinhava-se contra as cordas, e, quando eu olhava
em redor, maquinalmente, via uma infinidade de pupilas que,
fixadas em nós, pareciam
lançar faíscas.
Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os dentes, uma bandeja e,
caminhando nas patas traseiras, aproximou-se do «respeitável público».
Quando as moedas não caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior
do círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras no
espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e batia pancadinhas
sobre a algibeira que pretendia abrir.
Então na assistência havia exclamações, gracejos e zombarias:
- Olha a esperteza do cão, como conhece os que têm a bolsa
recheada!
- Vá, mete a mão na algibeira!
- Dá! E a moeda era finalmente arrancada das profundezas
onde se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas sem perder de
vista a bandeja, Ia tocando árias alegres
no violino.
Bem depressa Capi voltou para junto do dono, trazendo
orgulhosamente o prato cheio.
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O que ele chamava «uma engraçada comédia» era na realidade uma
pantomima, isto é, uma peça representada com gestos e não com palavras. E
assim devia ser, pela forte razão de que dois dos principais actores, Joli-Coeur e
Capi, não podiam falar, e de que o terceiro (que era eu próprio) seria
absolutamente incapaz de dizer fosse o que fosse. Todavia, a fim de tornar a
mímica dos comediantes mais facilmente compreensível, Vitalis acompanhava-a
de algumas palavras que preparavam as situações da peça e as explicavam.
Foi assim que, tocando em surdina uma marcha militar, anunciou a entrada
do sr. Joli-Coeur, general inglês que ganhara patentes e riqueza nas guerras
das Indias. Até então, o sr. Joli-Coeur só tivera Capi como criado, mas desejava
ser servido daí em diante por um homem, visto que os meios lhe permitiam
esse luxo: os bichos haviam sido já bastante tempo escravos dos homens; era
altura de as coisas mudarem. Enquanto esperava a chegada do criado, o
general Joli-Coeur passeava de cá para lá, fumando um cigarro. Era digno de
ver-se como ele lançava o fumo para a cara do público!
O general impacientava-se, e principiava a volver olhos iracundos,
como alguém que vai zangar-se, mordia os lábios e batia com o pé no
chão.
À terceira patada eu devia entrar em cena, levado por Capi.
assoei-me.
Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu de costas,
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confundido com a minha estupidez.
CAPÍTULO 07.
APRENDO A LER
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permitir esta pergunta.
- Conheces o país? - disse ele, virando"se para mim. - Não. - Então por
que perguntas para onde vamos? - Para saber. - Se eu te disser -
continuou ele - que vamos para Aurillac a fim de nos dirigirmos em
seguida
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Era, bem uma tábua, nada mais do que um pedaço de madeira de faia, do
comprimento dum braço, da largura de dois palmos e muito lisa; não lhe
encontrava nenhuma inscrição, nenhum desenho. Como se poderia ler naquela
tábua, e ler o quê?
- O teu espírito trabalha - disse-me Vitalis, rindo.
- Está a zombar de mim? - Não, meu rapaz. Espera que cheguemos
àquele bosquete que está lá adiante; descansaremos lá, e verás como
quero ensinar-te a leitura com este pedaço de madeira.
Chegámos rapidamente ao dito bosquezinho e, postos os sacos no
chão, sentámo-nos sobre a relva que principiava a reverdecer e na
qual, aqui e ali, se mostravam malmequeres. Joli-Coeur,
desembaraçado da corrente, precipitou-se para cima duma árvore,
sacudindo os ramos uns após outros como para fazer cair nozes; os
cães, mais tranquilos e sobretudo mais fatigados, deitaram-se junto
de nós.
Então Vitalis, tirando a navalha da algibeira, experimentou desprender da
tábua uma laminazinha de madeira tão delgada quanto possível. Tendo
conseguido, alisou-a nas duas faces, em todo o comprimento, e, feito Isto,
cortou-a em quadradinhos; arranjou assim umas duas dúzias deles, todos
Iguais.
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Bem entendido que Capi não devia nomear as letras, visto que não
falava, mas, quando os bocados de madeira estavam colocados no
chão, tinha de tirar, com a pata, as letras que o nosso mestre dizia.
que o retinham não as adivinhei. Foi mais tarde que as conheci, muito
mais tarde, e em circunstâncias dolorosas, terríveis para mim, que
contarei em momento oportuno, nesta narrativa.
Logo no dia seguinte, o meu mestre fez para a música o que já
fizera para a leitura, isto é, começou a cortar quadradinhos de
madeira, que ele gravou com a ponta da navalha.
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A fim de aliviar-me os bolsos, utilizou as duas faces dos
quadrados, e, depois de riscar qualquer delas com cinco linhas que
representavam a pauta, desenhou num lado a clave de sol e noutro
a de fá.
Depois de tudo preparado, começaram as lições, e confesso
que não foram menos penosas que as de leitura.
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e braços excessivamente magros», dissera Vitalis. Ao lado do meu mestre e
acompanhando-o na sua vida ao ar livre, as pernas e os braços fortificaram-se,
os pulmões desenvolveram-se, a pele enrijou-se e tornei-me capaz de suportar,
sem adoecer, o frio e o calor, o sol e a chuva, os trabalhos, as privações, as
fadigas.
E para mim foi uma grande felicidade essa aprendizagem, que me preparou
para resistir aos golpes que mais duma vez me deveriam atingir, duros e
esmagadores, durante a minha juventude.
CAPÍTULO 08.
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ainda esta impressão que o viajante recebe ao atravessá-la, é que quase em
parte alguma se vê água. Nem ribeiras, nem regatos, nem poços. Aqui e ali,
leitos pedregosos mas vazios.
CAPÍTULO 09.
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Ao deixar o solo árido das causses e todos aqueles terrenos incultos,
vejo-me, em pensamento, num vale sempre fresco, e verde, o vale de
Dordogne, que descemos a. pouco e pouco, em pequenas jornadas, pois a
riqueza da região contribui para a dos habitantes, e as nossas representações
são numerosas: as moedas tombam com relativa facilidade na bandeja de
Capi.
Uma ponte, leve, como se por meio de filandras estivesse
suspensa do nevoeiro, eleva-se acima dum rio largo onde
deslizam águas preguiçosas.
Uma cidade em ruínas, com fossos, grutas, torres, e, nas paredes
fendidas dum claustro, cigarras que entoam canções em arbustos que
despontam aqui e ali.
Mas tudo isto se me confunde na memória; só dum
espectáculo que a impressionou fortemente é que ela guarda
a visão nitida.
Pernoitáramos numa aldeia bastante miserável e partíramos
de manhã, ao romper do dia.
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nuvens de fumo são rebocadores.
Que palavras tão estranhas para mim! Quantas coisas
desconhecidas!
Até então não fizéramos grandes paragens nas cidades que
encontrávamos à nossa passagem, pois os espectáculos obrigavam-nos a
mudar de local a fim de termos novo público. Com actores tais como os que
compunham a «companhia do ilustre signor Vitalis», o repertório não podia,
efectivamente, ser muito variado; e depois de representar o Criado do sr.
Joli-Coeur, a Morte do general, o Triunfo do justo, o Doente purgado e mais
três ou quatro peças, esgotava-se a série; os comediantes haviam feito tudo
o que podiam; era preciso recomeçar o Doente purgado ou o Triunfo do
justo perante espectadores que não os tivessem visto ainda.
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Depois de apurar o ouvido durante um momento sem respirar, a fim de
escutar melhor, o silêncio aterrorizou-me e senti um calafrio: tinha medo. De
quê? Nem mesmo sabia. Provavelmente da solidão, da noite, daquele sossego.
Fosse de que fosse, imaginava-me ameaçado. Nesse mesmo instante, ao olhar
em volta cheio deangústia, vi ao longe uma sombra alta mover-se
rapidamente acima das giestas, e ouvi como que um sussurro de ramos.
Alguém? Mas não, não podia ser um homem aquele corpo alto e
negro que vinha na minha direcção; seria antes um animal
desconhecido para mim, ou um pássaro nocturno gigantesco, ou
uma grande aranha de quatro patas cujos membros delgados se
recortavam por cima das moitas e dos fetos, na palidez do céu. Este
pensamento encheu-me de pavor e, voltando-me, precipitei-me no
declive para reunir-me a Vitalis.
Desembaraçando-me de um silvado, deitei uma olhadela
para trás: o bicho aproximava-se; vinha sobre mim.
atrás de mim.
Já nem respirava, sufocado pela angústia e pela doida correria;
então fiz um derradeiro esforço e vim cair aos pés do meu mestre,
enquanto os três cães, que se haviam erguido bruscamente,
ladravam com
todas as forças.
Só pude dizer estas duas palavras, que repeti
maquinalmente:
- O animal! O animal! No meio da vozearia dos cães, ouvi de
repente uma estrondosa gargalhada. Ao mesmo tempo, Vitalis,
pousando-me a mão no ombro, obrigou-me a virar.
- Animal és tu - dizia-me ele rindo. - Repara nele, se é que
tens ânimo para Isso.
o riso, mais do que as palavras, chamaram-me à razão;
afoitei-me a abrir os olhos e a seguir a direc ção da mão de Vitalis.
A aparição que tanto me aterrorizara detivera-se e
conservava-se imóvel a meio da estrada.
Seria um bicho? Seria um homem? De homem, tinha o corpo, a cabeça, os
braços. De bicho, uma pele felpuda que o cobria inteiramente, e duas patas
compridas e magras que o sus tinham.
Se bem que houvesse Já anoitecido, eu percebia estes pormenores, pois a
sua sombra alta desenhava-se a preto, contornando-se no céu onde numerosas
estrelas derramavam uma claridade pálida.
Eu ficaria provavelmente muito tempo Indeciso a cogitar nas
minhas dúvidas, se Vitalis não tivesse dirigido a palavra à aparição.
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- Poderá dizer-me se estamos muito longe de uma aldeia?
-perguntou.
Mas Por única resposta só ouvi um riso áspero, semelhante a um
grito de ave.
Era então um animal? Entretanto o meu mestre continuou as mil perguntas,
o que me pareceu absolutamente despropositado. Qual não foi o meu
espanto quando o bicho disse que não havia casas nos arredores, mas apenas
um curral, aonde ele nos propunha conduzir-nos. Se ele falava, como é que
tinha patas?
Se me atrevesse, aproximar-me-ia dele, para-ver
como eram feitas aquelas patas, mas, se bem que me não parecesse um ente
mau, não tive coragem; agarrando no meu saco, segui Vitalis sem nada dizer.
- Vês agora o que te causou tão grande medo? -
perguntou-me ele pelo caminho.
- Vejo, mas não sei o que é; então há gigantes nesta terra?
- Há, sim, quando estão em cima de andas. E explicou-me como os habitantes
das Landas, para atravessarem os terrenos areentos ou pantanosos sem
enterrarem as pernas até às coxas, se servem de dois paus compridos
guarnecidos de um estribo que amarram aos pés
- E aqui está como se tornam no gigante das botas de sete léguas para
crianças medrosas.
CAPÍTULO 10.
PERANTE A JUSTIÇA.
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Não tardou que ficássemos sozinhos nas praças públicas, e foi
preciso pensarmos também em partir.
Uma manhã pusemo-nos a caminho e retomámos a nossa
vida errante pelas estradas mais largas.
Depois, uma tarde, chegámos a uma grande cidade, situada à beira de um
rio. Vitalis disse-me que estávamos em Toulouse e que ficaríamos aí muito
tempo.
Como de costume, o nosso primeiro cuidado, no dia seguinte, foi
procurar os locais propícios para os espectáculos.
Encontrámo-los em grande quantidade, sobretudo nas proximidades do
Jardim Botânico; há lá um pedaço de terreno arrelvado sombreado por grandes
árvores, onde vêm desembocar várias alamedas. Aí nos instalámos, e nas
primeiras representações tivemos um públic o numeroso. Por infelicidade, o
polícia que estava de guarda na alameda viu aquela instalação com
descontentamento, e, porque não gostasse de cães ou porque lhe
atrapalhássemos o serviço ou por qualquer outra razão, quis que saíssemos dali.
Na nossa situação, teria sido talvez prudente abandonar a
contenda, pois a luta entre a polícia e pobres saltimbancos tais
como nós, não era com armas iguais; porém Vitalis não pensou
assim.
Quando o meu mestre não queria encolerizar-se,
ou quando lhe dava na fantasia divertir-se à custa dos outros - o que
acontecia frequentemente - tinha por hábito exagerar a sua polidez
Italiana: dir-se-ia, ao ouvi-lo exprimir-se, que se dirigia a
importantes personagens.
- O ilustríssimo representante da autoridade - disse, respondendo de
chapéu na mão ao agente da polícia - pode mostrar-me um regulamento
emanado da dita autoridade,
pelo qual seja proibido a ínfimos truões como nós, exercer a sua mesquinha
indústria nesta praça pública?
o guarda respondeu que ele só deviaobedecer e não discutir.
- Certamente - replicou Vitalis. - É essa a minha opinião; por isso prometo
sujeitar-me ás suas ordens, logo que me faça saber em virtude de que
regulamentos mas dá.
Naquele dia, o agente de polícia virou-nos as costas
enquanto o meu mestre ria silenciosamente.
Mas voltou no dia seguinte, e, transpondo as cordas que formavam o
recinto no nosso teatro, precipitou-se a meio do espectáculo.
- Tem de açaimar os cães - disse rispidamente a Vitalis.
- Açaimar os cães! - Há um regulamento; deve conhecê-lo. Representávamos o
Doente purgado, e como era a primeira vez que esta comédia ia à cena em
Toulouse o público mostrava-se cheio de atenção. A intervenção do guarda
provocou murmúrios e reclamações:
- Não interrompa! - Deixe acabar o espectáculo! Mas, com um
gesto, Vitalis impôs silêncio. Então, tirando humildemente o
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chapéu, de tal forma que as penas varreram a areia,
aproximou-se do polícia, fazendo três profundas reverências.
- O ilustríssimo representante da autoridade disse que eu devia açaimar
os meus actores? - perguntou.
- Sim - disse - açaimar os cães e o mais depressa possível.
- Açaimar Capi, Zerbino, Dolce! - exclamou Vitalis, dirigindo-se mais ao
público do que ao polícia. - Vossa senhoria não pense nisso! Como poderá
o sábio médico Capi, conhecido do mundo Inteiro, receitar os seus
remédios purgativos para expulsar a bílis do infortunado
sr. Joli-Coeur, se o referido Capi puser na ponta do nariz um açaimo? Ainda se
fosse outro instrumento mais adequado à sua profissão de médico... Não é
costume pôr aquilo no nariz das pessoas.
Houve uma explosão de gargalhadas em que se misturavam as
vozes cristalinas das crianças com as vozes guturais dos adultos.
Vitalis, animado pelos aplausos, continuou: - E como poderá a encantadora
Dolce, a enfermeira, usar da sua eloquência e beleza para decidir o doente a
deixar limpar as entranhas, se, na ponta do nariz, usar o que o ilustre
representante da autoridade lhe
quer impor? Pergunto-o ao respeitável público e peço-lhe
respeitosamente que julgue a causa.
Viu então Joli-Coeur, que estava nessa altura de mão na ilharga, na
atitude de um toureiro; durante alguns segundos o homem e o macaco
ficaram defronte um do outro, fitando-se como se se tratasse de saber qual
dos dois baixaria os olhos primeiro.
- Até amanhã, signor - disse Vitalis! até amanhã. E enquanto o guarda se
afastava rapidamente, Vitalis ficou curvado até ao chão, em postura
respeitosa.
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Depois, a representação continuou. Imaginava que o meu
mestre ia comprar açaimos para os cães; mas não o fez e a noite
chegou sem que ele sequer aludisse à discussão com o polícia.
Então afoitei-me a falar no assunto. - Se não quer que Capi
quebre o açaimo durante o espectáculo - disse-lhe eu. -
parece-me que seria bom colocar-lho um pouco antes.
Vigiando-o, talvez possamos habituá-lo a isso.
- Pois acreditas que lhe vou pôr uma caraça de ferro?
- Ora essa! Creio que o guarda está disposto a autuá-lo.
- Não passas de um camponês e, como todos os camponeses, perdes a
cabeça com medo da polícia. Mas sossega, cá me arranjarei amanhã. Além
disso, disporei as coisas para o público se divertir um bocadinho. É preciso que
aquele polícia nos proporcione mais de uma boa receita e represente um papel
cómico na cena que lhe preparo; isso variará o nosso repertório e
divertir-nos-á também. Para este fim, irás amanhã para o lado do costume, só
acompa nhado de Joli-Coeur; esticarás as cordas, tocarás alguns trechos na
harpa; e quando tiveres à volta público suficiente, e depois do guarda chegar,
farei a minha entrada com os cães. Nessa
altura começará a comédia.
Não me agradava nada ir assim sozinho preparar a
representação, mas começava a conhecer Vitalis e a saber quando
lhe podia resistir. Decidi-me pois a obedecer.
No dia seguinte fui para o sítio habitual e armei o recinto. Logo
que toquei alguns compassos de música, acorreram pessoas de todos
os lados, comprimindo-se
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Não foi Vitalis que chegou, mas o agente da polícia. Joli-Coeur viu-o
primeiro do que ninguém, e imediatamente, pondo uma das mãos na anca e
deitando a cabeça para trás, principiou a passear de cá para lá, teso,
imponente, com uma gravidade ridícula.
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Vitalis quase caiu, de tal forma o empurrão fora rude; mas
susteve-se, e, levantando o braço direito, bateu fortemente com ele
no punho do polícia.
O meu mestre era um velho, vigoroso é certo, mas enfim, um velho; e
sendo o guarda um homem ainda novo e cheio de força, a luta entre os dois
não poderia ser longa. Mas não houve luta.
- Que deseja? - perguntou Vitalis. - Está preso. Acompanhe-me à esquadra.
- Porque razão bateu na criança? - Nada de conversas, acompanhe-me.
Vitalis não replicou, mas disse, voltando-se para mim: - Volta para a
estalagem, leva os cães e espera notícias minhas.
Não conseguiu acrescentar mais nada; o polícia arrastava-o
consigo,
Assim terminou tristemente aquele espectáculo que o meu
mestre quisera tornar divertido.
O primeiro movimento dos cães foi o de seguir o dono, mas ordenei-lhes
que ficassem junto de mim, e, habituados a obedecer, voltaram para trás. Vi
então que estavam açaimados, mas, em vez de um açaimo a valer, traziam
simplesmente uma fita de seda amarrada com laços em volta do focinho.
Pareciam açaimos de teatro, e o meu mestre sem dúvida mascarara assim os
cães para a partida que
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