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HECTOR-HENRI 
MALOT  

nasceu em La Boullle (França) em 20 de Maio de 1830, fez os seus Primeiros 


estudos em Ruão, indo cursar Direito em Paris onde se empregou nO cartório 
dum notário, quando completou O Curso. Em breve abandonou a carreira política 
Para se dedicar Inteiramente à literatura. o seu Primeiro romance, Les Amants, 
publicado em 1859, obteve um ruidoso êxito. SEguiram-se-lhe Les EPOux (1865) e 
Les Enfants (l866), que, com aquele, vieram formar a trilogia a que deu o nome de 
Víctimes d'amour. A sua carreira de romancista foi larga e brilhante. Publicou 
entre Outros os seguintes romances: Romain Kalb (1869), Madame obernin (1870), 
La Belle Madame Dionis (1873), tendo conquistado a juventude com o romance 
Sans famille (1878), a que se seguiu En famille (1893). Foi crítico literário do Jornal 
Opinion Nationale e gozou em vida de uma grande popularidade. Em 1896 
publicou o seu último livro, Roman de romans, este de autobiografia, e retirou-se 
da vida literária. Escreveu, porém, para publicação depois da sua morte, o 
romance petit MOusse, destinado à sua neta. Faleceu em POnllaYssous-BOIB a 17 
de Julho de 1907.  

   

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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​Índice  

I. Na aldeia........................11  

II. Um pai adoptivo..................19  

III. A companhia do Signor Vitalis....28 

IV. Deixando a casa..................39  

V. A Caminho.........................48 

VI. A minha estreia..................54  

VII. Aprendo a ler..................65 

VIII. Por montes e vales.......................72  

IX. Encontro o gigante das botas de sete léguas 75  

X. Perante a justiça.................81  
 
XI. Em barco.........................92 
 
XII. O meu primeiro amigo...........110  
 
XIII. Enjeitado.....................121 
  
XIV. Neve e lobos...................129  
 
XV.O Senhor Joli-coeur.............146 
 
XVI. Chegada a Paris................158  
 
XVII. As pedreiras de Gentilly......164  
 
XVIII. Lise.........................170  
 
XIX. Jardineiro.....................182  

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XX. Dispersão da família............189  

​Segunda parte  

I. Para a frente....................207  

II. Uma cidade enfarruscada.........226 

III. Aprendiz.......................233  

IV. A inundação.....................238 

V. Na ladeira.......................250  

VI. Libertação......................259  

VII. Uma lição de música............271 

VIII. A vaca do Príncipe............281 

IX. A mãe Barberin..................299 

X. A antiga e a nova família........313  

XI. Barberin........................319  

XII. Investigações..................331 

XIII. A Família Driscoll............343 

XIV. Honrarás pai e mãe-............355 

XV. «Capi» prevertido...............364  

XVI. As belas roupinhas enganam.....370 

XVII. O tio de Artur................376 

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XVIII. Vésperas de Natal............381 

XIx. Os receios de Mattia...........386 

XX. Bob.............................403 

XXI. O cisne........................412 

XXII. As belas roupinhas falaram verdade..............422  

 
XXIII. Em família...................432  

CAPÍTULO 01.  

NA ALDEIA.  

Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como as outras crianças, 
pois,- quando eu chorava, uma mulher me estreitava nos seus braços, 
embalando-me com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr. 
Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse beijar, e, quando o 
vento de Dezembro arrojava a neve contra os vidros embaciados, aquecia-me os 
pés ao calor das suas mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e 

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letra me recordo ainda.  
Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca ao longo dos 
caminhos arrelvados ou nas charnecas, e que era surpreendido 
pela chuva, corria ela ao meu encontro e forçava-me a abrigar sob 
a saia de lã, que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os 
ombros.  
,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira como me falava, 
pelas suas carícias e pela forma como olhava para mim, pela doçura, dos 
ralhos, eu imaginava que era minha mãe.  
Eis como cheguei a saber a verdade: A minha aldeia, ou, para 
melhor dizer, a aldeia onde fui criado-porque eu não tinha terra 
natal, como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde passei a 
infância, chama-se Chavanon; é uma das mais pobres do centro da 
França.  
O solo não é profundo, e, para produzir boas colheitas, seriam precisos 
adubos ou substâncias que faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia na 
época de que falo) um diminuto número de campos cultivados, ao passo que se 
vêem por toda a parte extensas charnecas onde só crescem urzes e giestas.  

Para encontrarmos belas árvores é preciso descermos até às margens dos 


ribeiros onde, em nesgas de prado, se desenvolvem grandes castanheiros e 
carvalhos vigorosos.  
É numa dessas depressões de terreno, à beira dum regato que 
vai misturar as suas águas rápidas num dos afluentes do Loire, que 
se ergue a casa onde passei parte da infância.  

Até  aos  oito  anos  nunca  vi  nenhum  homem  naquela  habitação;  contudo 
minha  mãe  não  era  viúva;  mas  o  marido,  que  exercia  a  profissão  de  pedreiro, 
como  
muitos outros operários da região, trabalhava em Paris e não voltara à terra 
depois de eu estar em idade de ver e compreender o que me rodeava. Apenas 
de tempos a tempos ele mandava notícias por qualquer companheiro que 
regressava à aldeia.  
- Sr.a, Barberin, o seu homem continua de saúde; encarregou-me de lhe 
dizer que tudo vai bem, e pediu-me que lhe entregasse o dinheiro; aqui está, 
quer contá-lo?  
E  nada  mais.  A  mãe  Barberin  contentava-se  com  isto:  o 
marido  estava  de  saúde,  o  trabalho  rendia,  ele  ia  ganhando  a 
vida.  
Pelo facto de Barberin se haver demorado tantos anos em Paris, não 
se depreenda daí que se desse mal com a mulher. A ausência nada tinha 
a ver com a questão de desacordo. Conservava-se longe da 
companheira porque o trabalho assim o exigia.  
Num dia de Novembro, ao cair da tarde, um desconhecido parou em 
frente da cancela do nosso quintal. Eu estava no limiar da porta da casa,. 
ocupado em partir achas de lenha. olhando-me por cima da paliçada, o 
homem perguntou-me se era ali que morava a sr.a Barberin.  

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Mandei-o entrar. Impeliu a cancela e, a passos lentos, 
aproximou-se.  

Nunca eu vira criatura tão enlameada: cobriam-no dos pés à cabeça 


manchas de terra, umas ainda húmidas, outras já secas, e percebia-se por tudo 
aquilo que andara durante muito tempo por caminhos Intransitáveis. Ao som 
das nossas vozes a mãe Barberin acorreu e deu de cara com o desconhecido 
na altura em que este chegava à porta.  
- Trago notícias de Paris -disse ele. Eram as singelas palavras que mais de uma 
vez tínhamos ouvido, mas o tom com que foram pronunciadas em nada se 
parecia com aquele que noutras ocasiões acompanhava as frases: «O seu 
homem está de saúde; tudo continua bem».  
- Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin juntando as mãos. - 
Aconteceu uma desgraça a Jerónimo.  
-Pois é verdade. Não se aflija, porque ele não morreu. Mas talvez fique 
estropiado. Por enquanto está no hospital. Fui seu companheiro de enfermaria, 
e, porque eu voltava para a terra, pediu-me que lhe contasse o sucedido quando 
passasse por cá. Não posso demorar-me, porque tenho ainda de palmilhar três 
léguas e já é quase noite.  

A mãe Barberin, que desejava saber pormenores, pediu ao recém-vindo 


que ficasse para a ceia. Partiria no dia seguinte de manhã. o homem sentou-se 
a um canto da lareira e, enquanto comia, ia contando como o desastre 
acontecera: Barberin ficara meio esmagado num desmoronamento de 
andaimes; e, pelo facto de terem provado que ele estava indevidamente no 
local onde fora ferido, o empreiteiro recusava pagar-lhe qualquer 
indemnização.  
- O pobre Barberin tem pouca sorte - acrescentou ele. - Há para aí 
malandros que encontrariam logo naquele caso uma fonte de dinheiro; mas o 
seu marido não arranjará nada.  
E, secando as calças que se tornavam rígidas sob a camada de 
lama endurecida, ia repetindo: «pouca sorte», com uma compaixão 
tão sincera que dava a entender que de bom grado se deixaria aleijar 
só com a esperança de arranjar assim bons rendimentos.  
- Todavia - disse ele, concluindo a narrativa - aconselhei-o a 
processar o empreiteiro.  
- Um processo! Isso é muito dispendioso! - Pois sim, mas quando se 
ganha... A mãe Barberin quereria ir a Paris, mas era coisa terrível essa 
viagem tão longa e tão cara.  
Na manhã seguinte fomos à aldeia consultar o pároco. Este foi de opinião 
que ela não devia partir sem saber se seria útil ao marido. Escreveu ao capelão 
do hospital onde Barberin estava, e dias depois recebeu uma resposta em que 
o outro dizia que a mãe Barberin não fosse, mas que enviasse certa soma ao 
marido porque ele queria pôr uma demanda ao empreiteiro. Passaram-se dias 
e semanas, e de tempos a tempos chegavam cartas pedindo novas remessas de 
dinheiro; a última, mais exigente que as anteriores, dizia que, se as economias 
estivessem esgotadas, seria necessário vender a vaca para arranjar a 

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Importância precisa.  

Aqueles que viveram na aldeia com os camponeses sabem quanta 


miséria e angústia encerram estas três palavras: «Vender a vaca».  
Para o naturalista, a vaca é um animal ruminante; para o turista, é um 
complemento de paisagem, quando ergue acima das ervas o focinho húmido 
de orvalho; para a criança citadina, é a origem do queijo e do café com leite; 
mas para o camponês é tudo quanto há de melhor. Por muito pobre que seja e 
embora tenha família numerosa, possui a certeza de não morrer de fome 
enquanto houver uma vaca no seu estábulo. Com uma corda ou mesmo com 
um simples esparto em volta dos chifres, é levada por uma criança ao longo 
dos caminhos cobertos de ervas, onde a pastagem não pertence a ninguém. E 
à noite a família Inteira tem manteiga na sopa e leite para tomar: o pai e a mãe, 
os filhos, tanto OS grandes como os pequenos, todos enfim se sustentam da 
vaca.  

Vivíamos tão bem da nossa, a mãe Barberin e eu, que até então eu quase 
nunca comera carne. Mas não só nos alimentava como era também uma 
camarada, uma amiga - Porque a vaca não é um animal estúpido; pelo 
contrário, é cheio de inteligência. ela é fértil em qualidades morais que se 
desenvolvem ainda mais se a habituarmos ao nosso trato.  
Em suma, estimávamo-la e ela estimava-nos. Contudo foi preciso 
separarmo-nos, pois somente pela «venda da vaca» podíamos 
satisfazer Barberin.  

Veio um negociante, e, depois de haver examinado bem a Ruça, depois de a 


tactear durante muito tempo, meneando a cabeça com ar descontente, e de 
dizer e repetir mais de cem vezes que não lhe convinha, que era um animal 
miserável que lhe não daria ganho na revenda, que não produzia leite, acabou 
por declarar que ficava com a vaca, mas só por caridade, para obsequiar a Sr.a 
Barberin, que era boa criatura.  

A pobre Ruça, como se compreendesse o que se  

passava, não quis sair do estábulo e principiou a mugir.  

- Vai por detrás e põe-na cá para fora - disse-me o negociante de 


gado, entregando-me o chicote que trazia consigo.  
- Assim, não - objectou a mãe Barberin. Segurando a vaca pela correia, 
falou-lhe docemente: - Vamos, minha bichinha, vamos. E a Ruça não 
resistiu mais; uma vez na estrada, o homem amarrou-a às traseiras do 
carro e ela lá foi, bem ou mal, seguindo o cavalo.  

Entrámos em casa. Mas ouvíamos ainda os seus mugidos.  

Nunca mais houve leite nem manteiga. De manhã,  

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um bocado de pão; à tarde, batatas com um pouco de sal.  

Tempos depois da venda da Ruça, chegou a terça-feira de Entrudo; no 


ano precedente a mãe Barberin fizera-me nesse mesmo dia um banquete de 
coscorões e sonhos; eu comera-os e apreciara-os tanto, que ela ficara toda 
contente. Mas então tínhamos a Ruça que produzia o leite e a manteiga para 
adicionarmos à farinha.  

Já não havia Ruça, nem leite, nem manteiga, nem terça-feira de 
Carnaval: era isto que eu dizia, muito tristemente, com os meus 
botões.  

Contudo, a mãe Barberin fez-me uma surpresa; se bem que não 


fosse hábito seu recorrer às vizinhas, pediu a uma delas uma 
chávena de leite, a outra um pouco de manteiga, e, quando ao 
meio-dia entrei em casa, encontrei-a a deitar farinha num grande 
tacho de barro.  
- Olha! Farinha! - disse eu, aproximando-me. - O que se faz 
com a farinha? - interrogou a mãe Barberin, olhando para mim.  
- Pão. - E que 
mais?  

- Caldo. - E além disso? - Ora... Não sei. - Sabes, sim; mas como és 
bom rapazinho não te atreves a dizê-lo. E sabes que hoje é o dia em 
que se fazem os coscorões e os sonhos. Como não há agora em casa 
nem manteiga nem leite, não me queres falar nisso. Não é verdade?  
- Oh! mãezinha! - Como eu já adivinhava tudo isso, arranjei as 
coisas de maneira que a terça-feira de Entrudo não fizesse má 
figura. Vê o que está no armário.  
Abri-o vivamente e vi a xícara de leite, manteiga, ovos e três maçãs.  
- Dá-me os ovos - disse-Me ela - e, enquanto os quebro, descasca as 
maçãs.  
Cortei a fruta em fatias, e, entretanto, ela deitou os ovos na farinha e 
pôs-se a bater tudo, misturando de tempos a tempos uma colher de 
leite.  
Depois da massa pronta, a mãe Barberin colocou o tacho sobre as cinzas 
quentes, e nada mais fizemos senão esperar pela tarde, pois era à ceia que 
devíamos comer os sonhos e os coscorões. Para falar verdade, devo 
confessar. que o dia me pareceu comprido e mais duma vez fui levantar a 
roupa que abafava o tacho.  
- Tanto queres fazer que a massa não levedará - dizia-me a mãe Barberin.  
Mas afinal levedou bem, e aqui e ali viam-se bolhas que vinham 
rebentar à superfície. Daquela mistura em fermentação exalava-se o 
cheiro agradável de ovos e leite.  
- Parte umas cavacas - ordenava ela. - Precisamos de lume bem ateado e 

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sem fumo.  
Enfim a candeia foi acesa. - Deita lenha no lume! - disse-me a mãe Barberin. 
Não foi necessário que ela me repetisse as palavras que eu tão 
impacientemente esperava. Bem depressa  

uma grande chama se elevou na lareira espalhando na cozinha a sua luz 


vacilante.  
Então a mãe Barberin desprendeu da parede a frigideira e 
pô-la ao fogo.  
- Dá-me a manteiga. Tirou um pedacinho na ponta da faca e 
deitou-a na frigideira, onde se derreteu crepitando.  
No entanto, por muito atento que eu estivesse àquele som 
tão simpático, pareceu-me ouvir passos no quintal.  

Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos pedir lume. Não 
me preocupei com isso, porque a mãe Barberin, que mergulhara a colher no 
tacho, acabara de deitar na frigideira um pedaço da massa, e não era  
altura própria de haver distracções.  
Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir, se abriu 
bruscamente.  
- Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar. Um homem 
entrara, e a claridade das chamas, incidindo nele, mostrou-me que estava 
vestido com uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado.  

- Temos banquete? Não se incomodem - disse ele, 


rudemente.  
- Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin, descansando a caçarola 
no chão. - Pois és tu, Jerónimo?  
E, segurando-me pelo braço, empurrou-me para o 
desconhecido, que se detivera no limiar da porta.  
- É o teu pai.  

CAPÍTULO 02.  

UM PAI ADOPTIVO.  

APROXIMEI-ME para o beijar por minha vez, mas, com a 


ponta do cajado, ele deteve-me.  

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- Quem é aquele? Disseste-me... - Sim... mas não era verdade, porque... 
- Ah! não era verdade, não era verdade! Deu alguns passos para mim 
com o bordão erguido, e, instintivamente, recuei. Que fizera eu? Em que 
era culpado? Porquê aquele acolhimento quando Ia beijá-lo Não tive 
tempo de considerar estas perguntas que se apresentaram ao meu 
espírito perturbado.  
- Vejo que festejam a terça-feira de Carnaval - disse ele. - Calha bem, 
porque tenho uma fome levada da breca. Que há para a ceia?  
- tou a fazer coscorões. - Isso sei eu; mas não vais dar coscorões 
a um homem que calcorreou dez léguas.  
- Não há mais nada: não te esperávamos. - O 
quê?! Nada para a ceia? Olhou em redor:  

- Temos manteiga - disse ele. Levantou os olhos para o sítio do tecto onde 
antigamente se dependurava o toucinho; mas havia muito tempo que o gancho 
estava sem nada; da trave só pendiam enfiadas de alhos e cebolas.  
- E aqui estão cebolas - acrescentou, deitando abaixo algumas 
com a ponta do bordão. - Quatro ou  
cinco cebolas, um bocado de manteiga e teremos uma bela sopa. Tira daí 
os teus coscorões e faz um estrugido.  
Tirar os coscorões da caçarola A mãe Barberin não replicou. 
Pelo contrário, apressou-se a cumprir as ordens do marido, 
enquanto este se sentava no banco, ao canto da lareira.  
Não me atrevia a sair do lugar para onde o cajado me forçara a ir; apoiado 
contra a mesa, eu contemplava o homem. Teria talvez uns cinquenta anos, a 
cara era dura e desagradável; em consequência da ferida, via-se obrigado a 
conservar a cabeça inclinada sobre o ombro direito e essa disformidade 
contribuía para o seu aspecto pouco tranquilizador.  
A mãe Barberin substituíra o tacho que estava ao lume. - É com essa 
migalha de manteiga que vais fazer a sopa? - perguntou ele.  
E, agarrando no prato onde se encontrava a manteiga, deitou-a toda na 
caçarola. Acabara-se a manteiga, já não havia coscorões.  
Em qualquer outra ocasião, ter-me-ia afligido por semelhante 
catástrofe, mas já não pensava em coscorões nem em sonhos, e a 
única coisa que me preocupava era que aquele homem, que parecia 
tão mau, fosse meu pai.  
«Meu pai, meu pai!» repetia eu, maquinalmente. Quisera beijá-lo e ele 
repelira-me com a ponta do cajado. Porquê? A mãe Barberin nunca 
me afastava quando eu a ia beijar; pelo contrário, estreitava-me nos 
braços e apertava-me de encontro a si.  

- Em vez de ficares aí especado - disse-me ele. - vai buscar os 


pratos.  
Apressei-me a obedecer. A sopa estava pronta.  

A mãe Barberin serviu-a.  


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Sentia-me tão inquieto, tão perturbado, que não podia comer, e 
contemplava-o também, mas furtivamente, baixando os olhos quando 
encontrava os seus.  
- Não costuma comer mais do que isto? - perguntou de súbito o 
homem, apontando-me com a colher.  
- Ah! sim, come bem. - Tanto pior; se ao menos não engolisse nada... 
Como é natural, eu não tinha desejo de falar, e a mãe Barberin parecia tão 
disposta como eu para conversas: andava cá e lá em volta da mesa, 
atenta, a servir o marido.  
- Então não tens fome? - perguntou-me.  

- Não. - Pois bem! Vai-te deitar, e trata de dormir já, senão 


zango-me.  
A mãe Barberin lançou-me uma olhadela em que me aconselhava a 
obedecer sem replicar. Mas esta recomendação era inútil, pois eu não 
pensava em revoltar-me.  
Como na maioria das casas dos camponeses, a cozinha 
servia também de quarto de dormir. Junto  
da lareira estava tudo o que era preciso para comer: a mesa, a arca do pão, o 
aparador; na outra extremidade, o necessário para dormir; num ângulo, a cama 
da mãe Barberin; no canto oposto, a minha, que se achava numa espécie de 
armário rodeado duma cortina de linho vermelho.  
Despi-me rapidamente e deitei-me. Mas dormir, isso era 
outra coisa.  
Não se dorme para obedecer a uma ordem: dorme-se porque se tem sono e 
porque se está tranquilo. Ora, eu não tinha sono e não estava tranquilo. 
Sentia-me terrivelmente atormentado e ainda por cima muito infeliz.  

O quê?! Pois aquele homem era meu pai! Então porque me 
tratava tão rudemente?  
Com a cara voltada para a parede, esforçava-me por expulsar 
estas ideias e adormecer conforme me fora ordenado; mas era 
impossível; o sono não vinha; nunca eu me sentira tão desperto.,  
Ao fim de certo tempo, ouvi que se aproximavam da minha cama. 
Pelos passos lentos, que se arrastavam, pesados, reconheci logo que 
não era a mãe Barberin.  
Um hálito quente chegou até mim. - Dormes? - perguntou uma voz 
sufocada. Abstive-me de responder, pois as terríveis palavras: «senão 
zango-me» soavam ainda aos meus ouvidos.  
- Ele dorme - disse a mãe Barberin. - Logo que se deita, 
adormece; é o seu costume; podes falar sem receio de que o petiz 
te oiça.  
Sem dúvida, eu deveria dizer que não dormia, porém não me atrevia a 
isso; haviam-me mandado dormir; eu não dormia, portanto estava a ser 
desobediente.  

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- Em que ficou o teu processo? - perguntou a mãe 
Barberin.  
- Perdido! Os juizes decidiram que eu me colocara indevidamente debaixo 
dos andaimes e que o empreiteiro nada me tinha a pagar.  
Dizendo isto, o homem deu um murro sobre a mesa e pós-se a vociferar, 
proferindo palavras Insensatas.  
- Perdi o processo, - continuou ele daí a pouco, - perdi o dinheiro, fiquei 
aleijado e na miséria. Como se não fosse bastante, ao entrar em casa encontro 
uma criança! Explicar-me-ás porque não fizeste o que te disse?  

- Não se abandona assim uma criança que criámos com o nosso leite e 
de quem gostamos.  
- Não era teu filho.  

- E quando eu quis fazer o que tu pedias, precisamente nessa altura, ele 


adoeceu.  
- Adoeceu? - gim, caiu de cama. E não era a ocasião própria para o 
levar para o asilo, podia morrer, pois não é  
verdade?  
-E quando ficou curado? - É que não se curou logo. A seguir àquela 
doença veio outra: o pobre pequeno tossia que metia dó.  
- Mas depois? - O tempo foi passando. Se eu esperara até aí, nada 
importava esperar mais.  
- Que idade tem o garoto agora? - Oito anos. - Pois bem! Irá aos 
oito anos para onde devia ter ido antes, embora lhe custe mais!  
- Ah! Jerónimo, não farás isso. - Não farei isso! Quem mo 
impedirá? Imaginas que poderemos tê-lo sempre connosco?  
Houve um momento de silêncio que aproveitei para 
respirar; a comoção apertava-me a garganta a ponto de me 
sufocar.  
Um instante depois, a mãe Barberin replicou: - Ah! Como Paris 
te modificou. Não falarias assim antes de sair daqui.  
- Talvez. Mas o certo é que, se Paris me fez mudar, também me estropiou. 
Como ganhar a vida agora, a tua e a minha? Já não temos dinheiro. Vendemos a 
vaca. E quando não há que comer, temos de alimentar uma criança que não é 
nossa?  
- É meu filho. - É tanto teu como meu. Não é filho de camponeses. 
Examinei-o durante a ceia: é franzino, magro, de braços e pernas 
delgados.  
-É o pequeno mais bonito da região. - Não digo o contrário. Mas não é forte. 
Quem consegue ser trabalhador com uns braços daqueles? Não passa de um 
menino da cidade, e disso não precisamos aqui.  

- Digo-te que é bom rapazinho, esperto como um rato e de 

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bom coração. Trabalhará para nós.  
- Entretanto, trabalhamos para ele, e eu já não posso fazer 
nada.  
-Se os pais o reclamam, que dirás? - Os pais! Tem ele, por acaso, pais? Se os 
tivesse, tê-lo-iam procurado, e encontrado com certeza, de há oito anos para 
cá. Ah! fiz uma bela tolice em imaginar que o pequeno tinha pais que o 
reclamariam e nos pagariam o incómodo de o haver criado. Não passei dum 
estúpido, dum ingénuo. Lá porque estava embrulhado em belas roupas 
arrendadas, isto não significava que os pais o procurassem. E talvez morressem. 
- E se estão vivos? Se um dia vêm buscá-lo? Tenho cá na minha ideia que virão.  
- Ora, mandamo-los ao asilo. E basta de conversa. Amanhã levo-o ao 
administrador. Agora vou cumprimentar o Francisco. Dentro duma hora 
estarei de volta.  
A porta abriu-se e tornou a fechar-se. Ele fora-se embora. 
Então, soerguendo-me rapidamente, chamei a mãe 
Barberin.  
- Oh! mamã!  
Acorreu para junto da minha cama. - Vai deixar-me ir para o 
asilo? - Não, meu filho, não. Beijou-me ternamente e 
estreitou-me nos braços.  

Aquela carícia deu-me coragem e as lágrimas deixaram de correr.  


- Então não dormias? - perguntou-me ela docemente. - Não tenho 
culpa. - Não estou a ralhar; nesse caso, ouviste o que disse Jerónimo?  
- Ouvi: não é minha mamã, mas ao menos ele não é meu 
pai.  

Pronunciei estas últimas palavras em tom diferente das primeiras, 


porque, se estava desolado por ela não ser realmente minha mãe, sentia-me 
feliz, quase orgulhoso, em saber que não era filho dele.  
A mãe Barberin não pareceu prestar atenção a isso. - Deveria, talvez, ter-te 
dito a verdade; mas considerava-te tanto meu filho, que não tinha coragem de 
te declarar que não era a tua verdadeira mãe. A tua mãe, pobre pequeno, 
ninguém a conhece, compreendes? Estará viva, ou morta? Não o sabemos. 
Uma manhã, em Paris, quando Jerónimo ia para o trabalho e passou numa rua 
a que chamam a avenida Breteuil - rua larga e cheia de árvores - ouviu o choro 
duma criança. Parecia partir do vão duma porta de jardim. Estávamos no mês 
de Fevereiro; amanhecia. Jerónimo aproximou-se e viu uma criancinha deitada 
na soleira da porta. Olhou em volta para chamar alguém e distinguiu um 
homem que saía detrás duma árvore, fugindo. Sem dúvida esse homem 
escondera-se para ver se encontravam o pequenito que ele próprio ali 
colocara. Jerónimo sentiu-se atrapalhado. E enquanto pensava no que havia de 
fazer, chegaram outros operários e decidiram levar ao comissariado a criança, 
que não parava de gritar. Naturalmente tinha frio. Então despiram-na em 
frente do fogão aceso.  
«Era um lindo menino de cinco a seis meses, rosado, forte, gordo; as faixas 

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e as roupas que o envolviam faziam crer que seria filho de gente rica. Talvez 
uma criança roubada, que depois abandonassem». Foi isto que o comissário 
explicou. Que destino lhe Iam dar? O comissário escreveu tudo o que 
Jerónimo sabia, e também a descrição da criança juntamente com a das 
roupinhas que não estavam marcadas, e a seguir declarou que ia enviá-la ao 
asilo dos enjeitados, se ninguém, entre os que ali haviam comparecido, 
quisesse tomar conta dela. Os pais certamente a iam procurar, 
recompensariam  

generosamente aqueles que a tivessem tomado a seu cargo. Jerónimo 


avançou então e disse que ficava com o petiz; entregaram-lho. Eu tinha 
justamente um filho da mesma Idade; não havia complicação para mim em 
amamentar dois. Foi assim que me tornei tua mãe.  
- Oh! mamã! - Ao fim de três meses, perdi o meu filho, e ainda te fiquei com 
mais amizade. Cheguei a esquecer que não eras realmente nosso filho. 
Infelizmente Jerónimo não o esqueceu, e, vendo ao fim de três anos que 
ninguém te procurava, ou, pelo menos, que ninguém te encontrava, quis 
pôr-te no asilo. Ouviste há pouco por que razão lhe não obedeci.  
- Oh! não quero ir para o asilo! - exclamei, agarrando-me a 
ela. - Mãe Barberin, peço-lhe que não me mande para o asilo!  
- Não, meu filho, não irás. Arranjarei as coisas. Trabalharemos e 
trabalharás também.  
- Farei tudo o que quiser, mas não quero ir para o asilo.  
- Não irás; mas com uma condição, é que vais dormir Já. 
Quando ele entrar não deve encontrar-te acordado.  
Depois de me ter beijado, ela voltou-me a cara para a parede.  
Eu bem queria dormir; mas ficara muito abalado para que 
pudesse encontrar facilmente a calma e o sono.  
Assim, a mãe Barberin, tão boa, tão meiga para mim, não era a 
minha verdadeira mãe! Que seria: então uma mãe autêntica? 
Melhor, mais meiga ainda? oh! não achava possível!  
Porém,  o  que  eu  compreendia,  o  que  sentia,  era  que  um  pai  teria  sido 
menos  severo  do  que  Barberin, e não me olharia com aqueles olhos duros e de 
cajado erguido.  
Queria ele mandar-me para o asilo; a mãe Barberin poderia Impedi-lo?  

Havia na aldeia dois rapazes a quem chamavam os «pequenos 


do asilo»; usavam uma rodela de chumbo ao pescoço, com um 
número; andavam mal vestidos e sujos; troçavam deles; as outras 
crianças perseguiam-nos muitas vezes como quem persegue um 
cão vadio, para se divertir.  

Ah! Eu não queria ser como aqueles pequenos; não queria 


ter um número ao pescoço, não queria  

14
que corressem atrás de mim, gritando: «Vai para o  

asilo! Vai para o asilo!».  


Esta Ideia dava-me calafrios e fazia-me bater os dentes, E não 
dormia.  
Barberin Ia voltar. Felizmente, não regressou tão depressa 
como dissera, e o sono chegou antes dele.  
CAPÍTULO 03.  

A COMPANHIA DO SIgnOR VITALI  

DURANTE a manhã, Barberin nada me disse, e eu principiava 


a acreditar que fora abandonado o projecto de me 
mandarem para o asilo.  
Mas, quando soou meio-dia, Barberin ordenou-me que 
pusesse o barrete e o seguisse.  
Assustado, volvi os olhos para a mãe Barberin a fim de lhe implorar 
socorro; disfarçadamente fez-me sinal de que devia obedecer; ao mesmo 
tempo um gesto da sua mão tranquilizou-me; não havia nada a temer. Então, 
sem replicar, pus-me a caminho atrás de Barberin.  
Da  nossa  casa  à  aldeia a distância é longa; é preciso andar mais de uma 
hora. Passou-se essa hora sem que ele me dirigisse uma única palavra.  
Aonde me levaria? Esta pergunta inquietava-me, apesar do 
gesto animador da mãe Barberin; e, para escapar a um perigo 
que eu pressentia sem o conhecer, pensava em fugir.  

Com este fim, tratei de retardar o passo; quando estivesse 


bastante afastado, atirar-me-ia para um fosso, e o homem não 
poderia apanhar-me.  
De  começo,  Barberin  limitou-se  a  dizer-me  que  andasse  mais 
depressa;  mas,  depois,  adivinhou, sem dúvida, as minhas intenções 
e agarrou-me pelo pulso,  
Foi assim que entrámos na aldeia. Quando atravessámos a rua, 
em frente dum café, um sujeito que estava à porta chamou 
Barberin e  

convidou-o a entrar.  
Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua frente, e, uma 
vez dentro do estabelecimento, fechou  

a porta.  

15
Senti-me aliviado; o café não me parecia um lugar perigoso; 
e, além disso, sempre era uma casa onde há muito tempo eu 
tinha desejos de penetrar.  
O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que poderia ser 
aquilo?  
Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta! Vira gente sair dali, 
de cara avermelhada e pernas trémulas; ao passar em frente da porta 
ouvira, em muitas ocasiões, gritos e canções que faziam estremecer os 
vidros.  
Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás Daquelas co 
rtinas vermelhas?  
Ia sabê-lo. Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do café com o dono, que 
o convidara a entrar, fui sentar-me perto do fogão e olhei em redor. No canto 
oposto àquele que ocupava, achava-se um velho alto de barba branca, vestido 
de forma tão estranha como eu nunca vira.  
Sobre os cabelos, que tombavam em compridas madeixas até aos ombros, 
tinha um chapéu de feltro cinzento, de copa alta e guarnecido de penas 
verdes e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja lã estava 
para o lado de dentro. Esse abafo não tinha  

mangas, e, por dois buracos saiam-lhe os braços cobertos de veludo, 


outrora azul. Polainas de lã subiam-lhe até aos joelhos, e eram apertadas 
com fitas vermelhas que se entrecruzavam em volta das pernas.  
Estava reclinado na cadeira, com o queixo apoiado na mão direita; 
o cotovelo descansava sobre o joelho dobrado.  
Junto dele três cães aqueciam-se, imóveis; um cão de água, branco, outro 
negro e uma cadelinha cor de cinza, de ar inteligente e meigo; o cão 
branco tinha na cabeça um velho boné de polícia preso sob o focinho por 
uma tira de coiro. Enquanto eu examinava o velho com espanto e 
curiosidade, Barberin e o dono do café conversavam a meia voz e ouvi que 
falavam de mim.  
Barberin contava que viera à aldeia para me levar ao administrador, a fim de 
que este pedisse aos asilos que pagassem uma pensão para ele continuar a 
ter-me em casa.  
Fora Isto então que a mãe Barberin conseguira obter do 
marido; compreendi logo que, se Barberin achasse vantagem em 
conservar-me junto de si, eu já nada tinha a recear.  
O velho, disfarçadamente, escutava também o que os outros 
diziam; de súbito, apontando-me com a  

mão direita e dirigindo-se a Barberin, perguntou com acento 


estrangeiro:  
- É aquele petiz que o atrapalha? - Ele próprio. - E Imagina que a 
administração dos asilos do seu departamento lhe vai pagar as 
mensalidades da alimentação?  

16
- Ora essa! Visto que ele não tem pais e está a meu cargo, 
parece-me ser justo que alguém pague as despesas.  
- Pois bem! Creio que jamais obterá a pensão que deseja.  

-  Então,  irá  para  o  asilo;  não há nenhuma lei que me obrigue 


a ficar com ele na minha casa se eu não quiser.  
- Talvez houvesse um meio de se livrar já do rapaz - disse o velho, depois 
dum momento de reflexão - e até de ganhar algum dinheiro.  
- Se o senhor me der esse meio, pago-lhe de boa vontade uma 
garrafa.  
- Encomende a garrafa, e o negócio está feito. - Palavra? O velho, 
deixando a cadeira, veio sentar-se em frente de Barberin. Coisa 
esquisita, no momento em que se levantou, a pele de carneiro 
ergueu-se com um movimento incompreensível: era de crer que 
ele tivesse um cão sob o braço esquerdo.  
- O que você deseja - disse o velhote. - é que esta criança não se 
alimente mais tempo à sua custa, não é verdade? Ou então, que lhe 
paguem, não é assim?  
- Exactamente; porque... - Oh! o motivo não me Interessa, não 
preciso conhecé-lo; basta-me saber que não quer o garoto; se 
é isto, dê-mo, tomo conta dele.  
- Dá-lo! - Ora essa! não quer desembaraçar-se do petiz? - 
Dar-lhe uma criança como aquela, um pequeno tão perfeito, pois 
é uma perfeita criança, repare.  
- Já reparei. - Remi! Vem cá. Aproximei-me da mesa, trémulo. - 
Vamos, não tenhas medo, menino - disse o velho. - Olhem para ele - 
continuou Barberin. - Não digo que seJ a uma criança feia. Se fosse 
feia eu não a queria, os monstros não são a minha Especialidade.  
- Ah! se fosse um monstro de duas cabeças, ou ao menos um 
anão... Não pensaria em mandá-lo  

para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se pode tirar 
proveito dele, explorando a própria monstruosidade. Mas este não é anão nem 
monstro; tem uma figura como toda a gente e portanto não serve para nada.  
- Serve para trabalhar. - É muito débil para isso. - Ele, débil! Ora 
adeus! Repare, veja as pernas: já viu algumas mais direitas?  
E Barberin arregaçou-me as calças. - Excessivamente delgadas - 
replicou o velho. - E os braços? - continuou Barberin. - São como as 
pernas; poderá resistir a uma vida normal, mas não resistirá à fadiga 
e à miséria.  
- Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o. O velho passou-me a 
mão descarnada nas pernas, tacteando-as, sacudindo a cabeça e 
fazendo uma careta.  

Eu assistira já a uma cena semelhante quando o negociante de gado 

17
fora comprar a nossa vaca. Examinara-a também e apalpara-a. Meneara 
também a cabeça e fizera uma careta de desdém: no entanto,  
comprara-a e levara-a consigo.  
O velho iria comprar-me e levar-me? Ah! mãe Barberin, 
mãe Barberin!  
Desgraçadamente ela não estava ali para me proteger.  
- É uma criança como há muitas - disse o velho-, - eis a verdade; mas uma 
criança das cidades: por isso há a certeza de que nunca servirá para os 
trabalhos do campo. Ponha-o em frente da charrua, a conduzir os bois, verá 
quanto tempo ele durará.  
- Mas repare bem no garoto! Eu estava na extremidade da mesa entre 
Barberin e o velho, que me empurravam ora para um, ora para outro.  

- Enfim - disse o estrangeiro -, fico com ele tal qual é. Porém, 


bem entendido, não o compro, alugo-o. Dou-lhe vinte francos por 
ano.  
- Vinte francos! - É um bom preço, e pago adiantado; recebe 
quatro belas moedas de cem soldos e livra-se do pequeno.  
- Mas, se fico com ele, o asilo pagar-me-á mais de dez francos 
por mês.  
- Sete ou oito, eu conheço os preços, e ainda por cima terá de o 
alimentar.  
- Ele trabalhará. - Se o achasse capaz de trabalhar, não quereria 
desembaraçar-se do rapaz.  
- Em qualquer caso, sempre teria os dez francos. - E se o asilo, em vez de o 
deixar consigo, o entregar a outro, você não terá absolutamente nada; 
enquanto que comigo não arrisca coisa nenhuma: o seu único incómodo é 
estender a mão.  
Vasculhou na algibeira e sacou uma bolsa de coiro, da qual tirou 
quatro moedas de prata que pôs sobre a mesa, fazendo-as tinir.  
- Mas imagine - exclamou Barberin, - que os pais do 
pequeno aparecem de um dia para outro!  
- Que importa? - Seria proveitoso para aqueles que o tivessem criado; se 
eu não contasse com isso, nunca me encarregaria dele.  
Estas  palavras  de  Barberin:  «se  eu  não  contasse  com  os  pais, 
nunca me encarregaria dele», fizeram-me detestá-lo mais.  
- E é Justamente porque já não conta com isso - disse o velho - 
que o quer pôr na rua. E a quem se dirigirão esses pais, se chegarem a 
aparecer? A si, não é verdade, e não a mim, que não conhecem?  
- Pode acontecer que o senhor os encontre. - Nesse caso, convenhamos 
que, se um dia aparecerem os pais, dividiremos o lucro, e lhe dou mais 
trinta francos.  

- Ponha quarenta. - Não, pelos serviços que me prestará, Isso 

18
não é  
possível.  
- E que espécie de serviços quer o senhor que ele lhe faça?  
O Interpelado olhou para Barberin com ar finório, e, esvaziando 
o-copo aos golinhos, disse:  
- Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às vezes, depois de um dia de 
fadiga, quando o tempo está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz 
distrair-me-á.  
- Lá para esse fim, as pernas serão bastante sólidas.  
- Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar e caminhar; em 
suma, fará parte da companhia do signor Vitalis.  
- E onde está essa companhia? - O signor Vitalis sou eu, como já deve ter 
calculado; os actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los.  
Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou num animal 
estranho que tinha sob o braço esquerdo, de encontro a si.  
Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente a pele de 
carneiro; mas não era um eãozinho como eu pensara.  
Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu via pela primeira vez e 
para quem olhava com estupefacção.  
Estava vestido com uma blusa vermelha debruada de galão dourado, mas os 
braços e as pernas mostravam-se nus, pois pareciam realmente braços e pernas 
o que ele tinha, e não patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada. 
Possuía uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face 
curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas e lábios amarelos; mas o que 
mais me impressionou foram os olhos, muito próximos um do outro, duma 
grande mobilidade, brilhantes como espelhos.  

- Ah! Que feio macaco! - exclamou Barberin. Estas palavras 


dissiparam-me o espanto, pois, se eu nunca vira macacos, ouvira já 
falar deles; não era pois uma criancinha preta que tinha na minha 
presença, mas um macaco.  
- Eis o primeiro actor da minha companhia - disse Vitalis - o sr. Joli-Coeur. 
Joli-Coeur, meu amigo, cumprimenta a sociedade.  
Joli-Coeur levou a mão fechada aos lábios e atirou-nos um beijo.  
- Agora - continuou Vitalis, designando o cão branco - aqui 
está outro: o signor Capi vai ter a honra de apresentar os seus 
amigos aos estimáveis presentes.  
A esta ordem, o cão, que até aí não fizera o mais pequeno movimento, 
levantou-se vivamente e, erguendo-se nas patas traseiras, cruzou as da 
frente sobre o peito e cumprimentou o dono, de tal maneira que o boné de 
polícia roçou o solo.  
Uma vez cumprido este dever de cortesia, voltou-se para  
os companheiros, e, com uma pata, enquanto a outra se conservava 

19
sobre o peito, fez sinal para que se aproximassem.  
Os outros dois cães, que tinham os olhos fitos naquele, levantaram-se 
logo, e, com as patas dianteiras unidas, como se fossem pessoas de mão 
dada, avançaram gravemente uns seis passos, depois recuaram e 
saudaram os circunstantes.  
- Aquele a que chamo Capi - continuou Vitalis - ou Capitano em italiano, é o 
chefe dos cães; é ele que, como mais inteligente, transmite as minhas ordens. 
Este jovem elegante de pêlo negro é o signor Zerbino, o que significa garboso, 
nome que ele merece em absoluto. Quanto a esta criaturinha de ar modesto, é a 
signora Dolce, uma encantadora inglesa que não desmerece o seu doce nome. É 
com estas personagens, a diversos títulos notáveis, que tenho a fortuna de 
percorrer o mundo, ganhando a vida mais ou menos bem ao sabor da sorte. 
Capi!  

O cão branco cruzou as patas. - Capi, venha cá, meu amigo, e 


seja bastante amável, para dizer que horas são a este rapazinho, 
que o observa com olhos tão redondos como bolas.  
Capi descruzou as patas, aproximou-se do dono, afastou a pele de 
carneiro, vasculhou a algibeira do colete, tirou dali um grande relógio 
de prata, olhou para o mostrador e ladrou duas vezes distintamente. e, 
a seguir aos dois latidos muito acentuados, fortes e nítidos, soltou 
outros três mais fracos.  
- Muito bem - disse Vitalis. - agradeço-lhe, signor Capi. E, agora, 
peço-lhe que convide a signora Dolce a nos dar o prazer de dançar um 
bocadinho na corda.  
Capi procurou outra vez na algibeira do casaco do dono e sacou 
dali uma corda. Fez sinal a Zerbino e este colocou-se rapidamente na 
sua frente. Então Capi atirou-lhe uma ponta da corda e os dois 
puseram-se gravemente a fazê-la girar.  
Quando o movimento se tornou regular, Dolce precipitou-se no círculo e 
saltou ligeiramente, conservando os belos olhos meigos fitos nos do dono.  
- Como vêem - disse este. - os meus alunos são inteligentes; 
porém, a inteligência só é apreciada em todo o seu valor pela 
comparação. Aí está porque introduzo o garoto na companhia; fará o 
papel de estúpido, e a inteligência dos outros actores será mais 
apreciada.  
- Oh! Para fazer de estúpido... - interrompeu Barberin.  
- É preciso não o ser na realidade - continuou Vitalis. - E já vamos ver se 
ele é ou não inteligente. Se é, compreenderá que acompanhando o signor 
Vitalis terá a dita de viajar, de percorrer a França e outros países, de levar uma 
vida livre. Se não é inteligente, chorará, gritará, e, como o signor não gosta de 
crianças más, não o levará consigo. Então a criança má irá para o asilo, onde é 
preciso  
trabalhar e comer pouco.  

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Eu tinha inteligência suficiente para compreender estas palavras, mas da 
compreensão à execução havia uma terrível distância a transpor.  
Evidentemente que os alunos do signor Vitalis eram muito 
engraçados, e devia ser muito divertido viajar com eles; mas para isso 
seria necessário deixar a mãe Barberin.  
É verdade que, se eu recusasse, talvez não ficasse com ela, talvez 
me mandassem para o asilo.  
Como ficasse perturbado, de lágrimas nos olhos, Vitalis bateu-me 
docemente na cara com a ponta dos dedos.  
- Vamos - disse ele-, o garoto compreende, visto que não grita; a 
razão entrará nesta cabecinha, e amanhã... Agora - continuou - 
voltemos ao negócio.  
- Não, quarenta. Entabulou-se uma discussão. Vitalis, porém, 
interrompeu-a:  
- O pequeno deve estar maçado aqui. Que vá passear e 
brincar para o quintal da estalagem.  
Ao mesmo tempo fez um sinal a Barberin. - Sim - disse este-, vai 
para o quintal, e não voltes sem que eu te chame, senão 
zango-me.  
Só me restava ir, sem replicar. Fui então para fora, mas sem desejos 
de brincar. Sentei-me numa pedra e pus-me a reflectir.  
Era a minha sorte que se decidia nesse instante. Qual o meu 
destino? o frio e a angústia faziam-me tiritar.  
A discussão entre Vitalis e Barberin durou muito tempo, pois 
decorreu mais de uma hora sem que nenhum deles aparecesse.  
Por fim Barberin surgiu, sózinho. Viria buscar-me para me 
entregar a Vitalis?  
- Vamos - disse-me ele. - Voltemos para casa. A casa! Então eu não 
abandonaria a mãe Barberin? Quereria interrogá-lo, mas não me 
atrevia, pois ele parecia estar de muito mau-humor.  

O percurso fez-se silenciosamente. Mas, uns dez minutos antes de 


chegarmos, Barberin, que caminhava à frente, parou.  
- Olha - disse-me agarrando-me rudemente pela orelha-, - 
se contas uma única palavra do que ouviste hoje, pagá-lo-ás 
caro; tem cautela.  

CAPÍTULO 04.  

DEIXANDO A CASA.  

21
- ENTÃO? - perguntou a mãe Barberin quando entrámos.- Que disse o 
administrador?  
- Não o vimos. - O quê?! Não o viste? - Não, encontrei uns amigos 
no café Notre-Dame, e quando saímos era já muito tarde; 
voltaremos amanhã.  
Assim, Barberin havia renunciado ao seu negócio com o 
homem dos cães...  
Todavia, apesar das ameaças, falaria das minhas incertezas à mãe 
Barberin, se me tivesse podido encontrar sozinho com ela; mas em toda a 
noite Barberin não saiu, e eu deitei-me sem que se me apresentasse a ocasião 
esperada. Adormeci dizendo de mim para mim que ficariam as confidências 
para o dia seguinte.  
Mas, de manhã, quando me levantei, não vi a mãe Barberin.  
Como eu a procurasse em redor da casa, Barberin perguntou o 
que é que queria.  

- A mamã? - Foi à aldeia e só regressará depois do meio dia. Sem saber 


porquê, aquela ausência inquietou-me. Ela não me dissera na véspera 
que ia sair. Por que razão não esperara para nos acompanhar, visto que 
devíamos ir à aldeia de tarde?  
O coração oprimiu-se-me com um vago receio. Barberin 
contemplava-me com ar pouco tranquilizador; querendo escapar a esse 
olhar, fugi para o quintal.  
O quintal, que não era grande, tinha para nós um valor considerável, pois, à 
excepção do trigo, fornecia-nos quase todo o alimento: batatas, favas, couves, 
nabos, cenouras. Não havia um bocado de terreno perdido. Mas a mãe Barberin 
reservara-me um cantinho no qual eu reunira uma infinidade de plantas, 
arrancadas, de manhã, na orla dos bosques, ou ao longo das sebes, enquanto a 
vaca pastava, e metidas depois à terra, no meu jardim.  
Estava ajoelhado no chão, quando ouvi uma voz rude chamar 
por mim.  
Era Barberin. Apressei-me a entrar em casa. Qual não 
foi a minha surpresa ao ver, em frente da chaminé, Vitalis e os 
cães!  
Instantâneamente compreendi o que queria Barberin de mim: Vitalis vinha 
buscar-me, e, para que a mãe Barberin não pudesse defender-me, Barberin 
mandara-a de manhã à aldeia.  
Sentindo que não tinha a esperar socorro nem piedade de 
Barberin, corri para Vitalis:  
- Oh! meu senhor - exclamei eu-, por amor de  
Deus não me leve consigo!  
Desatei em soluços. - Vamos, meu rapaz - disse-me ele com brandura. 
- não serás infeliz comigo. Não bato em crianças, e além disso, terás a 
companhia dos meus actorzinhos que são muito divertidos. De que podes 
22
ter saudades?  

- Oh! meu senhor - exclamei eu, - por amor de Deus não ne leve 
consigo! Sou filho Da mãe Barberin!  
, Em qualquer caso, não ficarás aqui - objectou Barberin, agarrando-me 
brutalmente pela orelha. - Ou o asilo ou aquele senhor; escolhe!  
- Não! A mãe Barberin! - Ah! Já me aborreces - exclamou Barberin, 
encolerizado. - Se é preciso pôr-te daqui para fora à pancada, é o que vou 
fazer.  
-  O pequeno tem pena de deixar a sua mãe Barberin - disse Vitalis. - Não lhe 
deve bater por Isso; tem sentimentos, é bom sinal.  
- Se o senhor o lastima, ele vai berrar mais alto. agora, vamos aos 
negócios.  
E Vitalis poisou na mesa oito moedas de cinco francos que 
Barberin, num Instante, fez desaparecer na algibeira.  
- Onde está a trouxa? - perguntou Vitalis. - Ei-la - respondeu 
Barberin mostrando-lhe un lenço de algodão azul, sarapintado, 
amarrado pelas quatro pontas.  
Vitalis desfez os nós e olhou para o conteúdo do lenço; 
encontravam-se ali duas das minhas camisas, e umas calças de 
linho.  
- Não era isto que tínhamos combinado - observou Vitalis. - Devia dar"me as 
roupas dele, e eu só vejo trapos.  
-O pequeno não tem outras. - Se eu o interrogasse, estou certo de 
que diria que isso é falso. Mas não quero discutir este assunto. Não 
tenho tempo. É preciso pormo-nos a caminho. Vamos, meu rapaz. 
Como se chama ele?  
- Remi. - Vamos,,,Remi, segura na tua trouxa, e passa para a 
frente. Capi marcha!  
Estendi as mãos para o velho, depois para Barberin, porém os dois voltaram 
a cabeça, e senti que Vitalis me agarrava pelo pulso.  
Foi necessário partir.  

Ah!  pareceu-me,  quando  transpus  o  limiar  da  porta,  que 


deixava naquela casa um bocado de mim próprio.  
Olhei em redor; os meus olhos, obscurecidos pelas lágrimas, não 
viram ninguém a quem pedir socorro; ninguém na estrada, ninguém 
ali perto.  
Principiei  a chamar. -Mamã, mãe Barberin! Nem um único 
som respondeu à minha voz, e ela  
extinguiu-se num soluço.  
Tive de seguir Vitalis, que não me largara o pulso. - Boa viagem! - gritou 
Barberin.  
E entrou em casa. Ai de mim! tudo acabara. - Vamos, Remi, 

23
caminhemos, meu filho - disse Vitalis.  
Então comecei a andar ao lado dele. Felizmente não apressou o 
passo, e creio até que o regulou pelo meu.  
O caminho que seguíamos elevava-se em ziguezagues; a cada volta, 
distinguia a casa da mãe Barberin, que ia diminuindo, diminuindo. Bastantes 
vezes fizera eu este percurso e sabia que, no último desvio, veria ainda a casa.  
Por sorte a subida era extensa; contudo, tanto andámos que 
chegámos ao alto.  
Vitalis não me largara o pulso.  
- Não quer descansar um bocadinho? - sugeri eu. - De boa vontade, 
meu rapaz. Pela primeira vez, descerrou a mão. Mas, ao mesmo tempo, vi 
o seu olhar dirigir-se para Capi, e fazer um sinal que este compreendeu.  
Imediatamente, como um cão de pastor, Capi abandonou a chefia dos 
companheiros e veio colocar-se atrás de mim. Esta manobra acabou de me dar 
a perceber o que o sinal já me havia indicado: Capi era o meu guarda; se eu 
fizesse um movimento para fugir, ele deveria saltar-me às pernas.  

Fui sentar-me no parapeito arrelvado e Capi seguiu-me de perto. Uma vez 


ali instalado, procurei, com os olhos enevoados de lágrimas, a casa da mãe 
Barberin. Abaixo de nós, ficava a encosta que acabáramos de subir, dividida 
por prados e bosques, e, no fundo, erguia-se, isolada, a casa, onde eu fora 
criado.  
Apesar da distância e da altura a que nos achávamos, as coisas 
conservavam as formas nítidas e distintas, apenas diminuídas. Tudo estava no 
lugar do costume: o meu carrinho de mão, a minha charrua feita dum ramo 
torneado, a gaiola onde eu criava coelhos, quando possuíamos coelhos, e o 
meu jardim, o meu querido jardim!  
Quem veria florir as minhas pobres flores? Quem comeria os 
meus topinambos? Sem dúvida Barberin, o cruel Barberin.  
Mais um passo na estrada e tudo desapareceria para sempre.  
De súbito, no caminho que da aldeia vai ter a casa, distingui ao longe 
uma touca branca. Desapareceu por trás dum renque de árvores, depois 
tornou a aparecer.  
Era tal a distância que eu só via a alvura da touca, 
semelhante a uma borboleta primaveril de cores desmaiadas, 
adejando entre os ramos.  
Mas há momentos em que o coração vê melhor e mais longe do 
que olhos perscrutadores: reconheci a  
mãe Barberin. Era ela, tinha a certeza; sentia que era ela.  
- Então? - Perguntou Vitalis. - Vamos pôr-nos a caminho?  
Não respondi, continuava a olhar. Era a mãe Barberin, a sua 
touca, o seu saiote azul; era ela.  
Caminhava a passos largos, como se tivesse pressa de entrar em 
casa.  
Ao chegar à cancela, empurrou-a e entrou no quintal, que 

24
atravessou rapidamente.  

No mesmo instante, pus-me de pé sobre o parapeito, sem pensar em 


Capi, que saltou para junto de mim.  
A mãe Barberin não se demorou muito tempo em  
casa. Saiu e principiou a correr dum lado para outro, no 
quintal, de braços abertos.  
Procurava-me. Curvei-me para a frente e gritei com todas as forças.  
- Mamã! Mamã! Mas a voz não podia descer, nem dominar o murmúrio do 
regato: perdeu-se no ar.  
- Que tens? - perguntou Vitalis. - Endoideceste? Sem responder, 
continuei com os olhos fixos na mãe Barberin; ela, porém,. sem 
saber-me tão perto de si, não pensava em erguer a cabeça.  
Atravessara o quintal, voltara para o caminho e olhava para todos os lados. 
Gritei mais alto, mas, como na primeira vez, inutilmente.  
Então, Vitalis, suspeitando a verdade, subiu também para 
cima do parapeito.  
Não lhe foi preciso muito tempo para que visse a touca branca.  
- Pobre pequeno - disse a meia voz. - Oh! por favor - 
exclamei eu, animado por  
aquelas palavras de compaixão - deixe-me voltar para trás.  
Mas Vitalis agarrou-me pelo pulso e fez-me descer para 
a estrada.  
- Visto que Já descansaste - disse ele - marcha agora, meu 
rapaz!  
Quis desprender-me; o velho segurava-me fortemente. - Capi! - gritou 
ele. - Zerbino!  
Os dois cães cercaram-me: Capi atrás, Zerbino à frente.  

Ao fim de alguns passos, virei a cabeça. Havíamos já 


ultrapassado o cume do monte, e já não vi o vale nem a nossa 
casa; apenas ao longe colinas azuladas pareciam subir até ao céu. 
Os meus olhos perderam-se no infinito.  
CAPÍTULO 05.  


CAMINHO.  

VITALIS, por uma rara excepção nos mercadores de crianças, 


não era mau homem.  

25
Bem depressa tive a prova disso. Fora no alto do monte que separa o Loire 
do estuário do Dordogne que ele me retomara a mão, e, quase a seguir, 
havíamos começado a descer a vertente exposta ao sul. Depois de termos 
andado cerca de um quarto de hora, Vitalis largou-me o braço.  
- Agora - disse ele-caminha devagar ao meu lado. Mas não te 
esqueças que, se quisesses fugir, Capi e Zerbino apanhavam-te; têm os 
dentes aguçados.  
Fugir! Eu sentia que era impossível, e, por consequência, inútil tentá-lo. 
Suspirei.  
- Estás triste - continuou Vitalis. - Compreendo e não te quero mal por 
isso. Podes chorar livremente, se tens esse desejo. Mas lembra-te que não 
é para tua infelicidade que te levo comigo. Qual seria o teu destino? Muito 
provavelmente, irias para o asilo. As  

pessoas que te criaram não são teus pais. A tua mamã, conforme dizes, foi 
boa para ti e tu sentes-te desgostoso por deixá-la, tudo isso é natural; mas 
reflecte que ela não poderia ficar contigo contra a vontade do marido. Aliás 
esse homem talvez não seja tão cruel como imaginas. Não tem de que viver, 
está aleijado; já não pode trabalhar, e não vai deixar-se morrer de fome para 
te alimentar. Compreendes, meu rapaz, que a vida é a maior parte das vezes 
uma batalha onde não realizamos o que queremos.  
Sem dúvida, o que ele dissera eram palavras de sabedoria, ou 
pelo menos de experiência. Contudo, havia um facto que, neste 
momento, gritava mais alto do que todos: a separação.  
Não veria mais aquela que me criara, me acarinhara, aquela que- eu 
amava tanto. E esta ideia apertava-me a garganta, sufocava-me.  
- Vê - disse-me Vitalis, apontando-me para a charneca - 
como seria inútil tentares fugir. Capi e Zerbino apanhar-te-iam 
logo.  
Fugir! Já não pensava nisso. E para onde? Para casa de quem?  
E talvez aquele velho alto, de barba branca, não fosse tão terrível 
como eu imaginara de começo; se era meu patrão, possivelmente 
não seria um patrão cruel.  
Caminhámos durante muito tempo no meio de tristes ermos 
e não vendo em redor senão algumas  
colinas distantes, de cumes estéreis.  
Era a primeira vez que marchava assim, continuamente, sem descansar. O 
patrão avançava com passo regular, levando Joli-Coeur no ombro ou sobre o 
saco, e a seu lado os cães trotavam sem se afastarem.  
De tempos a tempos Vitalis dizia-lhes uma palavra amiga, em francês, ou 
numa linguagem que eu não conhecia.  
Nem ele nem os outros pareciam fatigados. Porém não 
acontecia o mesmo comigo. Sentia-me esgotado.  

26
Arrastando os pés, a custo, seguia o meu patrão. No entanto não 
me atrevia a pedir que parasse.  
- São os tamancos que te fatigam - disse-me ele. -Em Ussel 
comprar-te-ei sapatos.  
Estas palavras deram-me coragem. De facto, eu sempre desejara 
ardentemente uns sapatos. O filho do administrador e o do estalajadeiro 
possuíam sapatos, de maneira que, ao domingo, ao chegarem à missa, 
deslizavam nas lajes sonoras, enquanto nós outros, camponeses, com os nossos 
tamancos, fazíamos um barulho ensurdecedor. - Ussel é ainda muito longe? - Aí 
está um grito de alma -observou Vitalis, rindo. - Tens então muita vontade de 
ter uns sapatos, pequeno? Pois bem! Eu tos prometo, com pregos na sola. E 
prometo-te também umas calças de veludo, um casaco e um chapéu. Espero 
que isto te seque as lágrimas e te dê força nas pernas para fazermos as seis 
léguas que nos faltam.  
Sapatos com pregos por baixo! Fiquei deslumbrado. Eram já uma coisa 
prodigiosa para mim, aqueles sapatos; mas, quando ouvi falar de pregos, esqueci 
todo o desgosto.  
Sapatos,  sapatos  ferrados!  calças  de  veludo!  casaco!  chapéu!  Ah!  se  a 
mãe  Barberin  me  visse,  como  ficaria  contente  e  orgulhosa  da  minha 
pessoa!  
Apesar  dos sapatos e das calças de veludo que estavam a seis 
léguas  de  distância,  parecia-me  que  não  poderia  andar  até  tão 
longe.  
O céu, azul à nossa partida, enchia-se a pouco e pouco de 
nuvens cinzentas, e bem depressa caiu uma chuva fina que não mais 
parou.  
- Constipas-te facilmente? - perguntou o meu patrão.  
- Não sei, que me lembre nunca estive constipado. - Bem, bem; 
decididamente há boas coisas em ti. Mas não quero expor-te 
inutilmente; hoje não Iremos  

mais longe. Ali adiante há uma aldeia, pernoitaremos lá.  


Não havia estalagem nessa aldeia, e ninguém quis receber a 
espécie de mendigo que levava consigo um pequeno e três cães, tão 
enlameados uns como outros.  
- Aqui não é albergue - diziam-nos. E fechavam-nos a 
porta na cara. Íamos duma  
casa para outra sem que nenhuma se abrisse.  
Seria preciso, então, palmilhar sem repouso as quatro léguas 
que nos separavam de Ussel? A noite descia, a chuva gelava-nos e 
eu sentia as pernas tão rígidas como estacas.  
Ah! a casa da mãe Barberin! Por fim, um camponês, mais caritativo do que 
os vizinhos, consentiu em receber-nos num palheiro. Mas, antes de nos 

27
deixar entrar, impôs-nos a condição de não termos luz.  
- Dê-me os seus fósforos - disse ele a Vitalis- entregar-lhos-ei 
amanhã quando se for embora.  
Ao menos tínhamos um tecto para nos abrigarmos e a chuva já não nos caía 
sobre o corpo. Vitalis era um homem previdente, que não se punha a caminho 
sem provisões. Na mochila que trazia aos ombros encontrava-se um grande 
naco de pão, que partiu em quatro bocados.  
Vi então pela primeira vez como mantinha a obediência e a disciplina na 
companhia que havia constituído. Enquanto errávamos de porta em porta, 
procurando onde dormir, Zerbino entrara numa casa e saíra quase logo 
trazendo uma bela torta entre os dentes. Vitalis apenas dissera:  
- Esta noite terás o castigo, Zerbino. Eu já não pensava naquele roubo, quando 
vi, no momento em que o nosso dono cortava o pão, Zerbino com ar humilde. 
Estávamos sentados em molhos de fetos, Vitalis e eu, ao lado um do outro e 
Joli-Coeur entre os dois; os três cães alinhavam-se à nossa frente, Capi e Dolce  

com os olhos fitos nos do dono, Zerbino de focinho Inclinado 


para o chão e de orelhas caídas.  
- Que o ladrão saia das fileiras - ordenou Vitalis - e que vá para um 
canto; deitar-se-á sem cear.  
No mesmo instante Zerbino abandonou o seu lugar, e, caminhando de 
rastos, foi esconder-se no sitio que o dedo do dono lhe apontava; meteu-se 
debaixo dum monte de feiteira, e não o vimos mais; ouví-o respirar 
lastimosamente com pequenos latidos abafados.  
Cumprida a justiça, Vitalis entregou-me o pão que me competia, 
e, enquanto comia o dele, ia repartindo em bocadinhos, entre 
Joli-Coeur, Capi e Dolce, os pedaços que lhes eram destinados.  
Ali, como a sopa quente que a mãe Barberin nos fazia todas as 
noites me teria parecido boa, mesmo sem manteiga!  
Como o canto da lareira me seria agradável; como eu me teria 
enfiado por entre os lençóis e puxado os cobertores até ao nariz!  
Alquebrado pela fadiga, com os pés esfolados pelos tamancos, 
tremia de frio dentro do fato molhado.  
Era noite fechada, mas não pensava em dormir. - Estás a bater os 
dentes - disse Vitalis. - Tens frio?  
- Um bocadinho. Percebi que 
abria o saco.  
- o meu guarda-roupa deixa um tanto a desejar - disse ele - mas aqui 
tens uma camisa seca e um colete nos quais te poderás embrulhar depois de 
despires o fato molhado; em seguida mete-te debaixo da feiteira, e não 
tardarás a aquecer e a dormir.  
Contudo, não aqueci tão depressa como Vitalis imaginara; 
voltei e tornei a voltar-me na cama de fetos durante muito 
tempo, demasiadamente dorido e infeliz para que pudesse 
adormecer.  

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Os dias iriam ser agora todos assim? Caminhar sem descanso, debaixo de 
chuva, dormir- num palheiro, tiritar de frio, não ter para cear mais do que um 
pedaço de pão  

seco, ninguém para me acarinhar, ninguém a quem amar, sem a mãe 


Barberin?  
Quando reflectia nisto tristemente, com o coração oprimido e os olhos 
rasos de lágrimas, senti um hálito morno bafejar-me a cara. Estendi a mão 
para a frente e encontrei o pèlo lanudo de Capi.  
Aproximara-se docemente de mim, avançando com precaução sobre a 
feiteira, e farejara-me; fungava baixo; o seu sopro batia-me na cara e nos 
cabelos.  
Que queria ele?  
Deitou-se a meu lado, muito perto de mim, e, delicadamente, pôs-se a 
lamber-me a mão. Esqueci a fadiga e os desgostos; a garganta contraída 
descerrou-se. Respirei; não estava sozinho: tinha um amigo.  

CAPÍTULO 06.  

A MINHA ESTREIA.  

No dia seguinte, pusemo-nos cedo a caminho. Já Não havia chuva mas céu 
azul, e pouca lama, graças ao vento seco que soprara durante a noite. Os 
pássaros chilreavam alegremente nas moitas da estrada e os cães pulavam à 
nossa volta. De tempos a tempos, Capi erguia-se nas patas traseiras e 
lançava-me dois ou três latidos de que eu percebia muito bem a significação.  
- Coragem! coragem! - diziam eles. Era um cão inteligente que 
compreendia tudo e se fazia sempre compreender. Jamais foi 
preciso a palavra entre mim e Capi; desde o primeiro dia que 
nos entendemos.  
Nunca tendo saído da minha aldeia, sentia-me cheio de 
curiosidade de ver uma cidade.  

Devo confessar que Ussel não me deslumbrou. As velhas casas 


de torrinhas, que certamente fazem as delícias dos arqueólogos, 
deixaram-me absolutamente indiferente.  

29
Uma Ideia enchia-me o cérebro e enevoava-me os olhos, ou, 
pelo menos, não me deixava ver mais do que uma coisa: uma loja 
de sapateiro.  
os meus sapatos, os sapatos prometidos por VItalis! Chegara a hora de os 
calçar. Onde estava a bem-aventurada sapataria que mos  

ia fornecer?  
Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões, ogivas, colunas, 
não tinha interesse para mim.  
Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel foi a de uma loja sombria 
e denegrida pelo fumo, situada ao pé do mercado. Tinha na montra 
espingardas velhas, um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas 
lâmpadas, e, em cestos, ferros velhos, principalmente cadeados e chaves 
enferrujadas.  
Foi preciso descer três degraus para entrar, e então, encontrámo-nos 
numa quadra vasta, onde seguramente a luz do sol nunca penetrara desde 
que o telhado fora posto sobre a casa.  
Como é que uma coisa tão bela como sapatos se podia 
vender num recinto tão pavoroso!  
Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja, e bem depressa,tive 
a felicidade de calçar sapatos ferrados que pesavam dez vezes mais do 
que os meus  

tamancos.  
A generosidade do meu patrão não ficou por ali; depois dos sapatos, 
comprou-me um casaquinho de veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de 
feltro; enfim, tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara 
senão linho; sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera os cabelos a 
cobrirem-me a cabeça! Decididamente, era o melhor homem do mundo, o mais 
generoso e rico.  
É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a lã estava 
coçada; é também verdade que seria muito difícil saber qual a cor primitiva do 
feltro, de tal maneira apanhara chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos 
esplendores,,  

tornava-me insensível às imperfeições que se escondiam sob a sua 


magnificência.  
Tinha pressa de vestir aqueles belos fatos, porém, antes de mos dar, Vitalis 
fez-lhes uma transformação que me lançou em doloroso espanto. Ao entrar na 
estalagem, tirou do saco uma tesoura e cortou as pernas das minhas calças pela 
altura  
dos joelhos.  
Como eu o olhasse, pasmado, disse-me: - Isto só tem o fim de 
ficares diferente de toda a gente. Estamos em França, visto-te de 
italiano; se formos à Itália, o que é possível, vestir-te-ei de francês.  

30
Esta explicação não me desfez o espanto, e ele continuou:  
- Que somos nós? Artistas, não é assim? Comediantes que só pelo seu 
aspecto devem provocar a curiosidade. Imaginas que, se fôssemos para a 
praça pública vestidos como burgueses ou aldeões, forçaríamos as pessoas a 
olhar-nos e a parar à nossa volta?  
Eis como, sendo eu francês de manhã, me tornei italiano 
antes da noite.  

Porque as calças ficavam pelo joelho, Vitalis amarrou-me as meias com 


cordões vermelhos cruzados ao longo das pernas; enleou também fitas no 
chapéu, e enfeitou-o com um ramo de flores de lã.  

Não sei o que poderiam os outros pensar de mim, mas para ser 
sincero devo declarar que me achei soberbo; e, com certeza, o 
estava, pois o meu amigo Capi, depois de me haver contemplado 
muito tempo, estendeu-me a pata com ar satisfeito.  

A aprovação que Capi deu à minha mudança foi-me bastante agradável 


pelo facto de Joli-Cwur, enquanto eu vestira o fato novo, se ter Instalado à 
minha frente a imitar os meus gestos, exagerando-os. E uma vez terminados 
os arranjos, pusera ele as mãos nas ancas e, de cabeça deitada para trás, 
desatara a rir com gritinhos de mofa.  

- Agora que tens o traje novo - disse-me Vitalis, depois de eu 


colocar o chapéu na cabeça - vamos meter-nos ao trabalho, a fim de 
dar amanhã, dia de feira, um grande espectáculo, em que te 
estrearás.  
Perguntei o que queria dizer estrear e Vitalis explicou-me que 
era aparecer pela primeira vez ao público, numa representação,  
- Amanhã daremos uma, - disse ele, - e farás parte dela. É preciso 
ensaiar o papel que te destino.  
.Os meus olhos espantados exprimiram incompreensão. - Papel, é o que 
terás de fazer na comédia. Se te trouxe comigo, não foi precisamente para 
te proporcionar o prazer da viagem. Não sou bastante rico para isso. Foi 
para trabalhares. E o teu trabalho consistirá em representar a comédia com 
os cães e Joli-coeur.  
- Mas eu não sei representar! - exclamei assustado. - É por isso mesmo que 
tenho de ensinar-te. Como deves calcular, não é naturalmente que Capi 
anda tão bem nas patas traseiras, como não é por prazer que Dolce dança 
na corda. Capi aprendeu a conservar-se de pé nas patas traseiras, e Dolce a 
dançar na  
corda: tiveram de trabalhar muito tempo para adquirir essas habilidades. Pois 
bem! tu também deves trabalhar para aprender os diferentes papéis que 
representarás com eles. Ponhamos mãos à obra.  
Eu tinha nessa época ideias absolutamente primitivas quanto ao 
trabalho. Imaginava que isso consistia em cavar a terra, ou rachar uma 

31
árvore, ou cortar a pedra, e não concebia outra coisa.  
- A peça que vamos representar - continuou Vitalis - tem por título: o criado 
do sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é aquele que pensamos. Eis o 
assunto: O senhor Joli-Cwur possuiu até hoje um criado que o satisfazia em 
absoluto: o criado é  

Capi. Mas Capi já está velho, e, por outro lado, o senhor Joli-Coeur deseja 
novo servo. Capi encarrega-se de o procurar. Contudo não será um cão que 
ele terá por sucessor, será um rapazinho, um camponês chamado Remi.  
- Assim como eu? - Não como tu, mas tu mesmo. 
Chegas da aldeia para entrar ao serviço de Joli-Coeur.  
- Os macacos não têm criados. - Nas comédias, têm-nos. Chegas 
então, e o senhor Joli-Coeur acha-te com ar de imbecil.  
- Não é divertido, isso. - Que te Importa, visto ser a fingir? Imagina que entras 
realmente em casa dum senhor como criado e te dizem, por exemplo, que 
ponhas a mesa. Eis justamente aqui uma que deve servir para a representação. 
Aproxima-te e dispõe os talheres. Sobre esta mesa, havia pratos, um copo, 
uma faca, um garfo e guardanapos.  
,Como se arranjaria tudo aquilo? Fazendo esta pergunta a mim 
mesmo, fiquei de braços pendentes, Inclinado para a frente, 
com a boca aberta, sem saber por onde começar; Vitalis bateu 
as palmas, rindo às gargalhadas.  
- Bravo! - exclamou. - A tua expressão fisionómica é esplêndida. o rapaz, 
que tinha antes de ti, tomava um aspecto astuto e o seu ar dizia claramente: 
«Verão como eu vou interpretar bem o papel de palerma»; tu, não dizes nada, 
ficas calado com uma expressão de ingenuidade admirável.  
- Não sei o que devo fazer. - E é por isso mesmo que estás excelente. Amanhã, 
dentro de alguns dias, saberás às mil maravilhas o teu papel. Será então 
necessário recordares-te do embaraço que experimentas agora em fingires o 
que não sentes nessa altura. Quem és tu na minha comédia? Um moço 
camponês que nada viu e nada sabe; chega a casa dum macaco e acha-se mais 
Ignorante e desajeitado do que o outro. Mais tolo do que Joli-coeur,  

eis o teu papel; para o representar na perfeição, nada mais terás a fazer do que 
ficar como estás neste momento. Mas como isso é Impossível, deverás 
lembrar-te do que foste e tornares-te pelo teu esforço naquilo que já não 
serás  
naturalmente.  
O criado do sr. Joli-Coeur não era uma comédia extensa, e a sua 
representação durava apenas vinte minutos. Mas o ensaio prolongou-se por 
mais de três horas; Vitalis fez-nos recomeçar duas, quatro, dez vezes a mesma 
coisa, tanto aos cães como a mim. Fiquei bastante surpreendido com a 
paciência e doçura do nosso mestre. Não seria assim que tratariam os animais 
da minha aldeia, onde as pragas e as pancadas eram os únicos processos de 
educação que empregavam para com eles.  

32
Vitalis, durante o longo ensaio, não se zangou uma só vez; 
nem uma só vez praguejou.  
- Vamos, recomecemos - dizia ele severamente, quando 
algum de nós andava mal. - Capi, você está distraído; Joli-Coeur, 
será castigado.  
E não passava disto; no entanto, era bastante. - Então?! - 
perguntou-me ele quando o ensaio terminou - Achas que te 
habituarás a ser actor?  
- Não sei. - Isto aborrece-te? - Não, diverte-me. - Nesse caso tudo 
decorrerá bem; és Inteligente, e, o que é ainda mais precioso, 
atento; com atenção e docilidade conseguimos tudo.  
Afoitei-me a dizer-lhe que o que me causara mais admiração no 
ensaio fora a inalterável paciência de que ele dera prova, tanto com 
Joli-Coeur e os cães, como comigo.  
Sorriu meigamente. - Vê-se bem - respondeu Vitalis. - que só conviveste 
até hoje com aldeões cruéis para os animais, e que imaginam devê-los 
conduzir de cajado sempre erguido. Ora Isto é um triste erro: pouca coisa se 
obtém pela brutalidade, mas quase  

tudo conseguimos pela doçura. Não foi impacientando-me com os meus 


animais que fiz deles o que são. Se lhes tivesse batido, ficariam receosos, e o 
receio paralisa a Inteligência.  
Os meus camaradas, os cães e o macaco, possuíam sobre mim a 
grande vantagem de estarem habituados a aparecer em público, de 
forma que viram chegar sem receio o dia seguinte. Para eles, tratava-se 
de fazer o que já haviam feito cem vezes, mil vezes talvez.  
Mas  eu  não  tinha  a sua tranquila confiança. Que diria Vitalis, se 
representasse mal o meu papel? Que diriam os espectadores?  
Por isso a minha comoção era extrema quando no dia seguinte deixámos 
a estalagem a fim de irmos para a praça, onde se devia realizar a nossa 
representação.  
Vitalis abria a marcha, de cabeça erguida, peito arqueado, e 
marcava o passo com os braços e os pés, tocando uma valsa num 
pífaro de metal.  
Atrás dele ia Capi, levando às costas Joli-Coeur, que se enfatuava 
na sua farda de general inglês, casaco e calças vermelhas agaloadas 
de ouro, com chapéu bicórnio guarnecido duma grande pluma.  
A seguir, a respeitosa distância, avançavam na mesma fila 
Zerbino e Dolce.  
Finalmente ia eu na cauda do cortejo que, graças ao espaço indicado 
pelo nosso mestre, ocupava certo espaço na rua.  
Mas, mais ainda do que a pompa do nosso desfile, o que provocava a atenção 
eram os sons agudos do pífaro que iam até ao fundo das casas despertar a 
curiosidade dos habitantes de Ussel. Corriam às portas para nos ver passar, as 
cortinas de todas as janelas erguiam-se com rapidez. Seguiam-nos algumas 

33
crianças, aldeãos embasbacados juntavam-se a elas, e, quando chegámos à 
praça, trazíamos atrás e em volta de nós um verdadeiro acompanhamento.  

A sala de espectáculo edificou-se num instante; consistia numa 


corda amarrada a quatro árvores, de maneira a formar um 
rectângulo, onde nos colocámos.  
A primeira parte da representação foi preenchida por várias 
peloticas executadas pelos cães; não sei dizer quais foram essas 
habilidades, ocupado como estava a recordar-me do meu papel e 
perturbado  

pela inquietação.  
Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o pífaro e substituíra-o por 
um violino com que acompanhava os exercícios dos cães, ora com músicas 
de dança, ora com melodias suaves e doces.  
A multidão apinhava-se contra as cordas, e, quando eu olhava 
em redor, maquinalmente, via uma infinidade de pupilas que, 
fixadas em nós, pareciam  

lançar faíscas.  
Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os dentes, uma bandeja e, 
caminhando nas patas traseiras, aproximou-se do «respeitável público». 
Quando as moedas não caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior 
do círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras no 
espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e batia pancadinhas 
sobre a algibeira que pretendia abrir.  
Então na assistência havia exclamações, gracejos e zombarias:  
- Olha a esperteza do cão, como conhece os que têm a bolsa 
recheada!  
- Vá, mete a mão na algibeira!  
- Dá! E a moeda era finalmente arrancada das profundezas 
onde se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas sem perder de 
vista a bandeja, Ia tocando árias alegres  

no violino.  
Bem depressa Capi voltou para junto do dono, trazendo 
orgulhosamente o prato cheio.  

Chegara a altura de eu e Joli-Coeur entrarmos  


em cena.  
- Minhas senhoras e meus senhores - anunciou Vitalis gesticulando com 
o arco numa das mãos e o violino noutra -, vamos continuar o espectáculo 
com uma engraçada comédia intitulada: O Criado do Sr. Joli-Coeur, ou O 
mais estúpido dos dois não é aquele que imaginamos. Só lhes digo uma 
coisa: arregalem os olhos, apurem os ouvidos e preparem as mãos para 
aplaudir.  

34
O que ele chamava «uma engraçada comédia» era na realidade uma 
pantomima, isto é, uma peça representada com gestos e não com palavras. E 
assim devia ser, pela forte razão de que dois dos principais actores, Joli-Coeur e 
Capi, não podiam falar, e de que o terceiro (que era eu próprio) seria 
absolutamente incapaz de dizer fosse o que fosse. Todavia, a fim de tornar a 
mímica dos comediantes mais facilmente compreensível, Vitalis acompanhava-a 
de algumas palavras que preparavam as situações da peça e as explicavam.  
Foi assim que, tocando em surdina uma marcha militar, anunciou a entrada 
do sr. Joli-Coeur, general inglês que ganhara patentes e riqueza nas guerras 
das Indias. Até então, o sr. Joli-Coeur só tivera Capi como criado, mas desejava 
ser servido daí em diante por um homem, visto que os meios lhe permitiam 
esse luxo: os bichos haviam sido já bastante tempo escravos dos homens; era 
altura de as coisas mudarem. Enquanto esperava a chegada do criado, o 
general Joli-Coeur passeava de cá para lá, fumando um cigarro. Era digno de 
ver-se como ele lançava o fumo para a cara do público!  
O general impacientava-se, e principiava a volver olhos iracundos, 
como alguém que vai zangar-se, mordia os lábios e batia com o pé no 
chão.  
À terceira patada eu devia entrar em cena, levado por Capi.  

Se tivesse esquecido o meu papel, o cão far-mo-ia lembrar. No 


momento preciso, estendeu-me a pata e introduziu-me junto do 
general.  
Este, ao ver-me, levantou os braços ao céu com ar desanimado. 
Pois quê? Era aquilo o criado que lhe apresentavam? E veio mirar-me 
de perto, girando à  

minha volta e encolhendo os ombros.  


Tinha tanta graça que toda a gente desatou a rir: percebiam que ele me 
considerava um perfeito imbecil; era também esta a opinião dos espectadores. A 
comédia estava, já se sabe, organizada de forma a mostrar aquela Imbecilidade 
sob todos os aspectos; em cada cena eu era obrigado a cometer uma nova 
tolice, enquanto que Joli-Coeur, pelo contrário, devia arranjar ocasião para 
patentear a sua inteligência e habilidade.  
depois de me examinar longamente, o general, desdenhoso, mandou-me 
servir o almoço.  
- O general imagina que, se o rapaz comer, parecerá menos  
idiota - comentava Vitalis. - Vamos lá ver.  
E eu sentei-me em frente duma mesinha sobre a qual estava 
um talher e um guardanapo pousado no meu prato.  
Que fazer do guardanapo?  
Capi indicava-me que me devia servir dele. Depois de 
pensar um bocado, desdobrei-o e  

assoei-me.  
Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu de costas, 

35
confundido com a minha estupidez.  

Percebendo que me enganara, pus-me a contemplar o 


guardanapo, perguntando a mim mesmo como empregá-lo.  
Por fim, tive uma ideia; enrolei o guardanapo e  

fiz dele uma gravata.  


Novas gargalhadas do general, nova queda de Capi. E assim 
sucessivamente até o momento em que o general, exasperado, me 
arrancou da cadeira, se sentou  

no meu lugar e comeu o almoço que me era destinado.  


Ah! Aquele sim! Sabia servir-se dum guardanapo, o general. 
Com que elegância o meteu na lapela do uniforme e o depôs sobre 
os joelhos! Com que graça partiu o pão e esvaziou o copo!  
Mas onde as suas belas maneiras produziram um efeito irresistível, 
foi quando, terminado o almoço, pediu um palito e o passou 
rapidamente entre os dentes.  
Os aplausos explodiram de todos os lados e a 
representação acabou num triunfo.  
Como o macaco era inteligente! Como o criado parecia 
estúpido!  

CAPÍTULO 07.  

APRENDO A LER  

ERAm de facto comediantes de talento os da companhia do Signor Vitalis - 


falo dos cães e do macaco-, - mas de talento pouco variado.  
Depois de três ou quatro representações, conheciam-lhes  
todo o repertório; nada mais lhes restava senão repetirem-se.  
Daí resultava a necessidade de não se demorarem muito tempo 
numa mesma região.  
Três dias depois de chegarmos a Ussel, foi preciso pormo-nos a 
caminho.  
"Para onde íamos?" Eu já tinha bastante confiança com o meu mestre para me 

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permitir esta pergunta.  
- Conheces o país? - disse ele, virando"se para mim. - Não. - Então por 
que perguntas para onde vamos? - Para saber. - Se eu te disser - 
continuou ele - que vamos para Aurillac a fim de nos dirigirmos em 
seguida  

para Bordéus e de Bordéus para os Pirinéus, o que ficas 


sabendo com isto?  
- Mas o senhor conhece então o país? Nunca vim cá. - E 
mesmo assim sabe para onde vamos? Contemplou-me outra 
vez como se procurasse qualquer coisa em mim.  
- Não sabes ler, não é verdade? - disse-me ele. - Não. - Sabes o que é um 
livro? - Sim; levam-se os livros à missa para dizer orações, quando não se 
reza pelo rosário; já lá tinha visto livros, e bem bonitos, com estampas dentro 
e coiro por fora.  
- Bem, então compreendes que se possam pôr orações 
num livro?  
- Sim. - O que fazem para as orações, fazem com tudo. Num livro 
que hei-de mostrar-te quando estivermos descansados, 
encontraremos os nomes e a história das regiões que 
atravessamos. Homens que habitaram estas terras puseram no 
meu livro o que viram ou aprenderam; de tal forma que não é 
preciso senão abrir e ler esse livro para se ficar conhecendo as 
ditas regiões; vejo-as como se as contemplasse com os meus 
próprios olhos; sei a sua história como se ma contassem.  
Eu havia sido educado como um verdadeiro selvagem. Aquelas palavras 
foram para mim uma espécie de revelação, confusa de começo mas que a 
pouco e pouco se esclareceu. ,  
- É muito difícil ler? - perguntei a Vitalis, depois de haver pensado um 
bocado, enquanto ia andando.  
- É difícil para aqueles que são obtusos de espirito, e mais difícil ainda 
para os que têm má vontade. És obtuso?  
- Não sei; mas parece-me que, se me quisesse ensinar, boa 
vontade não me faltaria.  

- Pois bem! Veremos; temos muito tempo à nossa frente.  


- Tempo à nossa frente? Por que não começar  
Imediatamente? Eu não sabia quanto era complicado aprender a ler e 
pensava que ia abrir um livro e ficar logo ciente do que lá havia.  
No dia seguinte, quando caminhávamos, vi Vitalis abaixar-se e 
apanhar daestrada um pedaço de tábua meio coberta pela poeira.  
- Aqui está o livro onde vais aprender a ler. Um livro, aquela tábua! 
Olhei-o para ver se não brincava comigo. Depois, como me 
parecesse sério, examinei atentamente o seu achado.  

37
Era, bem uma tábua, nada mais do que um pedaço de madeira de faia, do 
comprimento dum braço, da largura de dois palmos e muito lisa; não lhe 
encontrava nenhuma inscrição, nenhum desenho. Como se poderia ler naquela 
tábua, e ler o quê?  
- O teu espírito trabalha - disse-me Vitalis, rindo.  
- Está a zombar de mim? - Não, meu rapaz. Espera que cheguemos 
àquele bosquete que está lá adiante; descansaremos lá, e verás como 
quero ensinar-te a leitura com este pedaço de madeira.  
Chegámos rapidamente ao dito bosquezinho e, postos os sacos no 
chão, sentámo-nos sobre a relva que principiava a reverdecer e na 
qual, aqui e ali, se mostravam malmequeres. Joli-Coeur, 
desembaraçado da corrente, precipitou-se para cima duma árvore, 
sacudindo os ramos uns após outros como para fazer cair nozes; os 
cães, mais tranquilos e sobretudo mais fatigados, deitaram-se junto 
de nós.  
Então Vitalis, tirando a navalha da algibeira, experimentou desprender da 
tábua uma laminazinha de madeira tão delgada quanto possível. Tendo 
conseguido, alisou-a nas duas faces, em todo o comprimento, e, feito Isto, 
cortou-a em quadradinhos; arranjou assim umas duas dúzias deles, todos 
Iguais.  

Eu não o desfitava, mas confesso que, apesar da minha tensão 


de espírito, não percebia como era que daqueles bocados de pau 
ele queria fazer um livro; por muito ignorante que fosse, eu sabia 
que um livro se compunha de certo número de folhas de papel 
sobre os quais se viam desenhados sinais pretos. Onde estavam as 
folhas de papel? E os sinais pretos?  
- Em cada um destes pedacinhos de madeira - disse-me - traçarei amanhã, 
com a ponta da navalha, uma letra do alfabeto. Aprenderás assim o feitio das 
letras e, quando as souberes bem sem te enganares, de maneira a 
reconhecê-las à primeira vista, juntarás umas ao lado das outras para formares 
palavras. Quando puderes compor as palavras que eu te disser, estarás à altura 
de ler um livro.  
Dentro em pouco eu tinha as algibeiras cheias duma colecção de 
bocadinhos de madeira, e não tardei a conhecer as letras do alfabeto, mas 
as coisas não foram tão depressa, e chegou até uma ocasião  
em que me arrependi de ter querido aprender a ler.  

Devo no entanto dizer, para ser justo comigo mesmo, que 


não foi a preguiça que me Inspirou esse arrependimento: foi o 
amor próprio.  

Ao ensinar-me as letras do alfabeto, Vitalis pensara que poderia ensiná-las 


também a Capi; pois se o cão decorara os algarismos, porque razão não reteria 
na memória as letras? E tomámos lição em comum; tornei-me camarada da 
classe de Capi, ou o cão tornou-se o meu, como quiserem..  

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Bem entendido que Capi não devia nomear as letras, visto que não 
falava, mas, quando os bocados de madeira estavam colocados no 
chão, tinha de tirar, com a pata, as letras que o nosso mestre dizia.  

Ao princípio fiz maiores progressos do que ele; porém, se eu era de 


Inteligência mais pronta, Capi possuía a memória mais segura: uma coisa 
aprendida, ficava-lhe sabida para sempre; não esquecia;  

e como não tinha distracções, não hesitava e jamais se enganava.  


Então, quando eu cometia algum erro, o nosso mestre 
nunca deixava de dizer:  
- Capi saberá ler antes de Remi. E o cão, sem dúvida, 
compreendendo-o, abanava a cauda com ar de triunfo.  
- Mais estúpido do que um animal, admite-se numa comédia 
- dizia ainda Vitalis - mas, na reali dade, é vergonhoso.  
Isto feriu-me tanto que me apliquei de alma e coração, e enquanto 
o cão se limitava ao seu nome, separando as letras que o compunham 
de todas as outras do alfabeto, eu conseguia, enfim, ler num livro.  
- Agora que já sabes ler palavras - disse-me Vitalis - queres aprender a 
ler música?  
- E quando eu souber ler música poderei cantar como o 
senhor?  
- Querias então cantar como eu? - Oh! Como o senhor, não, bem sei que isso 
é impossível, mas, enfin, cantar? - Tens prazer em ouvir-me? - O maior 
prazer que se pode sentir; o rouxinol canta bem, mas, parece-me que o 
senhor canta melhor ainda. E vou dizer-lhe uma coisa que talvez lhe pareça 
tolice: quando canta, sinto-me levado para junto da mãe Barberin, é nela que 
penso, é ela que vejo na nossa casa; e, no entanto, não percebo as palavras 
que pronuncia, visto que são italianas.  
Fitava-o ao falar-lhe e tive a impressão de que os seus olhos se 
humedeciam; então detive-me e perguntei-lhe se o contristava aquilo que eu 
dizia.  
- Não, meu filho-respondeu-me ele com voz comovida-, não me 
entristeces, pelo contrário. Sossega, ensinar-te-ei a cantar, e também 
serás aplaudido, verás... Interrompeu-se de súbito, e compreendi que não 
desejava aprofundar aquele assunto. Porém as razões  

que o retinham não as adivinhei. Foi mais tarde que as conheci, muito 
mais tarde, e em circunstâncias dolorosas, terríveis para mim, que 
contarei em momento oportuno, nesta narrativa.  
Logo no dia seguinte, o meu mestre fez para a música o que já 
fizera para a leitura, isto é, começou a cortar quadradinhos de 
madeira, que ele gravou com a ponta da navalha.  

39
A fim de aliviar-me os bolsos, utilizou as duas faces dos 
quadrados, e, depois de riscar qualquer delas com cinco linhas que 
representavam a pauta, desenhou num lado a clave de sol e noutro 
a de fá.  
Depois de tudo preparado, começaram as lições, e confesso 
que não foram menos penosas que as de leitura.  

Mais duma vez Vitalis, tão paciente com os cães, se exasperou 


comigo.  
- Com um animal - exclamava ele - uma pessoa contém-se 
porque sabe que é um animal, mas tu darás cabo de mim.  
E, levantando as mãos ao céu num gesto teatral, deixava-as cair 
de repente sobre as coxas com uma palmada valente.  
Joli-Coeur, que se comprazia em imitar o que achava 
engraçado, copiara aquele movimento, e, como assistia sempre às 
minhas lições, eu tinha o aborrecimento, quando titubeava, de o 
ver erguer os braços ao céu e deixar cair as mãos nas coxas, 
fazendo-as estalar.  
- Até Joli-Coeur troça de ti - exclamava Vitalis. Finalmente os primeiros passos 
foram ultrapassados e tive a satisfação de solfejar uma ária escrita por Vitalis 
numa folha de papel.  
Nesse dia não ergueu os braços, mas deu-me duas palmadas 
amigáveis na cara, declarando-me que se eu continuasse assim 
viria a ser certamente um grande cantor.  

Já se sabe que os estudos não se fizeram num só dia, e 


durante semanas, durante meses, as minhas  

algibeiras estiveram constantemente cheias dos bocadinhos de madeira. Aliás, 


o meu trabalho não era regular como o de qualquer criança que segue as 
lições duma escola, e só nos momentos de ócio é que Vitalis me podia dar 
lições.  
Precisávamos cada dia completar o nosso percurso, mais ou  
menos longo, conforme a distância duma a outra aldeia; precisávamos dar 
espectáculo em todos os lugares onde havia probabilidades de apanhar boa 
receita; precisávamos de ensaiar os papéis aos cães e a Joli-Coeur; 
precisávamos de preparar o almoço ou o jantar, e só depois, de tudo isto é que 
se tratava de leitura e de música.  
Esta educação em nada se assemelhava à que recebem tantas crianças, que 
só têm de estudar, e que se queixam continuamente da falta de tempo para 
fazerem os exercícios que lhes dão.  
Enfim, aprendi alguma coisa, e ao mesmo tempo fiz grandes jornadas que 
não me foram menos úteis do que as lições de Vitalis: eu era uma criança 
bastante definhada quando vivia com a mãe Barberin, e a maneira como falavam 
de mim provava-o bem: «um menino da cidade», dissera Barberin, «com pernas 

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e braços excessivamente magros», dissera Vitalis. Ao lado do meu mestre e 
acompanhando-o na sua vida ao ar livre, as pernas e os braços fortificaram-se, 
os pulmões desenvolveram-se, a pele enrijou-se e tornei-me capaz de suportar, 
sem adoecer, o frio e o calor, o sol e a chuva, os trabalhos, as privações, as 
fadigas.  
E para mim foi uma grande felicidade essa aprendizagem, que me preparou 
para resistir aos golpes que mais duma vez me deveriam atingir, duros e 
esmagadores, durante a minha juventude.  

CAPÍTULO 08.  

POR MONTES E VALES.  

TíNHAmos percorrido parte do Sul da França.  


A nossa forma de viajar era das mais simples; íamos sempre para a 
frente, ao acaso, e, quando encontrávamos uma aldeia que de longe não nos 
parecia muito miserável, preparávamo-nos para uma entrada triunfal. Eu 
arranjava os cães, penteando Dolce, vestindo Zerbino, colocando um 
emplasto no olho de Capi para que ele pudesse representar o papel dum 
velho veterano, e, finalmente, obrigava Joli-Coeur a vestir o seu fato de 
general.  
Postos  os  actores  em  grande  aparato,  Vitalis  agarrava  no 
pífaro, e, em boa ordem, desfilávamos pela aldeia.  
Se o número de curiosos que nos seguiam era suficiente, dávamos uma 
representação; se, pelo contrário, nos  
parecia demasiadamente fraco para que pudéssemos esperar boa receita, 
continuávamos a marchar. Somente nas cidades ficávamos vários dias, e 
então, de manhã, eu dispunha da liberdade de Ir passear para onde queria. 
Levava Capi comigo-Capi, um simples cão, bem entendido, sem o seu fato de 
teatro-, e espairecíamos pelas ruas.  
Vitalis, que habitualmente me tinha sob a sua vista, para 
aquele fim deixava-me à rédea solta.  
- Já que o acaso - dizia-me ele - te faz percorrer a França numa idade em 
que as crianças estão geralmente na escola ou no colégio, abre os olhos, repara 
e aprende. Quando te vires embaraçado com algum facto que não 
compreendas, pergunta-mo sem receio. ,Depois de abandonarmos Auvergne, 
chegámos aos causses de Qucy. Dá-se este nome a extensas planícies de 
ondulações irregulares, onde só se encontram terrenos incultos e algumas 
árvores enfezadas. Nenhuma região é mais triste, mais pobre. E o que acentua 

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ainda esta impressão que o viajante recebe ao atravessá-la, é que quase em 
parte alguma se vê água. Nem ribeiras, nem regatos, nem poços. Aqui e ali, 
leitos pedregosos mas vazios.  

No meio dessa planície, esbraseada pela canícula no momento 


em que a atravessámos, acha-se uma aldeia que se chama 
Bastide-Murat; passámos aí a noite na granja duma estalagem.  
- Foi aqui-disse-me Vitalis em conversa antes de nos deitarmos-foi aqui, 
nesta terra, e provávelmente neste albergue, que nasceu um homem causador 
da morte de tantos soldados; começou a vida como moço de estrebaria, e 
tornou-se príncipe e rei: Chamava-se Murat; consideram-no herói e deram o 
seu nome a esta aldeia. Conheci-o, e muitas vezes conversei com ele.  
Mau grado meu, escapou-se-me uma interrogação: - Quando era 
moço de estrebaria? - Não - respondeu Vitalis rindo -, quando era rei. 
Esta é a primeira vez que venho a Bastide, e foi em Nápoles que o 
conheci, rodeado da sua corte.  
- O senhor conheceu um rei!  

É de crer que o tom da minha exclamação fosse muito 


engraçado, pois o riso de Vitalis explodiu de novo e prolongou-se 
muito tempo.  
Estávamos sentados num banco defronte da cavalariça, com as costas 
apoiadas no muro que conservava o calor do dia. Num grande sicômoro, cuja 
folhagem nos cobria, as cigarras cantavam a sua canção monótona. À nossa 
frente, por cima dos telhados das casas, a lua cheia acabava de nascer e subia 
lentamente no céu. A noite era para nós tão doce quanto o dia fora ardente,  
- Queres dormir? - perguntou-me Vitalis - Ou  
preferes que te conte a história do rei Murat?  
- Oh! conte-me a história do rei! Então o meu mestre narrou-me a história, e 
durante várias horas ficámos no nosso banco, ele, falando, eu, de olhos fitos 
naquele rosto que a Lua Iluminava com a sua claridade pálida.  
Pois quê?! Tudo aquilo era possível, não só possível mas verdadeiro?! O 
meu mestre vira um rei; esse rei falara-lhe. Que fora então Vitalis, na sua 
Juventude? E como se tornara naquilo que eu via, na velhice? Havia ali com 
que fazer trabalhar uma imaginação Infantil, viva, ávida e curiosa de tudo o 
que fosse maravilhoso.  

CAPÍTULO 09.  

ENCONTRO O GIGANTE DAS 


BOTAS  
DE SETE LÉGUAS.  

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Ao deixar o solo árido das causses e todos aqueles terrenos incultos, 
vejo-me, em pensamento, num vale sempre fresco, e verde, o vale de 
Dordogne, que descemos a. pouco e pouco, em pequenas jornadas, pois a 
riqueza da região contribui para a dos habitantes, e as nossas representações 
são numerosas: as moedas tombam com relativa facilidade na bandeja de 
Capi.  
Uma ponte, leve, como se por meio de filandras estivesse 
suspensa do nevoeiro, eleva-se acima dum rio largo onde 
deslizam águas preguiçosas.  
Uma cidade em ruínas, com fossos, grutas, torres, e, nas paredes 
fendidas dum claustro, cigarras que entoam canções em arbustos que 
despontam aqui e ali.  
Mas tudo isto se me confunde na memória; só dum 
espectáculo que a impressionou fortemente é que ela guarda 
a visão nitida.  
Pernoitáramos numa aldeia bastante miserável e partíramos 
de manhã, ao romper do dia.  

Percorríamos há muito tempo uma estrada poeirenta quando, de súbito, os 


nossos olhares, até aí confinados no caminho orlado de vinhas, se espraiaram 
livremente por um espaço imenso como se uma cortina se tivesse afastado à 
nossa frente.  
Um rio largo descia, numa curva suave, em volta da colina onde acabávamos 
de chegar; mais além, os telhados e campanários duma grande cidade 
espalhavam-se até à linha enevoada do horizonte. Tantas casas! Tantas 
chaminés! A meio do rio e ao longo do cais, viam-se numerosos navios que, 
como árvores duma floresta, enredavam uns nos outros a mastreação, os 
cordames, as velas e as bandeiras que flutuavam ao vento. Ouvia-se um fragor 
surdo, ruídos de ferros e de caldeiraria, pancadas de martelos, e,  
sobressaindo a tudo, o barulho produzido pelo rodar de inúmeros 
carros que circulavam nos cais. - Eis Bordéus - anunciou Vitalis. 
Para um garoto, educado como eu, que nunca vira até ali senão as 
pobres aldeias de Creuse, ou as cidadezinhas que encontrávamos no 
nosso percurso, era realmente maravilhoso.  
Sem querer, detive-me; e fiquei imóvel, a olhar para a frente, 
para longe, para perto, para toda a volta.  
Mas logo os olhos se fixaram num ponto: no rio e nos navios 
que o cobriam.  
De facto, havia ali um movimento confuso que me interessava vivamente, 
tanto mais que eu não o compreendia.  
- É a hora da maré - disse Vitalis, respondendo ao meu espanto, sem que o 
tivesse interrogado. - Há navios que chegam do mar alto, regressando de longas 
viagens; são aqueles cuja pintura está suja e que parecem enferrujados; outros 
deixam o porto; os que vês voltear, a meio do rio, rodam sobre as âncoras de 
forma a apresentarem a proa à maré que enche. Aqueles que vão envolvidos em 

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nuvens de fumo são rebocadores.  
Que palavras tão estranhas para mim! Quantas coisas 
desconhecidas!  
Até então não fizéramos grandes paragens nas cidades que 
encontrávamos à nossa passagem, pois os espectáculos obrigavam-nos a 
mudar de local a fim de termos novo público. Com actores tais como os que 
compunham a «companhia do ilustre signor Vitalis», o repertório não podia, 
efectivamente, ser muito variado; e depois de representar o Criado do sr. 
Joli-Coeur, a Morte do general, o Triunfo do justo, o Doente purgado e mais 
três ou quatro peças, esgotava-se a série; os comediantes haviam feito tudo 
o que podiam; era preciso recomeçar o Doente purgado ou o Triunfo do 
justo perante espectadores que não os tivessem visto ainda.  

Bordéus, porém, é uma grande cidade, onde o público se 


renova facilmente, e, mudando de bairro, podíamos dar três e 
quatro representações por dia, sem que nos gritassem, como 
acontecera em Cahors:  
- Então isso é sempre a mesma coisa? De Bordéus, devíamos ir a Pau. 
O nosso Itinerário fez-nos atravessar aquele - grande deserto que, 
das portas de Bordéus, se estende até aos Pirenéus.  
- Eis-nos nas Landas - disse Vitalis. - Temos de palmilhar vinte ou 
vinte e cinco léguas neste deserto. Põe a tua coragem nas pernas.  
Os nossos olhos iam até ao horizonte inundado dos 
nevoeiros de Outono, sem nada distinguir além da planície cor 
de cinza que se desenrolava lisa e monótona.  
Caminhávamos. E, ao olharmos maquinalmente em redor, dir-se-ia 
que continuávamos no mesmo sítio sem avançar, pois o espectáculo era 
sempre igual:,urzes, giestas, musgo e fetos, cujas folhas leves  
ondulavam sob a pressão do vento, abaixando-se e 
erguendo-se como vagas.  
Vitalis dissera-me que chegaríamos à noite a uma aldeia onde 
poderíamos descansar. Porém, a noite aproximava-se e nada víamos 
que assinalasse a presença  

da aldeia: nem campos cultivados, nem animais pastando na charneca, 


nem mesmo ao longe uma coluna de fumo que nos anunciasse uma casa.  
A esperança de chegar fizera-nos apressar o passo, e o próprio Vitalis, 
apesar de acostumado a compridas jornadas, sentia-se cansado. Parou a 
repousar um i nstante à beira do caminho. Mas, em vez de me sentar a seu 
lado, quis subir um montículo plantado de giestas que se achava a curta 
distância, a fim de ver se daí apercebia alguma luz na planície.  
Entretanto a noite descera, sem lua, mas com estrelas cintilantes que 
iluminavam o céu e derramavam a sua claridade na atmosfera carregada de 
uma névoa transparente, que o olhar atravessava.  
Não vendo nada que me anunciasse a vizinhança de uma 
casa, escutei.  

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Depois de apurar o ouvido durante um momento sem respirar, a fim de 
escutar melhor, o silêncio aterrorizou-me e senti um calafrio: tinha medo. De 
quê? Nem mesmo sabia. Provavelmente da solidão, da noite, daquele sossego. 
Fosse de que fosse, imaginava-me ameaçado. Nesse mesmo instante, ao olhar 
em volta cheio de​angústia, vi ao longe uma sombra alta mover-se 
rapidamente acima das giestas, e ouvi como que um sussurro de ramos.  
Alguém? Mas não, não podia ser um homem aquele corpo alto e 
negro que vinha na minha direcção; seria antes um animal 
desconhecido para mim, ou um pássaro nocturno gigantesco, ou 
uma grande aranha de quatro patas cujos membros delgados se 
recortavam por cima das moitas e dos fetos, na palidez do céu. Este 
pensamento encheu-me de pavor e, voltando-me, precipitei-me no 
declive para reunir-me a Vitalis.  
Desembaraçando-me  de  um  silvado,  deitei  uma  olhadela 
para trás: o bicho aproximava-se; vinha sobre mim.  

Felizmente não havia mais silvas enredadas, e pude correr à 


vontade através das ervas. No entanto, por muito depressa que o 
fizesse, o animal avançava mais do que eu; sem necessitar 
voltar-me, sentia-o  

atrás de mim.  
Já nem respirava, sufocado pela angústia e pela doida correria; 
então fiz um derradeiro esforço e vim cair aos pés do meu mestre, 
enquanto os três cães, que se haviam erguido bruscamente, 
ladravam com  
todas as forças.  
Só pude dizer estas duas palavras, que repeti 
maquinalmente:  
- O animal! O animal! No meio da vozearia dos cães, ouvi de 
repente uma estrondosa gargalhada. Ao mesmo tempo, Vitalis, 
pousando-me a mão no ombro, obrigou-me a virar.  
- Animal és tu - dizia-me ele rindo. - Repara nele, se é que 
tens ânimo para Isso.  
o riso, mais do que as palavras, chamaram-me à razão; 
afoitei-me a abrir os olhos e a seguir a direc ção da mão de Vitalis.  
A aparição que tanto me aterrorizara detivera-se e 
conservava-se imóvel a meio da estrada.  
Seria um bicho? Seria um homem? De homem, tinha o corpo, a cabeça, os 
braços. De bicho, uma pele felpuda que o cobria inteiramente, e duas patas 
compridas e magras que o sus tinham.  
Se bem que houvesse Já anoitecido, eu percebia estes pormenores, pois a 
sua sombra alta desenhava-se a preto, contornando-se no céu onde numerosas 
estrelas derramavam uma claridade pálida.  
Eu ficaria provavelmente muito tempo Indeciso a cogitar nas 
minhas dúvidas, se Vitalis não tivesse dirigido a palavra à aparição.  

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- Poderá dizer-me se estamos muito longe de uma aldeia? 
-perguntou.  
Mas Por única resposta só ouvi um riso áspero, semelhante a um 
grito de ave.  
Era então um animal? Entretanto o meu mestre continuou as mil perguntas, 
o que me pareceu absolutamente despropositado. Qual não foi o meu 
espanto quando o bicho disse que não havia casas nos arredores, mas apenas 
um curral, aonde ele nos propunha conduzir-nos. Se ele falava, como é que 
tinha patas?  
Se me atrevesse, aproximar-me-ia dele, para-ver 
como eram feitas aquelas patas, mas, se bem que me não parecesse um ente 
mau, não tive coragem; agarrando no meu saco, segui Vitalis sem nada dizer.  
- Vês agora o que te causou tão grande medo? - 
perguntou-me ele pelo caminho.  
- Vejo, mas não sei o que é; então há gigantes nesta terra?  
- Há, sim, quando estão em cima de andas. E explicou-me como os habitantes 
das Landas, para atravessarem os terrenos areentos ou pantanosos sem 
enterrarem as pernas até às coxas, se servem de dois paus compridos 
guarnecidos de um estribo que amarram aos pés  
- E aqui está como se tornam no gigante das botas de sete léguas para 
crianças medrosas.  
CAPÍTULO 10.  

PERANTE A JUSTIÇA.  

DE Pau ficou-me uma lembrança agradável: nunca há vento.  


Todavia não foi esta razão que, contrariamente aos nossos 
hábitos, determinou a longa demora no mesmo local, mas outra 
bastante poderosa para o meu mestre - refiro-me à abundância 
de receitas.  
Efectivamente, em todo o Inverno, tivémos um público infantil que não se 
cansava do nosso repertório e que jamais nos gritou: «Isso então é sempre a 
mesma coisa!». Eram, na sua maioria, crianças inglesas, rapazinhos gordos e 
rosados e lindas rapariguinhas de grandes olhos meigos, quase tão bonitos 
como os de Dolce. Foi nessa altura que aprendi a discernir todas as qualidades 
de bolos secos com que eles, antes de sair de casa, tinham o cuidado de 
encher as algibeiras para depois os repartir generosamente entre Joli-Coeur, 
os cães e eu.  
Quando os dias quentes anunciaram a Primavera, o nosso 
público principiou a ser menos numeroso, e,  

por mais de uma vez depois do espectáculo, vieram crianças dar 


apertos de mão a Joli-Coeur e a Capi. Faziam as suas 
despedidas, no outro dia já não as víamos.  

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Não tardou que ficássemos sozinhos nas praças públicas, e foi 
preciso pensarmos também em partir.  
Uma manhã pusemo-nos a caminho e retomámos a nossa 
vida errante pelas estradas mais largas.  
Depois, uma tarde, chegámos a uma grande cidade, situada à beira de um 
rio. Vitalis disse-me que estávamos em Toulouse e que ficaríamos aí muito 
tempo.  
Como de costume, o nosso primeiro cuidado, no dia seguinte, foi 
procurar os locais propícios para os espectáculos.  
Encontrámo-los em grande quantidade, sobretudo nas proximidades do 
Jardim Botânico; há lá um pedaço de terreno arrelvado sombreado por grandes 
árvores, onde vêm desembocar várias alamedas. Aí nos instalámos, e nas 
primeiras representações tivemos um públic o numeroso. Por infelicidade, o 
polícia que estava de guarda na alameda viu aquela instalação com 
descontentamento, e, porque não gostasse de cães ou porque lhe 
atrapalhássemos o serviço ou por qualquer outra razão, quis que saíssemos dali.  
Na nossa situação, teria sido talvez prudente abandonar a 
contenda, pois a luta entre a polícia e pobres saltimbancos tais 
como nós, não era com armas iguais; porém Vitalis não pensou 
assim.  
Quando o meu mestre não queria encolerizar-se,  
ou quando lhe dava na fantasia divertir-se à custa dos outros - o que 
acontecia frequentemente - tinha por hábito exagerar a sua polidez 
Italiana: dir-se-ia, ao ouvi-lo exprimir-se, que se dirigia a 
importantes personagens.  
- O ilustríssimo representante da autoridade - disse, respondendo de 
chapéu na mão ao agente da polícia - pode mostrar-me um regulamento 
emanado da dita autoridade,  

pelo qual seja proibido a ínfimos truões como nós, exercer a sua mesquinha 
indústria nesta praça pública?  
o guarda respondeu que ele só deviaobedecer e não discutir.  
- Certamente - replicou Vitalis. - É essa a minha opinião; por isso prometo 
sujeitar-me ás suas ordens, logo que me faça saber em virtude de que 
regulamentos mas dá.  
Naquele dia, o agente de polícia virou-nos as costas 
enquanto o meu mestre ria silenciosamente.  
Mas voltou no dia seguinte, e, transpondo as cordas que formavam o 
recinto no nosso teatro, precipitou-se a meio do espectáculo.  
- Tem de açaimar os cães - disse rispidamente a Vitalis.  
- Açaimar os cães! - Há um regulamento; deve conhecê-lo. Representávamos o 
Doente purgado, e como era a primeira vez que esta comédia ia à cena em 
Toulouse o público mostrava-se cheio de atenção. A intervenção do guarda 
provocou murmúrios e reclamações:  
- Não interrompa! - Deixe acabar o espectáculo! Mas, com um 
gesto, Vitalis impôs silêncio. Então, tirando humildemente o 

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chapéu, de tal forma que as penas varreram a areia, 
aproximou-se do polícia, fazendo três profundas reverências.  
- O ilustríssimo representante da autoridade disse que eu devia açaimar 
os meus actores? - perguntou.  
- Sim - disse - açaimar os cães e o mais depressa possível.  
- Açaimar Capi, Zerbino, Dolce! - exclamou Vitalis, dirigindo-se mais ao 
público do que ao polícia. - Vossa senhoria não pense nisso! Como poderá 
o sábio médico Capi, conhecido do mundo Inteiro, receitar os seus 
remédios purgativos para expulsar a bílis do infortunado  

sr. Joli-Coeur, se o referido Capi puser na ponta do nariz um açaimo? Ainda se 
fosse outro instrumento mais adequado à sua profissão de médico... Não é 
costume pôr aquilo no nariz das pessoas.  
Houve uma explosão de gargalhadas em que se misturavam as 
vozes cristalinas das crianças com as vozes guturais dos adultos.  
Vitalis, animado pelos aplausos, continuou: - E como poderá a encantadora 
Dolce, a enfermeira, usar da sua eloquência e beleza para decidir o doente a 
deixar limpar as entranhas, se, na ponta do nariz, usar o que o ilustre 
representante da autoridade lhe  
quer impor? Pergunto-o ao respeitável público e peço-lhe 
respeitosamente que julgue a causa.  

O público, convocado assim a pronunciar-se, não respondeu 


directamente, mas as suas gargalhadas falavam por ele: apoiavam Vitalis, 
troçavam do guarda, e, principalmente, divertiam-se com Joli-Coeur que, 
atrás do «ilustríssimo representante da autoridade», fazia caretas nas costas 
deste, cruzando os braços como ele, colocando as mãos nas ancas e 
inclinando a cabeça com trejeitos e contorsões absolutamente hilariantes. 
Espicaçado pelo discurso de Vitalis, exasperado pelo riso dos espectadores, o 
guarda, que não parecia homem paciente, rodou bruscamente nos 
calcanhares.  

Viu então Joli-Coeur, que estava nessa altura de mão na ilharga, na 
atitude de um toureiro; durante alguns segundos o homem e o macaco 
ficaram defronte um do outro, fitando-se como se se tratasse de saber qual 
dos dois baixaria os olhos primeiro.  

As gargalhadas que explodiram, irresistíveis e atroadoras, 


puseram fim a esta cena.  
- Se amanhã os seus cães não estiverem açaimados - exclamou o agente 
da polícia ameaçando-nos com o punho-, - você será autuado; só lhe digo 
isto.  

- Até amanhã, signor - disse Vitalis! até amanhã. E enquanto o guarda se 
afastava rapidamente, Vitalis ficou curvado até ao chão, em postura 
respeitosa.  

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Depois, a representação continuou. Imaginava que o meu 
mestre ia comprar açaimos para os cães; mas não o fez e a noite 
chegou sem que ele sequer aludisse à discussão com o polícia.  
Então afoitei-me a falar no assunto. - Se não quer que Capi 
quebre o açaimo durante o espectáculo - disse-lhe eu. - 
parece-me que seria bom colocar-lho um pouco antes. 
Vigiando-o, talvez possamos habituá-lo a isso.  
- Pois acreditas que lhe vou pôr uma caraça de ferro?  
- Ora essa! Creio que o guarda está disposto a autuá-lo.  
- Não passas de um camponês e, como todos os camponeses, perdes a 
cabeça com medo da polícia. Mas sossega, cá me arranjarei amanhã. Além 
disso, disporei as coisas para o público se divertir um bocadinho. É preciso que 
aquele polícia nos proporcione mais de uma boa receita e represente um papel 
cómico na cena que lhe preparo; isso variará o nosso repertório e 
divertir-nos-á também. Para este fim, irás amanhã para o lado do costume, só 
acompa nhado de Joli-Coeur; esticarás as cordas, tocarás alguns trechos na 
harpa; e quando tiveres à volta público suficiente, e depois do guarda chegar, 
farei a minha entrada com os cães. Nessa  
altura começará a comédia.  
Não me agradava nada ir assim sozinho preparar a 
representação, mas começava a conhecer Vitalis e a saber quando 
lhe podia resistir. Decidi-me pois a obedecer.  
No  dia  seguinte  fui  para  o  sítio  habitual  e  armei  o  recinto.  Logo 
que  toquei  alguns  compassos  de música, acorreram pessoas de todos 
os lados, comprimindo-se  

junto às cordas que eu acabara de esticar.  


Nos últimos tempos, sobretudo durante a nossa estada em 
Pau, o meu mestre fizera-me estudar harpa, e eu já tocava 
menos mal alguns trechos que ele me ensinara. Havia entre 
outras uma canzonetta napolitana que eu cantava 
acompanhando-me à harpa e que me valia sempre aplausos.  
No  entanto,  naquele  dia,  tive  o  bom  senso  de  compreender  que  não  era 
para  ouvir  a  minha  canzonetta  que  se  acotovelavam  daquela  maneira  junto às 
cordas.  
Os que haviam assistido na véspera à cena com o guarda, tinham voltado e 
trazido amigos consigo. Se bem que Vitalis só houvesse pronunciado as 
palavras: «Até amanhã, signor», toda a gente percebera que aquela entrevista 
proposta e aceita era o anúncio de um grande espectáculo onde encontraria 
ocasiões para rir e se divertir à custa do polícia.  
Por isso, ao verem-me só com Joli-Coeur, mais de um 
espectador inquieto me interrompeu a fim de me perguntar se 
«o italiano» não viria.  
- Não tarda aí. E continuei a minha 
canzonetta.  

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Não foi Vitalis que chegou, mas o agente da polícia. Joli-Coeur viu-o 
primeiro do que ninguém, e imediatamente, pondo uma das mãos na anca e 
deitando a cabeça para trás, principiou a passear de cá para lá, teso, 
imponente, com uma gravidade ridícula.  

Do público partiu uma gargalhada geral e aplausos.  

O guarda, desconcertado, lançou-me olhares furiosos.  

Claro que isto redobrou a hilaridade dos espectadores. Eu próprio tinha 


vontade de rir, mas por outro lado não me sentia tranquilo. Como iria 
acabar tudo aquilo?  

A cara do guarda não aparentava nada que me sossegasse: mostrava-se 


realmente furiosa, exasperada pela cólera. Passeava em frente das cordas e, 
quando passava a meu lado, olhava para mim de tal maneira que me fazia temer 
qualquer coisa má.  
Joli-Coeur, que não compreendia a gravidade da situação, divertia-se com 
a atitude do polícia. Passeava também dentro do recinto, enquanto o outro 
andava por fora e,  
ao cruzar-se comigo olhava-me por cima do ombro com 
um ar tão cómico, que os risos do público redobravam.  
Para não exasperar mais o guarda, chamei Joli-Coeur, mas este não estava 
disposto à obediência; sentia-se divertido e recusou fazer o que eu pedia, 
continuando o seu passeio, correndo e fugindo-me quando eu o queria 
agarrar.  
Nem sei como foi aquilo, mas o polícia, certamente cego de cólera, 
imaginou que eu estimulava o macaco, e, num instante, saltou por cima da 
corda.  
Em duas pernadas chegou a meu lado, e deu-me uma 
bofetada que quase me derrubou.  
Quando me endireitei e abri os olhos, Vitalis, que surgira não sei de 
onde, estava entre mim e o polícia, a quem segurava pelo pulso.  
- Proíbo-o de bater na criança - disse ele. - O que fez é uma cobardia.  
E durante alguns segundos, os dois homens olharam-se, frente a 
frente.  
O guarda parecia louco de cólera. O meu mestre mostrava-se 
magnífico de nobreza: conservava erguida a sua bela cabeça 
emoldurada de cabelos brancos e o rosto exprimia indignação e 
autoridade.  
Tive a impressão de que, perante aquela atitude, o guarda se ia 
sumir debaixo da terra; porém, Isso não aconteceu: num movimento 
enérgico, desprendeu a mão, agarrou Vitalis pela gola e empurrou-o 
com brutalidade.  

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Vitalis quase caiu, de tal forma o empurrão fora rude; mas 
susteve-se, e, levantando o braço direito, bateu fortemente com ele 
no punho do polícia.  
O meu mestre era um velho, vigoroso é certo, mas enfim, um velho; e 
sendo o guarda um homem ainda novo e cheio de força, a luta entre os dois 
não poderia ser longa. Mas não houve luta.  
- Que deseja? - perguntou Vitalis. - Está preso. Acompanhe-me à esquadra. 
- Porque razão bateu na criança? - Nada de conversas, acompanhe-me. 
Vitalis não replicou, mas disse, voltando-se para mim: - Volta para a 
estalagem, leva os cães e espera notícias minhas.  
Não conseguiu acrescentar mais nada; o polícia arrastava-o 
consigo,  
Assim terminou tristemente aquele espectáculo que o meu 
mestre quisera tornar divertido.  
O primeiro movimento dos cães foi o de seguir o dono, mas ordenei-lhes 
que ficassem junto de mim, e, habituados a obedecer, voltaram para trás. Vi 
então que estavam açaimados, mas, em vez de um açaimo a valer, traziam 
simplesmente uma fita de seda amarrada com laços em volta do focinho. 
Pareciam açaimos de teatro, e o meu mestre sem dúvida mascarara assim os 
cães para a partida que  

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