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CORAÇÃO SELVAGEM

Juan Del Diablo

CARIDADE BRAVO ADAMS

Terceira Parte de Coração Selvagem

Disponibilização: Jossi
Tradução: Giselda
Revisão Inicial: Vania Gusmão
Revisão Final: Silvia Helena
Formatação: Leniria
Chile - Outubro de 2002

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Informação da Série

Juan Del Diablo 01- Coração Selvagem (Distribuído)

Juan Del Diablo 02 – Mônica (Distribuído)

Juan Del Diablo 03 – Juan Del Diablo (Distribuído)

Série concluída
Capítulo Um

"Com a formal promessa de tomar os hábitos, professando


no Convento das Servas do Verbo Encarnado, tão logo seja
outorgada a nulidade do laço matrimonial" - leu Renato. E
achando estranho, pergunta a sua mãe-: Mas, o que é isto?
Quer me explicar, mãe?
-Explica-se por si mesmo, Renato. Somente quis que
ficasse sabendo para que se tranquilizasse. Mônica encontrou,
por este meio, a solução de seus problemas. Esta é a cópia de
sua súplica ao Santo Padre, e deixamos a pedido seu, o original
devidamente assinado, em mãos da autoridade eclesiástica que
se encarregará de remetê-lo ao Vaticano.
Desesperado, trêmulo, a ponto de estalar, Renato amassa
em sua mão fechada à cópia daquele documento que sua mãe
tinha lhe dado para ler, como aplicando um remédio heróico a
sua alma doente. Estavam na ampla e desmantelada biblioteca
onde Renato se fechou só durante todo o dia. Sobre a mesa
mais próxima estava o resto de uma garrafa de conhaque que
bebeu sozinho, gole a gole, lutando para romper o círculo de
angústia que lhe rodeava, fechando-se mais e mais a cada
instante. Agora, este golpe era o último; ele mesmo se
surpreendeu ao comprovar até que ponto lhe feria, lhe adoecia e
magoava. Mas sua dor se transforma repentinamente em
violenta cólera, ao exclamar:
-A idéia foi de Aimée, verdade?
-Que eu saiba, a idéia foi da própria Mônica.
-Não, não posso acreditar! Ela tinha renunciado
definitivamente à idéia de ser religiosa. Tenho certeza que não o
fez por si mesma. Alguém se encarregou de fazê-la... Uma vez
mais, vítima expiatória de pecados que não cometeu, e sei
perfeitamente de onde vem tudo isso, sei quem o fez e quem
pode consertá-lo...
-Aonde vai Renato?
-Onde tenho que ir, se não falar com ela?
Nesse mesmo instante, uma sombra furtiva cruza o grande
pátio posterior, ocultando-se entre as árvores. Chega até a
dissimulada porta, faz girar a chave e sorri ao divisar muito
perto a galharda figura que vivamente se aproxima dela, lhe
fazendo gestos para se calar:
-Nenhuma palavra! Há pessoas por perto. Não quero cair
nas fofocas dos criados.
Segurou-o pela a mão, arrastando-o pela deserta estrada, e
quando já os muros da velha mansão estavam longe, levantou a
renda negra de uma máscara e um sorriso promissor se
desenha em seus lábios:
-Você não vai esquecer jamais sua última noite em
Martinica, tenente Britton. Vou me encarregar de fazê-la
inesquecível...
-Acredito viver um sonho, possuir o impossível! Você...
Você... Mas, o que fiz eu para merecer...?
-Às vezes não é preciso fazer nada. A sorte vem sozinha...
Digo no caso de você considerar uma sorte compartilhar comigo
as últimas horas que ficará em terra martinicana...
-Não encontro palavras para lhe expressar minha gratidão.
Minha emoção e minha surpresa são tão grandes, que temo
parecer ridículo diante de você. Não consigo nem sequer falar,
mas se pudesse ver meu coração...
-Tentarei imaginá-lo. Brincou Aimée. - Não lhe parece que
devemos tentar conseguir um carro, embora seja de aluguel?
Não quero ficar por mais tempo neste odioso bairro.
-Tenho um carro comigo, que está me esperando na outra
rua. Não me atrevi a trazê-lo até aqui por temor de ser
imprudente, e que alguém...
-Fez bem. Menos mal que lhe ocorreu algo com sentido
comum...
-Não ria de mim... Acaso é motivo de riso dizer que a amo?
-É muito cedo... E provavelmente inexato - disse Aimée. - O
amor não consiste só em palavras...
-Provarei a você o meu, com o sacrifício que quiser me
impor. Nenhum me parecerá muito grande com tal de que você
meça e pese o que me enche a alma... Já não me pertenço,
Aimée. Sou seu... Seu em corpo e alma... Amo-a... Amo-a...!
Estreitou-a contra si, achou, sem procurar, os lábios
frescos, ardentes, úmidos e sensuais, e sentiu que, sob o fogo
daquele beijo, que tudo se apagava a seu redor...
-Caramba! -exclama Aimée satisfeita. - Beija como um
professor, não como um novato. Menos mal... Comecei a temer
que fosse dos que falam muito...
-Ana... Ana...! Aimée! Aimée!
Com gesto de ira mal contida, Renato cruzou o hall que
precedia o quarto de Aimée e bateu com raiva a robusta porta
fechada a chave. Uma de onda de cólera incorporou suas
pálidas bochechas quando ao fim apareceu entre as cortinas,
cinzento de espanto, o rosto da donzela nativa, que balbuciou:
-Meu... Senhor... Meu senhor...
-Onde está sua senhora?
-Aonde pode estar senhor? – Respondeu Ana morta de
medo. - Aí... Aí dentro do quarto...
-Mentira! - enfurece-se Renato. E sacudiu a porta com
força chamando -: Aimée! Aimée!Sou eu! Abra-me agora!
-A senhora disse que não queria saber nada de você, que
não a incomodasse para nada, que iria fechar sua porta com
chave, e aí está... E me mandou dizer a você que não iria abrir a
porta, acontecesse o que acontecesse...
Com violento esforço, Renato D'Autremont reagiu. Entre as
névoas de sua mente, entre a labareda de sua cólera, apareceu
a razão daquelas palavras e a lembrança de sua última
conversa com a Aimée na biblioteca. Havia bebido durante toda
à tarde, mas não estava bêbado. Mais forte que o álcool era
aquela paixão que fervia em suas vísceras: ódio, rancor, amor,
desejo desesperado por aquela mulher a qual todos afastavam
de si, e uma raiva violenta pela mulher a quem deu seu nome...
Raiva que se refreava sob o impacto de algo parecido a
remorso...
-A senhora estava muito brava e por isso disse que não iria
responder a ninguém... Já sabe como é...
-Sim, já sei como é. Bem sei como é, mas isto... Isto... Isto
partiu dela, e por isso tem que prestar contas. Aimée! Aimée!
Abra agora!
-Renato, eu te peço... - começou a suplicar Sofía
aproximando-se de seu filho.
-Sou eu quem te pede que me deixe neste momento, mãe! É
um assunto particular entre minha esposa e eu!
-Por desgraça, já não há assuntos particulares nesta casa.
Esqueceu-se até a sombra do decoro, grita e se vocifera diante
dos criados, e tudo mancha de lama o bom nome da casa...
Sofía olhou com ira para as cortinas por onde Ana acabava
de desaparecer aproveitando a ocasião para sair. Logo,
adoçando o gesto, aproximou-se até se apoiar no braço de seu
filho:
-Renato, deixe Aimée. Não acredito que ela tenha culpa ou
parte de culpa na decisão de sua irmã. Peço que me escute.
Pare com o escândalo... Catalina esteve de acordo. Quando
fomos dizer a Mônica, tivemos a grata surpresa de que
espontaneamente ela tomou essa decisão. Acredito que é o
melhor que pode acontecer. Romperá esse laço matrimonial que
é uma ignomínia, tomará os hábitos, e apenas nos restará
esquecer que existe um bandido chamado Juan do Diabo...
-Eu não vou esquecer e nem vou permitir que, uma vez
mais, Mônica seja sacrificada. Não é justo que todos a
empurrem; que todos se empenhem a que pague por um delito
que não cometeu. Diz que tomou essa decisão voluntariamente?
Não acredito, mãe. Vejo em tudo isso a mão de Aimée. Já
comecei a conhecê-la como hipócrita e intrigante...
-É sua esposa e será a mãe de seu filho. Se não pode amá-
la, respeite-a ao menos, e não insista em lhe falar no estado em
que está. Asseguro-te que Mônica está muito conformada. Se
não acredita, fale com Catalina... Acabo de deixá-la em meu
quarto. Pergunte e verá como se convence de que ninguém
pretende sacrificá-la. Ande vá falar com Catalina... Eu pedirei a
Aimée que me abra a porta, e não me oporei a que fale com ela
quando estiver mais tranqüilo. Vá... Peço-lhe isso, Renato...
Renato se afastou ao pedido imperativo de sua mãe.
Sozinha no hall, de frente para a trêmula donzela a quem fez
sair de seu esconderijo atrás das cortinas, dona Sofía deixou
cair sua máscara de severa dignidade, apertando os lábios com
raiva, seus olhos relampejam ao assegurar:
-Sua senhora não está na casa, verdade?
-Como não, senhora? Está aí dentro...
-Não minta mais! Diante de meu filho é preciso dissimular
muitas coisas, mas a mim não vai negar Saiu disfarçada com
sua roupa... Viram-na sair e pensaram que fosse você...
Entende? Haviam-me dito que você tinha saído, mas ao verte,
percebi a verdade. Era ela... Ela... E você, cúmplice imunda...!
-Aay! -queixou-se a donzela. - Eu não tenho culpa de
nada...
-Pois você é quem vai pagar! Amanhã vai para Campo Real,
e Batista arrumará suas contas!
-Não! Não, senhora! -clamou Ana espantada. - Eu não fiz
nada... Eu não tenho culpa... Manda-me minha senhora, e se
não a obedeço, também diz que me enviará para Campo Real...
-É a mim a quem tem que me obedecer. Eu sou sua
senhora... Em minha casa nasceu, e comeste o pão dos
D'Autremont todos anos de sua vida. Só a mim tem que servir!
-A senhora mandou que servisse à senhora Aimée,
mandou-me que fosse sua donzela... Mas não me mande para
Campo Real... Eu faço o que a senhora quiser...
-Vá procurá-la! Encontre-a o quanto antes... Em uma hora,
em duas... Faça entrar por onde saiu, para que meu filho a
encontre neste quarto quando a porta se abrir. Vá depressa!
Ande Ana. Que Renato não saiba disto, ou te farei desejar não
ter nascido! Entendeu? Não perca um minuto mais! Corra! Que
esteja nesse quarto antes de uma hora, ou será você quem vai
pagar tudo isso!
Na parte mais baixa da rica e populosa cidade de Saint-
Pierre, ali onde era mais profunda a curva da baía, estendia-se
um bairro com casas pequenas e ruas estreitas, cujas
estrepidações alcançam, subindo, quase até a saia de Monte
Brigue. Bairro de bares e marinheiros, de casas de jogos
clandestinos e mulheres perdidas... Inquieto bairro de festas e
pendências, aonde como ressaca robusta e amarga chega todos
os rejeitados da cidade. É ali onde arde um carnaval de álcool,
de broncas gargalhadas, de brincadeiras selvagens... Um
carnaval no qual muitas vezes correm juntos o rum e o sangue.
Agora, os paroquianos de um daqueles sórdidos
estabelecimentos abriram um círculo de rostos congestionados;
de olhos lascivos, de mãos ávidas que com dificuldade se
continham, e no centro daquele círculo, ao som apagado e
ancestral dos tambores africanos, uma mulher dançava a mais
obscena das danças nativas, retorcendo-se como serpente e
uivando como um lobo. Dançava... Dançava... Enquanto corria
o suor, fazendo brilhar sua pele de ébano... Apoiada no braço do
tenente Britton, Aimée de Molnar sorria, estranhamente
fascinada pelo ritmo daquela dança, e em voz baixa e expressiva
comentou:
-Você gosta Charles? É uma dança bruxa. A primeira vez
que se vê dançar, podem formular-se três desejos. Dizem que
um dos três se obtém sempre. Mas tem que pedir molhando
dois dedos em sangue. Agora vão degolar um cordeiro. Quer
provar? Quer realizar seu maior desejo, Charles?
-Sim. Quero pedir que esta noite não se acabe jamais! Que
seja tão longa como minha vida, e passá-la a seu lado; mas...
-Aguarda... Espera... Já degolaram o cordeiro, já trazem o
sangue nessas xícaras. Oferecem-na a todos os que a queiram.
Logo! Tem uma moeda? Joga-a no fundo e molha os dedos...
-É absurdo. Como espetáculo pode acontecer, mas...
-Logo! -Aimée extraiu de sua bolsa uma moeda de ouro,
jogando-a no fundo da xícara cheia do vermelho líquido viscoso.
Logo, pegando bruscamente a mão do tenente, afunda-a nela,
enquanto se apressava:
-Peça... Peça por mim... Peça três vezes a mesma coisa...
Que se realize o que eu estou pedindo neste momento. Pensa
comigo... Com toda sua força... Com toda sua vontade...
Pela segunda, pela terceira vez, obrigou o oficial a afundar
sua mão no sangue do cordeiro, que em uma xícara oferecia um
rapagão africano. Logo, enquanto ele limpava com repugnância
sua mão no lenço, ela se afastou para a porta que dava a uma
espécie de terraço, e aspirou avidamente o ar salubre que
chegava do mar...
-Aimée, o que te acontece? O que tem?
-Nada... Respiro... Não acredito que tenha nada em
particular...
Desconcertado, apalpando em sua mão os rastros que
deixassem as unhas de Aimée ao obrigá-lo a molhar sua mão no
sangue, o tenente Britton se aproximou daquela mulher, mais
incompreensível para ele a cada instante, e ficou um longo
momento em silêncio, até que repentinamente sacudiu a
cabeça, como espantando as quimeras para voltar para a
realidade...
-Aimée, por que fez isto? Por que está aqui comigo? É
despeito? São ciúmes?
-O que te importa? Não é muito que o faça? No que pensa?
-Não sei... Tem gostos estranhos... Este lugar, estas
pessoas...
-Um lugar típico. Aonde queria que te levasse para ver o
carnaval de Martinica? Ao baile do governador? Ao salão de
minha ilustre sogra?
-Não, nunca pretendi tanto; mas, na realidade, não sei o
que me acontece. Quanto mais tento entender, menos entendo.
Entramos, pelo menos, em dez bares. Procurava alguém neles?
-Porque pensa isso? Não compreende que uma mulher
presa entre os muros de pedra da casa D'Autremont queira
distrair-se por um momento?
-Não sou ninguém para te julgar Aimée. Inutilmente tento
te compreender. Não lhe inspiram amor nem seu marido nem
Juan. De forma espontânea me deu o presente de sua presença
e de sua companhia. Não posso pensar que sou eu quem te
inspira esse amor... Por que o faz então? O que pretende?
-Basta! – disse Aimée mal-humorada. - Estou começando a
acreditar que é um tolo de arremate...
-Sim, por aqui... Deixe-me passar, idiota...
A voz que pronunciou estas palavras chegou até ela
fazendo-a saltar como se tivesse sido picada por um réptil.
Rapidamente voltou a colocar a máscara. Trêmula, retrocedeu,
segurou o braço do tenente Britton, e ambos cravaram os olhos
no marco daquela porta, por onde Juan do Diabo aparecia
seguido pelo velho advogado... Chegou até o centro daquela
espécie de terraço natural que formavam duas rochas lisas
aladas sobre a areia da praia, muito perto do lugar em que o
mar se arrebentava, e voltou à cabeça para olhar Noel. Só então
percebeu a presença daquele casal imóvel e espectador... Aimée
envolveu seu corpo com o tecido de cores vivas do traje típico
que lhe emprestou sua donzela. O tenente Britton, um pouco
pálido, mas perfeitamente sereno, deu um passo até ele,
permitindo que a lua o ilumine dos pés a cabeça, ao saudar:
-Boa noite, Juan...
-Tenente Britton - surpreende-se Juan. - É uma verdadeira
surpresa ver você por estes subúrbios. Achei que nem sequer
estivesse mais na Martinica...
-Tem-me inteiramente ao seu dispor, se por acaso posso
lhe servir em algo.
-Obrigado, mas não precisarei de você. Tem você uma
ocupação mais grata, ao que parece. Vejo que está bem
acompanhado... Entretanto, se quiser, pode tomar uma taça
conosco...
Seu olhar de águia percorreu da cabeça a pés aquela figura
feminina, a qual, apesar do disfarce, desprendia algo que
acreditava reconhecer, algo familiar, inquietante... Em vão
tentou ver suas mãos ou seus cabelos...
-Vou aí perto, onde se joga forte, mas onde também servem
bebidas: Há bacará, roleta... Gostaria de provar sua sorte? A
minha é perfeita. Se me seguirem, encherão os bolsos. O que
diz, formosa? Suponho que o é quando o tenente se incomoda
em acompanhá-la...
-Muito obrigado, Juan, mas já íamos embora. É muito
tarde para ela... Justamente saíamos...
-É muda sua companheira, tenente, ou tem uma voz muito
fácil de reconhecer? Mal vê o rosto através dessa máscara
negra...
-Cuidado, Juan do Diabo! -ameaçou o oficial em tom
irritado.
-Não se altere tenente. Seria muito fácil para mim arrancar
a máscara embora você se oponha, mas não vou fazer isso. Para
que? Dane-se você, e ela... Oh, seu lenço! - Juan se inclinou
rapidamente, apanhando, antes que o tenente, o lenço de renda
que caiu das mãos de Aimée, e aspirou o perfume que dele se
desprendia, enquanto ria com sarcasmo -: Aroma de flores
brancas... Um aroma muito conhecido, muito conhecido,
embora só conheça uma mulher que use sempre este perfume...
Maravilhoso... Maravilhoso, tenente!
Juan deu um passo, aproximando-se mais de Aimée,
olhando ferozmente seus olhos negros através dos buracos da
máscara que lhe cobria o rosto, e comentou irônico:
-Que fácil e terrível vingança para Juan do Diabo, verdade?
-Basta... Basta! - disse o oficial britânico. - Peço-lhe que
siga seu caminho... Você não tem direito...
-E o que importa o direito? Tenho os meios ao alcance de
minha mão. O que você fizer, não faria mais que piorar a
situação, ao dar asas ao escândalo. Percebe? Bastaria arrancar
do rosto dessa mulher esse pano negro para que amanhã todos
em Saint-Pierre riam em gargalhada do cavalheiro D'Autremont
... Claro que lhe custaria à vida, meu bom amigo, e pagaria
muito caro, terrivelmente caro o prazer que possivelmente
acreditou gratuito...
-Basta... Não tem direito...! - disse Aimée sem poder se
conter.
-Falou! Que rápido rompeu sua ordem! - comentou Juan
em tom zombeteiro.
-Isso não pode ser! -desafiou o tenente. - Você saia daqui,
senhora. Vá imediatamente... Eu me encarregarei de mostrar a
este homem... Logo... Vá embora...!
-Acredito preferível que você não intervenha - aconselhou
Juan sorridente e impassível. - Sairá muito mal, desde qualquer
ponto de vista.
-Terá você que me matar antes de faltar ao respeito a esta
dama em minha presença!
-Não perca tempo com gestos inúteis. Esta dama não
deseja que a respeitem...
-Já basta! Terminemos com tudo isto. A você não interessa
quem seja minha companheira... Deixe-nos sair daqui, agora.
-Espera Charles...! - disse Aimée.
-Não vê que é ela a que não quer ir? Adora estar aqui -
comentou irônico Juan. - Embora pareça mentira, este é seu
ambiente... Enganou-se ao trocá-lo pelo ouro dos D'Autremont.
Agora se incomoda e enoja de tudo aquilo pelo que vendeu sua
vida: baixelas de prata, braceletes de brilhantes e colares de
pérolas...
-Estando a meu lado, não permito que você fale desse modo
- protestou o tenente, embora sem grande força.
-Não seja criança, tenente. Sua posição é desvantajosa. Não
compreende? Esta jogando tudo... Por quê? Por quem?
-Vai permitir que diga isso, Charles? - enfurece-se Aimée.
-E como fará para impedir? Pense bem nisso, raciocine.
Está servindo de brinquedo, de boneco, a uma mulher sem
escrúpulos. Suponho que sabe, que não se foi ainda por
vergonha... O que te propõe? O que vai fazer com ele? Até onde
vai arrastá-lo com suas intrigas? Não acha que já fez bastante
mal?
-Talvez a outros fiz mal. A você não fiz a não ser bem, e se
agora mesmo está em liberdade, a quem deve? Mas é o último
dos homens, o mais ingrato, o mais perverso!
-Está exagerando. Não faço a não ser acautelar o tenente
Britton, para que perceba o que está fazendo, e se quiser
continuar, que pelo menos não parta cego... Renato
D'Autremont está procurando alguém a quem matar, em quem
vingar uma ofensa que pressente, que sente flutuar ao redor
dele, por muito habilmente que sua mulher se dirija... Vai você
continuar fazendo o jogo desta bela víbora? Devo-lhe a lealdade
de sua declaração, tenente, e me haver estendido a mão de
amigo através das grades de uma prisão. Por isso pergunto: vai
se prestar a que ela lhe use em proveito de seus mais escuros e
tortuosos interesses?
-Não continue dizendo isso! Não o ouça, Charles não o
ouça! Charles! Charles!
A esbelta figura do jovem tenente Britton se perdeu no
extremo da escura ruela, e Aimée, que o tinha seguido até a
porta do sórdido bar, voltou-se irada e se lançou sobre Juan,
como uma fera:
-Ah, canalha... Canalha! Merece a forca, o presídio...! Eu
não sei nem o que merece!
-De que lado está? A quem te inclina? É a senhora
D'Autremont, e quer continuar sendo, mas sem deixar de se
arrastar na lama que você gosta...
-Não é da sua conta!
-Já sei. Quem me dera que jamais tivesse sido. De você sim
estou curado totalmente...
-E de quem não? De quem não? - indagou Aimée com
repentina ânsia. - Não vai dizer-me que quer a ela, que se
interessa por ela!
-E se assim for?
-Antes de consentir, faria matar os dois! Prefiro que se
juntem o céu e a terra! Não dará a outra a paixão que é minha,
que me pertence!
-E tudo isso o afirma quando acabo de te encontrar com o
tenente Britton - sorriu Juan, sarcástico e mordaz. - Tem um
coração muito amplo, e muito flexível.
-O que me importa Britton, Renato, ou o mundo inteiro?
Importa-me você e me importo comigo mesma. Todos os outros,
podem se afundar com o universo!
-Agora sim foi sincera... Importa-se com você mesma...
-Pois bem, sim. Importo-me comigo mesma; mas em meu
egoísmo há mais grandeza que na generosidade de outra.
Importo-me comigo mesma e, por me importar comigo mesma,
defendo o que é meu o que terá que ser outra vez... Porque você
é o único amor da minha vida! Lutei com todas minhas forças...
Lutei contra o próprio Renato, para que se visse livre de seus
encargos. A Renato odeio, aborreço-lhe!
-Você? Por quê?
-Por tudo! Pelo que é, por como é... Agora, além disso,
também quer Mônica, e por ela me humilha e me despreza. -
Mordeu os lábios para não gritar, apertou os punhos, seus
negros olhos brilhavam; mas lentamente se conteve, enquanto,
livre já de todos os freios, Aimée deixou correr livre suas
paixões:
-Tão louco está por ela, que só se contém porque pensa que
vou lhe dar um filho, herdeiro de seu nome, de suas terras... E
por esse filho, dona Sofía D'Autremont suporta minhas injúrias
e é a melhor cúmplice de tudo que eu faço contra ele...
-Você vai dar-lhe um filho?
-Não, meu Juan, não é verdade. Esse filho não existe! E,
entretanto, tenho que tê-lo, tenho que oferecer um filho a
Renato, ou não poderei ficar uma hora mais sob o teto dos
D'Autremont. Se você tivesse sido capaz de vir a mim, de me
responder... Mas é mais ingrato e mais canalha que Renato
D'Autremont... E então... Então tive que escutar ao primeiro que
passou perto, lançar mão do primeiro boneco que estava a meu
alcance... Esse tenente a quem você fez fugir espantado, me
causando dano só pelo gosto de me fazer isso...
-De maneira que era isso... Isso...! -riu Juan com um gesto
sarcástico.
-Pode acabar de me perder, se vingando de uma vez! Pode
correr e contar ao Renato! Dei-te a arma para que a use contra
mim mesma. Às vezes queria que tudo acabasse de uma vez,
que se abrisse a terra vomitando fogo, que nos tragasse o mar...
-Se Satanás fosse mulher, teria sua cara, suas palavras e
sua voz...
-Entretanto, amou-me... Acaso ainda me quer... Ouça-me,
Juan... Se neste momento você me repetisse o que um dia me
disse em Campo Real, se então segurasse meu braço e me
ordenasse que te seguisse, se me dissesse que seu navio
aguarda muito perto, iria contigo onde quisesse me levar...
Deixaria tudo... Tudo...
-Porque está em um beco sem saída... Porque se enredou
em suas próprias redes... Porque quer fugir do inferno que você
mesma fabricou...
-Salve-me Juan! Me leve contigo para bem longe... Se não o
fizer, então sim poderá me chamar Satanás. Se continuarem me
encurralando, defender-me-ei a golpes e com dentes, e me
vingarei de você, de Renato, dela... Dela, sim... Até agora não
quis fazer nenhum mal a ela. O mal que veio, o trouxe as
circunstâncias. Mas se pela última vez me recusar, serei
implacável. Se não me salvar, afundarei; mas afundarei a todos
os que me rodeiam. Me salva, ou me abandona, Juan?
Responde! Responde!
Enlouquecida, cega, desesperada, Aimée falava segurando
obstinada o braço de Juan, que, imóvel, contemplava-a com um
sorriso tão amargo que parecia uma careta ao rejeitá-la com ira
contida:
-Quer me deixar em paz? Quando se casou com outro,
enquanto eu jogava com minha vida para voltar por você, deve
ter pensado que tínhamos terminado para sempre.
-Talvez, mas então você não o pensava tampouco. Não
cruzou os braços, não me olhou com esse insultante desdém
com que me olha agora. Talvez te convenha saber que Mônica
está tentando conseguir anulação de seu casamento.
-Mente! Isso não é verdade...
-Não te acusou ante os tribunais, porque tinha medo; mas
nesses documentos secretos, que já devem estar a caminho de
Roma, não há uma infâmia que não te atribua. Sua distância de
Renato no tribunal era só uma farsa. Estão de acordo, embora
aparentem o contrário. E se uma coisa sair errada, não importa,
empreendem outra imediatamente. Você os atrapalha, mas eles
saberão te suprimir. Eu também os atrapalho, e só lhes detém a
consideração por esse filho que tem que nascer... Que talvez
tivesse sido possível que nascesse se você, estupidamente, não
tivesse atravessado meu caminho. Renato me recusa, mas
Britton...
-E era de Britton de quem esperava...?
-De Britton só esperava que me trouxesse para um lugar
aonde pudesse encontrar você!
-No que ficamos? Por que não fala claro de uma vez?
-É minha última esperança, Juan. Não estava errado ao
dizer que estou em um beco sem saída. Às vezes não sei nem o
que digo, de tão cega que estou de ciúmes, de despeito. Mônica,
essa Santa que quer, é minha sombra negra... Pôs seus olhos
em Renato, envenenou primeiro meu amor por ele, logo meu
amor por você... E agora... Agora... Juro-te que é sua pior
inimiga! É cera branda nas mãos de Renato. Só trabalham para
seu mal, mas não à luz do sol... Já saberá, já saberá o que lhe
preparam...
-Não acredito em uma palavra do que diz. Nada que sai de
sua boca é verdade! Não volte a se aproximar de mim, ou se
arrependerá de havê-lo feito!
-Você é quem vai arrepender-se de... - ameaçou Aimée; mas
foi interrompida pela mestiça faxineira que se aproximou
exclamando:
-Ai, senhora... Por fim a encontro! A senhora Sofía me
mandou que a procurasse. Disse que você tem que estar no
quarto quando o senhor Renato voltar...
-Cale-se imbecil! - Respondeu Aimée.
-Por que insulta a tão útil empregada? - reprovou Juan
com sarcasmo. - Acho que é injusta. Vê-se que correu para te
salvar... Assim paga o diabo a quem o serve.
-Em efeito, assim paga Juan do Diabo a quem fui bastante
imbecil para querer tirar da prisão, e bastante tola para
procurá-lo pela segunda vez - advertiu Aimée com ira
concentrada. E voltando-se para Ana, ordenou-: Vamos fale! A
que veio? Suponho que não saiu para me procurar a pé.
-Ai, não, claro que não! Já estamos três horas dando
voltas. Vim no carro pequeno, com Esteban de chofer, que esse
sim é meu amigo, senhora, e fica calado aconteça o que
acontecer... Que nem ele nem eu vamos dizer a ninguém que
você estava com o senhor Juan, porque então sim que iria arder
São Pedro...
-Cale-se! -enfureceu-se Aimée. E subindo no carro,
ordenou-: Vá devagar, Esteban, o mais devagar que puder...
-De onde vem?
-Para que quer saber? Deixou-te dona Sofía a missão de me
vigiar?
Aimée fez um esforço tentando fingir o tom frívolo, o gesto
despreocupado ao encolher os ombros debaixo daquele olhar
carregado de recriminações, mas também de angústia, com que
Catalina de Molnar a olhava. Chegou silenciosa até seu quarto
no andar de cima... Ninguém a viu, não cruzou com ninguém
nos corredores nem nas escadas... por um momento, a presença
de sua mãe a envolveu, contendo-a; logo, buscou a chave que
levava consigo e abriu tranquilamente aquela porta que
comunicava seu quarto com o gabinete...
-Era verdade! Tudo era verdade! Tive que ver com meus
próprios olhos para me convencer - disse Catalina em um triste
tom de desolação.
-Não te parece que o momento não é para sermões? -
impacientou-se Aimée. - Já ouvi muitas coisas desagradáveis
esta noite.
-Viu Renato? -alarmou-se Catalina.
-Não... Claro que não... Nem me viu nem acredito que saiba
que saí, a menos que você conte. De outro modo, não há risco.
Dona Sofía não soltará, e Aninha não acredito que se atreva a
desobedecê-la... Depois de tudo, não fiz nada errado. Saí para
respirar, ver o carnaval, me distrair... Nunca pensei que me
casar com Renato D'Autremont fosse algo tão aborrecido e tão
estúpido... Primeiro seus ciúmes, agora seu abandono, seu
desdém...
-Toda a culpa é sua, Aimée, embora eu também aceito
minha parte no fato de que seja como é... Fui uma mãe fraca,
complacente, muito amorosa para uma filha rebelde... Você
precisava de outra coisa... Sei que agora seriam inúteis minhas
recriminações, meus conselhos... Não vou falar-te por mim, a
não ser em nome de Sofía...
-Muito demorou para nomeá-la! Converteu-se na sombra
dela.
-Em efeito, não sou mais que uma sombra... Este é o
pecado que agora estou pagando: o de não ser nada para
ninguém, o de não existir realmente nem sequer no coração de
minhas filhas... Ambas estão muito longe de mim, ambas me
são estranhas... Uma, por ser generosa, por ser sublime; outra,
por ser egoísta, por ser perversa... Sangram-me os lábios ao ter
que lhe dizer isso, mas é certo: vive para o mal e para o erro...
-Quer me deixar em paz? - disse Aimée com contrariedade.
-Já te deixo... Isso é o que vim te dizer... Me vou, a pobre
sombra que sou vai desvanecer se, mas se é ainda capaz de
escutar a última súplica de sua mãe, peço-te que saia hoje
mesmo para Campo Real. É o desejo de Sofía. Ela quer voltar e
que você a acompanhe...
-Eu? Não lhe sobram criados para isso?
-Está desesperada, e eu prometi te convencer. Quer te levar
para Campo Real e cuidar de você e desse herdeiro que é sua
última esperança, sua última ilusão...
-Vá! Já apareceu aquilo!
-Também é o desejo de Renato. Com isso salva a única
coisa que pode salvar: sua posição nesta casa, e o futuro desse
filho que vai nascer...
-E se não nascer? - disse Aimée furiosa.
-O que diz filha? - alarmou-se Catalina, francamente
assustada. - Não quero pensar que mentiu, que foi capaz...
Aimée, filha...! O que é que está tentando me dizer?
-Nada, mamãe, se tranquilize - riu Aimée amargamente. -
Estava só brincando para responder a seu sermão moralista
que, às quatro da manhã, não cai bem a ninguém...
-Sei que não tem coração, mas não acredito que chegue a
isso. Entretanto, você o disse por algo... Aimée... Aimée seja
sincera pelo menos uma vez!
Aimée apertou os lábios sensuais, entreabriu as pálpebras,
ficou um longo momento imóvel, como se meditasse
profundamente, como se urdisse um novo plano em sua mente
diabólica... Logo, sorriu quase zombeteira:
-O que vou fazer, por uma vez, é te agradar...
-Verdade? – Disse Catalina esperançosa.
-Porque você me pede isso, mamãe. Já vejo que minha
sogra tem medo de mim... Menos mal... Esperava encontrá-la
aqui em seu lugar, me aguardando com a caixa de trovões na
mão, a voz solene e o aspecto sinistro. Se tivesse vindo desse
modo, teria a mandado passear. Mas envia você como
embaixatriz, você chega com lágrimas nos olhos, e embora eu
seja a filha malvada, a filha perversa, a filha sem coração, vou
te agradar. Não quero ser menos que a filha sublime que,
conforme tenho entendido, vai voltar aos hábitos. Não?
-Sim, assim é em efeito. Mônica disse que aceitava tudo e
assinou a solicitação que levamos. Quando seu casamento
estiver anulado, tomará os hábitos. É triste, mas ao menos
ficará a salvo do escândalo, a salvo da maldade do mundo e
desse homem...
-Pode me garantir que em nada disso vai voltar atrás?
-Certamente. Claro que posso garantir. Mônica não mente.
-Pois confiemos na palavra da Santa Mônica... Juan e
Renato morreram para ela, de verdade?
-Posto que não vai sair do convento, é como se tivesse
morrido.
-Também pode me garantir que dona Sofía não vai se
meter com o que eu fizer lá, em Campo Real? Que vai deixar-me
em paz, deixar-me sair, entrar e fazer exatamente o que eu
quiser?
-Enquanto não prejudique sua saúde...
-Sem restrições. Eu saberei como me cuidar. Se prometer
me deixar em paz, diga que hoje à tarde, vou para Campo Real
com ela... E agora, deixe-me dormir mamãe, tenho muito
sonho...
Virou-lhe as costas e entrou no quarto, havia um sorriso
em seus lábios sensuais, e também um relâmpago satânico em
seus negros olhos...
Capitulo Dois

-Não retiro a aposta... a deixo... Trinta onças à rainha de


diamantes!
Sobre a verde toalha de mesa, as cartas estavam em quatro
maços, e o montão de moedas, que Juan do Diabo acabava de
ganhar, brilhava sobre a carta nove vezes triunfante... Pouco a
pouco seus competidores foram se retirando, e, agora, os dois
últimos se afastavam em silêncio. Quase ninguém jogava no
tugúrio; os que não se foram agruparam-se ao redor daquela
mesa olhando assombrados o homem que sorria com gesto tão
amargo à sua boa sorte...
-Acredito que desbancou a mesa, Juan - observou Noel. -
Por que não recolhe suas onças e vamos?
Um homem parou na porta do tugúrio e entrou lentamente.
As cabeças se voltaram observando suas roupas de cavalheiro,
seu perfil aquilino, a expressão tensa que endurecia seu rosto, o
brilho metálico de seus olhos claros, fixos no rosto de Juan.
Pouco a pouco foi aproximando-se da mesa, e Pedro Noel foi o
primeiro a vê-lo, ficando de pé, segurou alarmado o braço do
patrão, sem conseguir que este se movesse, enquanto implorava
premente:
-Vamos embora daqui, Juan, vamos imediatamente. Já é
muito tarde, cinco horas pelo menos... Recolhe seu dinheiro e
vamos! Não vê que se vão todos?
-Não há ninguém que queira jogar? - perguntou Juan
elevando a voz. - Não há ninguém que responda à aposta?
Ninguém quer medir sua sorte com o Juan do Diabo?
-Eu! - aceitou Renato aproximando-se, - E dobro a aposta!
-Verdade?
-Não estava pedindo um competidor? Aqui está! O que se
passa? Não tem bastante dinheiro?
-Disse trinta onças à dama de diamantes!
-Sessenta ao rei de espadas! Jogue as cartas, croupier! Não
ouviu? Jogue as cartas!
-Bruno está surpreso com a presença de um cavalheiro em
sua casa. Por isso te olha dessa maneira - observou Juan,
apagando em suas pupilas a cólera que por um momento se
acendeu. - E não responde, simplesmente porque é mudo. Mas
sim ouve muito bem. Jogue as cartas, Bruno, não tenha medo...
Aceito o competidor. Seu novo cliente tem muito dinheiro, e não
importa que não tire as onças do bolso. Pagará, pagará até o
último centavo de tudo o que perder o que será muito. Embora
nascesse para ganhar, agora chegou o momento de perder...
-Por favor, chega de tolices! -atravessou Noel,
assustadíssimo e gaguejando. - Juan e eu íamos embora neste
momento, Renato. O lugar se fecha precisamente ao amanhecer,
e está já amanhecendo. Eu acredito que depois do que passou...
-Depois do que aconteceu, você não deveria atrever-se a me
dirigir a palavra, Noel - reprovou Renato com altivez. - Há
poucos instantes, este homem desafiou a todos os presentes a
lutar contra sua sorte. Ninguém respondeu só eu. Pediu
sessenta onças e aqui as tem. O que esperava para esculpir,
imbecil?
O chamado Bruno baralhava rapidamente as cartas entre
seus ágeis dedos. Os últimos jogadores das outras mesas
desaparecem. Só dois ou três atrasados se mantinham ao redor
daquela mesa, espiando com curiosidade o estranho conflito.
Juan parecia sereno, enquanto Renato tremia de raiva, e Noel,
resignado, com a cabeça baixa. Caiam os naipes um a um no
silêncio espesso das respirações contidas, até que...
-Rei de espadas! -proclamou Renato. E satisfeito, mas sem
poder esconder a amargura, observou-: Não é impossível torcer
a sorte de Juan do Diabo! Perdeu a um só golpe!
-Não! A um só golpe vai agora tudo o que tenho. Tudo o que
tenho contra essas noventa onças! -Raivosamente, Juan
afundou as mãos em seus bolsos, tirando punhados de moedas,
enrugados bilhetes... Havia dinheiro de todos os países: as
pequenas e grossas libras esterlinas e o pálido ouro da
Venezuela junto a enrugados bilhetes de cem francos e florins
holandeses. - Aqui há noventa onças, mais ou menos. Vai
contra todo o seu, se é que não me nega a desforra!
-Não nego. E se quer continuar jogando, admito-te como
bom até a imundície de seu navio. Cartas, croupier!
Uma a uma tornaram a cair as cartas em silêncio,
crispando os pressente, enquanto com voz tensa de emoção
Noel ia enumerando:
-Dois de diamantes... Três de espadas... Cinco de trevo...
Quatro de coração... Dama de diamantes!
-Ganhei! - assinalou Juan com uma mescla de orgulho e de
alegria.
-Não o toque. Vão duzentas onças contra isso! -propõe
Renato. E destilando ironia, observou-: A menos que me negue
à desforra...
-Nunca nego! - respondeu Juan com altivez, - Cartas,
croupier!

-Ai, minha senhora... Minha senhora! Mas, de verdade


vamos para Campo Real?
Com os grossos lábios trêmulos e as bochechas de cor
cinzenta que mostrava o medo em sua pele morena. Ana parece
incapaz de mover-se. Está parada em frente à Aimée, que
franzindo o cenho, obriga seu cérebro a urdir rapidamente
aquele plano cuja primeira idéia apareceu com as palavras de
sua mãe:
-Sou uma malvada... Vivo para o erro, não ouviu? Minha
própria mãe pensa assim... Suas duas filhas estão muito longe
de seu coração, uma por ser sublime... a sublime é Mônica... A
malvada... A malvada sou eu, naturalmente. Não há infâmia
que não me considere capaz, porque não tenho coração... Os
D'Autremont me compraram... Compraram-me com seu ilustre
sobrenome. Sou propriedade deles, não percebe? Não entende?
-Eu não entendo, mas sim que vamos aonde não devemos
ir. Você não sabe como são as coisas por lá, como eram quando
o senhor Renato estava fora. A senhora deixava que Batista
fizesse tudo o que queria... Quando a senhora Sofía era quem
mandava em Campo Real...
-Já sei... Mas muito em breve ela não mandará, a não ser
eu, entendeu? É a única coisa que posso salvar de tudo isto, e
vou salvar.
-Mas a mim o Batista tem na lista negra! - lamentava-se a
assustada Ana.
-Estará a meu lado. Enquanto me servir bem, não tenha
medo... Ouça Ana, antes que a senhora D'Autremont retomasse
o seu serviço, você vivia na parte alta da fazenda, verdade?
-Sim, minha senhora, trabalhava nas plantações de café.
Que mal a nisso! Tem que carregar umas cestas deste tamanho,
aqui na cabeça, e arrancar os grãos um por um. E quando
chega uma visita, então tem que fazer a comida... E nos
barracos dormem todos juntos, como cães.
-Nem todos vivem assim... Há bailes, há festas algumas
vezes... E um pouco mais acima dos cafezais, no alto do
desfiladeiro, vive uma mulher a quem todos respeitam.
-Ah, sim! Vive Chola, a bruxa. Uns lhe chamam de fada
madrinha. Chamam-na sempre quando alguém morre, para que
faça a mortalha, e também quando uma criança vai nascer. E
vende unguentos para dores, amuletos para os amores
impossíveis e bonecos de seda que, com outras coisas, servem
para vingar-se das pessoas... Porque o que faz ao boneco
acontece com a pessoa que o boneco representa...
-Diz que a chamam quando uma criança vai nascer?
-Sim, minha senhora, quase todas as mulheres do cafezal a
chamam para isso. Quando querem que uma criança nasça, e
também quando não o querem. Ela curou a muitas pessoas de
coisas más, mas me dá medo...
-Iremos vê-la. Não tem que dizer a ninguém. Faremos sem
que ninguém saiba, mas essa mulher vai ajudar-me. Darei mais
dinheiro a ela que jamais viu junto, e fará o que eu lhe
ordenar...

-Renato, em fim chega! Estive me remoendo de angústia,


filho!
-Não havia por que, mãe.
A luz do sol banhava cegamente o pátio central da velha
morada dos D'Autremont quando Renato, tentando se esquivar
de sua mãe, já havia cruzado o caminho da biblioteca. Mas a
mão magra e trêmula de Sofía se apoiou em seu braço, detendo-
o com uma velada recriminação:
-Não passou a noite em casa, Renato...
-Efetivamente - confirmou Renato com certo mau humor. -
Estive fora, mas...
-Não pode me conceder uns minutos, filho? Vou retornar a
Campo Real e levo junto Aimée. Não era isso o que desejava?
Não me pediu que o fizesse?
-Pedi isso há dias...
-Agora já não quer mais? Não se importa? Dá na mesma?
Está muito aborrecido, vejo... E eu me sinto doente... Se
entrasse em meu quarto...
Renato se deixou levar mansamente, e os olhos ansiosos da
mãe liam em seu rosto os rastros daquela horrenda tormenta
interior que devastava sua alma. Levou-lhe até o fundo do
grande quarto cujas janelas, cobertas por cortinas de seda, mal
deixavam penetrar a luz do dia, aquela luz que feria as claras
pupilas de Renato. E no ar fresco, perfumado com lavanda, na
grata penumbra daquele quarto familiar, sentiu que se
afrouxavam seus nervos tensos. É como se outra vez voltasse a
ser criança e procurasse na ternura maternal o escudo contra
todos os males...
-Sente-se, filho, Por Deus. Vê-se que você também está
doente. Quer que peça uma bebida refrescante, um pouco de
chá?
-Não, mãe não quero nada... Ouvir-te-ei, já que o deseja, e
depois...
-Depois, te deixarei em paz, já sei. Sim e vou fazer isso. Se
Deus quisesse que de verdade fosse em paz... Se a paz de sua
alma pudesse se conseguir a qualquer preço... Se voltássemos a
nos entender, meu filho, a estar de acordo... Se me permitisse
cuidar um pouco da sua sorte...
-Minha sorte? Ninguém é afortunado, mãe.
-Já sei... Mas há mil formas de viver sem sentir-se
desventurado... Se fizesse um esforço, se aceitasse os fatos, se
voltasse a retomar o velho caminho esquecido e a refazer sua
vida...
-Não posso, abandonando à mulher a quem amo... Não
posso, enquanto o rival que me desafia está de pé, insultante,
insolente... Agora, eu mesmo lhe dei uma arma a mais:
dinheiro. Joguei e perdi... Muito... Muito dinheiro... Já sei que
não importa, já sei que somos ricos... Podemos atirar ouro às
mãos cheias. Atirei um punhado, e ele o pegou... Se visse como
ria afundando as mãos entre essas moedas!
-De quem fala? Está transtornado, Renato!
-Juan do Diabo já não é um pobretão! Cobrou sua herança!
Sofía D'Autremont ficou vermelha como se fosse arrebentar
sua cabeça. Logo, caiu transtornada, aniquilada pelo golpe do
que acabava de escutar...
-Você fez isso? Você foi procurar...?
-Não fui procurá-lo. Saí como um louco... Não queria me
chocar com Aimée, não queria fazer em pedaços sua porta...
Odiava-a muito naquele momento... Quando vi aqueles papéis,
quando compreendi que foi idéia dela, quando uni tudo aquilo a
umas palavras que me disse ao sair do tribunal; odiei-a
furiosamente... É ela quem se empenha em ver Mônica no
convento... Está ciumenta de minha estimativa, de meus
sentimentos...
-Teria toda a razão do mundo para estar - afirmou Sofía
com gesto cheio de severidade.
-Não me importa se tem ou não razão... Por não me deixar
levar por essa loucura, saí desta casa, vaguei pelas ruas até
perto do amanhecer, escutei os sinos do convento e me
aproximei da igreja... Queria ver Mônica, embora fosse de
longe... Não a vi, não apareceu... Eu segui meu caminho e como
um sonâmbulo, cheguei até o cais... O ar carregado de salitre
me açoitou o rosto como se me esbofeteasse... E outra vez me
cegou o ódio e o ciúme... Ali estava Lúcifer, "única propriedade
de Juan sem sobrenome"... Pareceu-me ouvir outra vez as
palavras do juiz, pareceu-me ver seu maldito rosto insolente e o
olhar de Mônica fixo nele... Acaso o ama? É a ele a quem ama
agora?
-Filho, Por Deus... - clamou Sofía com triste desolação.
-Tive um anseio feroz de me encontrar com ele a sós, frente
a frente, e corri para o bairro imundo onde já o tinha
encontrado uma vez... Atravessei o bar, cheguei até a última
porta, e ali estava ele, estupidamente satisfeito... Jogava e
ganhava... Tinha a mão boa... Nove vezes apareceu a mesma
carta: a dama de diamantes... E por uma horrível associação de
idéias, cada vez que ele gritava: "A dama de diamantes"... Era
para mim como se cuspisse o nome dela.
"Com arrogância estúpida, desafiou todo mundo: "Quem
quer medir sua sorte com Juan do Diabo?”Era para mim uma
provocação... Fingiu não haver me visto, mas tenho certeza que
me levava a brigar ali, a seu mundo abjeto... Tinha-me vencido
no meu, o tribunal o tinha absolvido, e eu quis vencer a ele no
seu... Então, atirei uma bolsa de dinheiro sobre a mesa...
"A primeira mão foi minha, mas ele me pediu revanche,
jogando sobre a mesa tudo o que tinha em seus bolsos.
Enlouqueceu de raiva ao perder, e eu queria ganhar tudo...
Tudo... Até esse barco imundo no qual um dia se atreveu a levá-
la, com todos os direitos que lhe deu minha loucura. Queria
jogar tudo... Até a vida... A uma última carta... E joguei como
um louco, perdendo... perdendo... Perdi tudo que tinha no
bolso. Depois, assinei papéis... Logo, quis me jogar sobre ele,
mas me detiveram, seguraram-me, tiraram-me dali... Cães
imundos se atreveram a fazê-lo, enquanto ele ria afundando as
mãos naquele dinheiro! Parecia-se com meu pai nesse
momento!
-Filho! O que disse? -exclamou Sofía, com o espanto
refletido em seu pálido rosto.
-Por isso me deixei arrastar... Não pude levantar minha
mão contra ele... E já na porta, gritou-me como um louco:
"Obrigado, Renato. É parte de minha herança".
-Oh! Oh...! - murmurou Sofía afogando-se, enquanto
desabava inconsciente no chão.
-Mamãe! Mamãe! O que te aconteceu? - alarmou-se Renato.
-Senhor Renato...! -exclamou Aninha chegando apressada,
como se brotasse por encanto da terra. - É o acidente... Tem
que levá-la à cama...
-Eu a levo... Prepara logo a poção... O éter... Mamãe!
Mamãe!
Renato levou o frágil corpo de sua mãe até o leito antigo, de
mogno lavrado, depositando-o meigamente nele, enquanto Ana,
diligente, colocava a seu alcance o frasco de sais, o éter, e corria
para preparar a poção...
-Mamãe, mamãe de minha alma...! Sou um estúpido... Não
deveria te falar disso... Fiz mal, muito mal...
-Renato, filho... -murmurou Sofía com esforço, abrindo
apenas os olhos.
-Aqui está a poção - ofereceu Ana, aproximando-se
obsequiosa. – Faça-a beber...
-Sim... Se... Toma isto, mamãe, se sentirá melhor
imediatamente... Por favor, beba tudo... Fecha os olhos e fique
um momento... Quieta, o mais quieta que puder... Eu estarei
perto...
Sofía fechou os olhos e ficou imóvel. Renato se afastou uns
passos, cambaleando como se estivesse ébrio, enquanto o
ardente olhar de Ana lhe seguia pelo quarto, e, quando passou
pela porta, foi atrás dele...
-Senhor Renato... Vou mandar chamar o médico... O
doutor disse que a senhora poderia ficar em um destes
desmaios, ao ter um desgosto era o mesmo que lhe cravar uma
adaga, e talvez seja conveniente que soubesse que ultimamente
tem desgostos há todas as horas...
-Lamento por minha alma ter me deixado levar...
-Perdão, senhor, não falava por ti. Há alguém que parece
preparar desgostos para a senhora, dar-lhe deliberadamente...
Não queria que o senhor me obrigasse a nomear a ninguém,
nem acredito que seja necessário. O pouco que pensa, saberá
onde está a fonte do veneno nesta casa... Com sua permissão,
senhor...
Foi-se como se desvanecesse. Profundamente preocupado,
Renato deu uns passos sem rumo. Chegou até o quarto
atormentado pelas grandes prateleiras, repleta de livros
poeirentos, e se deixou cair em uma poltrona, afundando entre
as mãos na testa, enquanto murmurava:
-Sua herança, Juan... Sim... Terá toda sua herança!

-Não é uma quantidade fantástica de dinheiro Noel?


-Sim, filho, é como um sonho. Que rajada de sorte, que
loucura de sorte! Nunca pensei que pudessem fazer-se assim as
coisas. Aqui há, pelo menos, cem mil francos, uma pequena
fortuna, percebe? Com isto pode empreender qualquer negócio,
o que desejar muito... Fazer aquela casa sobre a qual me falou,
no Cabo do Diabo... Se eu estivesse em sua pele, tomaria um
banho imediatamente, me barbearia, vestir-me-ia como as
pessoas decentes e pegaria o caminho do Convento das Servas
do Verbo Encarnado...
-Por quê? Para que?
-Não me pergunte isso nesse tom. Para que seria? Para
dizer a essa a quem não quis convidar a te seguir a uma
hospedagem de bar, que pode lhe oferecer um lar decente e
digno, que a vida começa, ou pode começar, a qualquer
momento, e que vai começar de novo aos vinte e seis anos, por
ela, para ela... Porque é sua esposa e porque a quer...
Juan do Diabo ficou de pé, afastando a pequena mesa
daquele quarto desmantelado, em que se amontoavam bilhetes
e moedas. Era um casebre mais entre tantos dos que abundam
nas ruelas daquele bairro, um quarto de hospedaria...
-Por que pretende você me converter no que não sou nem
jamais serei? Se eu pensasse que este imundo punhado de
bilhetes, ganhos por um golpe de azar fosse capaz de mudar os
sentimentos de Mônica, pensaria, ao mesmo tempo, que não
vale à pena...
-Filho, não é pelo dinheiro. Compreenda... É que com isto
pode mudar totalmente de atitude e de vida... Quem te assegura
que Mônica não te quer?
-Noel, meu bom Noel, não se esforce - aconselhou Juan
com amargura. - Sei perfeitamente como agir com respeito a
esse ponto... Aconteça o que acontecer, quer a ele... Estou bem
certo...
-Pois se está tão certo - rebateu Noel com certa ira, - por
que não a deixa em liberdade e vai para bem longe?
-Não sou eu quem a prende nem quem a escraviza. Sem
uma palavra a deixei no convento, e ela, dali, solicitou a
anulação de nosso casamento...
-Não acredito!
-Por que não acredita? Quem me disse isso está segura...
-Segura... Logo, foi uma mulher... Foi à outra, verdade? -E
sem poder-se conter, o velho Noel gritou-: Que o diabo a
carregue! E não quer que te diga que algumas vezes age como
uma criança, ou que se comporta como tal? Como é possível
que ainda acredite no que sai dessa boca?
-Não me acha tão criança, Noel. Essa boca engana, intriga,
mente, fabrica mundos diabólicos para seu capricho, mas nisso
não mentiu. Sei muito bem como se sente Mônica... Por um
momento pôde me enganar, mas nada mais que um momento.
Enquanto for minha esposa, seu dever a ata a mim, e será leal,
até contra todos seus sentimentos. Sua escrupulosa consciência
de noviça a estremece e faz pensar que peca até acariciando um
sonho... Não sendo minha esposa, poderá sonhar sem que a
reprove sua consciência, sem que a atormentem seus
escrúpulos...
-Para o caso seria igual, tratando-se de quem você acredita
que se trata. Casada ou não, é um impossível para ela.
-E o que? Pode sonhar a vontade... Sonhando com ele
passou sua vida inteira... Sonhando com ele quererá esperar a
morte! E ele... -interrompeu-se um instante, e em seguida disse
com rancor: Não... com ele são mais que sonhos... Ele está já no
despenhadeiro de todas as paixões e não se deterá ante nada.
Ele é um D'Autremont dos pés a cabeça...
-E acaso você também não é?
-Eu...? Talvez... Mas não queria ser... Queria ser, de
verdade, um filho de ninguém, ignorar que corre esse sangue
por minhas veias. Juro que poderia respirar mais a vontade se
ignorasse tudo... Mas junto com esse nome, volta para mim
todo o horror de minha infância: a cabana de Bertolozi, a
crueldade daquele homem que vingava em minha carne
inocente toda a dor de suas ofensas... E nem sequer posso
trazer para a minha memória o que poderia acalmar tudo: a
imagem de minha mãe, a consciência de havê-la visto alguma
vez. Você a viu, Noel? Pode me dizer como era?
-Vi, sim... Mas, para que vamos falar disso? - murmurou o
velho, comovido, lutando para acalmar-se. - É inútil fazer
horrível o presente à força de verter o passado sobre ele. Sua
mãe era desventurada e formosa. Também posso te dizer outra
coisa: não houve interesse nem cobiça nela... Pecou por amor, e
pagou seu pecado com lágrimas e sangue... Eu a vi algumas
vezes, e não poderia dizer como era seu sorriso, mas sim que
suas lágrimas correriam a torrentes...
-Então tenho que odiar ainda mais a ele... A esse Francisco
D'Autremont que me deu a vida dessa maneira!
-Ele a quis também, filho. Quis profunda e sinceramente.
Embora você não acredite, pulsava um coração debaixo de seu
orgulho, de seu orgulho enorme, imenso... Por isso quero refrear
o seu. O primeiro pecado do mundo foi à soberba. Você não vai
cair nele...
-Meu pobre Noel, não diga tolices. Se um homem como eu
não tivesse orgulho, seria um verme, e eu prefiro ser uma
serpente cheia de veneno para que não continuem me
pisoteando...
-Verme nasceu, mas já não o é. Porque sei que pode voar,
mostro-te o caminho do céu. Por que não se levantar, fazendo
dignidade fecunda do que só é orgulho estéril? Quer que eu vá
ao convento, e diga a sua esposa...?
-Não, Noel... Minha esposa! Com que sarcasmo soa essa
palavra. Não lhe diga nada. Eu vou vê-la, e falarei com ela,
embora acredite que nada vai mudar isso... Eu falarei, mas não
lhe direi o que você quer... Até tenho algo a perguntar a Mônica
de Molnar, e minha vida será o que resultar dessa resposta...

Muito devagar, com um passo tão leve que apenas roçou seus
pés os gastos degraus de pedra, Mônica desceu de sua cela
rumo àquele grande pátio interior que era o jardim e o pomar no
Convento das Servas do Verbo Encarnado... Outra vez os sinos
chamavam os fiéis, agora com o brando som sonolento que
convida à oração da tarde... Outra vez, religiosas e noviças iriam
à igreja em apertadas filas, mas Mônica partiu em direção
contrária. Saiu de sua cela, sentindo que se sufocava entre
aquelas paredes, mas, como por instinto, fugiu de todas as
presenças... O que sua alma desejava era silêncio, solidão... Até
no claustro lhe parecia estar muito perto do mundo. Deixou os
arcos que limitam o claustro, querendo chegar até um lugar
onde só poderia ver as árvores e o céu, mas algo se agitava
entre os ramos dos arbustos ao vê-la aparecer... Uma redonda
cabeça escura aparece e dois grandes olhos negros brilharam
sobre a pele cor de ébano, um corpo pequeno e ágil saltou
aproximando-se dela...
-Ai, minha senhora! Menos mal que você apareceu. Eu não
sei nem o tempo que estou abaixado esperando-a, e ia subir
outra vez para ir embora, mas a verdade é que não queria partir
sem vê-la...
-Disse para que não voltasse Colibri. É uma verdadeira
imprudência. Está proibido. Não entende?
-Eu não venho para fazer nada errado, minha senhora.
Você sabe que eu não venho mais que para vê-la... Não quer
nada comigo, minha senhora? Já não me quer?
-Sim te quero. Mas quando transpassar estas grades, terei
que renunciar tudo o amava no mundo... Você não pode me
entender, pobrezinho, mas não sofra por isso, não fique triste.
Acaso não era feliz antes de me conhecer?
-Feliz? Que coisa é ser feliz, minha senhora? Estar
contente?
-Bom... De certa forma... Você não estava contente? Não
estava também contente seu patrão?
-Ele, eu não sei... Ele ria, e quando chegávamos ao porto...
ia à festa. Quando ele não descia, as mulheres iam buscá-lo no
cais. O patrão sempre trazia presentes, e elas o beijavam e
diziam que era mais farto que um rei, e mais bonito que
ninguém... Porque o patrão...
-Cale-se! - cortou-lhe Mônica, apertando os lábios.
-Zangou-se, minha senhora? – perguntou ingenuamente o
pequeno Colibri.
-Não. O que pode me importar o que disse? Volte com seu
senhor! Volte para navio de Juan, para participar de suas
festas! Certamente, agora estará ali, divertindo-se...
-Não, minha senhora, ele não voltou para navio. Anda com
o senhor Noel... Mas diz Segundo que ontem à noite ganhou
muito dinheiro, e que agora todas as coisas vão ser diferentes.
Que o senhor vai voltar a ser um cavalheiro, com casa própria e
navios que vão pescar... E também me disse outra coisa: que o
senhor vai vir procurá-la, e que você viria outra vez conosco;
não ao navio, mas à casa que vai fazer o amo. É isso verdade?
-Não, não é verdade. Não sairei jamais do convento, nem
tampouco ele deseja que saia. Estou segura disso. Bastam
essas mulheres que o esperam no cais. Agora irão querê-lo
mais, porque poderá lhes levar melhores presentes...
-Chist! Vem uma monja - advertiu Colibri em voz baixa e
assustado. - Eu me escondo...
-Mônica... Mônica, minha filha... - chamou a abadessa,
chegando juntou à noviça, e lhe explicou-: Venho de sua cela.
Procuraram-lhe inutilmente por todo o convento. Há um
visitante que te espera no locutório...
-Juan! -alvoroçou-se Mônica sem poder esconder sua
confusão.
-Não. É o senhor Renato D'Autremont, minha filha, que
pede e suplica que não se negue a falar com ele...
Mônica se sentiu como se algo se gelasse em suas veias.
Renato D'Autremont... Cada uma de suas letras a transpassou
como uma fina flecha de angústia, enquanto uma amarga
desilusão ia invadindo-a, porque é ele e não o outro. As palavras
de Colibri fizeram bater as asas em sua alma uma esperança
que, apesar dele, acendeu-a de loucas ilusões. Agora, é como se
fechasse de repente a porta que visse entreaberta, como se de
um golpe se apagasse a última estrela de seu escuro céu...
-Eu também me atrevo a te pedir que não se recuse -
prosseguiu a abadessa. - Faz muito tempo que te espera. Parece
tão angustiado, tão inquieto, que seu empenho me faz pensar
que tem algo importante a dizer, acaso um pouco relacionado
com a solicitação dessa anulação de casamento que assinou
para enviar ao Santo Padre. Afinal acredito que o ouvindo nada
perde...
Mônica olhou a todas as partes... Com a aparição da
abadessa, desapareceu Colibri. Sem dúvida, estava escondido
muito perto, ou acaso aproveitou o momento para fugir,
levando-se com ele aquela baforada de ar salubre, aquele
desesperado desejo que só o nome de Juan acende nela. A voz
da abadessa lhe chegou como se viesse de muito longe,
obrigando-a a voltar para a realidade:
-Os D'Autremont são seus iguais, seus parentes... Não
podem te desejar nenhum mal. Vamos, filha... Venha...
Capitulo Três

- Você entra comigo, Noel. Quero dizer, se desejar...


-Naturalmente que desejo, e entro contigo. Mas não se
preocupe, porque sei ser discreto. Quando os casamentos mal
havidos se encontram diante de um terceiro, voltam-se muito
suscetíveis, e dignos. A mulher gosta do apoio e do domínio do
homem...
-Não as mulheres como ela, que é dura como o diamante.
Pode parecer frágil como o cristal, mas não é. Frente a ela, não
sou eu o mais forte... Mas não me quer Noel, não me quer!
-Talvez não te queira, mas pode te querer. Considero-te
homem capaz de roubar se coração se já não o fez. Não o
chamam pirata? Não tem fama de domar as ondas e os ventos?
Acaso se dá por vencido antes de começar a batalha?
-Por minha desgraça, sim. Mas não importa... Entremos...
Se negar a me receber...
-Se acalme... Deixe-me falar com a irmã Tornera...

-Mônica... Afinal aparece... Por fim aceitou...


-Não me agradeça Renato. Minha intenção, meu desejo, era
não ver ninguém durante muito tempo. Vim aqui para procurar
a paz...
-Bom vocês precisam conversar e chegar a um acordo,
aparar todas essas pequenas asperezas que surgem das
circunstâncias, mas que não devem existir entre parentes -
aconselhou a abadessa intervindo de forma conciliadora. -
Como é seu desejo, senhor D'Autremont, vou deixar lhes a sós.
E como pedi a ela que aceitasse esta conversa, peço a você que
perturbe o menos possível sua alma com os problemas de fora
do convento. Estes claustros devem ser um dique contra o
mundo, e o remanso de paz que necessitam as almas
atormentadas como a de Mônica neste momento. E agora, com
a permissão de vocês...
A abadessa se desculpou e com passos suaves e silenciosos
se afastou deixando sozinhos a Mônica e Renato, que ficaram
em silêncio durante um breve instante, até que de repente a voz
fria de Mônica, indagou:
-Diga... Queria me falar...
-Queria, é certo. E se visse a sós, entre as quatro paredes
de sua biblioteca, como e quanto te falo Mônica... São
raciocínios aos que não há nada a replicar, onde toda palavra é
inútil, porque é apenas um pálido reflexo do sentimento. -
Renato se aproximou dela trêmulo, mas Mônica retrocedeu e
afasta o olhar de seu rosto mudado, onde os olhos ardiam com
brilho de febre. - Se eu pudesse te falar livremente de meus
sentimentos...
-Há sentimentos que não têm direito a existir, Renato.
-Sei que é um engano, como o que eu cometi, paga-se com
a felicidade, e não aspiro ser feliz. Renuncio à sorte; mas se
tiver que continuar vivendo, se tiver que continuar respirando,
preciso de algo por que fazê-lo.
-Tem sua esposa, terá um filho, e há muito mais, Renato...
Centenas, milhares de seres que dependem de você. Sua
posição e sua riqueza, que lhe dão direito de rei, mas também
deveres. Há muitas coisas com as quais pode preencher sua
vida e se esquecer de que, na cela de um convento, há uma
mulher a quem quis amar muito tarde...
-Mônica, eu vejo suas razões, meço-as, as peso; mas me
deixe um raio de luz, um raio de esperança... Não se tranque no
convento! Não levante mais uma muralha! É só o que te peço.
Quando se tiver quebrado o laço que a une a Juan do Diabo...
Mônica estremeceu como se o nome dele doesse, como se
só a simples menção tocasse uma ferida em carne viva; mas
juntou as mãos e apertou os lábios. Só seu olhar azul se elevava
para cravar-se no de Renato, com um cinza brilho de aço:
-Por que não deixá-lo fora disto?
-Por desgraça, não é possível. Deixe-me terminar... Quando
tiver quebrado o laço desgraçado que a une a Juan, será livre e
dona de seus atos. Poderá viver no mundo, à luz do sol...
Também há mil coisas com as quais pode encher sua vida
enquanto espera...
-O que tenho que esperar?
-Não sei... Um milagre, que a piedade de Deus nos favoreça
que um dia caia também minhas algemas, algemas que não
mereço suportar... Sei que não dirá uma palavra, que não
lançará uma só acusação contra ela. Você é tão nobre, como
ela, é mesquinha. Você sabe que traiu o meu coração como
mulher, me enganou que matou minhas ilusões, foi egoísta e
cruel com você, que não pensa a não ser em si mesma. Não
posso dizer que me atraia como esposa; mas, entretanto, estou
preso a ela e por ela me nega até a luz de seu olhar...
Por um longo momento Renato D'Autremont permaneceu
imóvel, cabeça baixa, afastado dela, enquanto Mônica, no meio
da sala, pergunta com espanto a seu coração por que aquelas
palavras de amor soavam frias vazias; por que enquanto o
homem há quem um dia amou, disse perto de seu ouvido às
frases que sonhava ouvir dizer tantas vezes, não havia uma só
fibra nela que se comovesse... Por que até sua dor parecia
apagar-se e, como uma resposta, outra imagem, outro nome,
outra forma ia elevando alma dentro, e então uma onda de
compaixão transbordou para o homem que sofria por ela...
-Sofro até morrer, Mônica! Por que não me diz que você
também sofreu por mim inutilmente? Por que não admite que
minha dor, é sua desforra?
-Seria tolo e cruel...
-Seria cruel, mas não deixaria a esperança de que quando
estivesse satisfeito seu rancor...
-Não te guardo rancor...
-Nem isso! - queixou-se Renato com infinita amargura. -
Tão morto está o que foi seu amor por mim?
-Sim, Renato, tão morto... Tão irresistivelmente morto...
Mas, por que tem que desejar que seja de outro modo?
-Porque não sou um santo, Mônica! Porque sou um homem
que ama e sofre, e seria uma espécie de consolo desesperado
pensar que sofremos juntos uma vez, que te fere a mesma
ferida, que te amargura minha mesma pena, que enquanto eu
passo as horas em silêncio, pronunciando seu nome, é o meu o
que sobe a seus lábios quando parece que medita ou reza...
Porque pelo cego egoísmo do amor, seria um consolo saber que
agonizamos juntos. Compreende? Não vou te pedir nada, não
vou exigir nada... Só isso, se o tiver na alma. Diga-me que sofre
por mim, que chora por mim, e te juro me afastar sem querer
enxugar suas lágrimas com meus beijos. Dê-me esse consolo,
Mônica!
-Não posso Renato, não posso!
-Perdão se me atrevo a lhes interromper - desculpou-se a
abadessa interrompendo apressadamente. - Foram inúteis
meus esforços para convencer a um novo visitante. É um
senhor que alega seus direitos legais...
-Juan! - exclamou Mônica com um grito semi-abafado.
-Juan! -repetiu Renato com ira e surpresa de uma vez.
Em efeito, Juan apareceu atrás da branca touca da
prioresa. Jamais foi mais duro, mais desdenhoso, mais
carregado de sarcasmo o olhar de seus olhos escuros... Jamais
foi mais amargo a soberba de sua boca. Renato deu um passo
para ele, pálido de ira, e Mônica tremeu, sentindo que lhe
faltavam as forças, que ia desabar, enquanto, pormenorizada e
piedosa, a monja ia sustentá-la... Toda a força que restava
estava no olhar, cravado em Juan como se bebesse sua imagem.
Quanto desejou, durante as passadas horas, lhe ver outra vez,
tê-lo por perto! Que amargo consolo é contemplá-lo, embora só
saíssem de seus lábios palavras amargas!
-Acredito que chego a tempo... Ao menos para mim mesmo.
A vocês, suponho que minha visita resultará altamente
desagradável, mas, o que vamos fazer? Terminou sua
conferência com o cavalheiro D'Autremont, Mônica? Pode
conceder um minuto de conversa ao homem a quem jurou
seguir e respeitar, aos pés do altar? Vai escutar-me? Não é
muito sacrifício? Não é muito esforço?
-Pensei que tudo estava dito entre nós - replicou Mônica em
um débil fio de voz.
-De certa forma, não te falta razão. Vinha por uma
pergunta que quase responde por si só com a presença de
Renato. Mas, de qualquer modo, quero fazê-la.
-A presença de Renato não significa nada - rebateu Mônica
vivamente, - e faria muito mal interpretando...
-Caramba, que duro será isso para ele! - comentou Juan
com ironia. - Pelo resto, eu não interpreto... Sei muito bem a
que ater-me... E não se esforce, reconheço sua retidão, sua
integridade. Você não sucumbe... Pode ou não pode ser que nos
deixe sozinhos um instante?
-Não me moverei de perto de Mônica! - recusou Renato com
um gesto decidido. - Se quiser falar, faça em minha presença!
-Poderia fazê-lo, mas queria saber que código religioso ou
civil te dá direito a interpor entre os que Deus uniu segundo
vocês... Deus e os homens eu poderia acrescentar... Lembro-me
de ter assinado também papeis diante de um advogado, e que
tem sua assinatura, como testemunha do acontecimento, foi
posta ao pé desses documentos legais, dos que por certo mandei
tirar uma cópia... Não é coisa de que me acuse de salteador de
conventos quando quero falar com minha esposa...
-É um canalha! - enfureceu-se Renato. - Maldito...!
-Por Deus! - clamou Mônica, assustada.
-Não se assuste Mônica - aconselhou Juan em tom
zombeteiro. - Não acontecerá absolutamente nada... Ao menos,
aqui. Este é um dos lugares que vocês respeitam; os decentes,
os bem nascidos, os de nome ilustre, sabem perfeitamente que o
locutório de um convento não se dispõe a discussões de certo
gênero... Tampouco eu pensei que se prestava a toda classe de
visitas... Não estou te culpando, Mônica, mas confesso que
pensei te encontrar em um retiro.
Renato mordeu os lábios, contendo-se com esforço; olhou
nervosamente para o lugar em que esperava achar a abadessa,
mas esta desapareceu atrás das cortinas de uma porta lateral, e
ele deixou escapar uma baforada da ira que lhe afogava:
-Não vai continuar abusando desse matrimônio absurdo.
Não vai seguir impondo sua presença a Mônica. Ela não quer
vê-lo nem te ouvir. Já fez bastante te defendendo. Por ela, e só
por ela, está em liberdade, em vez de ter pagado suas culpas.
Não foi bastante para que a deixasse em paz? Deixa-a agora!
Está doente, chegou ao limite de suas forças!
-Entretanto, não faltaram para assinar certa solicitação de
anulação do matrimônio... Não é certo?
-Quem te disse...? -quis saber Renato.
-Não se preocupe com minhas fontes de informação. Já vejo
que são exatas.
-Saia daqui, deixe Mônica tranquila! E não sou eu quem
lhe ordena isso, a não ser ela quem o implora com a atitude,
com o olhar, já que as palavras não podem sair de seus lábios!
-Não, Renato - refutou Mônica fazendo um titânico esforço.
- Isso não... Por Deus... Deixe-me a, sós com Juan. Peço isso...
-Muito obrigado - agradeceu Juan com glacial indiferença. -
Não esperava menos que isso de sua desmentida gentileza...
Juan continuou com o olhar irônico à furiosa figura que se
afastava. Logo, contemplou à pálida mulher: Como desabava na
larga poltrona de couro... É como se, em efeito, Mônica tivesse
chegado ao limite de suas forças. Agora chorava, chorava, com o
lenço sobre o rosto, em abafados soluços que chegavam ao
coração de Juan como flechas molhadas de veneno... Depois de
um longo momento se calou, contemplando-a, contida um
momento sua amargura, transformado o gesto altivo por um de
piedade que era abandono e desalento...
-Está bem, Mônica... Não é meu desejo te atormentar.
Suponho que chora todas essas lágrimas por seu amor
impossível... Impossível pelo seu modo de pensar... Mas, ao
menos, fica um consolo: a dedicação e a fidelidade de Renato...
-Basta! – Disse Mônica reagindo com ira. - Se tudo o que
queria me dizer era isso...
-Oh, não! Absolutamente... Pensei em tudo, menos tropeçar
com o cavalheiro D'Autremont aqui, no convento... A final, às
vezes sou ingênuo, acredito que são sinceros os que falam de
seu respeito e de sua religião, com a mão no peito: os
cavalheiros, os bem nascidos... A consciência de vocês é tão
complicada, que não entendo. Sou como o sapo que coaxa a
beira de seu pântano...
-A que vem todo isso, Juan?
-A nada... São coisas que tento explicar a mim mesmo... É
estranho como me gira a cabeça... Agora não recordo o que
vinha te dizer...
-Está brincando comigo?
-Queria poder brincar, Mônica - assegurou Juan com
sinceridade. - Queria poder rir a gargalhadas, como sempre ri
de todas as mulheres... Queria poder te afastar com um tapa,
como afastei sempre de minha vida aventureiras quando
significava um estorvo... Mas, o que importa isso tudo a você? O
que pode importar a alguém o que tem no coração de Juan do
Diabo?
Mônica secou suas lágrimas, elevou a cabeça... Apoiadas as
mãos nos braços da poltrona, o olhou frente a frente... Outra
vez as coisas tinham para ela um sentido estranho, outra vez
tudo parecia apagar-se, menos as pupilas daquele homem,
menos o inconfessado encanto de sua presença... Queria retê-lo
ali horas após horas, com esse desejo ardente, a única luz no
torvelinho de seus sentimentos transbordados, de sua mente
enlouquecida de sofrer e pensar... Mas já de novo florescia a
ironia amarga nos lábios de Juan:
-Suponho que será a influência das bênçãos núpcias, mas
não posso me desprender totalmente de você, ao menos
enquanto não tenha uma resposta satisfatória a essa solicitação
de anulação que pretende... Enviou-a ontem? Essas coisas
demoram, sabe?
-Quem te falou disso? Aimée! Aimée! - afirmou Mônica com
angústia, adivinhando de repente. - Fala com ela? Vê-a?
-Vi-a ontem à noite, e me trouxe boa sorte...
-Como? O que está dizendo?
-Seu cavalheiro D'Autremont perdeu mais de cem mil
francos, e fui eu quem ganhou. É obvio, trata-se de dinheiro, e
isso não o afeta muito. Tem muito...
-Você jogou com Renato, e estava Aimée com vocês? -
perguntou Mônica no cúmulo do assombrou.
-Oh, não! Que pensamento! Eles não vão juntos ao lugar no
qual nos encontramos. Ambos frequentam casas de jogo
clandestinos e bares, mas não juntos, está claro. Isso é o que se
chama correção, decência... Eu, certamente, não sabia como
eram essas coisas, mas já estou aprendendo...
-Não, não é possível, não aconteceu nada disso! Fala só
para burlar de mim, para pôr em ridículo a Renato, para...
-Nada disso. Posso te mostrar os bilhetes, se não acredita
em minha palavra. Agora tenho o bastante para começar a ser o
que vocês chamam um homem de bem. O advogado Noel me
convenceu que isso é questão de ter um pouco de dinheiro e de
empregá-lo produtivamente. Não importa que o dinheiro venha
da mesa de jogo. Se tiver casa própria, se achar uma forma de
que outros trabalhem para mim, em vez de fazer eu
pessoalmente, começarei a parecer menos indigno para marido
de uma Molnar...
-Aonde quer chegar, Juan?
-À única pergunta que na realidade tenho que te fazer.
Também solicitou anulação de seu matrimônio o cavalheiro
D'Autremont? Também ele vai romper seu casamento?
Responda-me, Mônica. Importa-me muito sua resposta!
Mônica ficou em pé tremendo, enquanto Juan ia até ela,
tomando-a pelas mãos em um impulso irresistível. Agora sim,
decidido e feroz, queria sondar sua alma através do azul olhar
de Mônica. Sua vida inteira estava pendendo daquela palavra,
mas Mônica estava muito cega, seu coração estava surdo à
força do sofrimento, e não chegava até ela, não percebia o grito
desesperado de outro coração afundado falsamente nas
palavras irônicas de Juan. Também ela se voltou envenenada,
ela também sentiu nos lábios a amarga baforada do ciúme,
quando perguntou:
-Quer saber se Aimée ficará livre? Ela é a que te interessa,
não é certo?
-Aimée...? - desprezou Juan com sarcástica risada.
-Por que você ri? Por que pretende hipocritamente
aparentar que não se importa? Ontem à noite foi te procurar...
Ainda ontem à noite esteve com ela, e por ela espia e se
intromete em minha vida. Quer a ela, sempre quis... Mas não
me importa, pode estar certo!
-Disso sim o estou, Mônica; já sei que se importa com ele.
-Não me importa ninguém... Já não me importou ninguém!
-Não se esforce. Comigo pode ser sincera. Já foi uma vez,
em outro ambiente, em um lugar no qual se podia conversar
claro, no qual pôde chorar a gritos e proclamar suas dores. Ali
foi sincera, ali me falou de seu amor, ali confessou o que agora
pretende me negar...
-Também você uma vez foi sincero; também uma vez despiu
sua alma. Não o recorda? Não falava de amor, não... Você
nunca fala de amor. Falava de vingança, e seu olhar feria como
tivesse podido ferir uma adaga. Amava-a, amava-a
desesperadamente, embora só injuria saíam de seus lábios,
para ela, e falava de matá-la quando sonhava com seus beijos, e
amaldiçoava seu nome enquanto pretendia levar isso pela força,
passando por cima de tudo com intuito de consegui-la... Não
negue, não negue agora! Pensa que não sei que seu navio a
esperava na costa para levá-la? Atreverá a negar...
-Não nego nunca nada o que faço! Sim, assim foi. Quis
levá-la de Campo Real. Era minha vingança... Eu já não sentia
amor por ela! Queria levá-la porque estava louco, porque
pensava que só com sangue se saciaria minha sede. Queria
matá-la com minhas próprias mãos!
-Isso... Isso... Queria matá-la com suas mãos, mas quando
sua vida esteve em perigo, quando outro e não você era o que ia
matar, preferiu baixar a cabeça frente a Renato e aceitar tudo...
Tudo!
-Você também aceitou tudo, e foi por amor a ele! Vai negar?
Vai atrever se a negar?
-Não o nego! Agora meus sentimentos não interessam a
você. Nem agora nem nunca te interessaram. Se Renato vai
romper seu casamento, não sei, nem me importa. Não tem outra
forma de saber se não perguntando a mim? Pois, então, procure
você a Renato e pergunte cara a cara.
-É justamente o que vou fazer!
-Juan! – o deteve Mônica com um grito. - Não... Não vá a
ele dessa maneira... Não choque com ele...
-Outra vez tem medo. Outra vez aceita tudo, como então...
-Como então, não. Uma vez aceitei tudo, agora recuso tudo,
mas não quero que minhas palavras lhe empurrem a procurá-
lo, não quero te enlouquecer. Falei como se eu também
estivesse demente. Sou a última carniça, o último verme a quem
as paixões arrastam e cegam. Por isso Deus não tem piedade de
mim!
Desabou-se em soluço outra vez, e Juan a olhou apagando-
se lentamente em suas pupilas a chama da raiva que se
acendeu, sentindo que sua ira se transformava em profunda
dor, que sutilmente penetrava enquanto abria seus braços na
triste atitude de que nada podia fazer.
-Se acalme Mônica. Não farei nada. Por um momento me
deixei levar pela raiva, mas não o procurarei se ele não me
procurar; não o procurarei, porque há algo que isso sim não
poderia te prometer: respeitar sua vida. Cem vezes me contive
frente a ele, cem vezes, ao estender as mãos, ao elevar os
punhos, pensei que, afinal, renegado e proscrito, é também o
sangue que corre por minhas veias... Tampouco eu quero
derramá-lo, Mônica. Há algo que me paralisa que me detém:
não quero ver o sangue de meu irmão. Mas que não siga por
esse caminho, que não seja ele quem cada instante que eu saia
o encontre, porque não olhar nada, pode acreditar que não
olharei nada a próxima vez... Se quiser que viva, lhe diga que se
afaste de meu caminho, que se esqueça de mim, como eu vou
esquecer-me dele!
-Juan... Juan...! -Mônica elevou a cabeça, pôs-se de pé
cambaleante, mas esta vez Juan não se deteve. Saiu do
locutório, cruzou os claustros como se um vendaval o
arrastasse, e como um raio para as altas grades que fechavam a
entrada principal, enquanto inutilmente Mônica lhe chamava-:
Juan... Juan...!
-Mônica! O que está acontecendo? O que tem? - indagou
Renato aproximando-se dela. - O que te fez? O que ousou
contra você...?
-Detenha-o, Renato, faça com que volte!
-Já saiu. Vi-o cruzar como um relâmpago. É um canalha,
não deveria ter recebido ele a sós, mas vou procurá-lo onde
quer que se encontre. Deixei-te porque me pediu isso, porque
não tenho nenhum direito, porque meu amor se debate contra
seu rancor; mas, embora não me queira, embora nunca me
perdoe, sempre estarei a seu lado... E ele terá que aprender a te
respeitar...
-Nada fez contra mim. Não entende? Não me fez nada.
Nenhum mal quer fazer a ninguém... É nobre, é generoso, é
bom...
-Por que chega até aqui a te atormentar? Não é necessário
que me diga isso... O verdadeiro culpado não é ele, sou eu. Por
isso o perdoa e me despreza.
-Não, não, Renato não te desprezo. Compreendo-te mais do
que acredita. Já sei o que é sentir-se enlouquecer e cego de
ciúmes. Mas, até te compreendendo, até te perdôo de todo
coração, o mal que me fez padecer.
-Já sei. Mas há algo que não pode me negar um direito que
a ninguém lhe nega: lutar para reparar minha loucura,
remediar esse mau, embora para fazê-lo derrame a última gota
de sangue que fique nas veias...
-Nem com sangue, nem com dinheiro, nem com nada pode
voltar o tempo atrás, Renato. Se esqueça de mim, se esqueça
dele... Volte para Campo Real, siga com sua vida. Se algo que
posso te pedir, se algo pode me dar seu amor, que seja isso...
-O que me pede não posso te dar, é a única coisa não
poderei fazer. Minha vida não me pertence, é tua, embora não a
queira.
Mônica ia replicar, mas as cortinas se abriram e por elas
aparecem às brancas toucas da abadessa. Muito devagar se
aproximou de Mônica, enquanto na alta torre da igreja, os sinos
chamavam para a oração da tarde. Silenciosamente fixa a
abadessa lançou um olhar eloquente para o pálido Renato, que
parecia voltar para o mundo, refreando seus transbordados
sentimentos:
- Perdoe-me abadessa; minha visita foi larga e
inconveniente. Devo me retirar no ato, e o farei. Só me subtrai
te rogar, Mônica, que não me condene definitivamente sem me
ouvir outra vez. Em minha casa, em casa de sua mãe, onde você
o deseje...
-Disse minha última palavra, Renato: esqueça-se de tudo
isto, volta para Campo Real. Se o Santo Padre acessar os meus
desejos, não sairei jamais deste convento. Vamos, Madre,
certamente que na igreja a esperam. Perdoe-me, e me
sustente...
Capitulo Quatro

Juan cruzou a passos largos a rua em declive... Seguiu rua


abaixo como se cruzasse um mundo novo, e logo freou um
pouco o passo quando a voz fatigada de seu único amigo
suplicou devagar:
-Quer me matar? Não posso correr desta maneira! É um
desconsiderado... Pensa que tenho sua idade e suas pernas?
Não posso correr assim!
-Se não vir atrás de mim, economiza a corrida... Quer me
deixar em paz, Noel?
-Depois de tudo, acredito que é o que tenho que fazer. Não
te interessa minha amizade, incomoda a você me ter a teu
lado... É como o mendigo cego, louco para matar a pauladas o
cão que lhe serviu de guia de cegos.
-Não sou nenhum mendigo!
-Nem eu nenhum cão! - se indignou o velho advogado. -
Diabo de moço! Estou falando em sentido figurado... Mas não se
preocupe se quiser de verdade que te deixe em paz,
definitivamente te deixo.
-Fique quieto - suplicou Juan com afetuosa autoridade. -
Não me atormente mais. Não percebe?
-Saiu como um raio e passou diante de mim como se não
me visse... Suponho que esqueceu que tinha ido comigo ao
convento. Por que não me convida para um jarro de cerveja?
Olhe que bom lugar há naquela esquina para que refresquemos.
Juan abaixou a cabeça para olhar o rosto do senhor, a
redonda cabeça já quase calva, os pequenos olhos claros, de
uma vez maliciosos e ingênuos; aquele conjunto humilde de
inteligência e de bondade que repentinamente o comovei ao
extremo de fazer jogar o braço sobre os ombros do advogado e
desculpar-se:
-Sim, Noel... Você não tem culpa de nada. Seu conselho foi
bom, mas sua boa vontade e meu impulso sincero se chocaram
contra a eterna muralha em que todo o meu ser arrebenta. Não
sou ninguém para seu coração, não significo nada para ela...
-Falou de verdade, sinceramente?
-Comecei a fazê-lo, mas apenas me deu tempo. É muito
avara com seus minutos, precisa de todos para sofrer por ele,
para chorar por ele. Tem vontade para recusar, enquanto
legalmente seja um impossível para ela; mas ele a ronda com
teimosia, luta com todas suas forças para separá-la de mim e
possivelmente para ele ser livre também... Não é que eu saiba,
mas, que outro caminho resta?
-Bom você e eu sabemos a verdade com respeito à que é
sua esposa. Sabemos coisas que se ele soubesse...
-Fariam matá-la, não por amor, que já não a quer, mas sim
porque é um cavalheiro, um D'Autremont-Valois... E me
procuraria também... Se visse como o desejo, que prazer seria!
-Está louco?
-Não tenha medo. Não será se ele não me desafia, se ele
não me ofender. Prometi a Mônica. O prometi, e me afastei, fugi,
não pude suportar ver em seus olhos cheios de lágrimas de
gratidão. Afastei-me para não enlouquecer, por não ver aparecer
em suas pupilas à imagem de outro nome e sentir o desejo de
apertar também seu pescoço... Acabou tudo, agora terminou
tudo. Esta mesma noite zarpará o Lúcifer, e nele me afastarei
para sempre... Mas não falemos mais disso. Quer ainda seu
jarro de cerveja? Entremos!
-Diga- me antes uma só coisa. Disse-me que tinha que
fazer uma pergunta, da qual dependia sua vida futura... Chegou
a fazê-la?
-Não, Noel. Para que? Tudo me deu a resposta... Queria
convidá-la a uma viagem, faria isso esta mesma noite, arrancá-
la daqui, tirá-la dessa tumba onde agoniza por um amor que é
impossível para ela, olhar seus olhos sob outra luz, sob outros
céus, arrancar como a um ídolo as mil túnicas falsas em que
sua alma se envolve, e voltar a sentir seu coração entre minhas
mãos... Escutar o batimento do seu coração sob as estrelas, e
então, só então, perguntar se o amor de Juan do Diabo significa
algo para ela... De outro modo, não o farei, não o fiz embora
desejasse...
-É teimoso, Juan... Bom, bebamos esse jarro de cerveja...

-Colibri! Mas, está aqui ainda?


-Não queria partir sem vê-la outra vez já que você me disse
que não podia voltar a entrar. Por isso me escondi e fiquei
esperando-a. O patrão me disse que eu tinha que estar com
você para atendê-la, para servi-la, mas se você me joga...
Dolorosamente, Mônica se aproximou do menino negro,
atraindo-o para si. Era já quase de noite, as sombras do
crepúsculo envolviam aquele jardim cercado de altas árvores
onde Colibri aguardava escondido entre os arbustos, o momento
de vê-la outra vez. E o rapaz de quinze anos de olhos ingênuos,
parecia chegar de novo até Mônica uma onda daquele mundo
distinto, estranho, com o que inutilmente se propunha romper.
-Que Deus te abençoe por haver me esperado. Colibri.
Penso que é ele quem te deu a idéia de me aguardar.
-Seriamente, minha senhora? Não ficou brava porque antes
não a obedeci? Falará comigo sempre que eu entrar por acima
das árvores?
-Falarei contigo agora; e terei que te pedir um último favor.
Se não fosse tão menino, talvez te falasse... Mas é muito para
você.
-E vai me deixar estar a seu lado sempre?
-Não, Colibri, terá que ir. Seu lugar está junto a Juan, a ele
deve tudo... O que ele fez por você, seria uma ingratidão que o
esquecesse. Voltará junto a ele e levará minha carta. Esta tarde,
nos separamos de um modo violento. Chamei-o, gritei-lhe para
que voltasse. Não quis me escutar. Suponho que foi minha
culpa, pois o exasperei, enfureci-o, fiz com que perdesse a
paciência. Na realidade, não tenho direito a investigar suas
confidências, ao aparecer no fundo de seu coração. Ele nunca
disse que seu coração era meu... Falo tolices. Não pretendo que
entenda Colibri, mas tenho que dizê-lo, porque os sentimentos,
aqui dentro, chegam a apodrecer quando se cala. Por isso falo e
falo, e você deve pensar que me fiquei louca... Vai-me esperar
aqui. Não será muito tempo. Descerei em seguida... São só
umas linhas...
-Se for uma carta para o patrão a, levo em seguida. A tudo
o que me dêem os pés.
-Não a entregará a não ser quando estiver a sós com ele.
Não importa que passem as horas nem os dias; não importa que
seja no mar em Lúcifer e que já não se distinga a terra de
Martinica... Até então, se antes não puder, ficará com você.
Talvez não lhe importe talvez minha carta o faça sorrir, talvez a
jogue no mar sem acabar de lê-la; mas quero que a leve.
Espere-me...
Profundamente comovida, Mônica estreitou contra seu
coração o menino negro e beijou sua testa; logo, separou-se dele
e subiu muito depressa escada acima...
O dedo nervoso pela terceira vez errou a carta logo que
começou, e outra vez empreendeu, com pluma vacilante, a
difícil tarefa: falar com quem amava, sem falar de seu amor...
Passar uma esponja de suavidade sobre as cenas de seu ultimo
encontro, enquanto seu coração apaixonado destilava o fel e o
fogo do ciúme... Estender as palavras como um bálsamo sobre o
rancor, enquanto sentia girar, como um torvelinho, idéias e
sentimentos... Assinar com uma frase amável e fria, enquanto
as lágrimas caiam ardentes, como se desmentissem cada falsa
palavra de serenidade... E ao final, cobrir de beijos aquelas
palavras geladas, só porque os olhos dele a leriam...
-Colibri, o que faz aqui? Não é este o lugar onde eu gosto
que entre! Já disse isso mil vezes...
Os brilhantes olhos de Colibri giraram com expressão de
susto, mas não se voltou. Estava frente à mesa nua de um bar
no porto, onde Juan tomava um copo atrás do outro. É mais de
meia-noite, e, no lugar quase deserto, os poucos paroquianos
que ficaram estavam longe, junto ao fonógrafo que debulhava
notas picarescas, enrascados uns em seus jogos de naipes e
outros em seus copos de absinto...
Juan sacudiu a cabeça, olhando fixo para o moço. Agora,
seus olhos estavam turvos, sua razão afundada em uma
letargia; mas, através de tudo isso, contemplou os olhos vivos, o
rosto escuro de expressão inteligente, a atitude uma vez tímida
e decidida do rapaz, e o ameaçou:
-Se não sabe me obedecer, darei ordem ao Segundo de que
não te deixe descer do veleiro... E agora...
-Não fique bravo, patrão. Tinha que esperar que estivesse
você sozinho. Por isso entrei... Tenho uma carta da senhora,
que me disse que a desse quando não houvesse ninguém, e
claro que aqui há gente, mas...
-Me dê essa carta!
Juan ficou em pé. Como sob um sopro que varresse as
nuvens, sua frente se serenou. Sua mão se estendeu,
apanhando Colibri, e obrigando-o a aproximar-se... Quase de
um tapa tomou o envelope lacrado onde a pluma de Mônica
escreveu seu nome. Como se ainda não acabasse de
compreender, rasgou-o bruscamente e percorreu com o turvo
olhar as apertadas linhas da fina letra, enquanto se apertavam
seus lábios em uma careta, ao ler:
-Ao senhor Juan do Diabo, a bordo do Lúcifer... Menos mal
que já não sou Juan de Deus para ela! -Avidamente, leu e releu
cada palavra, salpicando a leitura com sarcásticas observações-
: Uma carta muito fina, muito correta... Meu apreciado Juan...
Menos mal que me aprecia... Quando esta chegar ao seu poder,
já estará longe... Pois não, senhorita Molnar; estou perto, muito
perto. Acredito que se apressou em trazê-la, Colibri, pois era
uma romântica carta de despedida, para ser lida em uma
viagem sem volta... Confio em sua promessa de que se afastará,
de que certamente não voltaremos jamais a nos ver... É gracioso
como arruma tudo a seu gosto. Tampouco pode negar-se que é
inteligente... E te agradeço pela generosidade que esse
afastamento representa... Está ouvindo, Colibri? Agradece-me
pelo favor de não me voltar para ver. O tribunal me absolveu,
mas ela me condena ao eterno desterro. E não é que me
interesse muito esta maldita ilha, mas nasci nela e tenho tanto
direito como qualquer D'Autremont...
-Ela o ama, estava chorando quando me deu essa carta,
patrão - observou Colibri. - E me abraçou, e me beijou muitas
vezes, e falou bem de você, patrão... Disse que você era generoso
e bom...
-Generoso e bom, não é? Maravilhoso! -burlou-se Juan em
tom sarcástico e mordaz. - Até a Santa Mônica pratica o sistema
de chatear até o limite os que são generosos e bons. Deu-te esta
carta para mim, disse-te que me entregasse isso no mar,
quando já estivéssemos longe, verdade?
-Disse-me que quando você estivesse sozinho, e que não
importava que fosse quando já estivéssemos de viagem... Mas
acabe de lê-la, patrão...
-Para que? Já sei perfeitamente o que diz o que pode dizer
do começo ao fim... Perdoe-me se ontem não soube te falar com
a serenidade que tivesse querido, e te dizer que só guardo
gratidão para você... Gratidão! Que palavra mais socorrida é
esta! Adeus, Juan... Que seja feliz, como eu lhe desejo isso...
Que em outras terras encontre a felicidade que merece, e que a
triste sombra que pude ser em sua vida; apague-se totalmente,
já que logo vão romper-se as algemas com que outros nos
ataram. Nunca esquecerei a bondade que te devo, embora eu
sim te suplique que a esqueça totalmente, te evitando até o
esforço de me compadecer... Lindas palavras para me despachar
a contento!
Foi para a porta do bar, o rosto congestionado, os olhos
turvos, espremendo em seu punho fechado aquela carta, cuja
gelada cortesia lhe feria e lhe ferroava como a pior das ofensas...
Por volta do lado do mar, sobre as águas da baía, um
resplendor rosado apareceu fracamente... É o amanhecer...
Colibri seguiu seus passos, os grossos lábios trêmulos e
entreabertos, e indagou:
-Patrão, o que vai fazer?
-Nada! Deixe-me em paz! Vá! Desapareça! Espera! O que é
isso que se ouve?
-Oh! Os sinos do convento. Já é de amanhã, e lá, na igreja
do convento, a missa é bem cedo... Ainda de noite, patrão...
-Missa da alvorada... Para os mais devotos, para os mais
fiéis... Certamente é a que escuta a Santa Mônica. Pois ali a
verei!
Em efeito, era a primeira missa do dia na igreja do
Convento das Servas do Verbo Encarnado. Já estava aberta a
porta lateral, já ardia no altar às brancas velas e, como em cada
madrugada, chegavam os escassos fiéis: velhas devotas, gente
de luto rigoroso, alguém que cumpria uma promessa... A parte
da igreja destinada ao público estava quase deserta, e na anexa
capela das monjas, separada do resto por uma grade, chegavam
com movimento suave as brancas filas de noviças, as negras
filas de professas... Uma mulher depois das últimas... de negro,
embora não eram suas roupas de freira, e um grosso véu
envolvia sua cabeça, quase cobrindo o fino rosto de cor
ambarina... Era Mônica... De longe a reconheceu Juan, que com
passo audaz chegou até aquela grade. Não precisava falar nem
fazer o menor ruído. Rapidamente, a cabeça de Mônica se voltou
como se aquele olhar de fogo que a perseguia fosse algo
tangível...
-Tenho que falar com você agora - declarou Juan em voz
baixa, mas enérgica. - Sai, ou entro?
-Juan! Está louco? - Mônica vacilou. Entre os hábitos
próximos, houve um movimento de surpresa, algumas cabeças
se voltam, e Mônica parecia decidir-se... Cruzando a pequena
porta de molas que dava acesso através da grade e, sem olhar
para Juan, foi para o próximo pórtico da igreja. - Suponho que
perdeu a razão...
-Você acredita? Se levarmos em conta quem é e quem sou,
deve pensar que só um louco poderia se atrever a exigir sua
presença do modo que o tenho feito. Mas não, não estou louco.
Em meu mundo os direitos se tomam. E ainda tenho direito a te
obrigar a ver-me e a me escutar, porque ainda não está presa
nessa promessa de que tão elegantemente fala em sua carta,
ainda tenho direito de chamar, e tem que vir embora mesmo
que não queira... Mas não se alarme, não faça essa cara de
espanto...
-Não é espanto o que sinto. Recebeu minha carta em um
momento errado, verdade? Retornava de uma farra... De jogar,
de beber... Talvez dos braços de uma prostituta...
-O que está dizendo? -reclamou Juan em um ataque de
raiva.
-Só assim se compreende esta maneira de chegar até aqui.
Já sei que sou sua esposa e que não quebrei minha promessa;
mas nem mesmo essa promessa te dá direito a se aproximar
desse modo, a proceder da forma que o tem feito. Tenho a
desgraça de ser sua esposa, mas não pode me tratar como
qualquer...
Mônica de Molnar se ergueu e, ao elevar a cabeça, cai o
véu, mostrando o fino rosto cor de âmbar; tão digna, tão altiva,
tão amargamente serena, que Juan retrocedeu, contendo a
onda de despeito que acendeu aquela carta cuja gelada cortesia
o feriu mais que a pior das ofensas. Como se fosse de outro
mundo chegou até eles à música do órgão, o sussurro da reza, o
aroma litúrgico do incenso... E os olhos de Juan se acenderam
avivados pela chama do álcool, que fazia com que parecesse um
demente:
-Odeio as inúteis cortesias hipócritas... Odeio as
explicações supérfluas... Escreveu-me para afirmar o que não
precisava dizer duas vezes, o que escorregou de sua atitude
durante nosso encontro. Tinha medo que eu não tivesse
entendido verdade?
-Não tinha medo de nada. Doeu-me ter te tratado com
violência, quando você generosamente não desejava o mal de
ninguém. Pensei louca, iludida, ingênua, que tinha sido sincero
quando disse que se afastaria para sempre, que não queria se
chocar com seu irmão nem derramar seu sangue, e que faria o
que estava a seu alcance para se afastar de tudo isto, fazendo
impossível essa luta fratricida que me causa horror...
-Horror por ele... Medo por ele... Não pensa a não ser em
ajudá-lo e protegê-lo... Pois bem, não irei embora de Martinica,
não deixarei Saint-Pierre. Ficarei aqui, com tanto direito como
ele. Lutarei como lutam os que nascem como eu, no abismo
mais negro, até me levantar mais alto que todos... Esta não é
terra de sangue azul, estas não são terras de príncipes, mas sim
de aventureiros. Ainda triunfa nelas a lei do mais forte...
-O que pretende?
-Só uma coisa: demonstrar que sou o mais forte, e não vivo
da esmola de seu sorriso e de sua gratidão, que tomo o que
quero tomar e deixar, com estas mãos. Que agora mesmo
poderia te arrastar, contra sua vontade, até meu navio, que me
espera perto; que outra vez poderia te levar até Lúcifer, como
uma conquista de vândalo, te debatendo em meus braços, e
agora sim que não teria piedade de sua dor nem de sua febre. A
faria minha, minha totalmente pela força, te dobrando como a
uma argola.
-Quer dizer que...?
-Respeitei-te como um imbecil! Agora seria diferente! Mas
não o farei. E sabe por quê? Porque não me importa, porque
não me interessa, porque há cem mulheres no porto
aguardando pelo Juan do Diabo...
-Cem prostitutas! Vá com elas!
-Poderia levar a você, embora não quisesse.
-Teria que me matar antes! Tente aproximar-se, toca um só
de meus dedos, cometa essa infâmia aqui mesmo, às portas da
casa de Deus...
-Seria muito fácil. Poderia fazê-lo sem que caíssem as
torres da igreja. Mas já disse isso antes... Não quero nada que
se consiga dessa forma... De você não quero nada...
-Por que então veio me atormentar desta maneira? O que
pretende ainda de mim? Que espera? Que mal te fiz alguma
vez?
-O que sei eu até o onde é culpada do mal que me fizeram?
Vitima ou cúmplice, não sei o que é, nem quero saber. Vim só
para te dizer que não pretendo partir outra vez, não servirei
mais de brinquedo para você, que ficarei para brigar; para lutar
contra esse protegido da sorte que me roubou tudo ao nascer,
para arrancar um a um os presentes que lhe deram. Diga a ele
que se cuide que se defenda que se prepare, porque Juan sem
nome está em pé de guerra...
-Mas, por quê? Por quê?
-Por que você o quer! Não vá dizer que não, para afastar de mim
o ódio...
-Odiaria você por isso?
-Odeio-lhe desde que tenho consciência! Só mais uma coisa
quero te dizer: não saia do convento, que eu não te veja jamais
junto a ele... Esta é a última vez em que falamos... Agora sim,
definitivamente, sempre que cumprir sua palavra, sempre que
ao romper essa promessa, da que tanto deseja se liberar se não
for para burlar de mim outra vez. Volte para seu convento,
Santa Mônica. O selvagem que sou não te levará pela força...
-E se eu quiser te seguir?
Mônica tremeu, espantada por sua própria audácia.
Esperou trêmula, mas Juan retrocedeu em lugar de avançar...
-Já vejo que continua sendo capaz de tudo. Tem o mesmo
temperamento desses cristãos que, conforme contam foram
cantando para as feras. Não é necessário tanto... Se algum dia
quiser vir para mim, que não seja sob a pressão de uma
ameaça, como seria neste momento... Assim não me interessa...
Virou-lhe as costas bruscamente, pôs-se a andar rua abaixo,
como arrependido de ter falado mais do que devia, acreditando
ter se despido até o fundo de sua alma atormentada. Talvez se
afastasse esperando uma palavra, um gesto dela, seu nome dito
em outro tom por aqueles lábios em flor... Mas a voz não
chegou, e Juan se perdeu entre as ruelas que levavam ao cais...
Ofegantes, cobertos de suor e de espuma, os dois cavalos
do formoso tronco que arrasta o carro dos D'Autremont
chegaram ao topo do desfiladeiro. E superado o último
obstáculo, seguia a carruagem a fácil marcha costa abaixo,
descendo através dos bosques que agasalhavam os cafezais, até
os semeados de cacau, de amendoim, de espécies. Cruzando
frente aos grupos dos barracões, para enfiar em fim a bem
cuidada estrada que levava diretamente ao palácio campestre,
mansão de pedra e mármore em meio de jardins, palácio real do
pequeno reino, que fazia exclamar a Sofía D'Autremont:
-Campo Real! Acreditei que não chegaríamos nunca.
-Pois aqui estamos... Bom, você e eu pelo menos; Renato
continuou em sua residência das nuvens...
Aimée olhou de esguelha, burlonamente, o pálido perfil de
Renato, cujo olhar azul delatava a ausência de seu pensamento.
Sentado entre as duas damas, imóvel e silencioso há horas, não
parecia olhar seu vale natal, mais belo que nunca na semi
penumbra do entardecer. Frente aos senhores, obrigados a uma
vizinhança forçosa, Ana e Aninha pareciam duas bonecas
nativas: uma de bronze, a outra de cobre claro...
-Terá chegado a tempo o mensageiro que enviamos para
avisar? -perguntou Sofía.
-Sem dúvida, madrinha; certamente nos esperam - disse
Aninha. - E mesmo que não nos esperassem, sabe muito bem
que, com meu tio à frente, todo mundo anda direito, e as coisas
estariam em ordem, de todas as maneiras.
-Oh, olhem, um cavaleiro! -assinalou Aimée. - E acredito é
nada menos que o bom Batista... Mas, o que é isso? Não vem
montado em meu alazão? Efetivamente, aquele é meu cavalo,
que me deu de presente você para os esponsais, dona Sofía. O
que aconteceu, voltou e me tirá-lo outra vez?
-Por favor, Aimée - interveio Renato com contrariedade. - Se
for seu cavalo, faz perfeitamente bem Batista em montá-lo. Já te
disse faz tempo que esse cavalo é muito valente para você.
Nunca foi boa amazona e não deve montar nele...
Batista saltou a terra deixando as rédeas do esplêndido
animal nas mãos de um moço, e se apressou a abrir a
portinhola da carruagem. Estavam em frente à escada principal,
flanqueada por duas filas de serventes: governanta, donzelas,
lacaios, o cozinheiro com seus quatro ajudantes, e uma fila
interminável de limpadores e jardineiros. Quase tocando o chão
com seus cabelos grisalhos, inclinou-se Batista ante, dona Sofia
e beijou sua mão em sinal de respeito, ao mesmo tempo que
declara submissão:
-Que Deus a abençoe, minha senhora. Campo Real estava
muito triste sem você... E que abençoe também a meu senhor
Renato e a minha senhora Aimée...
-Comigo pode você economizar a falação, Batista - recusou
Aimée depreciativa. - E me fazer o favor de não voltar a montar
meu cavalo. É meu, e ninguém mais montará nele.
-Já disse...! -começou a enfurecer-se Renato. Mas sua mãe
interveio conciliadora:
-Não tire sua razão, Renato. O dei de presente, é dela, que o
guarde se quiser. Chegará o dia que não nos oporemos a que
sua esposa faça o que lhe agrade.
-Obrigada, minha considerada sogra. Não sabem vocês
como são grandes os desejos que tenho de que chegue esse dia.
Vamos, Ana, venha... Eu dispenso o beija-mão.
-É intolerável! - queixou-se Renato furioso.
-Mesmo que o seja, vamos relevar - recomendou Sofía. E
em voz mais baixa-: E não dê um espetáculo diante dos criados,
filho. Vá com ela.
-Não acredito que valha a pena. Provavelmente retornarei
esta mesma noite a Saint-Pierre. Com sua permissão, mãe.
Ana e Batista acudiram solícitos, mas a senhora
D'Autremont não aceitou o braço que ofereceram, ergueu-se
altiva e fria, seguindo um momento com a vista seu filho que se
afastava em direção contrária a de Aimée. Logo, solenemente,
estendeu a enluvada mão direita e recebeu um a um o beijo de
submissão e boas-vindas que davam os escuros serventes.
-Vinte anos que não saía de Campo Real, senhora! -
observou Batista.
-Senti muito sua falta. Mas já estou de volta, e por muito
tempo, Batista. Em Campo Real nascerá meu neto, e em Campo
Real o educarei a meu modo e maneira. Não irá longe, para
voltar diferente. Esse será totalmente meu!
Renato cruzou o largo portal, até apoiar-se no corrimão de
madeira lavrada. Com passo rápido deixou a entrada principal
da casa: com impaciência se separou das saudações e
cerimônias tradicionais; com um anseio intolerável de fugir de
tudo e de todos, chegou até o fundo da galeria, sobre a
biblioteca... Era noite, e, no céu sem nuvens, uma lua amarela
se elevava lentamente.
-O café, senhor...
-Obrigado... Deixa-o onde quiser...
Aninha se inclinou, deixou a xícara de porcelana em sua
pequena bandeja de prata, sobre o largo corrimão de madeira,
mas não se retirou... Ficou imóvel contemplando Renato, lendo
em cada traço de seu rosto, em cada sulco de sua pele, o drama
tumultuoso que fervia sua alma por dentro. Bruscamente,
Renato D'Autremont se voltou para ela e a interpelou:
-Ainda está aqui? O que quer?
-A senhora Sofía está muito inquieta, senhor, por causas
morais... Extremamente preocupada... E como sua saúde não
esta boa... Ela queria saber se é certo que o senhor voltará esta
mesma noite para Saint-Pierre.
- Ela mandou perguntar...?
-Não, senhor. Não quis incomodá-lo. Mas eu a conheço e
sei que está atormentada com essa idéia. Se o senhor pudesse
esperar uns dias, ficar aqui com ela embora só fosse algumas
semanas...
-Está bem... Diga que não pedi carro nem carruagem para
esta noite. Com isso será suficiente...
-Obrigada, senhor, agradeço-lhe de toda a alma por ficar.
Uma grande emoção tremulava nas palavras de Aninha,
enquanto Renato a olhava de frente pela primeira vez, por um
momento voltou para a realidade, como se pretendesse aparecer
ao mundo de insuspeitados pensamentos que ardia nas negras
pupilas da mestiça... E, pela primeira vez também, a olhava dos
pés a cabeça... Realmente, era uma criatura entranha: magra,
cítrica... Não tinha as formas opulentas que são peculiares nas
mulheres de sua raça; não tinha a graça sensual que
costumava florescer sob o lenço de cores das mulheres de
Martinica. Impassível como um ídolo, como um fetiche, só os
olhos delatavam seu fogo interno, mas os finos lábios, ao
apertar-se, pareciam guardar zelosamente aquele segredo que
brotava inteiro no ambiente de Campo Real, aquele impalpável
mistério que parecia vir mais à frente, prendendo-se na malha
sutil e pegajosa dos ocultos pensamentos... Com nervosa
inquietação, Renato deu uns passos, afastando-se dela...
-Perdoe-me se me atrevo a perguntar, mas, o senhor se
incomoda ao me ver?
-A mim? Por quê? Vá tranquilizar sua senhora. Diga que
não vou... Esta noite ao menos. Diga... Bom diga o que quiser,
mas...
-Mas vá – terminou Aninha a frase. - Não é isso?
-Vá ou fique por mim tanto faz - disse Renato, a ponto de
se irritar. - O que é que pensa? Suas reticências são quase uma
insolência! Quando quero ficar sozinho, desejo que me deixem
em paz. - E mudando, com certa brutalidade, indagou-: Pode
saber-se por que chora?
-Perdão... Já sei que nem a isso tenho direito... Dispense-
me, senhor... Já vou...
-Espere - humanizou-se Renato, todo confuso. - Na
realidade, não sei o que acontece contigo. Tem o dom de me
exasperar. Acredito que se falasse claro, seria melhor... Não
tenho nada contra você... Sempre me serviu com lealdade, ou
acreditou fazê-lo. Além disso, devo-te seu carinho e seus
cuidados especiais para com minha mãe. Não acha que não
percebo que para ela é imensamente mais do que pudesse ser a
melhor empregada. Se te acontecer algo, se quiser algo, fale de
uma vez...
-Eu só queria poder aliviar sua tortura, senhor...
-Quem te disse que eu vivo atormentado?
-Não há mais que vê-lo, senhor. E já que pela primeira vez
parece disposto a me ouvir, direi que se vivesse como vivem
outros, os outros senhores, seus vizinhos, os donos das
fazendas próximas... Eles não se atormentam tanto, senhor.
Têm, talvez, as mesmas contrariedades que você, os mesmos
cuidados: a família, a esposa, a fazenda... Mas têm também um
lugar no qual são felizes.
-Como? O que?
-Uma casa pequena onde esquecem tudo, onde não há para
eles espinhos, a não serem flores, onde são como querem ser...
Se o senhor tivesse também isso, um lugar no qual esquecesse
as dores. Sentir-se realmente amado, atendido e servido de
joelhos por alguém que poria seu coração de tapete para que o
senhor pisasse sobre ele...
-Aninha...! - desgostou Renato compreendendo as palavras
da mestiça. - É o cúmulo!
-Você pediu-me que falasse com sinceridade. Suponho que
tendo como tenho o dom de exasperar ao senhor, obtive-o
totalmente agora...
Renato se conteve. Tomando um gole de café, virou-se para
olhar Aninha dos pés a cabeça, mas outra figura apareceu junto
a ela, aproximando-se inclinada respeitosamente:
-Perdão, senhor, vim buscar Aninha. Não sabia que estava
com o senhor, mas...
-O que é isso, Batista? - interrompeu-lhe Renato para ouvir
uma música típica que se ouvia cada vez mais próxima.
-A ronda de trabalhadores, senhor. Esta noite têm
permissão para fazer suas festas... Uma permissão especial
celebrando a chegada de vocês. Vão se reunir em frente aos
barracos grandes, atrás do cafezal, e a senhora me ordenou que
lhes desse um barril pequeno de rum e algumas guloseimas,
que naturalmente estão de mais... Eles têm rum suficiente.
-Minha mãe ordenou que desse de beber? -surpreendeu-se
Renato.
-É o costume, senhor. Se faltasse isso morreriam de
tristeza ou se matariam de raiva. Dançar é a única coisa que
esta gente gosta. Alguma vez viu o senhor Renato um baile
destes?
-Não. Nem desejo interromper a festa com minha presença.
-Não a interromperia senhor. Quando o tambor toca dessa
maneira, só a morte detém seus pés. São selvagens, meu
senhor. Não o compreende? Além disso, estão bêbados. Jogam
ao rum uma erva que os faz esquecer tudo, tudo!
-E minha mãe aprova isso?
-Não pode impedir, senhor, nem vale a pena fazê-lo. O
senhor pode redobrar o trabalho, reduzir o pagamento, matá-los
a golpes, qualquer coisa, portanto que lhes deixe fazer suas
festas. Todos vão atrás desses tambores... Não sei o que têm,
mas acende o sangue, verdade, senhor?
Renato mordeu os lábios sem responder a Batista, ouvindo
aquele surdo barulho como se fosse uma chamada dos seus
ancestrais A ele também, aquela estranha música parecia
penetrar até as vísceras, revolver um pântano profundo de
paixões, de desejos, de sentimentos... Quase sem perceber foi
para a escada, desceu lentamente os largos degraus de pedra...
Como uma serpente alargando-se a cada passo, afastava-se a
caravana dos negros, e Renato D'Autremont, com o vento em
seus cabelos loiros, começou a andar atrás deles...
-Venha ver... Aproxime-se... Não vem, minha senhora? Que
bom vai ser isso! Meus pés vão atrás dessa música... Ah,
caramba! Isso sim que é bom... Venha, minha senhora, corra...
Deveria ver...
-Quer me deixar tranquila, Ana?
-Venha... Venha se quer ver o Senhor Renato atrás dos que
vão para lá... Corra, que se não, não o verá. Bendito e louvado
seja o Santíssimo Sacramento do altar! Tive que ver para
acreditar...
Aimée correu à janela de seu quarto, e mal pode dar crédito
a seus olhos. À luz das luzes e das tochas da caravana que já se
afastava, ao reflexo incerto da lua minguante, pôde ver com
toda claridade que em efeito era Renato D'Autremont o homem
branco que se unia ao escuro conjunto, que seguia com passo
incerto o rouco ritmo dos tambores africanos, como se aquela
perturbadora música o arrastasse também...
-E Aninha, minha senhora, olhe Aninha - assinalou Ana. -
Ela que tanto fala, que tanto presume de que não vai a essas
festas... Olhe-a... Olhe-a... Vai atrás dos couros... E logo diz que
é mais branca que os brancos... Bom, claro que o senhor é
branco também, e lá vai...
-Provavelmente, Renato bebeu mais da conta. Mas Aninha
atrás dele...
-A qualquer um gosta de jogar um pé, e esta noite a festa
vai ser grande. Seguro que amanhecerão dando à cintura e aos
pés...
-Esta noite... Esta noite... -murmurou Aimée pensativa. -
Talvez tenha que aproveitar o tempo, fazer as coisas o mais
rápido possível... Antes me disse que Renato havia dito que
voltaria para Saint-Pierre imediatamente. Entretanto...
-Isso me disseram, mas a senhora já sabe...
-Cale-se! Esta noite, você e eu vamos aonde temos que ir,
para resolver isto quanto antes... É melhor Renato estando
aqui... Devo fazê-lo em seguida, amanhã se puder...
-Ai, minha senhora! O que é o que vai fazer?
-Me livrar de uma carga, preparar a porta de escape, não
permitir que me descubram... Logo, Ana! Esta noite podemos
sair tranquilamente; ninguém sentirá nossa falta, ninguém
perceberá. Os próprios vigilantes, certamente estarão na festa e,
se todos saírem em segredo, ninguém achará estranho ver duas
mulheres, tampando o rosto, rumo ao cafezal...
-Nós também vamos ao baile? - entusiasmou-se a
doméstica.
-Não seja imbecil! Sobre o que estou falando desde ontem?
Temos que ver essa mulher que mora lá encima.
-A bruxa? A herbária? - atemorizou-se a mestiça.
-Claro... Essa é quem vai nos tirar do apuro... Certamente,
ela não irá ao baile... Sabe onde mora essa mulher? Conhece
bem o caminho?
-Eu sim, minha senhora, mas tenho medo... Tenho muito
medo... Dizem que quando a pessoa vai ver a bruxa, em uma
noite destas em que a lua está minguante e em que os tambores
soam, sai uma mancha vermelha na água e vem sangue. Se,
minha senhora, vem sangue... Alguém morre, e fica um grande
atoleiro de sangue...
-Cale-se, não diga mais estupidez! Não vai morrer
ninguém... Dê-me um xale, um véu, pegue uma lanterna
pequena e venha comigo. Renato D'Autremont vai à festa, é
noite de rum e de baile. Que arda Campo Real, que se alegre...
Hoje há música, amanhã haverá pranto; ao menos, da imbecil
de minha sogra. Acabou-se o herdeiro D'Autremont! Vamos sair
da farsa, alegremente, e eu serei no final quem vai rir de todos,
quem ri mais, ganha... Vamos Ana, venha...!
Atalho acima, Aimée empurrou sua lenta donzela, que
quase à força ia dando seus retardos passos; mas ao pisar na
parte mais alta da colina, entre os troncos de plantas pequenas
e pés de pimentas que dão sombra aos cafezais, brilhavam as
línguas vermelhas das fogueiras, e ambas pararam, apesar de
fascinadas...
-Ai, minha senhora, olhe... Olhe para lá! Que bom vai estar
isto!
No rouco som dos primitivos instrumentos, rompia à
abóbada da noite na festa negra. Já se arrancavam os
dançarinos, seus corpos vestidos com estranhos tecidos se
agitavam iluminados pelas chamas, como se eles mesmos,
fossem feitos de tochas vivas, ardessem. Agitam os torsos como
em tremores de epilepsia, enquanto as mãos, empunhavam
lenços coloridos, balançavam no ar como redemoinhos
frenéticos.
Um instante, os olhos de Aimée contemplaram aquilo, como
se embebedando com o espetáculo fascinante. Logo, cravando
os dedos no braço de Ana, arrastou-a monte acima, rompendo a
promessa que também a sujeitava:
-Venha... Venha! Depois pode ficar aqui se quiser. Agora,
venha...
Capitulo Cinco

Como um sonâmbulo chegou Renato até a praça que


formavam os quatro grandes barracões, no centro da cidade
miserável de cujo suor, cujo esforço, cuja miséria, vivia a
opulenta casa de mármore rodeada de jardins. Chegou até ali
parando a beira da fogueira mais próxima, mas ninguém o
olhava ninguém reparava nele... Já não era o senhor, já não era
a não ser uma sombra pálida na loucura negra das danças
nativas, uma pincelada sem cor ali onde as carnes cor de
bronze e de ébano se agitavam nos espasmos de uma dança
profunda e convulsiva como a própria convulsão da terra...
Jamais tinha se aproximado dali, nunca tinha contemplado com
seus olhos azuis o escuro esplendor de tudo aquilo. Era um
estranho naquelas terras que lhe pertenciam, era um
estrangeiro na terra que o viu nascer. Agora, pela primeira vez,
tudo aquilo parecia lhe tocar muito fundo, despertar as feras
adormecidas as vozes sossegadas tantos anos, sentir que o ódio
e o amor se acendiam como nunca em seu peito, e olhar pela
primeira vez, sem repugnância, uma pequena mão cor de cobre
que se apoiava na sua branca...
-Gosta senhor Renato? É a primeira vez que vem a uma
festa na praça dos barracos, verdade?
-Suponho que você também, Aninha. Não acredito que
minha mãe tenha permitido alguma vez...
-Não... Naturalmente. Dona Sofía não poderia perdoar nem
compreender jamais. E, entretanto, perdoa outras coisas, e
tenta compreender o que não se compreende... A senhora Aimée
veio muitas vezes aqui... Não sabia meu senhor?
-Aimée? Pode que alguma vez passasse perto... Pode que,
por curiosidade, mas se aproximar...
-A senhora Aimée veio aqui muitas vezes, e algumas vezes
dançava em frente aos barracões.
-Por que diz esse absurdo? De onde tirou isso? É uma
mentirosa e uma ignorante! Minha esposa não pode ter vindo
aqui... Não compreende?
-Aqui ninguém olha a ninguém, não está vendo? Ocupam-
se de dançar e de beber... Quando se bebe o que eles estão
bebendo, ninguém sabe, mas sim a música soa e tem que mover
os pés...
Renato moveu com ira a cabeça olhando para o lugar que
Aninha apontava. Sobre uma tosca mesa puseram o barril de
rum, tiraram a tampa... Um senhor negro, com o cabelo crespo
mais branco que a neve, derramou nele o conteúdo de uma
xícara, e todos se amontoaram impacientes, aproximando os
copos e as vasilhas à torneira aberta para todos...
-Se bebesse um gole disso, esqueceria até seu próprio
nome, senhor, e seria feliz umas horas ao menos. Não quer? A
senhora Aimée bebeu algumas vezes...
-Quer fazer o favor de não mentir mais? O que é que me
propõe, imbecil? -enfureceu-se Renato.
-Já disse antes. O senhor não me entendeu ou não quis me
entender, mas se olhasse nos olhos...
Aninha se ergueu sobre as pontas dos pés, cravando sobre
os olhos azuis de Renato o olhar sombrio de seus olhos negros.
Mas ele a afastou com gesto de desgosto.
-Me deixe. Será melhor para você que não entenda.
Acredito que é você quem precisa tomar um gole desse veneno,
se aproxime, beba até cair e não volte a vigiar minha esposa
nem a inventar calúnias contra ela. Não é a primeira vez que te
mando me deixar em paz, e não o faz... De uma vez por todas...
Entenda-me: não quero ouvir suas intrigas nem seus enredos.
Foi-se com passo rápido, afastando-se dela bruscamente,
enquanto as mãos de Aninha se fechavam juntar-se, e
murmurava como uma ameaça:
-Talvez amanhã te fira a dor como me fere!

Na porta de uma cabana semi derrubada, à escassa luz


avermelhada do fogo que estava aceso por dentro, Aimée e Ana
primeiro olharam com olhos curiosos, e depois com pânico
intenso, a figura de uma mulher alta e óssea, da pele mais
negra que o carvão, que se aproximou dela, brilhante na
sombra, como uma doença contagiosa, os olhos injetados de
sangue... Negros eram seus vestidos, negro o lenço que envolvia
sua cabeça... Só se viam em suas mãos os largos colares de
contas de cores, o fulgor avermelhado das pupilas e o
relâmpago branco dos dentes quando, ao falar, moveu os
grossos lábios:
-Quem é? Estou-te perguntando... Responda... Quem chega
de brincadeira à casa de Kuma, paga-o muito caro, porque
Kuma tem poderes secretos...
Um leve sorriso apareceu nos lábios de Aimée. Por um
instante lhe pareceu estar de frente a uma louca, sua ameaça, e
a forma ávida com que a percorria dos pés a cabeça,
descobrindo, até sob o xale que a envolvia, os detalhes de sua
verdadeira posição, abriam caminho a outra opinião, ao
responder com absoluta tranquilidade:
-Quem chega não vem por brincadeira. Procuro-te porque
preciso e te pagarei bem... Terá mais dinheiro por me servir, que
o que possa reunir em um ano inteiro; mas tem que ser leal. Eu
também tenho poderes, embora não tão secretos, e se me trair
pagará caro, tão caro, que por seu bem te aconselho que não
tente.
-Quem se atreve a dizer que tem mais poder que Kuma?
Quem?
-Ai minha senhora, vamos...! - suplicou a assustada Ana,
em voz baixa.
-Você vá e me espere na porta. Ouviu? Nem um passo mais
à frente. Anda! -ordenou Aimée imperiosa.
-Fala com voz de senhora, e é branca sua pele...
-Sim... É branca minha pele. Quer ver também a cor de
meu dinheiro? Aí o tem; é ouro, Kuma. Pegue-as... Vale à
pena...
Com brusco movimento, Kuma acendeu uma tocha no fogo
onde esquentava uma marmita, cravando-a no canto vazio das
paredes, e a labareda vermelha iluminou vivamente a estadia: o
teto baixo e enegrecido, as paredes cobertas de amuletos e
maços de erva, o tosco forno de barro, o armário em um lugar, a
imunda mesa de madeira, os toscos tamboretes, os frascos de
poções medicinais ou mágicos postos em fila sobre um suporte
da parede, e aquelas duas mulheres que se olhavam quase,
quase com a mesma curiosidade... Uma branca, outra negra. A
mão fechada de Aimée soltou-se do xale de seda, assinalando as
três moedas de ouro que brilhavam sobre o chão de terra, e
Kuma se inclinou sem pressa, as recolhendo, e as segurou,
como as acariciando entre os dedos, enquanto murmurou:
-Que deseja minha senhora? O que lhe manda a fazer a sua
serva? Kuma vai agradar-te. Dará a forma de que sua rival fique
feia, o pó que domina os homens mais rebeldes, as gotas que
farão seu escravo aquele a quem deseja, só fazendo tomar em
uma taça de café... Kuma pode te preparar uma bolsa de ervas
que, pendurada a sua cintura, fará vir o filho que acaso deseja e
não tem. É isso?
-Oxalá tivesse poder para tanto, Kuma!
-Dúvidas de meu poder? - disse a feiticeira com certa ira. -
Então, a que vem?
-Há algo muito mais cômodo para você. Se pensasse que
seriamente pode fazer todas essas coisas, não haveria ouro no
mundo para pagar sua ciência. Não vou pedir nada disso...
Bastará com que se preste a me obedecer. Eu sei que você
ajuda às mulheres daqui quando vão nascer as crianças; mas
só te quero para que me sirva de testemunha, para que, com
essas palavras que sabe usar para que acreditem, diga a todos,
aos senhores também, que me atendeu depois de um acidente...
"antes de continuar, quero te dizer uma só coisa: Se tudo
sair bem, darei dez moedas como essas; se por acaso me trair,
farei com que lhe expulsem a pauladas de todas as terras de
D'Autremont, sem te deixar abrir sequer a boca. Jure-me que
não dirá nada a não ser o que eu ordene, e me olhe bem para
ver que não minto. Sou a esposa do senhor, sou a proprietária
de Campo Real... olhe-me bem, e pense no que te convém!
Com um brusco movimento, Aimée jogou para trás o véu
que cobria seu rosto, o xale que envolvia sua cabeça, e à luz
avermelhada da tocha brilhou na deslumbrante beleza de seu
rosto branco, enquanto Kuma retrocedia movendo a cabeça.
Suas pupilas escuras pareceram aumentar e seus olhos ficaram
mais vermelhos como que injetados de sangue. Durante um
longo minuto pareceu vacilar; logo, pegou as três moedas de
ouro as colocou no bolso de sua saia, e se ergueu ao responder:
-Farei o que me ordena... Como? Quando?
-Tem que ser logo. Já perdi bastante tempo... Amanhã se
for possível... Devo preparar as coisas, fazer bem feito. Desta vez
não podemos nos enganar...
Aimée foi para a porta. Kuma a seguiu, observando cada
gesto, cada movimento, como se a estudasse, como se
esforçasse em adivinhar sua mente sagaz, ágil na mentira e no
engano. Ao fim, uma expressão ardilosa humanizou seu negro
rosto:
-Você é a senhora Aimée. Eu te vi de longe no dia de seu
casamento. Não entrei na igreja, mas te vi de longe, e também
sei de algumas coisas... Dizem que vai dar ao senhor Renato um
herdeiro.
-É o que dizem... Se sua sabedoria não chegar mais longe...
Não lhe dizem mais que isso seus poderes secretos?
Outra vez se calou Kuma durante longo momento. Outra
vez observou dos pés a cabeça à formosa mulher a sua frente,
altiva, enquanto um sorriso zombeteiro brincava em seus lábios.
-Kuma vê a verdade no fogo, no vento e na fumaça da
panela que ferve - afirmou esta. - Kuma vê seu filho formoso e
forte... Kuma vê o herdeiro da casa D'Autremont...
-Não - negou Aimée com decisão. - Nem Kuma nem
ninguém verá, entende? O herdeiro de Renato D'Autremont não
existe nem nunca existiu, mas é preciso que todos acreditem
que foi um acidente que o impediu de nascer. Acontecerá perto
de sua cabana, e terá que ter seus cuidados. Compreendeu
bem?
-A fogueira tem as chamas muito altas. Quer que Kuma
salte sobre uma fogueira em que certamente queimará os pés?
É muito, o que arrisca Kuma. Se você pode fazer com que me
expulsem a pauladas de Campo Real, o senhor Renato pode
muito mais. Talvez tenha que ir muito longe... E dez moedas de
ouro não é muito dinheiro.
-Darei vinte! Darei cem!
-Já servirá. Servirá todo risco. Diga-me o que devo fazer.
-Espere! - assinalou Aimée. E aproximando-se da porta,
perdeu toda prudência, chamou-: Ana... Ana!
Pelo estreito atalho subiu, trotando, uma figura larga e
fraca que, ao chegar junto a Aimée, exclamou alvoroçada:
-Ai, minha senhora, que bom está o baile! Todo mundo está
lá embaixo, menos o senhor Renato, que já se foi...
- Renato se foi? Voltou para a casa? É preciso que você
volte também. Eu tenho que falar ainda com esta mulher. Se
Renato for ao quarto e não achar nenhuma de nós duas, sairia
para nos procurar, e quem sabe! É preciso que fique ali, que
esteja atenta, que invente alguma coisa para desculpar minha
ausência. Se perguntarem onde estou, pode dizer que saí ao
jardim para tomar ar fresco... E se lhe mandarem me procurar,
vá para o lado da pracinha, e ali me espere. Ande... Voa!
A contra gosto Ana foi pelo atalho abaixo, enquanto Aimée
retornava lentamente à cabana quase em ruínas... Em sua ágil
mente diabólica, a confusa idéia foi tomando forma, concreta
em feitos... Um a um foi preparando, na mente, cada detalhe da
farsa, até que empurrou ao fim a desvencilhada porta, com mão
impaciente, e explicou:
-Kuma... Já sei o que vamos fazer. Ponto por ponto, já sei o
que temos que fazer...

-Renato... Filho...
-Não é...? O que faz acordada a estas horas, mãe? É tarde,
muito tarde. Não acredito que deva abusar assim de sua saúde
e de suas forças. Tem que estar descansada...
-Meu cansaço, filho querido, não é do corpo.
Junto à escada de pedra que dava acesso ao sombreado e
confortável portal da casa opulenta, Renato se encontrou com
aquela a quem menos tinha desejado encontrar naquele
momento. Os olhos de sua mãe, interrogativos e angustiados,
fixaram-se nele, e aparecia neles uma súplica tão enferma e tão
terna que o estremecia.
-Não quero parecer uma intrometida te perguntando de
onde vem. Suponho que não terá ido pedir um cavalo, que não
irá esta mesma noite como ameaçou...
-Não, mãe, claro que não irei esta noite. Já ordenei antes a
Aninha que te dissesse, mas vejo que se esqueceu meu pedido.
-Pois é bem estranho... Asseguro-te que é a primeira vez
que acontece algo assim.
-Sim, é bem estranho... Tudo é estranho nela... Preferiria
não falar disso... Não quero te desgostar, mãe...
-Com o que disse, basta para me preocupar seriamente.
Não acredita que é preferível falar claro de uma vez?
-Pois sim. Eu sei disse muito para me calar agora. Aninha é
alguém de quem deveria se desprender. De uma forma suave e
com um pretexto qualquer, mas...
-Discutiu com ela. Suponho que seja uma sugestão de sua
mulher. Aimée odeia a pobre Aninha...
-É Aninha quem a odeia. Pela tranquilidade desta casa, por
essa paz que você mesma deseja, quero te pedir que afaste
Aninha assim que se apresente uma ocasião, eu já a
procurarei... Se tivermos que viver em Campo Real, tem que ser
assim, mãe.
-Está bem. Terei que aceitar seu desejo... Bem sabe que é
um grande sacrifício para mim, mas as mães nasceram para
isso: para aceitar os sacrifícios. Mas, ao menos, posso saber o
que aconteceu esta noite com Aninha?
-Não é esta noite, é sempre. Deixemos o assunto, mãe,
peço-lhe isso. De minha parte, meu pedido vai junto à súplica
de que não me pergunte mais.
-Se não quiser falar, farei com que seu relatório chegue a
ela. Dispensa-lhe gratuitamente sua antipatia... O que vamos
fazer! Será uma vítima mais de todas estas coisas, mas ao
menos vou demonstrar, quero te demonstrar, todo o carinho,
toda a submissão e todo o respeito que Aninha me tem. - E
elevando a voz, chamou-: Aninha... Aninha!
-Não a chame, mãe, não se canse, porque não tem como
atender. Não está na casa, e é preciso que desperte. Saiu esta
noite, como sem dúvida muitas outras, sem que você
suspeitasse. Está lá encima, na praça dos barracos... Sinto te
desiludir com respeito a ela, mas não é o que pensa. Quis tirá-la
do seu meio, do seu ambiente, e não acha que lhe tem feito
nenhum bem. Menos mal que, no fundo, é igual aos outros.
Bastará que a deixe em liberdade para que se manifeste tal
como é, sem a máscara de hipocrisia com que te fascina...
-Renato, me acompanhe a meu quarto. Chame Aninha.
Você verá como atende, você verá como desmente esta calúnia
que se encarregaram de te falar dela. Não é capaz de ir a essa
festa. Está deste lado. Desde menina me ocupei de sua
educação. Ela...
-Ela está lá encima, mãe, vi-a com meus olhos.
-Você? Quer dizer que você foi também?
-Isso é o de menos... Mas não falemos mais esta noite...
Acredito que estou fora de mim; e há algo que tenho que te dizer
algo importante, mas que tudo: a verdade do meu coração...
-Não a diga neste momento. A verdade de seu coração eu
conheço, não me repita isso... Espere, espere uns meses...
Venha, venha ao meu quarto. Voltei a te ver de repente tão
desorientado, tão alucinado como quando era uma criança.
Quero te liberar disso...
Segurou-o pelo braço levando-o com ela meigamente, com a
mesma ânsia dolorosa de proteção como quando era menino e o
afastava de todos os perigos imaginários ou verdadeiros... Fez
com que entrasse no amplo quarto, e sentou-o de costas para as
janelas. Um momento vacilou olhando através delas a mancha
vermelha das fogueiras que ardiam lá, no clarão dos cafezais...
Mas no ar que soprava daquele lado, parecia chegar, com o
ritmo sensual da música, a baforada cálida daquelas chamas
que na montanha entrava em ebulição. E é como se o ambiente
se carregasse de escuros presságios, como se os tétricos
augúrios que presidiram o nascimento de Renato D'Autremont
tremessem outra vez sobre sua loira cabeça...
-Tenho que te defender de você mesmo, Renato. Seu pior
inimigo está dentro de você... É seu coração, seu insensato
coração que se afeiçoa sempre ao que mais pode te fazer mal.
Primeiro à amizade desse canalha a quem odeia... Hoje, ao amor
de uma mulher proibida para você por todas as leis humanas e
divinas...
-Não há nenhuma lei que proíba ao coração os
sentimentos. O que a mente pensa, o que o coração sente...
-Acaso não existe o pecado mental? Pensa que não se peca
recriando no pensamento o que é proibido? Não basta ter um
nome como o nosso, não basta nascer chamando-se Renato
D'Autremont, mas sim tem que saber sê-lo, tem que aceitar as
obrigações da vida, da fortuna, do poder... Nasceu poderoso,
opulento, com todas as honras, com todas as vantagens. Não
tem a não ser sustentar o que outros fizeram para você...
-Acredito que se excede em suas recriminações, mãe.
Inclusive não fiz nada indigno.
-Confio em que Deus te libere sempre de fazê-lo. Ainda está
a tempo, mas tem que ter vontade. Não volte para Saint-Pierre...
Fique aqui, espere ao menos a que nasça seu filho... Não sente
que com essa criatura virá a esperança de uma nova vida?
Renato abaixou a cabeça. Por um longo momento demorou
a responder, como se rebuscasse em sua consciência, como se
abaixasse ao fundo de si mesmo. Logo, seus claros olhos se
elevaram, cravando-se nos de Sofía, ao rebater:
-Só se vive uma vez, mãe. Quero viver minha própria vida...
Eu compreendo seu ponto de vista, mas tenta compreender o
meu. Quero minha vida, a minha, a que pulsa em minhas veias,
não essa que, como bem disse, fizeram outros para mim... Deve
te bastar com que no material não faça nunca nada indigno, ou
tente não fazê-lo... É que acredita que já não é bastante meu
martírio? Tarde achei a verdade de meu coração. Por que estive
tão cego?
-E por que não aceita as consequências de seu erro, já que
o cometeu?
-Porque não posso mãe! Não posso me conformar com essa
vida pueril e medíocre que levo. Não posso ser escravo de um
pedaço de terra, das letras de um sobrenome... Lutaria embora
eu mesmo não quisesse... Faltaria a minha palavra se me
pudesse arrancar isso, e aos meus juramentos, se jurasse o que
sei que não posso cumprir. Não me atormente mais, mãe... É
inútil... Deixe que se cumpra meu destino...
-E por que tem que ser seu destino correr ao abismo?
-Porque é o de todos os D'Autremont, mãe: viver para
nossas paixões, e por nossas paixões, morrer...
Sofía fez um gesto para detê-lo quando se afastou
bruscamente, mas não o seguiu. O olha cruzou, com uma
desolação infinita nas pupilas, e logo procurou uma poltrona
onde se deixou cair rendida, soluçando. A porta do quarto se
abriu e Batista se desculpou:
-Perdoe-me que entre assim...
-Onde está Aninha?
-Não a encontro nem sequer quem enviei a procurá-la, nem
tampouco uma donzela a quem pedi permissão para entrar. Por
isso cheguei assim... Todos se foram; mas, com a permissão da
senhora, amanhã castigarei quem for preciso. Parece como se
um demônio tivesse soprado a todos. Nunca ocorreu isso em
Campo Real uma coisa assim... Mas Aninha não demorará a
voltar senhora. Certamente terá ido fazer por si mesma algo
necessário...
-Aninha também está lá encima... Meu filho viu-a, e isso é
uma falta grave para despedi-la...
-Se o senhor Renato achar assim, teria que despedir a
todos, e à senhora Aimée seria a primeira.
-O que diz?
-Não há luz por aquele lado da casa...
-Pode estar deitada e dormindo. Quem é você para julgá-
la... Entendeu? Exijo a maior consideração e o maior respeito de
todos para a esposa de meu filho. Ao menos, por agora...
-Agora e sempre se fará nesta casa o que a senhora diga
dona Sofía. A senhora é a única proprietária que reconhecemos
os leais, os antigos... Pela senhora nos deixamos matar... É o
que eu sinto, e é o que sente minha sobrinha. Claro que se, com
tudo isso, o senhor se empenhar em que a senhora a mande
embora daqui...
-Procura-a você mesmo, Batista, vá procurá-la... Eu não
preciso de nada...
-Nem o senhor tampouco... Está na sala de jantar, e ele
mesmo se serve... Está bebendo como nos piores dias: ele
sozinho e uma taça atrás da outra... Nisso é diferente do senhor
dom Francisco... Esse bebia sempre em boa companhia... Em
festas, com amigos, como todo um grande senhor que era
minha senhora. Que até seus pecados eram disso, de grande
senhor...
-Cale-se Batista, e vá fazer o que te mandei. Traga
Aninha...
-Eu estou seguro de que a senhora está enganada com
Aninha. Se o senhor a viu lá encima, foi por um momento. A
qualquer um pica a curiosidade. Agora, apostaria a mão direita
que não está ali, e a senhora vai vê-lo por si mesmo... Com
permissão...
Não... Não estava Aninha na larga praça dos barracos, onde
a festa negra seguia, onde os corpos banhados de suor se
retorciam em danças lascivas, onde, como as chamas das
fogueiras, os desejos palpitam, e se ligavam, em um só nó o
amor e a morte... Depois de um longo momento de estupor
doloroso, pôs-se a andar, primeiro sem rumo fixo, depois como,
arrastada por uma idéia...
Andou primeiro, muito devagar; depois, mais depressa...
Afastou-se até encontrar um atalho escondido, um áspero
atalho que subia a montanha através dos penhascos, até o
ponto mais alto do vale, junto ao arco do desfiladeiro, ali onde,
escondida e dissimulada entre penhascos, havia uma choça
semi destruída: a guarida de Kuma...
Afastou-se do atalho, escondendo-se entre as plantas, até
que a sombra que passou perto dela desapareceu... Um bom
tempo depois a seguiu com os olhos, tentando localizá-la nas
trevas... Uma suspeita a faz sentir o desejo de ir atrás dela, mas
não o realizou, e quando tudo voltou a ficar silêncio,
prosseguiu, até chegar junto a curandeira...
-Kuma! Quem saiu daqui? Vi-a, tropecei-me com ela no
caminho... Quase poderia jurar... Kuma me diga...!
-Deixe-me em paz! Não tenho nada que te dizer...
Bruscamente, a feiticeira se soltou daquela mão, que apertando
seu punho a oprimia, e olhava duro o rosto desencaixado de
Aninha... Logo, com aquela solene calma que dava a todos seus
movimentos, abriu a marmita que fervia e afundou um punhado
de ervas secas em seu escuro e fedorento conteúdo.
-Kuma, responda o que te pergunto... Juro-te que não vai
pesar-te... Sou sua amiga, você sabe que sou sua amiga...
-Kuma não é amiga nem inimiga de ninguém. Sirvo aos que
chegam aqui, e calar seu nome é meu primeiro serviço... Diga-
me a que veio. Seguem suas penas? Se vier a me falar delas,
escutarei... Se quiser um remédio, Kuma saberá encontrá-lo,
embora seja muito difícil. Se não for para isso, pode ir...
Cruzou os braços, em frente à Aninha, que outra vez
parecia serena, contida, e por um momento permaneceram
ambas as imóveis, até que, lentamente, Aninha tirou uma
moeda de prata de seus bolsos, pondo-a sobre a imunda mesa:
-Venho te pagar minha última visita, embora não deveria,
porque de nada me serviu. Seu conselho foi mau; seu amuleto,
inútil; sem valor as orações que me deu...
-Pôs no café de seu senhor a medicina?
-Não... Tive medo... Pode adoecer, pode morrer...
-Talvez adoeça, mas essa enfermidade abrandará sua força,
se sentirá desventurado, e esse será o momento em que voltará
seus olhos a você. Não é isso o que pediu a Kuma?
-Pedi que me amasse, que seus olhos se fixassem de outro
modo em mim... Pedi um sorriso, um só sorriso... Depois, não
me importa se morrer...
-Pobre tola! Por que tinha que olhar tão acima?
-Se minha mãe obteve o amor de seu senhor, uma hora,
um dia... Por que não posso eu obtê-lo?
-Os tempos mudaram, as coisas são diferentes... Quando o
vale era matagal de selva e os senhores viviam em cabanas,
quando bebiam rum e estendiam sua rede sob as Palmas, tudo
era diferente... As mulheres brancas estavam muito longe,
nenhuma chegava até aqui...
-O que foi uma vez, pode voltar a ser - se obstinou Aninha
com teimosa paixão. - Não há, a não ser uma coisa que me
importe na vida... Seu Deus sabe... Você diz que tem poder para
conseguir tudo...
-Já te dei a planta. Não a coloque toda de uma vez se não,
não terá valor suficiente. Faça tomar umas gotas cada dia.
Pouco a pouco, todas as coisas vão parecer diferentes... Pode
que chegue a vê-la formosa, branca, como...
-Como quem! Não ria Kuma!
-Tenho que rir. Viu um escaravelho frente ao sol? Assim é
você frente à quem pretende que ele se apaixone por você. Pobre
Aninha!
-Não tem por que compadecer! -disse Ana furiosa. - Mesmo
que ela fosse o sol, como você diz, e eu um escaravelho, ela é
má, é daninha... Envenena-lhe... Odeia-lhe... Mas quando você
diz isso, é que a viu...
-Sim - disse a feiticeira com falsa indiferença. - Todos a
viram de longe, um dia: o dia de seu casamento. Até Kuma, a
maldita, esteve no cortejo nupcial do senhor Renato...
-Lembre-se! Viu-a depois e de muito mais perto. Acaba de
vê-la, porque foi ela quem esteve aqui... É inútil mentir...
Embora o negue, estou bem certa. Ela veio te procurar... Por
quê? O que queria? Responda-me! Paguei-te em prata quando
outros dão cobre!
-E outros me dão ouro...
Kuma abriu a mão mostrando as três moedas de ouro, que
brilhavam a luz da tocha, já quase extinta, e Aninha ficou
furiosa, totalmente segura:
-Ela... Ela...! Sabia... Sabia...! Veio até aqui, e te pagou com
suas moedas de ouro. O que veio comprar?Diga-me, me diga
isso. Não pretenda zombar de mim, porque sou uma má
inimiga!
-Kuma não teme o escorpião, nem à aranha, nem à
formiga... Você é como uma cobra que se arrasta... Quer chegar
até o ramo mais alto da pimenteira, mas não poderá subir. Terá
que esperar que o raio que desça das nuvens parta o ramo, e os
ramos abaixem até você... Embora não o mereça, vou te dar um
conselho de amiga: Não queira chegar até o senhor, espere que
o senhor chegue até você. Dei-te o remédio... Usa-o pouco a
pouco... E agora, vá...
Aninha deixou cair às mãos com gesto de vencida, como
carregada de uma dor sem nome, enquanto a feiticeira voltava
lentamente para o forno de barro sobre o qual fervia a marmita,
onde ficou por um momento imóvel. Logo, tremeu como se a
sacudisse o calafrio de uma febre, e levantou a tampa da panela
fervente. Com as grandes e negras mãos estendidas, traçado
estranhos signos, ficou absorta contemplando as espirais de
vapor, e depois abaixou a tampa, voltando-se com brusco
movimento, para indagar:
-Ainda estas aqui? Vá!
-Não posso ir assim! Diga-me o que viu na fumaça! Diga-
me.
-Sangue... Fogo... Ruína... Lágrimas na casa D'Autremont
sangue nas pedras do desfiladeiro... Tanto sangue como quando
se matou o senhor dom Francisco. E depois, ruína... E depois,
fogo... Vi afundar a casa D'Autremont, e ferver o mar...
-Kuma... Kuma! Isso não é possível! Diz só para me
assustar, para zombar de mim! Você não viu isso! Não o viu!
Kuma! Kuma!
Imóvel, gelada, com a vista fixa, a feiticeira cor de ébano
parecia se afundar nos horríveis pressentimentos que fluíam de
seus lábios... As mãos de Aninha tocam o frio e rígido corpo em
vão, desesperadamente tenta fazê-la despertar, e ao fim,
vencida, separou-se da feiticeira com gesto de temor
supersticioso... Sem deixar de olhar Kuma, Aninha chegou à
porta da cabana, cruzou sua soleira de costas ao caminho... O
ar fresco da noite parecia despertá-la açoitando seu rosto...
Então, possuída por um terror repentino, começou a correr para
as longínquas luzes da casa...
Abafada pelo golpe do coração que batia muito depressa,
ainda pálida e tremula de espanto por causa das palavras da
Kuma, procurou Aninha o apoio da parede, enquanto Batista se
aproximou dela com gesto de violenta ira:
-Onde estava? De onde vem?
-Eu... Eu... –balbuciou Aninha. - Não venho de... De
nenhuma parte. Saí... Saí...
-Sem inventar, sem mentir! Viram-lhe lá encima. Viu-te o
próprio senhor Renato. Veio contar a dona Sofía. Sabe como
está ela contra você? O senhor está furioso, pediu-lhe que te
despeça! O que fez ao senhor amo? O que lhe disse?
-Eu... Eu... Oh, tio Batista! - choramingou a mestiça em
tom suplicante.
-Não permitirei que volte a me chamar assim! Muito sabe
que te amparei quando minha irmã me pediu isso ao morrer, e
que ela, por lástima, tinha-te recolhido. Mas não me deixe mal
aqui... Como por sua culpa se desgosta a senhora comigo, direi
a verdade a todo mundo: não é mais que um lixo do arroio, e ali
voltará se a senhora te despede. Amanhã castigarei todos esses
bandidos que escaparam à festa, e não irá melhor a você se não
te perdoar dona Sofía...
-Faça o que quiser! Não me importa! - desprezou a mestiça
chorando profusamente.
-Que não se importa? Isso veremos. A culpa é minha por
ter te tratado muito bem, por dizer que era minha sobrinha.
Seque esses olhos, veja onde está a senhora e lhe peça perdão
de joelhos...
-À senhora Sofía...?
-E também à outra, à senhora Aimée... Certamente, ela é
quem pôs seu marido contra você. Faça-te perdoar de tudo
antes que seja de dia, ou terá que se entender comigo.
Batista se afastou com firme passo. Por um instante
Aninha permanece imóvel, o rosto entre as mãos, abafando os
soluços que a sacudia, até que suas lágrimas se secaram ao
ardor das bochechas. Então se levantou devagar, entrou como
sonâmbula no estreito quarto, e com mão trêmula abriu o móvel
encravado na grossa parede, que fazia às vezes de cômoda e
estojo de primeiro socorros. Do fundo da mesma extraiu um
tosco frasco de barro. Era a repugnante poção medicinal ou
mágica que Kuma deu como medicina para destruir a vontade
rebelde de Renato. Tremendo, apertou-o em seus dedos,
enquanto sua alma se debatia em uma luta horrível...
-Odeia-me... Renato me odeia, e me odeia por ela... A
maldita...
Um relâmpago vermelho cruzou por suas pupilas,
acabando de secar suas lágrimas, devolvendo em um instante
as forças perdidas. Outra vez voltou a endurecer seu rosto
desfigurado de angústia, outra vez o descompassado e inquieto
coração voltou a pulsar, quando em tom detestável decidiu:
-Sim... Sim, farei o que Kuma me disse!
Capitulo Seis

-Ai, Senhora, por fim!


-Aconteceu algo? Alguém perguntou por mim, Ana?
-Perguntar, ninguém perguntou, mas o Batista chegou
quarenta vezes até aqui, aproximou-se da porta, colou o ouvido,
e tornou a ir...
-Bom, cale-se... Tenho que pensar, que discorrer. São
muitas coisas as que tenho entre as mãos. Não posso errar, não
posso cometer uma estupidez, não posso dar um passo em
falso, porque então sim que estou perdida. Sai com cuidado. Dá
a volta por todos os corredores e volte para me dizer onde está
Renato e o que faz.
-O senhor Renato?
-Sim. Vou ter com ele uma última conversa. Quero queimar
o último cartucho, quero fazer um último esforço para que todos
sejam felizes... Se não, farei o que tenho proposto, e que o diabo
me ajude, ou me carregue de uma vez!
Obediente ao mandato de Aimée, Ana chegou silenciosa,
em sua missão de espionagem, àquela galeria, amplo portal
sobre arcos coloniais que dava volta à enorme mansão e parecia
prolongar cada estadia em um anexo mais arejado, mais
campestre e simples, onde se encontrava Renato com um copo
de conhaque na mão, dando ordens terminantes ao humilde e
serviçal Batista... Depois de observar atentamente a situação, a
sempre assustada Ana retornou ao quarto de sua senhora para
fazer o relatório de suas observações:
-O senhor Renato está sozinho. Já bebeu até o último gole
que restava na garrafa, e eu ouvi quando mandava Batista
preparar o banho, a roupa, e um cavalo para ir-se em seguida...
-Tenho que detê-lo... Tenho que fazer as coisas estando ele
aqui... Ajude-me a me arrumar... Traga-me aquele perfume
francês que comprei em Saint-Pierre no outro dia, um xale de
renda e um pouco de carmim... Quando acabar, vá à cozinha e
nos leve champanha e suco... Convidá-lo-ei a tomar comigo
uma taça e pior para ele se me obrigar a chegar até o fim...

Com passos felinos, sabedora do poder sensual que exalava de


sua pessoa, Aimée se aproximou decidida à ampla galeria onde
se encontrava Renato, e avisou jovial:
-Boa noite, Renato, ou bom dia... Na realidade, não sei
como dizer; a estas horas, é difícil... Ainda não amanheceu, mas
já falta pouco...
-A estas horas, deveria estar dormindo.
-Dormi até agora, mas me senti tão só nesse quarto tão
bem preparado para dois... É triste sentir-se abandonada em
um quarto assim... Tudo ali cheira ainda a lua de mel: uma lua
de mel que, por desgraça, não vivemos. Às vezes me pergunto se
não foi um sonho meu casamento com você, e estas horas ou
estes dias são um pesadelo do qual ao fim terei que despertar...
Renato se ergueu, olhando Aimée frente a frente. Apesar de
ter bebido, não conseguiu que o álcool atordoasse sua
inteligência nem seus sentidos. Pelo contrário, sentia uma
vibração dolorosa e fina, uma espécie de penetração sutil, que o
fazia contemplá-la tentando achar o verdadeiro sentido daquela
atitude inesperada. Não lhe escapava que cuidadosamente tinha
acabado de arrumar-se, de vestir-se, de perfumar-se com o mais
sensual dos perfumes, e assim, as pálidas bochechas, as
olheiras profundas, pareceram-lhe repentinamente mais
formosa, com seu desconcertante parecido a Mônica, o fez
estremecer, amaldiçoar sua alma...
-Meu querido Renato, já parou um momento para pensar
que coisa tão absurda veio a ser nossa vida? Ouvi dizer que não
ficará em Campo Real...
-Não. Volto para Saint-Pierre. Suponho que para você tanto
faz, que não me criticará.
-Não... Não te critico. Invejo-te... Que felicidade, nascer
homem! Vocês têm todas as vantagens do mundo: cortejam as
mulheres, escolhem-nas, pedem-nas em casamento ou se fazem
de tolos, como melhor lhes convém...
-Não há nada mais frágil que a ilusão, Aimée. Se a nossa se
fez em migalhas, não foi só culpa minha.
-Menos mal que reconhece sua parte da culpa.
-Reconheço-a inteira se quiser, mas não vou discutir.
-Naturalmente... Basta fazer o que te dá vontade. Que
atitude mais cômoda a tua!
-Está bem, Aimée. Já vejo que quer me ouvir. Não é minha
culpa se disser coisas que firam e lhe machuquem. Procurou-
me em uma hora em que não sou capaz de mentir...
-Pois me alegro muitíssimo... Eu também sei dizer verdades
amargas, Renato D'Autremont, e a primeira é que não estou
disposta a sofrer seu público desprezo, seu abandono aos olhos
do mundo, seu cortejo descarado a outra mulher, para maior
vergonha e mortificação para mim, leva meu mesmo sangue...
-Para maior desgraça de todos, Aimée. E é justamente o
que foi capaz de fazer contra ela, sendo seu sangue, o que me
separa de você. Por que fingia comigo antes de nos casar? Por
que se apresentava para mim como uma menina apaixonada,
cândida e tímida? Por que mascarava, sob sorrisos angélicos,
suas violências, suas ambições, seus apetites? Não se engana a
quem se ama... Você nunca me quis!
-De onde tirou isso? Como se atreve a dizê-lo?
-Caiu a atadura de meus olhos... Ela me queria... Você pôs
em jogo suas artes para me desviar, e ela foi muito nobre para
combater com suas próprias armas... Por isso a venceu. Vi-a
fria, serena, afastando-se de mim, pensando primeiro em seus
estudos, logo, na religião; e a você, em troca, doce e terna como
uma menina. Ofusquei-me, perdi o rumo, fui tolo e cego, mas
não por minha conta... Fez-me uma armadilha, e caí nela... As
duas jogaram comigo... Ou melhor, dizendo, jogou você com os
dois... A ela, por sua generosidade e nobreza; a mim, por minha
inexperiência da vida, dirigiu-nos como quis... E agora, eu te
digo: por quê? Para que?
-Suas palavras são cruéis, Renato. Eu não sei...
-Eu sim sei! A essa pergunta respondo eu mesmo. Queria a
posição, o nome e a fortuna. O amor, não, posto que não me
queria. Pois bem, tuas são minha posição, minha fortuna e meu
nome. É a proprietária de Campo Real, será a mãe de meu filho,
mas meu coração e meu pensamento não podem te pertencer.
São dela, com um amor tardio, com um amor que é como uma
planta venenosa, mas ao que dei toda minha vida!
-Quer dizer que me joga de sua vida?
-Quero dizer que vamos já por diferentes caminhos. Eu não
quero mais que a liberdade de ser todo o desventurado que me
sinto, o direito a não ter que fingir. Não quero nem palavras
falsas, nem sorrisos forçados, nem cortesias inúteis...
-Renato, olhe o que diz! Empurra-me a perder a razão!
-Não acredito. Mas, em último caso, não há cuidado;
nenhuma de suas loucuras será contra você mesma... É muito
egoísta.
-Insulta-me! É o último dos miseráveis!
-Melhor então se afastar de mim! Boa noite...
-Não... Não vai assim!
-Irei, faça o que fizer e diga o que disser. Não me interessa
mais, Aimée. Entendeu? Vindo de você, tudo dá no mesmo para
mim. Não se incomode mais comigo. E agora, com sua
permissão, vou dizer adeus a minha mãe. -E afastando-se,
alterou um pouco a voz-: Batista! Batista...!
-Chamou senhor? - perguntou o interpelado, aproximando-
se de Renato.
-Que me esperem com o cavalo ao pé da escada da galeria!
Renato deu suas ordens em tom imperioso, e se afastou
com passos rápidos, deixando confuso a Batista, que saiu de
sua abstração ante a chamada de Aimée:
-Batista... Batista...! Faz duas horas que estou chamando a
gritos! Meu cavalo, em seguida!
-Seu cavalo... Seu cavalo? - balbuciou Batista
profundamente surpreso. - A senhora quer dizer...?
-Quero dizer que faça selar meu cavalo agora; o meu, que
ontem teve o atrevimento de montar sem minha permissão. Que
o selem. Quero que esteja ao pé da escada antes que Renato se
vá.
-Meu Deus... Meu Deus... O que vai acontecer aqui? -
lamentou-se Batista, afastando-se para cumprir as ordens
recebidas.
-Ana... Ana...! Corre ao quarto de dona Sofía e diga que vou
sair a cavalo... Que vou sair acompanhando meu marido,
porque tenho perfeito direito a ir com ele e a lhe seguir.
-E se estiver dormindo?
-A acorde, grite, arme o maior escândalo que for possível.
Mas não estará dormindo, porque Renato está ali...
-O senhor Renato? E diante do senhor Renato, eu vou
dizer...? - a mestiça estranhou, cheia de confusões.
-Que ele te ouça é o que quero! Diga-lhe que iria com ele de
todas as maneiras, que não me importa morrer... Nem
tampouco se perder meu filho... Quero que todos ouçam que
todos comentem... Bata forte na porta, e diga-lhe a gritos,
entendeu? Aos gritos...! Corre já...!
Com um empurrão a obrigou a sair. Com a rapidez que lhe
obrigava a ira, Aimée jogou a saia de montar sobre o traje que
usava, calçou as pequenas botas e, empunhando a vara, correu
à galeria, para voltar-se com gesto furioso. E como se ainda
Renato estivesse ali, ameaçou:
-Ainda posso fazer algo que te incomoda, Renato
D'Autremont, até posso ter a desforra de te fazer sofrer!
Renato não reprimiu o gesto de desgosto que lhe produz a
presença de Aninha, ao pisar no quarto de sua mãe. Quase sem
olhá-la cruzou a galeria, deixou atrás o gabinete de móveis
esvaídos, e entrou impaciente ao luxuoso e antiquado quarto...
Como uma sombra seguiu a donzela nativa, que explicou:
-A senhora saiu, foi ouvir a missa da alvorada que a cada
dia cinco dias faz na Ermida lá encima, pela alma do senhor
dom Francisco. A senhora é muito reservada e faz muitas coisas
assim...
-Efetivamente, minha mãe é muito reservada, mas vejo que
não tem reservas para com você.
-Incomoda-o, senhor Renato? Já sei que tive a desgraça de
lhe desagradar e que pediu à senhora que me despeça, mas a
senhora não desejou fazê-lo e não o fez. O senhor é muito cruel
comigo... Odeia-me como se eu fosse à culpada do que acontece
com o senhor. E eu poderia jurar que daria o sangue de minhas
veias, que daria a vida por...
Dolorida, ofendida, ferida no mais íntimo, retrocedeu
Aninha, oprimindo contra seu peito aquele frasco que escondia
em seus vestidos: a beberagem diabólica que em vão procurava
ocasião para usar, o último recurso que Kuma pôs em suas
mãos... E os olhos de Renato se acendeu como uma labareda de
cólera violenta:
-Basta... Basta! Estou farto de seus manejos. Não se dá um
passo nesta casa sem tropeçar com você. Não conheço nada
mais odioso que uma empregada intrometida, e você é pior que
isso. Quando vai deixar-me em paz? Quando vai não se ocupar
mais de mim?
-É o senhor o mais ingrato dos homens! - estalou Ana,
perdendo o freio da compostura. - Tudo o que acontece com
você, tudo, tem-no perfeitamente como castigo.
-O que...? O que quer dizer?
-O que disse! Pior para o senhor se não quer entender.
Todo mundo sabe, menos o senhor mesmo... Solte-me... Deixe-
me sair! Não quer que eu vá? Pois irei agora mesmo... Irei aonde
não volte a ver-me nunca!
-Agora não, vai me dizer o que começou. Acaba, fala, diga
tudo. Vomita de uma vez o veneno que tem dentro, cospe o fel
que destila... Diga-me o que é que me acontece, o que todos
sabem! Fala de uma vez...! -Na resistência em que se acham
travados, caiu no chão, estrelando-se o frasco que Aninha
guardava zelosamente em seu peito, e Renato quis saber o que
era: O que é isso? O que é o que tinha escondido?
-Me solte... Deixe-me! Não era nada...! Um remédio...!
-Mentira! Uma beberagem imunda. Certamente, uma poção
medicinal ou magia de feitiçaria. Era o que te faltava para estar
completa! Com razão disse a minha mãe o que disse. É o que
sempre pensei o que me pareceu no primeiro dia... E agora sim
vai, agora sairá desta casa para sempre, e saiba que pode ter
enganado minha pobre mãe, mas nunca me enganou...
-Não! Ao senhor só ela o enganou! -cuspiu Ana
furiosamente fora de si. - Ela... Ela, sim. Mas a ela perdoa tudo
porque ela...
-Meu Deus... Meu Deus...! -interrompeu-a Ana, que chegou
gritando. E ao ver Renato, exagerando a farsa, exclamou-: Ai,
senhor Renato! Onde está à senhora Sofía? A senhora Aimée vai
se matar...! A senhora Aimée vai matar À criança!
Renato soltou violentamente as mãos de Aninha para
voltar-se para a donzela que gesticulava e gritava. Um instante
a olhou sem compreender, ainda tenso de indignação e raiva,
contido com esforço o impulso de afastá-la com um tapa,
enquanto, livre das mãos que a seguravam, Aninha aproveitou o
momento para fugir.
-Ai, senhor Renato, não a deixe ir! - clamou Ana fingindo
que chorava a gritos. - Diz que vai com o senhor a cavalo, que
não se importa morrer nem de perder a criança.
-Mas, que idiotices está falando?
-Está como louca, meu senhor. Ela mesma se vestiu,
colocou suas botas, suas esporas e sua saia de andar a cavalo,
e mandou Batista selar o cavalo que a senhora Sofía não queria
que ela montasse nunca, e agora... Mas disse que não se
importa de morrer, que não vai fazer falta a ninguém, a
ninguém... Nem ao senhor tampouco. Porque diz que o senhor a
ofendeu... E o senhor verá como ficará senhora Sofía se perder a
criança... Porque a senhora Sofía...
Renato não esperou para ouvir mais a estudada
lamentação da nativa empregada e com passos rápidos saiu à
procura de sua esposa, gritando:
-Aimée... Aimée...!
Aimée o ouviu, viu-o, mas não respondeu. Tudo o tinha
previsto e medido, e voava mais que corria, até o pátio posterior
da casa, em frente a escada aguardava já selado o alazão de
Renato... Saltou sobre a sela, dominando seu momentâneo
espanto, agarrando-se às crinas ao mesmo tempo que arrebata
as rédeas das mãos de Batista, o qual gritava apurado:
-Senhora Aimée! Este é o cavalo do senhor! Um momento...
-Solta! Solta, imbecil...!
-Segura esse cavalo, Batista! -ordenou Renato
aproximando-se apressado. - Aimée... Aimée...! Está louca? Vai
se matar! Segura as rédeas! Não o faça galopar assim! Aimée...!
Logo, outro cavalo! -gritou Renato, - Essa estúpida vai se matar!
-Será pior se a perseguir - advertiu Batista. - Deixe-a,
senhor! Se correr em outro cavalo, atrás do alazão, fará com que
se desboque!
Renato correu ao encontro do outro alazão, que assim que
posto o freio escapou das mãos dos que pretendiam selá-lo, e,
agarrando-se às crinas, saltou agilmente sobre o lombo nu...
Golpeando com fúria os seus arreios, soltou as rédeas, fez voar
ao nobre bruto, atrás daquele outro cavalo que já era só uma
nuvem de pó que se divisava pelo caminho da montanha...
Na porta mesmo daquela Ermida, mandada construir quatorze
anos atrás, ali onde as ásperas colinas se dividiam para formar
o desfiladeiro, dona Sofía parou sobressaltada como por um
pressentimento. Terminou aquela missa que mandou fazer para
si mesma, como um último tributo ao que fora em vida o senhor
de Campo Real... Apenas uma velha vizinha rezadora, o
encarregado da limpeza e o moço que era o coroinha, assistiram
junto com a pálida e severa senhora... Agora, todos se foram.
Ela está sozinha, tremendo sem saber por que, olhando sem
compreender o que seus olhos viam, enquanto o sacerdote,
aproximava-se dela e inquiria com gesto de estranheza:
-Dona Sofía, o que acontece ali?
-Eu mesma queria sabê-lo. Padre... Corre um cavalo... Sobe
à costa rapidamente... Vê aquela nuvem de pó no caminho dos
cafezais? É um cavalo que parece correr desbocado...
-E o cavaleiro... O cavaleiro juraria que... Sim,
efetivamente... É uma dama... É uma mulher a que vai montada
nesse cavalo... Não vê a saia, dona Sofía?
-Uma mulher? Mas não é possível! A menos que Mônica...
-Mônica está no convento, dona Sofía - advertiu o Padre
Vivier. - Mas essa saia... Acaso sua nora...
-Teria que estar louca... Minha nora espera um filho...
-O cavalo parece ser de muito brio. Seja quem for, é uma
verdadeira loucura... Oh, olhe, outro cavalo! Outro cavaleiro...
Ali...!
-Se... Parece que a persegue... É Renato! É meu filho! Quer
lhe fechar o passo! Olhe-o! Entrou no campo e travessa pelos
semeados!
-Mas ela o esquiva... Oh, que loucura! Pegou a ladeira dos
penhascos... Mas, o que é isto? Tem que ter perdido a razão
para...!
Correram até onde a rocha cortada formava uma espécie de
terraço sobre o abismo... Já estavam bem perto para que
pudessem ver os olhos arregalados de Sofía...
-Aimée...! É Aimée, sim! Soltou as rédeas, Padre! Olhe...
Olhe... Não pode dominar o cavalo! Abraça-se ao pescoço,
agarra-se às crinas! -gritando desesperada, exclamou-: Alcança-
a, Renato, segura esse cavalo, detenha-o...! Não o deixe seguir,
lhe corte o passo... Corte-lhe o passo...! -Um verdadeiro uivo de
espanto brotou de sua garganta, ao adverti-lo-: Vai pelo lado do
precipício...! Oh...! Renato... Renato...!
A beira dos penhascos, contido milagrosamente por um
brutal puxão das rédeas, que fizeram dobrar seus quartos
traseiros, Renato deteve o alazão que montava, saltando a terra
com um impulso de horror, para olhar trêmulo no fundo do
abismo...
Ao longe, o vale inteiro de Campo Real parecia ferver. Por
toda parte, de todos os caminhos surgiam rostos escuros,
elevavam-se cabeças estremecidas, agitavam-se corpos suados,
corriam pés apressados... Todos os olhos tentavam ver, todos os
passos iam ao mesmo lugar: a nua montanha do desfiladeiro, a
parede de penhascos, a beirada daquelas rochas afiadas como
adagas, frente às quais, como se também fosse de pedra, Renato
D'Autremont ficou parado...
-Renato... Renato...! -chamou dona Sofía, aproximando-se
alterada em companhia do sacerdote.
-Não olhe mãe, não olhe!
Renato segurou dona Sofía, empurrando-a até as mãos do
sacerdote, que também a sustentava, e outra vez se inclinou
com o horror refletido em seu pálido rosto... Ramos quebrados,
arbustos semi arrancados, pedras arrastadas na queda dos dois
corpos que rodaram por ali, e no fundo espantoso, contra o
rebordo inacessível, uma sangrenta massa imóvel...
-Batista... Batista...! -chamou Sofía, desesperada. - Procura
cordas... Escadas. Chama as pessoas. Terão que descer aí...
Pode que ainda esteja viva...
-Não, mãe, é impossível, não pode sobreviver... Ninguém
pode estar vivo aí...!
-De todas as maneiras, terá que descer. É uma
D'Autremont. Seu corpo não pode ficar aí... Seu cadáver não
pode apodrecer-se como o de um animal, no fundo desses
penhascos. Ia te dar um filho, Renato, ia te dar um filho... Tem
direito a sepultura cristã, quando menos! Terá que resgatar seu
cadáver!
-Tem razão, mãe. Descerei eu mesmo.
Longas horas duraram o resgate... Do alto das montanhas
do desfiladeiro se via o sol afundar-se no mar como um disco de
cobre feito brasa viva. Em uma cama de ramos, iam os despojos
frios da que fora de uma beleza esplêndida, e sobre o rosto
desfigurado e rígido estendia seu véu fúnebre sobre os cabelos
loiros, um último gesto de piedade estendido pelas mãos de
dona Sofía... Agora, as cúpulas ficaram silenciosas; aquele
ferver de rostos escuros e de cabeças estremecidas que subiam
a montanha, marchavam apertados e silenciosos até a suntuosa
morada de pedra e mármore, e a negra ressaca ia lentamente
enchendo os jardins, envolvendo as amplas galerias. Só uma
mulher não partiu atrás de todos, só uma figura tremula
apareceu uma e outra vez a beira do abismo; só uns pés
torceram o rumo para chegar até a porta do barracão meio em
ruínas, onde outra mulher cor de ébano aparecia aguardá-la,
imóvel e rígida atrás da porta desvencilhada. E frente a ela se
dobraram seus joelhos como se obedecessem a um ritual, e
estendeu suas mãos em gesto de súplica infinita:
-Kuma... Kuma... Ela está morta... Ia morrer e você sabia.
Você viu sangue no caminho, sangre na casa D'Autremont. Você
sabia você pode, você tem poder, Kuma, me ajude... Salve-me a
mim!
Aninha contemplou o rosto de Kuma, negro como a
sombra; suas pupilas, presas em um brilho de alucinação,
talvez de loucura; seus grossos lábios, que mostraram ao se
abrir dentem branquíssimos, única luz entre tanta penumbra,
quando sussurrou:
-Maus presságios para a casa D'Autremont...
-Maus presságios, sim – acatou Aninha aterrada. - Já os
profetizou, já se cumpriram... É que não sabe? É que não
entende o que te falo? Ela está morta! Disse que alguém
morreria que haveria sangue...
-Sangue nas pedras do desfiladeiro, como quando morreu o
senhor dom Francisco... Mas ele não caiu ali; ficou na beirada
dos penhascos... Meus olhos o viram... Meus olhos, que tantas
coisas viram... Vi o senhor renegar, amaldiçoar, e logo suplicar
como uma criança. Ele morreu lentamente; ela, de repente,
como a árvore que se encontra com um tornado... Mas é a
mesma coisa... Há sangue nas pedras do desfiladeiro... Começa
a se cumprir o que vi tremer na fumaça... Mas ainda não é
nada... Falta muito mais... Muito mais... Eu o vi claro... Vi o
Vale de Campo Real em ruínas, vi romper a terra, vi vomitar
fogo as montanhas, vi ferver o mar...
"Corria... corria... ia fazer uma brincadeira, mas encontrou
a morte... Estava marcada por um sinal, um sinal negro dos
D'Autremont. Por isso escorregaram as patas do cavalo, por isso
rodou ao fundo do abismo, esse abismo que um dia tem que
abrir-se para tragar a todos... Como partida por um raio se
abrirá a montanha, e sairá do coração da terra uma nuvem
negra, mortífera...
-Basta! Volta a si; está delirando. Abre os olhos, Kuma,
olhe... Olhe! Kuma... Kuma está louca...!
Desesperadamente foi Aninha até a escura profetisa e com
mãos trêmulas a sacudiu, sacudiu-a com o brutal impulso de
sua angústia, cravando as unhas na escura pele, e por fim a
estranha mulher se estremeceu como se despertasse, e de seus
olhos se desvaneceu a visão de horror. Já era outra vez a velha
curandeira, ardilosa conhecedora de todas as ervas da
montanha, serva dos D'Autremont a quem também chega à
consternação de todos:
-Aninha, o que quer? Agora ela está morta... Apagou-se o
sol que te obscurecia...
-Mas o senhor Renato não vai querer me ver mais!
Despreza-me, aborrece-me, e tudo por sua culpa, por você...
Pela poção medicinal ou mágica que me deu, pelo frasco que se
quebrou a seus pés... Mas você tem poder, Kuma, você viu o
futuro... Por isso vim te procurar, porque acredito em você...
Ajude-me, Kuma, me dê um amuleto, faça uma oração por mim!
Tenho que voltar...
-Não volte... Esqueça-o... Não se aproxime dele, ou
compartilhará seu negro destino. Antes disse que era minha
amiga, que acreditava em mim. Se é verdade, siga meu
conselho: pegue o primeiro caminho e se afaste de Campo Real,
e esqueça o seu senhor. Esqueça-o!
-Mais fácil seria esquecer, de mim mesma! Preferiria secar
o sangue de minhas veias, arrancar a pele, que meus olhos não
vissem mais luz do dia... Você pode fazer com que me ame...
Antes o disse: apagou-se o sol que me obscurecia. Ela
encontrou a morte...
-Sim, encontrou a morte... Por brincar, como você, contra
seu destino... Encontrou a morte, porque alguém empurrou seu
cavalo... Pela última vez lhe digo: se afaste de Renato
D'Autremont, seu nome está amaldiçoado...

Lentamente, Renato D'Autremont levantou a cabeça, colocando


a larga testa abatida por um longo momento entre as mãos...
Depois que retornou atrás do corpo morto de Aimée, havia se
refugiado ali, no fundo daquela biblioteca onde quatro gerações
de D'Autremont amontoaram papéis e livros... Como um animal
em uma cova, afundou-se na velha poltrona que fora de seu pai,
e ficou imóvel como se procurasse, no fundo dos horríveis
acontecimentos, uma razão que ante si mesmo se justificasse.
Até agora usava as roupas sujas e rasgadas com que desceu até
o fundo da greta, rasgando as mãos pelas paredes cortadas,
fazendo pela mulher morta o que não teria feito pela mulher em
vida. Agora, pela primeira vez, procurou nos olhos do antigo
servidor apoio e simpatia, embora seu longo silêncio o deixasse
impaciente...
-O que quer Batista? O que vem me dizer? Se for um
recado de minha mãe, diga que não me achou.
-Vim só saber se o senhor quer tomar um banho e vestir-
se. Começaram a chegar às pessoas. Um jubileu ficaria esta
casa se a senhora não houvesse dito que já não queria avisar a
ninguém. Não quer que venha pessoas de Saint-Pierre para
opinar e dizer como foi e por que foi o desgraçado acidente.
-Se... Minha mãe já arrumou tudo. Suponho que devo ficar
enormemente agradecido, e que devo lhe estimar o favor de não
me haver feito até agora nenhuma recriminação.
-As coisas são tal como as pintam, e, de minha parte, pode
o senhor estar tranquilo. De minha boca não sairá uma palavra
que não deva sair. Fiel como um cão... E chegou a hora de
prová-lo. Os D'Autremont podem contar comigo e com as
pessoas que eu trouxe aqui... O momento é amargo para o
senhor, mas não queria deixar passar sem lhe dizer que
também a pobre Aninha é fiel a esta casa, e o será sempre... Ela
me disse que o senhor a tinha despedido definitivamente, que a
tinha mandado embora daqui...
Uma lembrança, como uma chispa acendeu-se na
atormentada mente de Renato. Recordou às últimas palavras de
Aninha, a violenta cena na hora em que a despedia, aquela
frase uma vez mais truncada: a possível revelação daquele delito
que todos, menos ele, sabiam. E com repentina impaciência,
levantou-se, segurando o braço de Batista:
-Faça vir Aninha. Procure-a... Chame-a... Logo, necessito-
a... Traga-a aqui Batista!

-O senhor me mandou chamar? Eu já ia embora. O senhor


me mandou antes...
A mão de Renato, fina e firme, caiu segurando o magro
braço... Seus lábios se apertam até ser só uma linha vermelha
sobre o rosto extraordinariamente pálido, nas pupilas azul
havia uma faísca penetrante que ao investigar pareciam
adivinhar.
-Mandei te chamar para que fale Aninha. Pela primeira vez
estou disposto a escutar o que nunca quis ouvir! Diga tudo o
que sabe sobre ela... Diga-o, mas diga-o sem nenhuma
vacilação, sem uma sombra; sem uma dúvida, sem uma
mentira. Não calunie a que já pagou com sua vida seus
possíveis crimes, porque é a sua vida que agora está em jogo.
Fale Aninha, fale! Disse que a ela perdoava tudo... Tudo...
Tudo...! O que é o que tenho que lhe perdoar?
Por que tremia Aninha? Por que, sob a pressão daqueles
dedos duros e finos, estremecia sua carne como sob uma
tortura inefável? Quanto desejou estar assim, perto dele, muito
perto, sob o fogo daquelas pupilas! Quantas vezes mordeu os
lábios até fazê-los sangrar, para não gritar a Renato
D'Autremont o quanto sabia sobre Aimée, quanto viram seus
olhos, quanto escutaram seus ouvidos! Mas agora tremia até
dobrarem-se seus joelhos, e a voz, em sua garganta, era um
sussurro ao dizer:
-Mas... Ela está morta, senhor... Eu não devo dizer...
-Estou-te ordenando que fale Aninha! - enfureceu-se
Renato.
-Agora não posso senhor - protestou Ana com voz trêmula.
- Agora, ela está aí, sobre a colcha de sua cama de noiva...
Rígida, fria... Seu corpo, ao cair, foi rasgando-se nas rochas...
Seu formoso corpo branco...
-Sim... Sim... -exasperou-se Renato. - Já sei que está aí...
Já sei que olhá-la dá horror... Mas, não compreende que, pelo
mesmo, preciso saber? Não compreende que penso que bem
posso ser eu quem a fiz morrer? Não o viu? Não ouviu? As
meias palavras, olhares receosos... Não viu que o Padre Vivier
me esquiva, que minha própria mãe evita me olhar que até
meus criados se afastam de mim? Foi por minha culpa...! Agora
todos dizem em voz baixa; logo, talvez o gritem e terei que ouvi-
lo. Mas quero que, ao menos em minha consciência, não ressoe
esse grito... Quero saber que foi má, que foi traidora, que foi
desleal...
-Foi, senhor, foi!
-Está segura? Sabe bem? - persistiu Renato, encurralando
a mestiça com suas perguntas. - Por que não me diz? O que é
que, segundo você, todos murmuram? O que é que sabem
todos, menos eu mesmo?
-Renato... Filho...! - chamou Sofía que, para buscá-lo,
aproxima-se, surpresa ao princípio e severa em seguida,
exclamou- Oh! O que faz aqui, Aninha? Não há nada a fazer na
casa? Dei-te uma tarefa para cumprir... Vá fazer o que te
mandei. Vá imediatamente!
-Eu a mandei chamar, mãe - intercedeu Renato. - Preciso
falar com ela... Espere...!
-Não espere... Vá! - ordenou autoritária Sofía. E
suavizando-se ao dirigir-se a seu filho, explicou-: Se você
precisa falar com alguém, filho, que seja comigo...
-Não compreende mãe? - desesperou-se Renato. - Preciso
saber...
-Saberá, mas não dos lábios de Aninha. Não é digno de
você. Saberá, para que não lhe faltem as forças; saberá, para
que tenha todo o valor e toda a serenidade que precisa, para
que possa levantar a testa quando a calúnia quiser te ferir ou
quando lhe jogarem na cara o que fez...
-O que? Eu não quis...
-Já sei que não quis; já sei que só tentava detê-la, impedir
o acidente que ela procurava premeditadamente, que ela tinha
preparado e urdido... Você queria lhe fechar o passo... Ao
campo atravessou correndo, atravessou no qual ela tinha
pensado seguir, e então afrouxou as rédeas, agarrou-se às
crinas, perdeu a cabeça, e a besta, enlouquecida, levou-a até o
lugar mais perigoso, onde achou a morte...
-Mãe, está me acusando...!
-Estou-te dizendo o que dirão os outros... O que sua
própria consciência te diz... E também te direi o que quer ouvir:
Não era digna de você...
-Oh! Então, você sabia...?
-Sei que era interesseira, ambiciosa, mesquinha... Sei que
se casou por ambição, que nunca te quis; que não se deteve,
para defender-se, nem ante a calúnia nem ante a intriga... Era
dura, insolente, leviana...
-Também leviana? - virou-se Renato com ira. - Por que não
disse quando estava viva? Por quê?
-Porque acreditei que ia te dar um filho, e só por isso
podíamos perdoar-lhe tudo.
-Acreditava? Isso quer dizer... Acabe, mãe! Diga tudo de
uma vez! Esse filho... Esse filho, de quem era?
-De ninguém, Renato... Esse filho não existia... Inventou-o
para assegurar sua posição nesta casa, para que eu a
defendesse até contra você mesmo. Certamente confiou em que
sua mentira se tornaria realidade. Para obtê-lo, buscou-te
inutilmente...
-Mas, como soube? Quem te disse...?
-O médico que veio para certificar sua morte... Obriguei-o a
comprová-lo... Exigi. Queria saber a verdade, era preciso... Não
teria podido voltar a te olhar, não poderia me aproximar de você
com a dúvida de que no fundo daquele abismo se extinguia
também aquela vida latente que era minha última ilusão.
Queria estar segura, se acaso tivesse chegado a te amaldiçoar...
Menos mal que Deus não o quis; que, enfim, teve piedade de
mim...
Um instante vacilou Sofía, como se de repente lhe
faltassem às forças. Suas mãos crispadas se seguraram a borda
da mesa carregada de papéis e livros, e um soluço escapou de
sua garganta, enquanto Renato a contemplava sereno e
sombrio, ao afirmar:
-Só quero saber toda a verdade, mãe... Há algo mais, estou
certo. Antes disse que era leviana... Por que o disse? Não a
matei por querer; mas quero, exijo saber se tivesse tido o direito
de matá-la. Se você não souber, perguntarei aos que saibam,
obrigarei a que falem os que se calam: Aninha, Ana...
-Basta, Renato. Agora não pode fazer nada disso... Agora
tem muitos deveres a cumprir, e vamos cumpri-los. Venha
comigo...
Capitulo Sete

Sobre a colcha de seu leito de noiva, vestida com aquele


branco traje de renda chantilly que Sofía D'Autremont fez
chegar para ela da França, as mãos cruzadas sobre o peito em
um último gesto de falsa devoção, Aimée de Molnar parecia,
mais que morta, adormecida... Uma estranha paz alcançou seu
rosto gelado. As hábeis mãos de Ana arrumaram seus negros
cabelos, dissimulando aquela horrível ferida na bochecha, e,
pouco a pouco, de todos os lugares do vale iam chegando para
ela às flores mais lindas. No salão esperavam os grandes
candelabros de prata, o cadafalso solene, a caixa forrada de
brocado, os enormes lírios... E toda a casa ia enchendo-se
daquele aroma de incenso, a cera e a lavanda que mata o aroma
pagão das rosas, e aquele perfume que impregnava seus
vestidos...
Aninha parecia estar sozinha naquela sala... Sozinha em
frente ao cadáver daquela mulher tão profundamente
aborrecida... Mas outra sombra se moveu em um lugar, outra
escura cabeça se estremecia com o impulso de soluços
abafados, e até ela foram os sagazes e cruéis olhos de Batista,
ao perguntar em voz baixa e mal intencionada:
-É Ana, não? Já pode chorar todas as lágrimas de seu
corpo... Muito vai sentir falta de sua senhora que a protegia...
-Deixa-a em paz, tio - quase suplicou Aninha. - O que você
vai fazer com ela?
-Eu não... O senhor... Ouvi o senhor falar com a senhora
Sofía, e não lhe arrendo a ganância a essa maldita. Agora,
venha comigo... Precisam de você no salão...
Ana levantou-se, tremendo, a escura cabeça... Do lugar em
que se escondia, viu, ouviu... Sem levantar-se, como um animal,
arrastou-se até a porta; com os olhos arregalados de espanto
viu se afastar as sombras de Batista e de Aninha, e com voz
abafada de terror murmurou como para si:
-Vão matar-me... Vão matar-me a mim também!
Seus frisados cabelos se arrepiaram, suas bochechas
tinham uma cinza cor cinza... Não havia ninguém no corredor
nem na galeria... Do salão chegavam ruídos apagados,
escutava-se o barulho das carruagens sobre as engrenadas
veredas do jardim... Contendo o fôlego, Ana chegou à escada
mais próxima; aderida ao muro, tampando com a mão o soluço
que poderia escapar e afastou-se sem ser vista, chegou ao
primeiro maciço de arbustos, aguardou uns instantes, enquanto
o coração disparava, e corria por fim, enlouquecida, com toda a
força de seu instinto.

- A esperava, Sofía. Espero há várias horas. Cheguei a


pensar que você havia se esquecido de mim...
A nobre figura do sacerdote, que ia a seu encontro, fez
estremecer Sofía D'Autremont com o calafrio de uma nova
angústia. Fazia horas que se esquivava... Quase tinha chegado
a se esquecer uns momentos antes, ou ao menos pensar que
era mais fácil evadir... Mas bastava achar-se frente a aquele
olhar penetrante, frente a aquele rosto enérgico, agora contido e
sombrio, para medir a dura luta que se aproximava, e tentou
desculpar-se:
-Me dispense Padre Vivier... Tive que dar tantas ordens,
que resolver tantos pequenos problemas...
-São grandes os problemas que deveriam ocupar nestes
momentos toda sua atenção, Sofía, e eu teria podido te ajudar.
Por que me reteve inutilmente entre estas quatro paredes? Se
tivesse me deixado partir a tempo, as Molnar já poderiam ter
vindo... Por que se empenha em atrasar o inevitável?
-E você, Padre, por que quer aumentar a tortura de meu
filho?
-Quando as coisas são precisas, vale mais as confrontar
quanto antes, e a maior tortura que nestes momentos pode ter
Renato D'Autremont é a sua consciência. Sua imprudência, se
foi realmente imprudência realmente, tem verdadeiras pontas
de crime... E se foi algo mais... O ciúme, a soberba, a ira, são
pecados mortais, senhora... Desventurada a alma que entre eles
se agita, infeliz o coração que busca o orgulho como escudo...
-Peço-lhe me não me agracie com um de seus sermões
neste momento, Padre. Estou desesperada...
-Compreendo-o assim... Sei o que o coração de uma mãe
pode chegar a sofrer, mas também sei que o caminho do dever,
por estreito que pareça, é o único que pode seguir-se... Onde
está Renato?
-Não fale com ele agora, suplico. Não pode mais... Sente-se
enlouquecido. Tem você razão ao dizer que a maior tortura que
pode sofrer, já o está sofrendo em sua consciência. Terá que ter
piedade dele, Padre, terá que ajudá-lo nestes momentos... Como
pensa que pode sentir-se depois de ter descido ao fundo
daquela greta, de ter resgatado por si mesmo o corpo de sua
esposa? A presença das Molnar será terrível para ele...
-Já não podem demorar verdade? A que hora enviou o
mensageiro?
-Padre Vivier, acredito haver dito já que considerava
suficiente com que recebessem o aviso amanhã - explicou Sofía
refreando sua impaciência com muita dificuldade. - A presença
delas aqui...
-Você pretende zombar de mim, Sofía? Reteve-me com
falsas promessas para chegar e me dizer uma coisa semelhante?
O que pensaria se seu filho tivesse morrido e alguém lhe
impedisse de aproximar-se de seu cadáver para dar o último
beijo de despedida? Isso é o que está você fazendo, não tem
direito... Por muito que queira defender o seu filho...
-Oh... Renato... - surpreendeu-se Sofía ao ver chegar seu
filho. E dirigindo-se ao sacerdote, angustiou-se em um pedido-:
Suplico-lhe...
-Ouvi claramente as últimas palavras do Padre Vivier, mãe
- explicou Renato, sereno e tranquilo ao parecer, - e acredito
que, sem ouvir as anteriores, adivinho o que quis dizer... Refere-
se às Molnar, verdade? E está com toda a razão... Devem vir,
devem vir quanto antes... Mande-lhes um aviso imediatamente!
-Quer dizer que ainda não o fez? - estranhou o sacerdote. -
É o cúmulo, Sofía! Asseguro-lhe que neste instante, eu mesmo...
-Não é preciso - interrompeu Renato. - O Padre Vivier tem
razão, mãe. Elas têm o direito de estarem aqui. -E afastando-se
levantou a voz para chamar-: Batista... Batista! Venha! Envie
imediatamente o homem de mais confiança que tem disponíveis,
no melhor cavalo da casa e avise a Catalina de Molnar o que
aconteceu aqui...
-Já não precisa - recusou o Padre Vivier. - Posso ir eu
mesmo. Se sua mãe e você não me tivessem detido, já estariam
aqui. Mas eu, neste momento...
-Meu mensageiro é mais rápido - assegurou Renato-: mas
faça o que achar melhor, Padre... Com sua permissão...
-Renato... Renato...! -murmurou Sofía. E suplicante, pediu
ao sacerdote-: Vá com ele Padre... Tranquilize-o, conforte seu
coração... Não percebe o quanto sofre?
-Sim... Agora sim... - aceitou o Padre Vivier, já
humanizado-: Vou com ele, Sofía...
A mão fina e branca de Sofía se apoiou no ombro de seu
mordomo, enquanto seus olhos viam o Padre Vivier se afastar,
saindo atrás de Renato, e com alívio apoiou a cabeça naquele
duro braço, leal e cruel para outros...
-Envio o mensageiro no melhor cavalo da casa?
-Posto que não tem outro remédio, envia-o...
-Bem, senhora. -E com raiva repentina, disse-: Eu sei bem
que essa mulher merecia mil mortes! Se a senhora me desse,
carta branca...
-O que faria Batista?
-Defenderia o senhor com a verdade, senhora. Procuraria
provas, conseguiria testemunhas... Não me daria mais que tirar
de Ana o que sabe de sua senhora! Se lhe fizesse falar, se o
senhor pensasse que teve razão para matar a senhora, se
aliviaria.
-Ele não queria matá-la! Não repita isso! Procure a Ana e
traga-a aqui... Acredito que tem a arma que preciso... Sim,
Batista; defenderei meu filho, defenderei até contra si mesmo.
Envie Cirilo com as Molnar, e busque Ana... Esperarei aqui...
Falarei com ela, a obrigarei a me dizer...
-Se a senhora me permitir, eu sei bem como soltar a língua
dessa canalha... Pode que esteja escondida... Quando não se
tem a consciência limpa...
-O que quer dizer? Imagina que Ana fugiu?
-Razão teria... Mas não se preocupe senhora... Sei como
achá-la... Em Campo Real é mais fácil entrar que sair, e não há
palmo de terra no vale aonde não chegue à mão de Batista...
Sem avisar aos serventes, saboreando de antemão a sorte
de poder dar rédea solta a sua crueldade, Batista se dirigiu ao
último barracão das garagens e as quadras, aquele em que, por
esta noite, estavam trancados os cães...
-Leão, aqui...! Quieto, Leal! Silêncio, Mastim!
Cuidadosamente os escolheu. Eram os três mais fortes, os
melhores treinados para a velha missão de descobrir escravos
fugitivos. Não importava que um decreto tenha feito livres os
escuros servos de Campo Real. Os hábitos não mudavam, os
costumes eram os mesmos... Rapidamente atou os três cães a
uma só trela, buscou um pesado chicote entre os quais estavam
pendurados ao longo da parede, e parcimoniosamente acendeu
seu cachimbo...
-Tio Batista! O que vai você fazer? – indagou Aninha,
aproximando-se alarmada, - Não irá procurar Ana com os cães!
Oh, é horrível! Mordê-la-ão, a destroçarão com as presas!
-Tornou-se muito compassiva, Aninha - desprezou Batista
malicioso. - Volte para suas obrigações, não se meta nisto...
Tenho permissão para fazer qualquer com o intuito de encontrá-
la. Prometi que a encontraria, e vou trazê-la, sabe? Vou trazê-la
morta ou viva!
Com um empurrão, Batista tirou Aninha do caminho...
Saiu, tinha na mão um pesado chicote e sujeitando fortemente
aos cães, correu com eles até o extremo do jardim...
Já estavam no campo livre... Presos pela corrente, tremiam
e saltavam impacientem os três ferozes animais... Com trabalho
os dominou Batista, enquanto lhes fazia cheirar um pedaço de
roupa usada por Ana... Como flechas, em todas as direções,
correram os cães, saltando como demônios, farejando o ar, as
ervas, os arbustos... Por fim, um deles pareceu encontrar o
rastro desejado...
-Bravo, Leão! Aqui, Leal... Mastim...! Quietos... Quietos...!
Um homem, mais negro que a noite, surgiu atrás Batista...
Usava o simples traje dos guardiões do vale, altas botas cobriam
suas pernas, uma cartucheira cruzava o peito do gigante, e suas
grandes mãos empunhavam uma escopeta... Tão feroz e
obediente como os cães, moveu-se à voz de Batista, que
ordenou:
-Francisco venha atrás de mim!
Ana está cansada em meio da desvencilhada cabana,
agarrando-se ao vestido da curandeira, que mal pôde fechar a
porta atrás dela...
-Me esconda Kuma, procuram-me, vêm atrás de mim!
Feche a porta, a janela... Tampe a fresta, apague a luz! Que não
me encontrem... Que não me encontrem! - implorou a
assustada Ana, morta de medo.
-Ficou louca? Por que chega assim? O que aconteceu?
Quem é? -interrogou Kuma desconcertada.
- Batista está me procurando com os cães... Eu ouvi o
latido, sim. Soltou-os... Soltaram eles lá embaixo, e entraram
pelos cafezais, pelos barracos grandes. Eu sabia... Eu sabia que
queriam me matar... Por isso não queria vir para cá. Ai, Senhor!
Não fez, a não ser morrer a senhora Aimée, e ele está atrás de
mim... Ai, ai, ai...!
-Não grite! Não grite! A senhora Aimée, disse? Você é a
donzela da senhora Aimée, você foi a que chegou aqui com ela,
verdade? Já sabia que te conhecia!
-Sim... Sim... E fiquei na porta enquanto a senhora
conversava com você... Eu não sei o que te dizia, mas te deu
dinheiro, eu sei que te deu dinheiro. E se me pegam com os
cães, e eu digo que a senhora te deu dinheiro a você, e que você
a ajudou a ... Ai, Meu deus! O Batista me mata e te mata,
Kuma... Também vão te matar...!
Kuma se voltou tremula para a porta e espiou pela estreita
fresta. Logo, com desgosto, voltou-se para gesticular a Ana:
-Ninguém vem atrás de você! Acredito que está louca! Não
grite!
-Eu não fiz nada, mas o Batista me tem jurada, e agora vai
matar-me e matar a você! Você tem poder... Sim, agora me
lembro... A senhora disse que você tem poder. Manda um
espírito para que acabe com os cães! Faça-lhe um malefício,
Kuma, lance um malefício a Batista... Que lhe quebrem as
pernas... Que lhe saltem os olhos... Que caia morto no meio do
caminho... Que os cães o mordam a ele... A ele...!
-Quer se calar! Se der outro grito, é a você a quem faço o
malefício: te transformarei em um sapo, em pedra, em
lagartixa...!
-Me converta em algo, mas que não me pegue o Batista! - E
com repentina alegria, exclamou-: Converta ele em sapo! Você
tem poder, Kuma... Contam que uma vez o fez que converteu
um homem em sapo... Converta-o em sapo!
-Batista é branco, e isso é muito difícil – recusou a
feiticeira. - Além disso, tem um amuleto com um poder maior
que o meu. Mas eu vou dar outro amuleto a você, o melhor
amuleto que existe. Quando o tiver nas mãos, pode sair
tranquila, fugir sem perigo... Não vai acontecer nada a você. Eu
te protejo, eu posso... Sempre o ouviu dizer, verdade? Kuma tem
poder. Espera, espera... Eu te farei sair, eu te farei escapar, mas
tem que fazer o que eu te disser. Espera... Espera...
Tremendo, Kuma foi até a porta. Sobre o rosto cor de
azeviche giraram os olhos espantados, enquanto sua mente
ardilosa media o perigo, calculava, com sua habilidade de velha
enganadora, a credulidade daquela infeliz que em meio de sua
choça tremia os joelhos.
-Tem que sair. Se lhe encontrarem aqui, estamos as duas
perdidas. Mas há um caminho pelo qual vou levar-te, e o
amuleto está aqui... Aqui.
Pegou ao acaso um maço de ervas, o primeiro com o qual
tropeçou sua mão, e o apertou contra o peito de Ana... Logo a
arrastou até uma estreita porta que se abria do outro lado da
cabana, e ordenou à desesperada Ana:
-Não tenha medo... Saia por aqui... E não apareça no
caminho. Sobe pelos penhascos, e desce logo ao desfiladeiro...
Ali há uma cascata... Entra na água e saia pelo outro lado...
Tem que entrar na água cada vez que a encontrar, para que o
amuleto te sirva. Desça ao fundo do desfiladeiro, entre as
pedras há um caminho; se agarrando aos ramos chegará
abaixo, ao remanso do rio. Entra também na água ali...
-E se o rio me levar?
-Pior será cair nas presas dos cães! Mas não tem por que te
levar. Por esse lado não é fundo... Segue por ele todo o momento
que puder, e quando sair, que seja pela outra borda. E então
corre, corre até o caminho. Ali há uma ponte, uma de pedra...
Ali se acaba Campo Real. Se chegar até ali, estará salva, estará
livre... Ande... Vá...!
Com mal contido impulso violento, com quase irrefreável
impaciência, Kuma fez sair Ana por aquela porta estreita,
dissimulada entre as mal unidas pranchas de sua cabana;
fechou-a depois, assegurando-a com um tosco fecho de
madeira, e se abaixou atrás do forno de barro, rezando trêmula:
-Que sua divina pessoa me proteja, senhor dos três
poderes! Pela água e o fogo, pelo céu e a terra!
-Por aqui se meteu! Estou seguro! -ouviu-se a voz de
Batista.
- Ampare-me senhor dos três poderes! -persistiu Kuma
cada vez mais espantada. - Ampare-me com o primeiro de seus
dons, que dome as feras! Ampare-me contra as unhas e contra
as presas!
-Aí está! -avisou Batista. E ordenou-: Francisco derrube
essa porta com a culatra da escopeta, Logo! Segure os cães!
De um salto subiu Kuma sobre a mesa, esquivando
milagrosamente a primeira investida dos ferozes animais.
Batista sujeitou pela coleira o mais feroz dos três cães,
enquanto os outros percorriam a cabana, farejando-a
furiosamente, escavando com as unhas o piso de terra junto à
porta pela qual Ana tinha acabado de escapar...
-Esteve aqui, verdade? - observou Batista. - Não negue.
Olhe como cheiram os cães! Pobre de você se a esconder!
Entrega-a!
-Não escondo ninguém! Juro-o... Juro-o! - protestou Kuma
assustada. - Aqui entra e sai muita gente... Não sei de quem
fala...
-Sim sabe! Sim sabe, porque ela vinha fugindo. É uma
donzela da casa grande... Se a esconder, pagará por ela!
-Não me bata... Não me bata! -queixou-se a feiticeira
espantada. - Agora que diz... Uma donzela da casa grande,
sim... Mas não entrou... Seguiu correndo para os barracões...
-Como! Não pode ser! Por ali vínhamos nós! O que é isto?
Ah, um lenço! Que ela tinha na cabeça! Esteve aqui, e este lenço
é dela. Responde! O que é isso?
-Isso? Nada... Uma porta...
-Efetivamente! - confirmou Batista, abrindo-a com um
formidável chute. - Francisco vá atrás dos cães. E você, maldita
embusteira, já voltarei a te dar o que merece!
Kuma se levantou com esforço; dando tombos, chegou à
porta, quase arrancou-a com um golpe brutal para que se
abrisse... Morro acima, seguindo o rastro que os cães farejam,
ia os perseguidores de Ana. Com gesto dolorido, levou a mão ao
escuro braço, onde o chicote de Batista deixou seu sangrento
rastro, e fechou seus punhos em gesto de fera rebeldia, de ódio
africano, selvagem e intenso:
-Maldito! Maldito dos pés à cabeça! Maldito você e maldito
o senhor a quem serve! Maldito Renato D'Autremont! Maldito
seu nome, sua raça, sua terra! Que o fogo leve sua casa e o
vento seu dinheiro! Que caiam suas árvores, que se sequem
seus campos, que não tenha nunca um filho de seu sangue, e
que um bastardo lhe arrebate sua herança!

-Ai, ai, ai, senhor Juan... Senhor Juan do Diabo! Bendito


Deus que o encontrei! Que desgraça, que desgraça tão grande!
-Desgraça, do que? Acabe de falar?
Desabada no centro daquele vestíbulo, que é ao mesmo
tempo era saguão, escritório e biblioteca na modesta casa do
advogado Noel, Ana tentava em vão explicar-se frente àqueles
dois homens que cruzaram um olhar sobre sua cabeça, como
duvidando da razão daquela mulher trêmula, gesticulando,
desgrenhada, com o vestido úmido e enlameada, muito cansada
para manter-se em pé, muita assustada para falar...
-Ai, meu senhor dom Juan do Diabo! Ai, meu senhor dom
Pedro Noel! Não posso mais... Morro...
-Quer nos dizer o que te aconteceu, moça? - perguntou
Noel- Tanto lamento sem explicação, passa-se de castanho
escuro...
-Ai, minha senhora Aimée... Tão linda e tão boa! Ela não
queria fazer assim... Ela não queria fazer isso... Que desgraça e
que injustiça! E tudo porque o senhor Renato foi atrás dela...
-Renato? - estranhou Juan sem compreender o que tentava
dizer a mestiça.
-Sim... Sim... Por que tinha que correr atrás, assim? Ela ia
se deixar cair devagarzinho, suave; ia se deixar escorregar do
cavalo ali mesmo, em frente à casa de Kuma, mas ele não a
deixou pegar esse caminho... Foi atrás dela, correu e correu, até
que se desbocou o cavalo, escorregaram suas patas... E zás! Por
ali se foram... -Um momento se interrompeu Ana, e de repente
começa chorar desesperada. - Por isso... Por isso me fizeram o
que me fizeram, porque ela estava morta...
-Quem estava morta? -perguntou Juan.
-Quem poderia ser? Minha senhora Aimée... Linda como
uma virgem, com seu traje branco e seu véu...!
-Morta Aimée? - sussurrou Juan, aniquilado. - Diz que
morreu Aimée?
-Começo a compreender - asseverou Noel. - Certamente
aconteceu um acidente, uma desgraça em que Aimée foi à
vítima...
-Sim... Sim... Com cavalo e tudo se foi ao fundo do
desfiladeiro - explicou a compungida Ana. - Eu não queria ver
mais! Corri e corri...! Eu sabia que tinha que ir, e recolhi
minhas coisas, porque o Batista, o Batista maldito... E veja...
veja o que me fez!
-O que fez? -indagou o advogado.
-Correu atrás de mim... Soltou os cães como se eu fosse um
animal!
-Soltou os cães atrás de você? - assombrou-se Juan. - Está
você ouvindo, Noel?
-É um lamentável procedimento que, por desgraça, ainda
se usa, embora o proíbam as leis - aceitou Noel com tristeza. -
Mas responda moça, por que fugiu?
-Porque iam matar a mim também!
-Por que diz "também"? - observou Juan. - Acaso Renato...?
-Ele teve a culpa de que a senhora Aimée se foi pela ravina!
Correu atrás dela como um louco... Levou-a até onde já não
podia correr e, claro está, foi para baixo. E logo, quando eu
estava rezando devagarzinho, ouvi que o Batista dizia a
Aninha... E o senhor Renato mandou que me prendessem...
Matar-me-ão a pauladas para que eu lhes diga...
-O que tem que lhes dizer? -perguntou Juan.
-O que você sabe senhor Juan, o que você sabe! O senhor
Renato me matará a pauladas para que eu diga a ele, e logo me
rematará para que não diga a ninguém mais... Esconda-me
você, que é bom, você, que não lhe tem medo do senhor Renato!
Matam aos poucos os malditos cães! Não deixe que cheguem...
Não deixe que me levem! Eu calarei tudo o que sei... Tudo, tudo,
se você me defender. Esconda-me, embora seja em seu navio!
Deixe-me com você! Não quero que me matem... Não quero!
Estava cansada de bruços no piso, chorando sem consolo.
Os dois homens se olharam em silêncio. Juan empalideceu, e
tremia um pouco as mãos do Noel, enquanto, do peito de Ana
saia a voz como um gemido:
-Não deixe que me matem senhor Juan! Se me pegarem,
me matarão sem remédio... Esconda-me aqui, me deixe aqui.
Aqui não vai vir me procurar Batista com os cães, nem o senhor
Renato...
-Talvez venham. Ana, mas não por você - augurou Juan. -
Acalme-se... Levante-se... Procure colibri e fique com ele. Não
apareça se ouvir gente estranha.
-Filho, o que propõe? -inquiriu Noel.
-Nada. Lhe darei asilo, já que tem tanto medo. Se o
cavalheiro D'Autremont é capaz de mandar persegui-la com
cães, como a uma fera; se forem lhe fazer pagar com a vida o
delito de saber o que todos sabemos acredito que é humano
protegê-la. Não lhe falhou o instinto vindo até mim...
-O que quer dizer?
-Não compreende? Logo Renato e eu estaremos frente a
frente. É inútil esquivar do destino... Ele virá a minha procura,
e eu farei com que me encontre!
Juan se ergueu com aquele gesto altivo e decidido que era
tão dele. Apertando os lábios, suas pupilas dilatadas, os punhos
poderosos fechados, todo ele repentinamente disposto para a
luta que pensou abandonar, e enquanto os olhos de Noel o
observam admirando-o, comentou:
-Mas tinha se proposto...
-O que importam os propósitos? Não está vendo que esse é
o caminho que marca minha estrela? Frente a frente estamos
desde crianças... Não compreende que por ele existir, eu paguei,
ao nascer, como um delito? Para que ele dormisse em berço de
ouro, para que ele vestisse roupas de seda, para que a sombra
de uma dor não molhasse a sua, minha vida foi um inferno...
Para proteger sua infância, o ódio de Sofía D'Autremont me
envolveu como uma nuvem negra, e quando quis a uma
mulher...
-Isso foi uma casualidade, uma desgraça, o que você
quiser. A que pagou com a vida suas loucuras, é a única a
quem pode fazer responsável...
-Ela me queria... Frívola, desleal, hipócrita, embusteira,
fosse o que fosse, era para a mim quem amava. Mas ele me
tirou isso... Tirou-me isso sem saber. Por quê? Por rico, por
poderoso, por ser o cavalheiro Renato D'Autremont, porque
nosso destino seguia cumprindo-se, e foi sua a mulher que na
realidade era minha...
-Não acredito que perdeu nada com isso. Além disso, ele
queria ser seu amigo...
-Meu amigo? Mentira! Sua amizade era falsa, nunca saiu
de seu coração... Entre as jóias e a fortuna que foi de nosso pai,
tinha herdado o remorso. Por livrar-se dele quis me ajudar, mas
me desprezava, desprezava-me tanto que só por pensar que
tinha sido capaz de me amar com amor de mulher, desprezou
também a Mônica de Molnar. Nisso já não é inocente; ali caiu
sua máscara... Uma Molnar apaixonada por Juan do Diabo
merecia mil mortes; merecia me pertencer, como o pior dos
castigos, e esse foi o que impôs ele. Jogou-me nos braços, como
se joga uma carniça a um cão.
"Dispôs de minha vida, como sempre. Pôde dispor, porque
tinha tudo: até o amor de Mônica. E por esse amor, aceitou ela
o sacrifício... caiu em minhas mãos como uma pérola que roda à
lama da rua, desprendida de um diadema. Se ela tivesse me
amado... Houve uma hora, Noel, um dia, um momento em que
nossa dívida tivesse ficado saldada. Sabe você qual foi? Na ilha
de Dominica, quando nos claros olhos de Mônica vi tremer um
sonho de felicidade. Era a estrela que brilhava no fundo do
poço, o raio de luz que iluminava minhas trevas, a flor que se
abria junto às grades de minha prisão... Era o prêmio, meu
prêmio, mas ele chegou para me arrebatar isso também... Ela
continuava amando-o, ao loiro e ditoso cavalheiro Renato
D'Autremont, bastante vaidoso para querê-la justamente
quando as circunstâncias a faziam impossíveis...
-Ela foi leal, Juan, não esqueça isso.
-Foi leal a si mesma, porque nela não cabe ação baixa ou
rasteira... Mas, por ele, trancou-se no convento; por ele, deixa
consumir-se sua beleza entre quatro paredes, e por ele, para lhe
salvar, para defendê-lo, junta as mãos e me pede que não o
ataque, que não o fira; que aceite viver agonizando, como ela
aceitou morrer em silêncio para que Renato D'Autremont, viva
ditoso. E ainda quer você que não seja um fermento de ódio o
que suba aos lábios só pronunciando seu nome? Até pretende
que possa perdoar e compreender?
-Só te aconselho que volte às costas a tudo isto. O passado
apaga-o, Juan. Já passou, não existe...
-O passado é a única coisa que temos. Somos nós mesmos
rastros de nosso passado, idéias, sentimentos... O que sou eu a
não ser aquele menino sem ventura a quem Bruno Bertolozi
nutriu com fel e veneno para futuramente castigar seu inimigo
ou triunfador, para vingança viva de sua afronta? Toda a dor, e
todas as humilhações, tudo que pôde sofrer um menino em sua
alma e em seu corpo, tive eu que sofrê-lo... Você acredita que
tudo já passou? Seriamente acredita? Diga-me isso me olhando
nos olhos, Noel...
Pedro Noel abaixou a cabeça. Logo, seguiu o olhar de Juan
que foi até a porta que levava ao interior da casa, e que de
repente se voltou com gesto decidido...
-Juan, aonde vai?
-Não se alarme. Noel. Simplesmente, satisfazer uma
curiosidade. Quero saber o que pensa, o que acha, o que sente
Mônica de Molnar. Quero saber se seu amor é tão forte que nem
o sangue de sua irmã, que hoje salpicou a Renato, pode acabar
com ele... Quero vê-la e ouvi-la!

-Catalina... Minha pobre Catalina...


-Onde está minha Aimée? Onde está minha filha? Quero vê-
la, morta ou viva!
-Verá... Verá em seguida... Conceda-se um minuto para
tomar fôlego...
Abafando com o lenço os soluços. Catalina de Molnar se
deteve, como se para se manter de pé precisasse reunir todas
suas forças, enquanto o olhar de Sofía esquadrinhava o vazio
interior da carruagem, e sua alma parecia respirar, ao
comentar:
- Mônica não veio? Está sozinha, minha pobre amiga? Já
vejo que o mensageiro que mandei foi veloz. Ordenei-lhe que
não se detivesse no caminho... Entretanto, não pensei que
pudesse vir tão rápido... Que carruagem é essa? Cirilo levava a
ordem de te servir... A que hora chegou?
-Não chegou, não vi ninguém, não foi por você que recebi a
notícia! Você não podia dá-la, não podia! Tinha que defender
seu filho! Já sei que foi Renato!
-Perdeu a razão? Não repita isso!
-Ela lhe enganava, zombava dele, mentia-lhe! Você sabe...
Sabe! Talvez pense que toda a razão é de seu filho! Eu não
discuto, não procuro razões... Nada mais quero que vê-la!
Minha Aimée... Minha menina...! Onde está? Onde está?
-Catalina, espere...! Catalina...!
Sofía não conseguiu alcançá-la. Como enlouquecida,
Catalina percorreu as largas estadias, as amplas galerias, os
desertos portais, a casa toda silenciosa e muda, sem que nem
as mãos nem a voz de Sofía conseguissem detê-la, quando de
repente, com ódio e horror, acusou:
-Você... Você...! Assassino!
-Não a escute, Renato! - suplicou Sofía aproximando-se
toda alterada. – Detenha-se! Que não a escute ninguém! Perdeu
a razão... Está enlouquecida! Não sabe o que diz!
-Onde está minha filha? Onde?
-Já descansa... - murmurou Renato com infinita tristeza.
-Clandestinamente? Para sempre? - gritou Catalina com o
espanto refletido em seu rosto branco. - Sem deixar que eu a
olhasse, que eu lhe desse um beijo de despedida! Você a matou!
Você a fez morrer, Renato! Talvez tivesse razão... Talvez tivesse
direito... Mas eu era sua mãe, e te amaldiçôo!
Renato retrocedeu tão pálido como se em suas veias não
houvesse sangue, e Sofía deu uns passos até o corrimão para
olhar com ânsia os grupos de amigos que vinham da igreja, e ao
voltar-se para a enlouquecida Catalina:
-Não grite assim! Vêm estranhos! Pelo próprio nome de sua
filha...!
-O que importa? Todos sabem que morreu, e que foi
Renato... Renato...! -persistiu Catalina chorando. - Minha
Aimée... Minha filha...!
-Vem gente! -advertiu Sofía desesperada. - Terá que levá-la
daqui, Renato, terá que...
-Mãe! Mamãe de minha alma!
Mônica acertou a sustentar entre seus braços o corpo
quase desacordado de sua mãe, e um momento mesclou
soluços e lágrimas, enquanto seguindo os passos de Mônica,
quase tão pálido e mudado como ela mesma, o Padre Vivier
chegava até o grupo...
-Clandestinamente... Clandestinamente... Sem que eu
tenha podido voltar a olhá-la! - protestou Catalina com
profundo desespero.
-O que? O que? - indagou Mônica tremendamente
indignada.
-E foi Renato o culpado, o causador! -insistiu Catalina. -
Foi Renato... Renato!
-Não é verdade! - recusou Sofía intimamente dolorida. - Não
posso permitir que continue repetindo esse absurdo! Você é
testemunha Padre Vivier...! Fale... Fale...!
-Renato a fez morrer! - seguiu dizendo Catalina-
Encurralaram-na, assassinaram-na, e logo me esconderam seu
cadáver! Sei... Sei...!
-Mentira! - gritou Sofía fora de si. - Não a escute, Mônica,
não sabe nada. A dor a deixou louca, mas é preciso que cale-se,
que não a escutem outros! Apelo para sua razão, Padre Vivier.
Você estava a meu lado... Você sabe...
-Catalina, minha filha... Acalme-se... Acalme-se -
aconselhou o sacerdote.
-Já chegaram todos! - disse Sofía. - Renato... Renato
Venha... Venha...!
Sua mão cravou como uma garra no braço de seu
angustiado filho obrigando-o a ir com ela, arrastando para a
escada que subiam já os amigos em despedida, ao mesmo
tempo em que Mônica segurava quase em seus braços sua mãe,
para levá-la às habitações interiores, enquanto comentava
altiva:
-Nossa dor é nossa, mãe, nossa de mais ninguém... Venha...
Ajude-me, Padre Vivier...
A porta se fechou atrás de Mônica e Catalina, e com um
tom desesperado Sofía sacudiu Renato obrigando-o a voltar
para a realidade:
-Renato, estava explicando a estes amigos que a pobre
Catalina perdeu a razão... Não é para menos... É absolutamente
natural... Tem que ser mãe para compreender...
-Em efeito, meus amigos... Devo agradecer a todos e pedir
que tomem um modesto refrigério antes de partir...
Renato conseguiu falar cortesmente depois de um esforço
sobre-humano, e Sofía se afastou deixando-os passar... Só
então sentiu que também ela desfalecia, mas um braço leal a
apoiou; uma mão, para os outros cruéis e ásperas, sustentou-a
com firmeza e respeito...
-Me leve a meu quarto, Batista. Não posso mais!
Capitulo Oito

-O que? Você disse que se foi?


-É natural! Trata-se de sua irmã, Juan. Além disso, vieram
procurá-la, enviaram por ela um próprio de Campo Real com a
notícia...
-Quem disse a você isso, Noel?
-A irmã Tornera, logo que entramos... Foi avisar à madre
superiora que você tinha chegado. Certamente, ao ir Mônica lhe
deixou seus encargos...
-Foi-se... Foi-se! - revolveu-se Juan com ira. - Seguro que
ele mandou chamá-la!
-Ele ou qualquer um de lá, tanto faz. O que outra coisa
podia fazer ante uma notícia como a que lhe deram? Seja
razoável...
Juan mordeu os lábios sem poder conter a onda de violenta
indignação que o embargava... Sem conseguir sossegar-se foi de
cima abaixo pela larga galeria de arcos que formava o primeiro
claustro, cravando a cada passo seus pés largos e firmes,
enquanto o coração parecia que ia arrebentar no golpe de seu
pulsar apressado, e bruscamente se voltou para senhor
advogado que lhe contemplava consternado:
-Vamos, Noel! Não quero escutar histórias, quero ver
Mônica cara a cara! Perguntar por que se foi desse modo sem se
incomodar em me consultar antes de partir. Ainda é minha
esposa, e eu a deixei aqui, não em outra parte. Para ela será o
mal, por me obrigar a ir procurá-la!
-Procurá-la? Procurá-la em Campo Real? Suponho que não
pretende...
-Por que não? Vou procurá-la onde tenha ido, e se tivesse
ido ao inferno, seria igual...

-Vá, por fim descansa! Os calmantes têm feito sua ação


piedosa, ao menos por um momento...
Mônica assentiu, com um gesto, às palavras do Padre
Vivier... Mais pálida que nunca, apertou os lábios, diria-se
imagem viva da desolação e a angústia. Estava de pé, junto à
janela que iluminava sua fina figura com as últimas luzes da
tarde, e até ela chegou o sacerdote, deixando os cortinados do
leito onde, como uma massa inerte, descansava na
inconsciência Catalina de Molnar.
-É terrível que tenha tido que fazer sozinha esta viagem,
filha...
-Assim ela quis Padre. Não me enviou um aviso, nenhuma
chamada, nem sequer me deu a notícia. Pegou a primeira
carruagem que um vizinho piedoso pôs a seu dispor, e saiu
como louca, sem consultar a ninguém.
-Mas o homem que avisou a vocês, o mensageiro que Sofía
D'Autremont mandou em minha presença para lhes avisar...
-Chegou a casa logo, ao não achar ali ninguém, foi ao
convento. Só pôde me dizer que minha mãe tinha saído para
Campo Real. Minha mãe não está louca, não está transtornada.
Sua dor parece desvario, mas não é. Entretanto, o senhor me
assegura...
-Só posso assegurar o que meus olhos viram. Eu estava
junto à dona Sofía. Se a algo que posso jurar, é que ninguém
empurrou a sua irmã no abismo, que nenhuma mão a
impulsionou ao menos em sua forma material. Nós a vimos
correr sobre o cavalo desgovernado, a vimos fugir como louca
pela perseguição... De Renato... Por fim, vimos o animal, sem
guia, correr para o abismo e saltar estrelando-se... Ele ia atrás
dela, não pode negar. Se, tinha uma razão para desejar sua
morte, ou se corria para detê-la e salvá-la, quem pode
assegurar, filha? Isso está só na consciência de Renato. Às
vezes correm transbordadas as paixões humanas... Mas, Renato
odiava sua esposa? Odiava-a?
-Oh, vá, Padre, vá! Agora não me pergunte... Tenha
piedade!
Mônica voltou-se, cobrindo o rosto com as mãos, e sua fina
figura tremia submetida à tortura insuportável daquela horrível
duvida...
-Acalme-se... E como diretor espiritual que te estou
perguntando. Queria te ouvir como se fosse à confissão, filha...
Se suas palavras pudessem me dar agora um pouco de luz...
-Sangue de minhas veias daria para saber a verdade! Não
compreende também a luta de minha alma, Padre? Não
compreende que estou morrendo, desesperada?
-Compreendo sua pena; mas se o assunto não te concerne
na realidade...
-Que não me concerne? Peço-lhe de joelhos que não me
obrigue a falar!
-Me perdoe... Compreendo que se sente transtornada...
Devo te deixar a sós e te recomendar a oração para que se
serene sua alma... Tivesse querido saber mais, ir mais seguro à
batalha que me aguarda... Sofía D'Autremont me espera. Ela
conta com meu testemunho para defender seu filho...
-Mas lhe acusam? Acusam realmente a Renato, alguém
além de minha mãe?
-Acusam-lhe muitos olhos maliciosos, muitos lábios que
calam... Mas mais que nada acusa a paixão insensata que
aparece em seus olhos ao te olhar... Por isso quero chegar à
verdade. O que se murmura, o que se acusa, é quase o de
menor importância, ao menos para mim. Minha missão não é
defender os corpos, a não ser salvar as almas, levar o remorso
ao coração dos culpados e lhes salvar do inferno pela dor de ter
pecado...
Olhou-a intensamente, lutando por penetrar no fundo
desse outro coração áspero e altivo, puro e atormentado, mas os
olhos de Mônica vagavam angustiados pela estadia, e o
sacerdote suspirou inclinando-se:
-Que Deus te dê o que minhas pobres palavras não podem
te dar: luz e valor, minha filha...
O Padre Vivier se afastou, e também Mônica deixou o
enorme quarto quase em penumbras... Junto ao leito de
Catalina ficava a escura sombra de uma criada nativa, e ela
saiu outra vez atormentada por aquele anseio de fugir, que
tantas vezes lhe atacou sob o teto patrício da suntuosa
mansão... Não tomou voluntariamente nenhum caminho, mas
seus pés lhe levaram pelo atalho que, depois da branca igreja,
chegava aos muros de pedra do cemitério dos D'Autremont... A
grade estava aberta... Ninguém se ocupou de fechá-la, depois do
precipitado enterro efetuado horas antes, e Mônica entrou,
seguindo os rastros que deixaram...
Um montão de flores, jogadas apressadamente sobre a
terra removida, é o que ainda marcava aquela tumba que
guardava a caixa de madeiras preciosas, forrada de brocado,
último estojo da flor venenosa que foi Aimée de Molnar... As
lágrimas aparecem nos olhos de Mônica... Seus lábios estavam
secos, mas um soluço suave brotou de sua garganta, junto com
sua piedade, ao sussurrar como em uma prece:
-Aimée... Minha pobre Aimée... O que fez para encontrar a
morte? Até onde chegou? Que Deus te perdoe como eu te perdôo
com toda minha alma!
-Mônica... Mônica...! Procurei-te como louco... Tenho que te
falar...!
Renato chegou trêmulo de emoção transbordada,
estreitando seus braços, suas mãos, sem que Mônica pudesse
evitá-lo, sem lhe dar tempo de recompor-se da surpresa que sua
brusca aparição lhe causou, de seu violento retornar ao
presente do passado tão longínquo em que emanava o
manancial de sua ternura...
-Por Deus, Renato, me deixe! Solte-me... Podem nos ver! -
livrou-se das mãos que a aprisionavam, esquivou o estreitar
daqueles braços que loucamente iam até ela, e seu olhar altivo
parou Renato-: Com que direito se aproxima de mim desse
modo?
-É verdade... Tem razão... Sempre tem razão contra mim...
Mereço todas suas recriminações... Mereço que se aborreça e
que me recuse, mas não que me despreze, Mônica... Não me
despreze, porque há em mim uma verdade que nivela tudo:
Amo-te!
-Não me serve seu amor! Não me importa! Agora mais que
nunca é verdade. E esta tumba...
-Eu não abri essa tumba! - saltou Renato impulsivo. - Eu
não quis que ela encontrasse a morte... Eu não a odiava... Odiei
há só uma hora, um instante, quando a amava ainda, quando
ainda não havia visto claro no fundo de minha alma... Odiei
àquela hora em que acreditei em sua traição, e nessa hora sim a
teria matado... Mas passou o minuto, esquivou-se ela do golpe...
Tudo foi contra você, tudo me voltou contra você, por um ódio
ainda mais feroz, mais implacável, do que me tinha acendido a
idéia de que ela, sendo minha esposa, enganava-me...
-O que diz?
-A verdade... Uma verdade que nem a mim mesmo queria
confessar, uma verdade que nunca disse até este momento...
Sim tomei direitos que não tinha, se cego de furor te entreguei a
Juan do Diabo em um anseio brutal de te castigar, foi
precisamente porque, sem saber eu mesmo, já te amava... Não
compreende? Eu mesmo não compreendi então... Sentia-o nada
mais, me queimando, me triturando as vísceras... Eu te queria
sem saber, queria-te desde criança... Você, mais consciente,
sabia que me amava, mas calou-se...
-Não volte a falar sobre isso; não revolva mais o passado.
Aquilo foi como um sonho...
-Aquilo foi um amor ao que renunciou. Sei, compreendo-o...
Aimée se aproximou de mim, tomou seu lugar, e você se
afastou. Se te tivesse afastado para outro amor, o ciúme me
tivesse despertado; mas se afastou sozinha, voltou-te fria e
longínqua...
-Tudo aconteceu como tinha que acontecer... Tudo está
como Aimée: morto, enterrado... Não é do passado que temos
que falar. Se algo tem a me dizer, que seja o que quero saber.
Como morreu? Por que lhe acusam de havê-la impulsionado a
procurar a morte? Só em sua consciência está a verdade; não a
esquive falando de um passado que já não importa...
-Para mim sim importa. Por esse passado te perdi; por esse
passado me recusas... Não há em mim uma culpa nova pela
qual deva me esquivar. Juro-lhe isso! Ela sozinha se preparou a
armadilha, caiu em suas próprias redes, foi arrastada por suas
próprias loucuras... Vivia entre mentiras, entre enganos, nem
sequer o filho que ia me dar era verdade...
-O que está dizendo?
-Minha mãe pode prová-lo. Aimée nunca me amou, em seu
coração não havia nada sincero que a justificasse. Teve a
loucura de ser perversa, e não é possível que nossa vida se
rompa pelo fantasma de uma culpa que não cometi que não
pensei cometer jamais... Não a matei, não tinha por que matá-
la. Ou pensa você, como disse sua mãe em sua loucura, que
havia uma razão para que eu a matasse? Nas últimas horas
procurei desesperadamente a verdade... Aimée foi culpada de
algo mais que de inconsciências e de frivolidades? Manchou
minha honra? Arrastou meu nome? Esses olhares que me
acusam, parecem proclamá-lo e, se for assim, preciso saber.
Não por ela, que está já está morta, mas sim pelo homem que
está vivo, por acaso ria de minha credulidade, mas pagou com
sua vida se é que aquela traição era verdade...
Com fera decisão falou Renato, fazendo gestos e justamente
naquele estranho lugar, de frente à tumba de Aimée recém
fechada, onde ainda não se murcharam todas as flores de seus
funerais, onde ainda parecia flutuar o perfume daquelas
pétalas, o intenso aroma da mulher que foi... E naquele lugar
onde suas palavras tinham um som de saudades, mescladas
com as frases de amor que acabava de pronunciar, com os
sonhos que evocava com o incontrolável transbordar de seu
amor por Mônica. E agora sua alma, amálgama infernal em que
se fundiam tão diversas paixões, e passava de uma a outra
como em um torvelinho de fogo, enquanto Mônica retrocedia
como se afogasse naquela corrente de sentimentos encontrados,
que juntos em seu coração explodiam... Em um minuto viveu
todos: desde seus sonhos desfeitos de criança, até parar junto à
tumba de sua irmã... Mas há um temor que é mais forte que
tudo, um temor que a fazia protestar e gritar:
-Você não pode fazer isso, Renato! Indagar, revolver,
rebuscar, é jogar lama sobre o nome da que já está morta, da
que pagou com sua vida, fossem quais fossem seus enganos e
suas faltas... Cem vezes mais do que pudesse você sofrer por
ela, sofri eu, e com a alma acabo de perdoá-la...
-Eu a perdôo; mas a ele...
-Se for para mim a quem ama como acaba de dizer, não
pode haver em seu coração esse ódio e esse anseio de encontrar
um pretendido rival... Se for a mim a quem ama, como
insensatamente me jura, não é possível que se importe tanto
com o que Aimée pôde fazer...
-Importa-me pelo que significa por isso me suja, rebaixa-
me e mancha aos seus próprios olhos... Uma mulher pode amar
a um homem que matou a outra para castigar uma traição com
sangue... Não acredito que possa amar e estimar ao que,
ultrajado e ofendido, esqueceu as ofensas e perdoou o erro... Há
algo entre nós que não podemos deixar que se destrua, que
temos que sustentar a todo custo, amando ou odiando, e meu
coração...
-Não é seu coração que fala. É sua soberba a que grita, e
essa voz, não quero escutar Renato. É...
-É que treme, já vejo... E ao tremer, sua própria angústia
afirma a suspeita que tenho enroscada na alma... O rival a
quem teria que procurar, para vingar as ofensas de Aimée, é o
mesmo homem ao que te entreguei em um momento de loucura,
e de cujas mãos lutam por te arrancar definitivamente... É
minha sombra negra, meu eterno rival, o inimigo que a
natureza e a sociedade me puseram, ao nascer, frente a frente:
Juan do Diabo!
-Não! Não! - refutou Mônica angustiada.
-Sim! Sim! Sua voz mudou, sua cor, seu olhar... Do que
tem medo? Teme por ele, ou por mim? Chegou a pensar que
pode me vencer cara a cara? Pensa como minha mãe, que eu
não sou o mais forte?
-Não penso nada, mas sim que perdeu a razão. Juan do
Diabo nada fez contra você. Nada fez, porque nada lhe
importa... Teria me abandonado no convento se me amasse?
Aceitaria, sem um protesto, essa solicitação de anulação de
casamento que para sempre vai separar-nos? Virou-me as
costas, nada lhe importo... Com o dinheiro que ganhou em uma
noite de jogo, prepara seus negócios para obter fortuna. Compra
barcos de pesca e levanta sua casa no Cabo do Diabo...
-Tudo isso faz? E como você sabe? Quem te mantém a par
de seus menores passos? Por que te interessa tanto?
-Oh! Jesus! -exclamou Mônica assustada.
-O que? Juan do Diabo!

Separaram-se bruscamente, com uma surpresa que para


Mônica era espanto. Como se tivesse conjurado seu nome, aí
estava Juan, o rosto avermelhado depois da corrida brutal que
obrigou-se a dar a seus cavalos, revoltos os cabelos, nu o duro e
largo peito, o traçado insolente e descuidado de seus piores
dias... Seu olhar ia como um relâmpago de Mônica a Renato.
Diria que os media que os apreciava pálidos e enlutados, e
desprezando com um gesto plebeu o porte senhoril que via nos
dois, comentou irônico:
-Vejo que não mudaram os costumes da aristocracia.
Quando morre um familiar, mesmo que nos pareça magnífico
que por fim esteja morto e enterrado, veste-se um de luto,
enxugam-se com discrição as lagrimas, e ficam a rezar frente à
tumba coberta de flores... Que bonito é tudo isto! Que
romântico! Tinha uma terrível curiosidade de saber se
continuavam assim as coisas nas altas esferas. Uma
curiosidade tão grande, que por ela fiz a viagem, e não me
enganei. Valeu a pena apressar os cavalos... A cena é
comovedora... Do outro lado da grade, chega à alma... Poderia
servir de tema a um pintor para seu melhor quadro...
-Juan... Juan...! -reprovou Mônica ruborizando-se.
-Estão pensando o que vão pôr na lápide? "Para Aimée,
irmã perfeita e esposa idolatrada"...
-Basta! - respondeu Renato furioso, - Estúpido... Vilão...!
-Não... Não... Não! Aqui não!
Mônica saltou até ficar entre os dois homens, abrindo os
braços, impedindo, com gesto desesperado, que se atacassem e,
ao contato de sua mão gelada e branca, Juan pareceu acalmar-
se, para voltar à amargura do sarcasmo:
-O lugar não é próprio, Santa Mônica tem toda a razão.
Mas bastaria que desse uns passos, Renato, para chegar a
outro lugar qualquer. Não te parece que devesse dá-los?
-Se estivesse armado... Eu não brigo a golpes, como um
trabalhador agrícola!
-É obvio... Você cruza a espada, mas com cavalheiros de
sua índole... Comigo não pode brigar, nem como cavalheiro nem
como trabalhador agrícola. Que posição mais socorrida! Terá
que suportar nela todos os insultos e todos os ultrajes...
-Canalha! Te buscarei em uma hora no lugar que indique!
Espere-me ali com todas as armas que possa levar. Defenda-se
como o que é, com dentes e garras, porque irei disposto a te
matar!
-Só ou acompanhado? - comentou Juan em tom
zombeteiro. - Quantos criados, pensa levar para que lhe
respaldem?
-Matarei você agora mesmo!
-Não... Não! Vamos, Juan! - suplicou Mônica, jogando-se
nos braços de Juan, e fazendo com isso que Renato parasse, ao
interpelar-: Não chegará a ele, não brigarão sem matar a mim
antes! Leve-me, Juan, leve-me! Sou sua esposa, tenho direito a
te exigir que o faça!
-Mônica...! - disse Renato fora de si, ante a atitude dela.
-Não se aproxime Renato, porque juro que te esmago -
ameaçou Juan em tom detestável. - Venha Mônica!
Renato procurou em vão... Nada tinha, a não serem seus
punhos inúteis frente a Juan. Seu olhar extraviado ia a todas as
partes, e por fim correu atrás deles como louco; mas, mais forte
e rápido, Juan já tinha chegado a estradinha, arrastando
Mônica, e um instante lhe bastou para tomar as rédeas,
fazendo-o arrancar, enquanto Renato, desesperado, gritava
enlouquecido:
-Não fuja não escape! Venha! Até com os punhos posso te
matar, maldito bastardo... Cão imundo...!
-Continua, continue Juan! - instigou Mônica com
excitação. - Não pare e não lhe escute, não pare e não lhe ouça,
não volte atrás... Jogarei-me no chão, matarei-me! Continue
Juan!
Lentamente, as mãos de Juan foram afrouxando as tensas
rédeas, até deixar que se detivessem os cavalos cansados...
Foram muito longe, pelo velho caminho que comunicava os dois
vales, e já caia à noite totalmente... Tudo estava silencioso e
havia solidão no áspero caminho da montanha... Só o ofegar
dos rendidos cavalos e um gemido que soava muito perto, no
peito da mulher que está a seu lado, como derrubada no
pequeno assento, de rosto escondido entre as mãos apertadas...
-Agora vêm às lágrimas, não é? Bom, suponho que é o
desabafo natural do mais complicado bichinho da criação: a
mulher... Não é verdade? - E apesar de angustiado, suplicou
suavizando sua amargura-: Por favor, se acalme! Afinal, não
aconteceu nada... Para que tantas lágrimas? Como sempre, já
conseguiu seu propósito. Manejou-me segundo sua vontade...
-Eu...? -balbuciou Mônica com estranheza.
-Sabe muito bem, Mônica de Molnar. Às vezes penso que
sabe muito sobre a arte de brincar com o coração dos homens...
Uma vez mais me fez afastar, ceder, deixar livre o campo...
-Mas me levando contigo! -advertiu Mônica com altivez.
-Oh, claro! Tinha que conceder algo ao bárbaro... Um
triunfo aparente para Juan do Diabo... Não chore mais... Não
tomarei a palavra. Sei bem que se agora esta comigo, a meu
lado, é pelo mesmo que tivesse se jogado do carro em marcha,
se jogado a vida: Para proteger Renato... Bom; seguimos para
Saint-Pierre?
-Como quiser Juan. Na realidade... Não sei nem porque
veio...
-Vim te buscar! - disse Juan com rudeza. - Não é lugar
para você o Campo Real; ao menos, enquanto for minha esposa.
Porque enquanto não se romper legalmente o laço que nos uni,
não dormirá sob o mesmo teto que Renato D'Autremont. É o
único direito que não renunciei!
Mônica se ergueu repentinamente, secou suas lágrimas
indignadas e acendeu suas bochechas, e com as pupilas
brilhantes disse a Juan, olhando-o frente a frente:
-Falas como se eu fosse uma qualquer!
-Se pensasse que é uma qualquer, não haveria quase
arrebentado os cavalos para vir te buscar. Pelo resto, não fiz a
não ser te agradar quando pediu, com direitos de esposa, que te
trouxesse comigo...
-Oh, Juan! Minha mãe ficou em Campo Real - recordou
Mônica de repente. - O Padre Vivier está junto a ela, mas este
golpe a enlouqueceu destroçou-a...
-Já ouvi dizer que está louca... Que outra coisa pode dizer
os D'Autremont para justificar-se? Sobram razões a Renato,
para fazer de pretexto o que fez...
-Não fez nada! -saltou vivamente Mônica.
Deu um puxão de rédeas quase involuntário, Juan voltou a
parar a carruagem, que já estava na parte mais alta da
montanha. Dali, em uma curva do caminho, divisavam-se os
dois vales: o de Campo Real, em sombras; o menor, iluminado
pela lua que aparecia sobre o mar...
-Por que está tão segura? Pediu-lhe contas?
-Podia não fazê-lo? Acaso não se trata de minha irmã?
Acaso não era para mim indispensável ter a segurança de que
as suspeitas com que lhe manchavam eram falsas?
-E essa segurança lhe deu isso tão somente sua palavra?
-Naturalmente que me deu isso! Por que fala nesse tom
odioso? Por que destila fel cada vez que fala?
-Talvez porque com fel me alimentaram Santa Mônica.
Nutriram-me com fel e vinagre, como a Cristo na cruz... E foi
precisamente para que comesse tortas com mel esse Renato
D'Autremont a quem defende tanto...
-Esse Renato D'Autremont, que é seu irmão!
-Diz isso também a ele? Costuma afirmar isso em frente à
dona Sofía? - comentou Juan em tom muito irônico, - Tome
cuidado, porque podem te acusar de difamação ante os
tribunais... Sabe que nem sequer sou um bastardo? Há uns
dias, revolvendo os papéis do advogado Noel, soube que os que
nascem como eu; são pior que os bastardos... Filhos do
adultério, malditos e apagados, sem nome de pai nem de mãe,
abolidos da terra... E um despojo assim, diz você que é irmão do
cavalheiro D'Autremont, senhor de Campo Real... Dá horror e
asco a vida, Mônica...
-Mas a vida não é só isso, Juan. Isso é mais uma parte da
vida... A vida é outra... A vida própria, a que cada um
forjamos... Que culpa tem alguém de nascer como nasce? Mas
sim de viver como vive Juan! Só por seus atos, julgo eu a, todos
os que... E até agora, você foi para mim um homem honrado...
-Muito amáveis essas palavras em sua boca - brincou Juan
com suave ironia.
-Não quero ser amável! - recusou Mônica exasperada. - Não
pretendo dizer coisas gratas, a não ser meus sentimentos, a
verdade do que penso pelo que levo na alma!
Com gesto distraído, Juan tornou a tomar as rédeas, e por
um momento contemplou o caminho que descia frente a deles,
serpenteando entre rochas, iluminado pela lua cheia que
aparecia clara... Se virasse a cabeça, se olhasse nos olhos de
Mônica, fixos nele, aumentados pelo desejo, veria um espelho de
sua alma e tudo mudaria ao redor dele... Se seu coração, cego e
surdo neste instante, percebesse o batimento do coração
daquele outro coração de mulher que tão perto dele pulsava,
acreditaria que amanheceria em plena noite, sentiria ao fim
saciado aquela imensa sede de amor e felicidade que enchia a
alma desde criança... Mas ele não virou a cabeça... Acaso tinha
medo de olhar Mônica cara a cara, de achar seu rosto duro e
frio, ou pior ainda, de ver em suas pupilas à imagem de outro
amor. Por isso, sem olhá-la, toucou o nervoso lombo dos cavalos
com a ponta do chicote e com uma profunda tristeza disse:
-Afinal, sempre me desarma... Na verdade, nunca há nada
que te reprove, Mônica. É pura e correta, ingênua e humana,
carne de abnegação e sacrifício...
-Não queria ser só isso, Juan...
-Certamente... Todos querem um lugar ao sol, nosso direito
à felicidade, mas a alguns nos nega o destino, como se uma
maldição nos condenasse para sempre às trevas...
-Para sempre, Juan? Acredita que não haverá alguma vez
luz em nossos corações, em nossas vidas? Acredita que não
amanhecerá jamais para nossas almas?
-Faz mal em nos unir em um plural. Sua alma e minha
alma vão por diferentes caminhos, Mônica, e que para mim não
há esperanças, não quer dizer que não as haja para você.
-Por que é tão cruel a vida, Juan? Por que nascemos para
padecer, para nos arrastar sobre nossas dores e nossos
pecados?
-Agora é você quem fala como não deve falar. Não acredito
que tenhamos nascido para nos arrastar. Temos que nos pôr de
pé a todo custo. Você, talvez para ser feliz. Eu, me sustentando
me basta, sabendo partir duro e direito deste mundo inóspito e
amargo... -de repente, deteve-se Juan, e observando sua esposa
se alarmou-: Mônica, o que tem? Está tremendo...
-Não é nada... Um pouco de frio... Um pouco de frio nada
mais...
A Mônica traíram as lágrimas que faziam tremer sua voz, e
a mão direita de Juan se estendeu para pegar as suas, trêmulas
e geladas, a confortando com seu calor vital, com seu roçar ao
mesmo tempo delicioso e áspero, enquanto as pálpebras dela se
entreabriam como para o sonho...
Outra vez a carruagem estava em marcha... Faz momento
deixaram atrás o albergue do caminho, onde se detiveram uns
momentos para tomar um refrigério, e o veículo, pequeno e leve,
rodou miserável como sem esforço por aquele soberbo tronco de
cavalos, cujas rédeas empunhavam as mãos do dono de Lúcifer,
com a mesma segurança que se fosse o leme de seu navio...
Ao brusco balanço da carruagem ao parar, Mônica abriu os
olhos adormecidos... Amanhecia, e estão no centro da cidade de
Saint-Pierre... A luz era imprecisa, mas bastava levantar a
cabeça para reconhecer o lugar, e se por acaso vê-lo não fosse
suficiente, aquele som dos sinos chamando a missa de
alvorada, muito familiar para ela, dissipava a mais leve sombra
de dúvida que pudesse ter. Com sua galanteria um tanto
zombeteira, saltou Juan da carruagem e estendeu a mão,
ajudando-a...
-Ai está seu convento. Não é nele onde deseja estar, agora e
sempre?
-Certamente. E como minha vida me pertence, por cima da
áspera farsa matrimonial que sustentamos...
-Não é muito dura essa frase, Mônica? - advertiu Juan sem
abandonar o tom zombeteiro.
-Com você a aprendi! Você foi quem o chamou dessa
maneira, como é você também quem me devolve ao meu
convento pela segunda vez!
-Suponho que é o que mais pode te agradar...
-Supõe muito bem. Para mim o convento, e para você a
absoluta liberdade: o cais, as casas de jogo clandestino, os
bares do porto...
-Essa é minha vida, Mônica, como a sua é esta. Eu não a
critico, nem você deve criticar a minha. Vamos...
-Siga seu caminho! Não é necessário que se incomode...
Jamais necessitei guardiães... Boa sorte, Juan do Diabo!
Capitulo Nove

-Batista! Batista! Um cavalo, agora! Está dormindo,


estúpido?
A pupila dilatada, os punhos apertados, acesos em uma
labareda de furor, alma e carne, cruzou Renato a larga galeria
de seu casarão senhorial, rumo à biblioteca que fora escritório
de seu pai, e atrás dele ia Batista, surpreso e humilhado...
-Senhor Renato, faz mais de uma hora que a senhora me
ordenou procurá-lo por toda parte...
-Diga que não me achou!
-É que estão aguardando esses senhores de Anse d'Arlets...
Acredito que é o juiz municipal e o secretário do tribunal... Em
nome das autoridades locais, parece que querem levantar uma
ata. A senhora deseja que você... Oh, senhor Renato! Cuidado! -
alarmou-se o velho Batista. - Essas eram as pistolas de duelo de
dom Francisco...
-Sei perfeitamente o que são e para que servem! Corre e
prepare meu cavalo! - Desprezando o estojo de madeira polida,
Renato pegou uma das armas que eram iguais, tirou-as da
gaveta, e a guardou no bolso detrás depois de olhá-la um
instante. - É a única coisa que tem com que se ocupar! Pensa
que não perdi já bastante tempo? Voa! E faça isso sem ruído,
pela escada deste lado! Nenhuma palavra mais, Batista!
-Como o senhor quiser...
Sozinho, Renato mediu com seus passos nervosos a ampla
biblioteca, agora quase em penumbra, e rebuscou na prateleira,
até encontrar algo que estava ali meio esquecido... Uma e outra
vez encheu o pequeno copo, daquele ardente rum antigo que
fazia famoso a Campo Real, e seus lábios sedentos o sorveram
com ânsia, acendendo nele mais sede quanto mais bebia... Uma
ira violenta o sacudiu, queimando como uma labareda, ao
pensar em Juan... Tinha que ir a seu encontro, tinha que
cobrar, em sangue, a humilhação que o fez sofrer... Cada
minuto que passava lhe fazia medir e calcular a vantagem que
ele levava. Até onde chegaria Mônica em sua loucura e Juan em
sua audácia? Enquanto bebia, apurando até o fundo a garrafa,
seus nervos se temperaram, sua fúria se faz mais profunda e
fria, e nela ia aparecendo os mais cruéis instintos como pontas
de lanças... Já seu coração era um mar de despeito; mais que o
amor de Mônica, atraia-lhe a vingança contra Juan... A porta se
abriu, e em sua soleira apareceu a encolhida figura do senhor
Batista...
-Graças a Satanás que chegou maldito!
-Um momento, senhor. A senhora...
-Afaste-se imbecil!
Com um brusco empurrão, Renato afastou o velho capataz,
e com um salto montou sobre o lombo do alazão que lhe
trouxera... Afundou as esporas nos flancos do animal que semi
desbocado começou a áspera ascensão... Ia para o desfiladeiro,
cortando pelas bordas e semeados... Já estava muito perto da
praça dos barracões... Deles chegava o lamento das tumbas...
Não havia fogueiras acesas nem danças sensuais... Duas
formas negras se retorciam em convulsões epiléticas, ao fúnebre
som dos tambores enlutados. É pela senhora Aimée...
Choravam por ela, rezavam por sua alma... Ou talvez a
invocassem, querendo conjurar sua possível vingança, sombra
de morte sobre o vale...
Renato cravou as esporas com mais gana... Queria fugir de
tudo aquilo, saltá-lo, enquanto a angústia de um calafrio lhe
percorria as costas... Tudo ficava para trás, mas continuava
escutando. Furiosamente castigou o cavalo, exigindo um esforço
mais do bruto, cujas patas escorregavam, e caiam arrastando o
cavaleiro, às mesmas portas de uma cabana desvencilhada...
Levantou-se, sem sentir a dor dos machucados. Frente a ele,
uma sombra negra, alta e fraca; retrocedeu através da porta, até
chegar no fundo da cabana. Sem saber por que, foi atrás dela...
-Você é Kuma, verdade?
A feiticeira respondeu com um gesto vago... Estava
abaixada de joelhos... Renato olhou muito de perto o rosto
negro, brilhante, os grandes olhos exagerados com expressão de
supremo espanto, e sentiu uma espécie de prazer monstruoso
vendo aquela infeliz suar e tremer...
-Você é Kuma, a que exaure e explora a todo em Campo
Real com suas beberagens, seus unguentos e suas mentiras...
Você é a que ajuda a embrutecer e a envenenar os imbecis dos
barracões, e até os próprios criados de minha casa...
-Eu não vendo veneno, meu senhor; vendo remédios bons,
de ervas do campo... Eu vendo remédio para os pobres,
remendo ossos, sorvo indigestões e ajudo a livrar-se da má
sombra dos defuntos aos que têm um remorso na alma. - olhou
de esguelha para Renato, arriscando tudo com ardilosa audácia.
Viu-lhe empalidecer, e compreendendo que se assustou
levantou as mãos juntas, lançando-se de cheio na partida-: Se a
alma da senhora Aimée te perseguir, meu senhor se aparecer
em sonho para te recordar o que lhe fez, se a ouvir como se te
falasse no ouvido, e a sentir atrás como um calafrio...
-Cale-se imbecil, enganadora, embusteira! - gritou Renato
fora de si, - Não me persegue nenhum fantasma nem me fala
nenhuma voz ao ouvido! A sombra de Aimée não tem nada que
me reclamar, pois não a matei. Não tenho culpa de que se
matasse! Mas a ti sim vou matar-te!
-Não, meu senhor, Não me bata mais...! -suplicou Kuma
em um grito de espanto.
Renato retrocedeu, estremecendo como se despertasse,
como se repentinamente percebesse o que fazia. Era a primeira
vez que maltratava alguém, a primeira vez que golpeava uma
mulher. Cambaleante pelos vapores do álcool e a ira, retrocedeu
até chegar a porta... Nesse momento, chegou apressado Batista,
que exclamou ao vê-lo:
-Senhor Renato! Oh, graças a Deus! Seu cavalo voltou
sozinho ao estábulo... Saí para buscá-lo rapidamente,
temendo... E Bendito seja Deus que não lhe aconteceu nada! E
era aqui aonde vinha senhor?
-Não! Sigo viagem... Em qualquer cavalo... Nesse mesmo
que trouxe... -De um salto se afirmou nos estribos,
empunhando as rédeas, mas obrigou a girar em circulo o
animal, e assinalando Batista a cabana de Kuma, ordenou-lhe-:
Faça com que saia do vale! Tire-a de minhas terras! Que se vá
de Campo Real, e que não volte mais!

-Juan, filho... Foi como um louco, e voltou como um tolo.


Correndo saí quando me disse Colibri que seus cavalos estavam
no estábulo. Procurei-te por toda parte onde imaginei que
poderia estar, e está que está aqui mesmo, ficou aqui, tão
calado e tão quieto como se formasse parte da casa...
Cruzados os braços, apertou entre os dentes o cigarro,
Juan ficou imóvel, absorto em suas escuras reflexões, desde
que voltou do convento, deixando o carrinho nas mãos de
Colibri, apareceu à porta de serviço da modesta casa do
advogado Noel...
-Quer me contar o que aconteceu? No que pensa Juan?
-Só estava pensando que Mônica muito em breve será livre;
já que o é Renato, posto que Aimée esta morta; e lhe quer, Noel,
quer-lhe ainda...
-Foi essa a conclusão que tirou de sua viagem? Ela não
quis te acompanhar, não é?
-Ela veio comigo. A trouxe...
-À força; e naturalmente, dessa façanha não pôde derivar
nenhum prazer, nenhuma satisfação para você...
-Não, Noel... Veio comigo porque quis... Foi ela quem pediu,
quem o impôs. Claro está que o triunfo não é meu. Foi à forma
que encontrou em um momento crítico, para me afastar, para
interpor-se entre minha possível violência e a sagrada pessoa de
Renato...
-Ela disse que o amava?
-Naturalmente que não me disse isso. Você ganha o
primeiro prêmio de ingenuidade. Noel. Como me diria isso. Era
esposo de sua irmã... Renunciou a ele voluntariamente, e
renunciou para toda a vida. Todo o orgulho, toda a dignidade de
Mônica, está em esconder esse amor, em escondê-lo dentro de
si mesma... É provável que até a ele mesmo o negue...
-Bom, filho, não é ouro tudo o que reluz...
-Se não reluz, Noel... Está escondido, e é esse afã que ela
faz em escondê-lo, o que me dá a justa medida. Mas, que
demônios! Tem que viver, tem que afastar os fantasmas...
Acredito que vou agora mesmo ver como estão as obras no
penhasco do Diabo...

Tranquila e satisfeita, como se nada lhe tivesse acontecido,


apagadas já de sua mente infantil as cenas de horror tão
recente. Ana se andava pela sala principal da modesta casa do
advogado, aquela que era ao mesmo tempo sala e escritório,
com porta e duas janelas à rua, e velhas prateleiras lotadas de
papéis e livros...
-Por que não me traz algo de comer, Colibri? O senhor
Juan disse que se ocupasse de mim, que me atendesse... Eu
estou aqui, porque ele me ampara e me dá essa coisa que
chamam de asilo, que é o mesmo que dizer que sou hospede... E
você...
-Cale-se! -interrompeu-a Colibri para ouvir um cavalo que
chegava e parava ali perto. - Parece que vêm visitas... Não ouviu
um cavalo?
-Ai, que medo! Não abra Colibri, ponha tranca na porta e
passa o fecho, grite que os amos não estão... -Louca de espanto.
Ana correu imprudentemente para a janela, abrindo-a de uma a
uma, e a figura que divisou lhe gelou o sangue nas veias. - O
senhor Renato! Não abra, Colibri!
Seu grito soou tardio. Também Renato D'Autremont a viu
através dos barrotes da janela, reconheceu-a e com um violento
empurrão abriu a porta, que estava sendo segurada por
Colibri...
-De maneira que é aqui onde esta, onde se esconde! Agora
compreendo...! E ele, onde está? Onde estão ele e ela?
-Meu patrão não está... juro, senhor Renato... Não está...
Saiu agora mesmo... Pode olhar toda a casa se quiser... Ele não
está aqui...
Colibri, assustado, retrocedeu tentando chegar a porta,
mas Renato D'Autremont já não o olhava. Seus olhos se
cravaram em Ana, que tremendo está abaixada de joelhos... Não
teve forças para esconder-se, para fugir, e quando ele se
aproximou, gritou espantada:
-Não me mate senhor Renato, não me mate! Eu lhe digo
tudo o que o senhor quiser saber! Eu digo, mas não me mate,
meu senhor!
-Por que fugiu? Como fugiu? Fala... Começa a falar! Muita
culpa tem que ter para que seu medo seja tanto... Você foi sua
cúmplice, verdade?
-Eu não fazia nada... Só o que a senhora me mandava... Eu
sempre tinha medo... A casa de Kuma eu ia tremendo...
-Para que foi à casa da Kuma? Para que ela foi ali?
-Para que lhe ajudasse. A senhora Aimée ia fazer como que
caísse do cavalo, e então Kuma tinha que recolhê-la e levá-la a
sua casa, e dizer a todo mundo que a senhora caiu do cavalo e
que por isso se perdeu a criança... Ai, senhor, não faça essa
cara! Eu não inventei!
-Ela inventou-o! Verdade? Naturalmente! Tudo foi uma
comédia, uma farsa... Por isso saiu de casa como saiu! Mas
você... Você...
-A senhora me mandou que avisasse, que dissesse com
muito alvoroço que ela se ia a cavalo... Ela queria que o senhor
pensasse que por sua culpa tinha perdido a criança... Para que
a quisesse mais... Não por maldade. E para que a perdoasse... E
não averiguasse muito...
-Averiguar o que? Que fazia enquanto eu a deixava
sozinha? -quis saber Renato.
-Pois nada, meu senhor... Tudo estava dando errado à
senhora Aimée... Não fez nada a não ser passear, porque aquele
oficial tão bonito se foi no navio. Para mim que o senhor Juan
lhe atravessou...
-O senhor Juan, o que?
-Já você sabe... A senhora Aimée estava louca pelo senhor
Juan... Mas não estava com ele... Ele não a queria, por isso
estava louca a senhora, louca procurando-o, e ele nada...
Nada...
-Procurando-o? Procurava Aimée a Juan?
-Não fique bravo, meu senhor... Não podia fazer nada... A
primeira vez que ele foi a Campo Real para levá-la.
-Levar-lhe então, foi por ela... Foi por ela...?
-A senhora teve medo. Jogou-lhe à senhora Mônica, mas
depois chorava e chorava. Pobre senhora Aimée! Sempre dizia:
"Não há outro como Juan". Perdoe meu senhor, mas como o
senhor quer saber...
-Sim, quero saber! - disse Renato furioso. - Fala, fala de
uma vez todo o veneno, me leve já até o fundo desse charco, fala
para acabar de me afundar na lama. Aimée amava Juan, era
seu amante, verdade?
-Ai, não, meu senhor! Ele não queria saber dela depois que
se casaram... Ele queria que fosse com ele antes de casar a
senhora com o senhor... Que então sim a queria o senhor Juan,
e lhe trazia presentes de todas as viagens, e ela o esperava em
uma praia, e dizia que então era muito feliz, muito feliz, porque
o senhor Juan deixava loucas às mulheres, meu senhor...
-Basta! Cale-se ou não poderei me conter até te pisotear!
-Ai, meu senhor! E eu que culpa tenho? A senhora Aimée...
-Não diga mais este nome! Ela está morta, morta e
enterrada... É a ele a quem tenho que procurar. Onde está?
-Eu não sei muito bem... Ai, meu senhor, não me torça
mais o braço! Foi para uma casa que está fazendo... Não sei
como chamam o lugar... Casa do Diabo, Pedra do Diabo, ou algo
assim... Mas não vá... Não vá... O senhor Juan disse... Ai...!
Depois de soltá-la, jogando-a no chão, Renato correu. Na
porta, mal preso às grades de uma janela, banhado de suor e de
espuma, aguardava seu cavalo e o montou sem parar para
calcular se o cansado animal resistiria ao último esforço.
Ferozmente cravou as esporas nos ensanguentados flancos, e o
nobre bruto arrancou rua abaixo...

-Colibri... Mas, é você realmente?


-Sim, minha senhora... Vim procurá-la. Primeiro subi pelo
muro... Olhei, mas não havia ninguém... Dei a volta, toquei na
porta grande... E a essa monja velha que apareceu, disse-lhe
que tinha que falar com a senhora, porque o que está
acontecendo tinha a senhora que saber... E tem que fazer algo,
minha senhora porque vão se matar...
-O que? Quem? Juan, verdade? Juan e Renato...
Mônica tremeu ao perguntar, e quase eram inúteis as
perguntas e respostas: podia ler tudo nos assustados olhos de
Colibri, no escuro pressentimento que sacudia sua alma...
-Sim, minha senhora. Como um diabo chegou o senhor
Renato. Eu estava começando a correr o ferrolho da porta, e ele
abriu de repente com dois chutes... Chegou como um tigre
procurando o senhor Juan, e como o senhor Juan não estava,
nem tampouco o senhor dom Noel, pois pegou à tola da Ana, a
que era criada da senhora Aimée, e a sacudiu como a um cão,
perguntando... E ela, claro está, disse-lhe tudo o que sabia.
Como um raio, o senhor Renato agarrou o cavalo e foi para lá...
-Para onde?
-Para onde lhe disse Ana... Onde estão construindo uma
casa... O patrão não queria que você soubesse minha senhora,
mas ele está fazendo uma casa lá onde viveu quando era
pequeno, onde às vezes parava o Lúcifer, no lugar que chamam
o Cabo do Diabo...
-E lá foi Renato?
-Para lá foi. Quando montou a cavalo, vi a sua jaqueta, e
metidas no cinturão levava duas pistolas... Seguro que para
matar ao patrão.
-Não, não o fará! Tenho que ir lá... Tenho que evitar! Não
pode correr entre eles sangue. O penhasco do Diabo... O
penhasco do Diabo...
-Abaixo na praça há carros de aluguel. Busco-lhe um,
minha senhora? Vai a senhora para lá?
-Sim, Colibri, corre e traga o carro. Irei em seguida e
saberei me interpor entre os dois, saberei impedir essa horrível
luta, seja o qual for o preço que tenha que pagar para
conseguir...
Rendido, extenuado, sem responder já ao cruel apresso da
espora, o cavalo que levava Renato já estava totalmente
esgotado, no lugar em que se bifurcavam os atalhos. Um, para
descer através das penhas até a mísera aldeia de cabanas que
se estendiam ao longo da pequena enseada... Outro, para subir
ainda mais entre os ásperos penhascos, até aquele promontório
negro com que a terra Martinicana desafiava a fúria dos
mares... Aquele penhasco nu, sobre o qual se elevava uma casa
em construção e uma cabana em ruínas... Aquele lugar de
beleza selvagem, conhecido como Cabo do Diabo... Por este
segundo caminho, Renato chegou ante a porta fechada daquela
casa em construção, e a golpeou com o ímpeto de sua raiva, ao
mesmo tempo em que gritava ameaçador:
-Abram logo; abram essa porta ou a derrubarei! Pelo
buraco da janela, que cruzavam travessas de madeira, apareceu
o rosto curtido de Segundo Duelos, que mudou de cor ao
reconhecer Renato. E o iracundo cavalheiro outra vez ordenou
enfurecido:
-Abre essa porta, estúpido! Não ouviu que chamo? Abre-a e
corre a dizer a Juan do Diabo, que Renato D'Autremont quer
ajustar suas contas, que se for realmente homem, não se
esconda... Que saia...!
-Mas, está louco, senhor? O senhor não está...
Em vão correu o trinco Segundo. Com um golpe Renato
soltou a fechadura improvisada, abrindo passo ao entrar como
uma tromba, desencaixado de cólera, perguntando:
-Onde está Juan? Onde está seu senhor? Que venha... Que
saia...!
-Juro-lhe, senhor, que não chegou...
-Veio, e não veio sozinho... Uma mulher vinha com ele. Se
for por ela que se cala, economize o trabalho. Diga onde estão,
ou te custará à vida!
Renato pegou a uma das pistolas que estava com ele,
apontando o peito do segundo de Lúcifer, que retrocedeu
desconcertado, deixando livre o passo, enquanto afirmava com
decisão:
-Juro-lhe que não sei nada, senhor... Não poderei lhe dizer
nada embora me mate...
-Juan... Juan... Não se esconda mais...! Apareça covarde...!
Juan...! -chamou furioso Renato, penetrando rápido pelas
habitações em construção.
-Segundo o que acontece? Onde está Juan?
-Senhora Mônica... Por Deus! - surpreendeu-se Segundo
gratamente, embora imediatamente tremeu assustado. - Não sei
onde está o patrão; mas o senhor D'Autremont chegou como um
louco. Arrebentou a porta, e tirou uma pistola para me matar.
Acredito que está louco de verdade! Afirma que a senhora e o
patrão estão escondidos na casa, e por aí dentro anda
procurando-os...
-Deixe-me com ele. Corre a esperar Juan, e faça tudo que
puder para que não entre até que tenha saído Renato.
Entendido? Anda... Vá...!
Mônica fez sair a Segundo da estadia, justamente no
momento em que Renato entrou, e suas palavras brotaram
como quase em um uivo.
-Mônica... Estava com ele... Era verdade...! - foi para ela
como um raio, mas a fria serenidade da Mônica lhe deteve... Na
fechada mão a arma pronta para matar. - Onde está Juan?
-Não sei Renato...
-Sabe... Sei que sabe! Sabe como todos, para salvá-lo. Mas
desta vez ninguém lhe salvará lhe matarei com toda razão, com
todo direito... Deixe-me!
-Não vou deixar-te! Se esse amor que tantas vezes me
juraste é verdade...
-Não pode duvidar! Mas não prossiga Mônica, não vai
deter-me com esse estratagema. Você sabe tudo, sabia tudo, e
se calou... Que ridículo me terá visto em seu interior cem vezes!
Que diminuído e miserável, frente a esse canalha que todo seu
prazer me roubou...!
-Ele foi o roubado, o enganado, o vendido... Ele não sabia
que Aimée estava comprometida contigo; ele não sabia nada
dela a não ser o que ela quis contar... Aimée jogou com os dois,
mas era Juan do Diabo o traído...
-Queria-lhe... Gostava dele! - ofendeu-se Renato furioso. -
Antes de ser minha esposa, foi sua amante... Sei toda a
verdade! Disse-me isso alguém muito estúpido para
dissimular... Arranquei-a de uns lábios que tinham muito medo
para me esconder alguma coisa, para me dissimular nada...
Aimée era amante de Juan!
-Foi antes de ser sua esposa, você o disse: antes de casar-
se. Enganou a ele, enviou-o a uma longa viajem em busca de
fortuna, e quando ele retornou feliz e triunfante, encontrou-se
com que a que acreditava dele, era já sua esposa.
-De onde tirou essa história?
-Por desgraça, aconteceu frente a meus olhos; Só quando
era tarde, percebi toda a verdade... Por meu sangue de irmã,
pelas lágrimas de minha mãe, que vi correr em defesa de Aimée,
calei-me quando deveria ter gritado. Por isso aceitei logo todos
os sacrifícios para salvá-la... Por isso me deixei arrastar como
vítima, para ser pisoteada humilhada, talvez morta nas mãos de
Juan. Por isso me submeti a tudo! Estava pagando, Renato,
estava pagando pelo delito de ter me calado... Pensa que posso
jurar em vão por seu corpo inerte? Pensa que posso blasfemar,
jurando em falso pela a memória de meu pai? Pois por tudo isso
e mais, juro-lhe, Renato. Ele não é culpado, não foi
responsável...
-Mas a amava! Sempre a amou, buscou-lhe sempre...! Que
claro vi tudo de repente... Como se abrissem cem véus com uma
só palavra...! Gestos, olhares, o champanha de minha noite de
casamento...!
A mão de Renato se fechou sobre a arma que ainda
empunhava; seus claros olhos pareciam relampejar com brilhos
de sangue... Como adivinhando seu horrível pensamento, as
brancas mãos de Mônica se apoiaram em seus ombros para lhe
sacudir com ânsia:
-Renato... Renato volte para a razão! Vendo-te assim, tenho
que pensar que só a ela amou...
-Amei-a em uma hora maldita, mas nada tem a ver com o
amor. É que não compreende? É que não mede todo o alcance
da brincadeira que me feriu e manchou? Eu era um homem de
honra... Como posso seguir sendo, se no olhar de um vilão há
zombaria por minha ingenuidade de marido? Como posso deixar
vivo Juan do Diabo, pensando no sorriso que se desenhou em
seus lábios quando soube que o despojo de sua paixão era a
esposa imaculada que eu tinha levado até o altar? Não posso
parar Mônica, nem por você que me desprezaria no fundo de
sua alma...
-Não... Não! Como poderia eu te desprezar se você... Se você
renunciasse a essa torpe, tardia e injusta vingança?
-Injusta? Mas, é que não compreende que nem sequer era
necessário saber o que sei, para procurar o combate final?
Quem te arrancou agora de meu lado? Quem te trouxe até aqui,
zombando do meu amor e de minha dignidade? E como não
tinha que zombar? Tem toda a razão, todo o direito de fazê-lo...
E esse direito não posso arrancar-lhe mais que lhe tirando a
vida... Lavando minha desonra com sangue!
Desprendendo-se das mãos de Mônica, Renato correu para
a janela, mal fechada com travessas de madeira, e logo foi à
porta para espiar com ânsia a possível chegada de Juan. Posto
que Mônica estava ali, pensava que ele não poderia estar longe;
mas nenhuma figura humana se divisou diante de seus olhos.
Bruscamente se voltou para Mônica, e advertiu:
-Aguardarei Juan o quanto tiver que esperá-lo! Não pode
demorar muito em querer aproximar-se de você.
-E quando tiver realizado sua vingança, se é que consegue,
não volte a se aproximar de mim, não volte a me falar, não volte
a me olhar, Renato. Pensa que não fez o bastante? Ainda quer
derramar mais sangue de que por força terá que nos separar?
-Não fale como se desse esperança a meu amor, Mônica! É
só um estratagema para me dominar... Nega que só me fala
assim para me obrigar a desistir de uma desforra na qual está
empenhada toda minha dignidade, a que não posso renunciar...
-Nem ao preço de mim mesma? - desafiou Mônica se
desesperando.
-O que disse Mônica? O que vai prometer? - perguntou
Renato trêmulo e pálido, com uma ilusão ardendo nas claras
pupilas.
-O que posso prometer? Não é acaso bastante, para você,
pensar que o sangue de Juan apagaria até o último rastro do
caminho que poderia nos aproximar?
-É toda uma ameaça, Mônica, e é dolorosa que só vá a seus
lábios uma ameaça, quando me viu tremer ao remoto brilho de
uma esperança de amor. Sim, sim, Mônica, só a preço de você
mesma poderia eu ser capaz...
-Não quis dizer o que imagina. Tão somente quis dizer que
não matará a Juan sem matar a mim antes.
-Não diga isso, não o defenda assim, porque só de te ouvir
falar como se o amasse, sinto-me enlouquecer. Não, não, agora
mais que nunca posso gritá-lo: não será nunca dele, não te
abandonarei nas mãos de Juan, atirarei como se disputam as
feras, e que venha se quiser esse bastardo...
-Não grite assim... Não fale desse modo!
-Só de um modo pode evitá-lo; só ao preço que sabe, e
posso jurar que preferiria que me pedisse até a última gota de
meu sangue. Mas se você não me prometer, se você não me
jurar...
-Não posso te prometer nada... Ainda sou a esposa de
Juan!
-Jure-me que te guardará como até agora te guardaste;
jure-me que esperará em seu convento esse decreto pontifício
que tem que te devolver a absoluta liberdade; jure-me que,
quando for livre, vai me permitir estar a seu lado, compensar à
força de amor e de ternura todo esse horrível mal e que
inclusive me perdoa... Jura-me Mônica...
-Só uma coisa posso prometer, e é como se jurasse Renato:
me guardarei como até agora... E não será grande trabalho me
guardar. Tem minha promessa. Vá. Saia por aquele lado!
Empurrou-o com ânsia, o fez sair, inclinando a cabeça para
passar sob os andaimes. Logo correu à porta totalmente aberta,
e chamou:
-Colibri... Colibri...!
-Aqui vem já o patrão, minha senhora! -avisou Colibri
aproximando-se de Mônica. - Quer que eu...?
-Quero que se cale. De quanto viu e ouviu, não repita
nenhuma palavra. É pelo bem de Juan, Colibri, por seu bem.
-Já sei minha senhora... Pelo bem do patrão é tudo o que a
senhora faz. Mas se o patrão me perguntar...
-Eu responderei a quanto ele queira perguntar. Saia por
aquele lado, Colibri, olhe se já vai longe o senhor Renato e volte
a me contar, mas só quando eu te perguntar... Anda!
Enquanto lhe empurrava lhe fazendo partir Juan está já
sob o portal da porta principal, e a olhou em silêncio, com largo
e enigmático olhar...
-Uma dupla surpresa, Mônica. Sua visita, tão inesperada
como a d Renato... Mas, onde está ele? Segundo me disse tinha
vindo me desafiar, que entrou forçando as portas, proferindo
insultos e ameaças...
-Entretanto, nem quis te esperar. Temo-me que Segundo
exagerou no relato - rebateu Mônica em um tom natural e
suave. – Foi embora, deu-te todas as satisfações que precisava.
Ele é o ofendido, Juan. Contaram tudo a ele. Não economizaram
nem a dor nem a vergonha de um só detalhe.
-Tampouco me economizaram detalhes: vi-os, apalpei-os, e
nem sequer foram contados.
-Não pode comparar-se. Você sofreu em seu amor, e ele em
sua dignidade. Sua ferida foi à desilusão; a dele, o escárnio. Sua
pena pôde te arrancar lágrimas; a dele... A dele é das que
pedem sangue. Mas não correrá esse sangue enquanto eu viver,
Juan! Basta com Aimée!
-Efetivamente, basta. Ele a empurrou à morte, verdade?
-Oh, não, não... Isso não! Foi um acidente desventurado. O
próprio Padre Vivier me disse. Empenham-se em manchá-lo, em
acusá-lo... Ele nada sabia de Aimée... Quase nada. Foi Ana, a
torpe cúmplice de minha pobre irmã... Encontrou-a em sua
casa ao ir te procurar... E a obrigou a falar. Bem posso imaginar
o que saiu daqueles lábios... Compreendo que Renato
enlouquecesse...
-Você sempre compreende Renato. Nele encontra desculpas
até para os crimes... Mas, não se preocupe, não tenho nenhum
interesse em julgar seus atos, ofendendo com isso seus
sentimentos mais íntimos e ternos. Para você não é um homem,
é um ídolo, um semideus, e os deuses têm direito a tudo,
verdade?
Amargamente Mônica apertou os lábios sem responder a
Juan. Que estranho e longínquo lhe parecia naqueles instantes,
que frio seu coração, que injustas suas palavras! Mas a horrível
batalha estava ganha. Podia respirar e tranquilizar-se. Renato
estava longe... Afastou-se levando na alma uma esperança vã e
uma promessa que repentinamente era muito ridícula.
Defender-se... Guardar-se, mas, de quem? Os olhos de Juan
passaram sobre ela como se escorregassem ao olhá-la. Imóvel
em meio da desmantelada sala, parecia aguardar que lhe
dissesse adeus, que se afastasse quanto antes, que era só uma
intrusa em sua vida e em sua casa. Sordidamente humilhada e
dolorida, Mônica se dispõe a partir, e explicou:
-Trouxe-me um carro de aluguel, que mandei me aguardar.
Deve estar perto...
-Fizeram-lhe partir há um momento, pouco antes que o
cavalheiro D'Autremont conseguisse milagrosamente armar as
linhas de soldados. Suponho que uma vez mais tirou partido de
sua fortuna e de sua posição...
-O que está dizendo? Não te entendo.
-Sinto muito, Mônica, mas não acredito que possa partir.
-Vai opor-se?
-Eu não... As leis que protegem o que se diz proprietário de
todas as terras que nos rodeiam: a aldeia, o caminho, a praia,
tudo lhe pertence e tudo está fechado para nós. Caímos em uma
armadilha. Sinto muito, Mônica, pois aqui não está habitável.
Uma vez mais pagará o tributo que te corresponde, por ser a
mulher de Juan do Diabo...
Com esforço, penetrou na mente da Mônica as palavras de
Juan, e sua vista se estendeu sobre tudo que a rodeava, como
se pela primeira vez o olhasse, como se só agora percebesse
onde pisavam seus pés, naquele famoso Cabo do Diabo que
tantas vezes ouviu Juan nomear... Este a levou até a porta. No
lugar em que se bifurcavam os atalhos havia uma linha de
soldados que se estendia cruzando o caminho carreteiro,
isolando a praia e o penhasco do Diabo de toda possível
comunicação com Saint-Pierre... Quase balbuciando, Mônica se
voltou interrogadora a Juan:
-Então, não é possível sair?
-Nem sair nem entrar. Não compreende? O senhor dessas
terras não nos dá permissão para pisá-las, e como não há outro
caminho, conta nos render por fome ou por cansaço... A luta é a
morte, e não me queixo. Eu a desatei, eu a procurei...
-A luta contra quem?
-Já sei que não sabe de minhas coisas nem tem por que
saber. Tampouco tem por que saber nada deste lamentável
montão de pedras que me deu seu nome. Permita-me lhe
mostrar isso -
Tomou-lhe a mão e juntos cruzam a soleira... Um brusco
movimento percorreu a larga fila de soldados, mas Juan sorriu
tranquilizando Mônica:
-Não se preocupe não lhe farão nada enquanto não
tentarmos cruzar essa raia branca que riscaram ontem os
oficiais. Com ela marcam o limite do que legalmente me
pertence. Tem graça, verdade? Depois de tudo, não me saí mal;
o Estado me outorga um pedaço de terra... Se a estas rochas
pode-se chamar terra. Mas, enfim, reconhecem que pertencem a
Juan do Diabo. A raia desce pelo fio das rochas, vê? E chega ao
outro lado. Portanto, e esta sim que foi uma surpresa, também
me pertence a praia, com essa velha aldeia onde fui mendigo...
Levou-a até a beirada dos escarpados, ali onde descia
serpenteando o atalho de cabras e se abria a pequena enseada,
tão cercada de falésias como um anfiteatro... Uns metros de
areia loira, um punhado de barracões miseráveis, e frente a
elas, o grupo escuro de homens e mulheres que levantavam a
cabeça, iluminados os olhos de esperança ao divisar de longe
Juan...
-O que significa isto? -perguntou Mônica intrigada.
-Significa que a aldeia é livre. Há um homem que
indevidamente lhes cobravam por estenderem ali suas redes,
por fabricarem ali suas míseras cabanas, por usarem esta
praia... Era um bom negócio, que terminou graças a minha
audácia. Sua resposta é nos sitiar, nos cercar... Somos donos
deste pedaço, mas não podemos passar, e ele defende seus
direitos com as armas desses soldados que, naturalmente,
respaldam-lhe. Compreende agora?
Um brilho de admiração ardeu nos olhos de Mônica. Sem
perceber apoiou-se no braço de Juan, e seus olhos iam do
formoso rosto varonil curtido pelo sol e os ventos, até aquele
grupo escuro e miserável...
-É isso o que esteve fazendo todo este tempo, Juan?
-Sim... Pensei redimi-los, mas sou um triste redentor.
Rompeu-se uma promessa, mas se levantou um muro...
Quando não puderem mais, se renderão. Isso diz Noel... E terá
que acontecer tudo que deseje o proprietário, que até será mais
cruel. Compreende?
-Quer dizer que se dá por vencido?
-Isso nunca, Mônica! Lutarei com todas minhas forças...
Até o fim... E se tudo se perder, como os velhos capitães;
afundarei com meu navio...
-Seu navio? - repetiu Mônica com uma longínqua
esperança.
-É uma forma de falar...
-Já sei; mas, ao dizê-lo, faz-me pensar... Fica o mar... Pelo
mar podemos sair, verdade?
-Poderíamos sair se tivéssemos navios. Os botes desta
gente são muito fracos para arriscar além daquele promontório,
e o Lúcifer, uma vez mais, foi confiscado... Mas, por que se
preocupa? Diria que se importa com tudo isto...
-Importa-me, Juan, importa-me...!
Como em contradição com suas palavras, afastou-se de
Juan, deu uns passos afastando-se ao longo das pedras afiadas,
e voltando as costas a aqueles olhos cravados nela, ficou
olhando as ondas baterem... Sentiu-o aproximar-se, sentiu o
desejo de voltar-se bruscamente para lhe olhar cara a cara, a
ânsia louca, absurda, irreprimível, de jogar seus braços em
volta de seu pescoço... Mas ao voltar-se muito devagar, o rosto
de Juan tinha uma expressão vaga, seu olhar se tornou
longínquo e bateu em Mônica como uma sacudida, surgindo
uma idéia insalubre, ao perguntar:
-No que pensa Juan? Acaso uma gruta na praia? -E com
ira contida, exclamou-: Então, deixo-te com seus desejos!
Foi-se com passo tão rápido que Juan não conseguiu detê-
la, como se mais que correr voasse sobre as arestas cortantes
daquelas rochas, negras facas afiadas ao golpe do vento e da
água; menos agudos, entretanto, que seus pensamentos; menos
dilaceradores que seus anseios...
Capitulo Dez

Renato penetrou até o centro do pátio de seu casarão em


Saint-Pierre, um tanto surpreso por encontrá-lo aberto,
desmontou, pondo as rédeas nas mãos do empregado cor de
ébano que foi a seu encontro... Mas antes que chegasse a
perguntar algo ao submisso criado, uma pequena figura cor de
cobre apareceu sob os arcos, e aproximando-se, indicou como
explicação:
-A senhora me enviou a preparar a casa... Acabamos de
chegar... Parece-me que a tempo. Parece o senhor muito
cansado, senhor Renato...
Sob as pálpebras que velavam seu escuro olhar, Aninha
examinou o cavalheiro D'Autremont que, em efeito, levava sobre
si os rastros de suas violentas viagens. Com trabalho o
empregado arrastou o cavalo extenuado, e os olhos de Aninha
subiram das botas cobertas de pó e de lama até o rosto úmido
de suor, iluminado o bastante como por um brilho de
felicidade...
-Pode mandar que me preparem o banho e o jantar,
Aninha...
-Sim, senhor... Imediatamente. Vai enquanto isso vai beber
algo? Um "plantador"? Eu mesma posso preparar-lhe –
-Obrigado, Aninha. No momento, necessito para outras
coisas suas mãos. Sei que são muito hábeis preparando ramos,
não? Colha todas as rosas na horta, busque um formoso vaso...
O mais lindo que houver na casa...
-Sim, senhor – acatou Aninha balbuciando surpreendida. -
E depois...?
-Colocará todas as rosas que colheu no vaso e o enviará
com uma carta que vou escrever...
Aninha ficou um instante olhando-o, como se não pudesse
desprender os olhos do fino rosto varonil que lentamente foi
transfigurando-se. Há muitos meses, não recorda uma
expressão semelhante no rosto de seu senhor. É como se juntas
batessem as asas ante seus olhos uma ilusão e uma esperança.
E os tristes lábios de Aninha contiveram com esforço o tremor
de sua voz ao perguntar:
-A que lugar devo enviar as flores, senhor?
-Ao Convento das Servas do Verbo Encarnado.
Renato D'Autremont cruzou o pátio rumo a seu costumado
refúgio, naquela velha biblioteca da casa de Saint-Pierre, tão
carregada de livros que ninguém jamais lia. E os olhos de
Aninha lhe seguiram, cheios de rancor e de angústia, de ciúmes
e de ardente curiosidade. Cravaram-se em suas costas até ver
desaparecer a alta e magra figura atrás das portas lavradas.
Logo, as palavras escaparam de seus lábios como um eco:
-Ao Convento das Servas do Verbo Encarnado...

-Colibri, venha para cá!


Sem dar tempo a que Colibri obedecesse seu mandato,
Juan foi até ele... Até ficar sobre os negros escarpados de onde
divisava a costa longínqua, a praia da aldeia e o largo mar, por
onde Mônica fugiu de seu lado daquele modo estranho, ferida
pela amargura de uma lembrança...
-Por que treme Colibri? O que te acontece? Em toda minha
vida detestei os tolos e os covardes...
-Eu não sou nada disso, patrão - protestou Colibri com
firmeza.
-Porque pensei que não era eu cai em graça. Também
pensei que podia ser leal... Mas me enganei...
-Ai, não, patrão, não diga isso! Eu sou leal, mais que leal.
Eu...
-Foi avisar Mônica no convento, verdade?
-Eu, meu senhor, fui avisar. Ela tinha mandado fazer isso,
e o senhor também tinha me ordenado obedecê-la e servi-la
como a ninguém... Está mal feito, meu senhor?
-Está bem. - Juan apoiou sua mão sobre a lanosa cabeça
do moço, e as escuras dúvidas pareceram desvanecer-se nos
grandes olhos brilhantes. - Só queria saber se tinha sido você...
-Eu mesmo, patrão. Quando o senhor Renato, feito uma
fera, disse que vinha a sua procura para matá-lo...
-Acreditou nele, meu pobre Colibri? Mudou muito desde
que começou a andar entre saias... Antes, quando te chamei, o
que tinha? Por que tremia?
-Nada de mais, tinha medo de que me perguntasse patrão.
O senhor me ensinou a dizer sempre a verdade. Eu,ao senhor,
não poderia lhe dizer outra coisa...
-Mandou-me dizer uma coisa por outra?
-Mandou que eu me calasse, patrão. E quando perguntam
a um, e um se cala o que sabe, é como se dissesse uma
mentira, verdade?
-Quase, quase... Mas, quem te mandou se calar?
-A única que pode me mandar depois do senhor, patrão.
Bom... Não sei se depois, ou antes, e essa era a confusão que eu
tinha na cabeça: que você o senhor é meu amo, e ela é minha
senhora, e o senhor me mandou que tinha que obedecer a ela
antes que a ninguém. E logo, o senhor me manda fazer outra
coisa antes que ela. A quem tenho que obedecer?
-Se ela te mandou calar, cale-se.
-É que eu queria que o senhor soubesse isso, meu senhor.
E ao mesmo tempo, não queria dizer nada... Porque ela disse
que era bom para o senhor que não soubesse...
A mão de Juan se endureceu, escorregando da cabeça ao
ombro do moço. Uns instantes permaneceram os dois mudos,
imóveis, mas ao robusto contato daquela mão, o garoto negro
respondeu como se não pudesse mais:
-Pela senhora Mônica eu me deixo matar; mas tenho que
lhe dizer o que disse ao senhor Renato, o que prometeu o que
lhe jurou... O que eu ouvi por trás daquela porta onde estava
espiando para ver se senhor chegava para lhe avisar, porque ela
me mandou que assim o fizesse. Disse-lhe, jurou-lhe...
-Cale-se... Os juramentos de amor são uma tolice. Todo
mundo os faz, mas só os tolos pensam reclamá-los.
Provavelmente, jurou amor eterno...
-Não, meu senhor, mas lhe disse que se defenderia... Que
se guardaria...
-Defender-se? Guardar-se? - repetiu Juan interessado.
-E que, esta mesma noite voltaria para seu convento, para
esperar ali que se rompesse não sei que laço...
Juan empalideceu até parecer branco suas torradas
bochechas. Um instante se acendeu seus olhos escuros, para
logo apagar-se. Ao fim, voltou às costas ao garoto, que atrás
dele deu uns passos totalmente desconcertados, e indagou:
-Patrão... Patrão... Está zangado? Seriamente não lhe
importava saber...?
-Não me importava nada. Além disso, nada do que disse é
novo Colibri. Em uma só coisa fez mal: em ir procurá-la. As
coisas de homens entre homens se arrumam Colibri, que não se
esqueça nunca mais!

Mônica desceu sorteando os perigos, através do atalho


quase impraticável que tomou ao azar, quando se afastando de
Juan quis se esquivar de toda possível companhia. Como que
fugindo de um perigo o busca mais e mais desceu através das
rochas até aquele mar, até aquele estreito pedaço de praia, tão
parecido com as léguas mais acima que se abriam perto de sua
casa. Só que ali o mar era até mais violento, mais encrespado...
Mal deixava a margem para uma estreita passagem de areia, e
era como um concerto os seus rugidos trovejando quando se
afundou naquela fenda onde Juan, quando criança, escondeu
seu barco... Não, nada se parecia na realidade com aquela parte
da natureza selvagem, a gruta coberta de musgo, de piso loiro e
brando... Entretanto, por que a obcecava aquela paisagem? Por
que cada onda que se arrebentava lhe soa como um eco da
paixão por Juan...?
Amor... Paixão... Loucura... Sim... Com loucura... Assim se
amaram... Assim continuava ele amando sua lembrança... Sua
lembrança mais forte que tudo frente a este mar...!
Recostou-se contra as duras rochas. Fechou os olhos e
através das pálpebras que se avermelhavam os últimos raios do
sol que morria, o fantástico sonho de seu ciúme ia tomando
vida, forma, imagens... É como se sentisse renascer um passado
que não conhecia, como se loucamente recordasse uma cena
que jamais presenciou, mas que mil vezes imaginou: Aimée nos
braços de Juan!
Uma onda gigante se arrebentou muito perto, banhando a
mulher enlutada que em êxtase doloroso sonhava. E ao golpe
gelado da água, os olhos de Mônica se abriram como se do
inferno voltasse para a terra: uma áspera terra em sombras já,
sobre a qual se transbordavam suas lágrimas, tão amargas
como as águas daquele mar que a envolvia...
-Senhora Mônica... Senhora Mônica...! Onde está?
-Aqui estou! Quem me chama? O que querem?
Saltando sobre as bicudas pedras, com sua agilidade de
marinheiro. Segundo Duelos chegou junto à Mônica, e parou,
contemplando-a por um instante, mudo de surpresa... Desceu
quase até o fundo daquela horrível greta que quando o mar está
calmo faz às vezes de embarcadouro.
Agora, as ondas gigantes se precipitavam rugindo no
canhão de pedra e, golpe a golpe, suas espumas banhavam o
penhasco por completo. Molhado estava o vestido de Mônica,
geladas suas mãos, grudados ao rosto umedecido os molhados
cabelos, e a tênue luz do farol, que Segundo levava na mão,
brilhavam seus claros olhos sobre o rosto pálido e decomposto...
-Caramba! Bom susto me deu! O patrão perguntou pela
senhora e me mandou chamá-la... Dei a volta inteira nos
penhascos, e Colibri pelo outro lado, procurando-a também...
Mas, como íamos pensar que se colocou neste buraco? Nem
sequer sei como pôde descer até aqui...
Lentamente, Mônica se tranquilizou, foi retornando de seus
dramáticos mundos interiores, frente ao rosto curtido, rude e
ingênuo, de Segundo Duelos, e estendeu o olhar contemplando
a sinistra paisagem que lhes rodeava...
-Tivemos medo de que tivesse querido passar a linha de
soldados, e nas mãos desses brutos... Bom, não quero nem
pensar. Pela tarde golpearam a duas mulheres da aldeia. São
uns selvagens, patroa. A senhora diga que ainda não o disse ao
patrão, porque quando ele souber... Conheço-o bem e sei como
é... Venha, patroa, venha! Qualquer onda destas arrasta um... A
senhora está já totalmente molhada, e vai fazer lhe mal... Tem
que retornar em seguida tomar algo quente e trocar de roupa...
Vamos...
Estendeu a mão para ela, mas não se atreveu a tocá-la, a
interrompê-la quando Mônica parecia inundar-se em uma
intensa luta contra seus próprios sentimentos... Bruscamente,
ela parece decidir-se:
-Segundo você sabe remar e dirigir um bote, verdade?
-Tudo o que qualquer outro homem faz no mar, faço-o eu
também. É meu ofício, patroa...
-Não seria capaz de me levar esta noite a Saint-Pierre?
-A Saint-Pierre em um bote? - estranhou Segundo no
cúmulo da surpresa. - Com este mar? Com este tempo?
-Uma vez desembarcaram de Lúcifer em um bote pequeno,
com um mar como este. Lembro-me perfeitamente...
-Recordará que foi o patrão... Com suas próprias mãos
tomou os remos...
-Antes você disse que tudo o que outro homem faz no
mar...
-Ah, caramba! Mas não contei com o patrão ao dizer isso.
Ele, no mar, é mais que um homem. No mar e na terra, patroa...
E isso a senhora sabe melhor que ninguém...
-Talvez... Mas não é esse o caso... Trata-se de que você não
se arrisca a me levar.
-Não, não estou louco. Seria tanto como jogá-la a essa
greta, de cabeça. Perdoe-me, patroa, e me peça outra coisa.
Temos ordem do patrão de obedecê-la sempre, mas isso sim que
não pode fazer-se... -E mudando, de repente, exclamou-: Oh... O
patrão!
Tinha-o visto levantar a lanterna. Estava perto, um par de
metros deles somente... Não usava farol nem lanterna, e sua voz
trovejou como do leme de seu veleiro:
-Saiam daí logo... Não vêem que está subindo a maré?
Qualquer onda destas os leva... Rápido... Vamos...! Fora daqui!
É muito perigoso este lugar!
-É o que eu estava dizendo à senhora, patrão... -Juan
arrastou a Mônica, sem lhe dar tempo para protestar, a
esquivar as mãos de ferro que a levantavam como uma leve
pluma, fazendo-a subir através das pedras, e a levava até a
cabana em ruínas; depositando-a sobre um banco de madeira,
quase o único móvel que havia ali. Poderia parecer uma cova se
suas paredes não estivessem branqueadas, e escrupulosamente
limpas seu piso de terra. Dois faróis de navio a iluminam com
sua luz dourada e ardia um alegre fogo no tosco braseiro que
está junto à porta...
De seu banco, Mônica o olhou em silêncio. Tornou a vestir
roupas de marinheiro, aquela roupa que, longe de lhe deixar
mais rude... o fazia luzir mais flexível, mais esbelto, lhe dando
um quente e inquietante atrativo. Mas em seus magníficos olhos
italianos, a soberba pôs sua expressão de desdém mais
profundo... Entretanto, acendeu-se de uma paixão estranha
quando olhou Mônica longa e intensamente...
-Por que não se aproxima mais do fogo? Está tremendo,
totalmente molhada, e não acredito que haja quem possa te
emprestar nem um vestido entre as infelizes da aldeia...
-Não precisa... Assim estou bem... Não se preocupe mais
por mim...
-Não me preocupo, mas prefiro não dar ocasião ao belo
Renato para dizer que te assassinei em minha cova, em meu
penhasco do Diabo...
-Juan! Suplico que deixe o assunto...
-Contigo é preferível deixar todos os assuntos. Acredito que,
em efeito, não temos nada a falar. Sou eu quem inutilmente se
empenha... Ora...! Para que seguir?
Mordeu os lábios com raiva, e Mônica sentiu um estranho
alívio frente ao espetáculo de sua surda ira... Não sabia por que
se sentia agora contra ela agressivo e violento, mas aquela
mudança lhe produziu um absurdo e áspero consolo... Sim,
preferia que ele fosse assim. Mas, por que essa irritação contra
ela? Acaso escutou o que propôs a Segundo Duelos? Ou
guardava rancor por aquele perigoso passeio? A voz de Juan
chegou, como respondendo a suas perguntas:
-Vou sair para que tire a roupa e tente secá-la no calor do
fogo. Logo, pode se deitar em uma dessas redes e tentar dormir.
As noites são longas no Cabo do Diabo, e não sabemos quantas
teremos que ficar aqui. Já sei que faria qualquer disparate com
intenção de se evadir, mas não permitirei que corra o menor
perigo. Serei a prover os meios racionais para te tirar desta
ratoeira, se é que as coisas vão continuar assim. Mas enquanto
isso eu não consigo, terá que se conformar. Ouviu?
-Perfeitamente. Não sou surda... Posso ouvir qualquer coisa
que me diga.
-E espero que obedeça quanto eu ordenar, posto que
estamos quase em estado de sítio, e tudo tem que mover-se
como em um navio em alto mar, à minha voz.
-Um navio em alto mar? - repetiu Mônica em tom de
zombaria.
-Sim. Acabaram-se os passeios noturnos, as descidas ao
quebra-mar e os projetos descabelados, como o que fazia com
Segundo.
-Já vejo que nos escutava...
-Ouvi-lhes, que não é a mesma coisa. E para cortar o mal
pela raiz, não sairá da cabana sem minha permissão... Prefiro te
aprisionar a ter que te sepultar. Estamos rodeados de maiores
perigos do que imagina...
-Não é um pretexto para me vigiar?
-Seu guardião vou ser eu mesmo. Contigo não posso
confiar nem dos melhores... Embevece-os, engana-os. Ele
mesmo Segundo e Colibri, acabam sempre fazendo o que você
manda o que você diz. Tinha ordenado arrumar a cabana para
você, mas teremos que compartilhá-la... Mas não se assuste,
porque não há motivo de alarme. Menos espaço havia na cabine
de Lúcifer, e nem por isso me aproximei de você.

-Que não está no convento? Que inclusive não chegou ali?


O que diz Aninha?
-É o que disseram a Cirilo. Ele deixou as flores e a carta...
Não sei se fez bem. Deixou-as, porque entendeu que a senhora
Mônica não demoraria, mas disse que ao sair, na própria
esquina, ouviu falar dos acontecimentos no Cabo do Diabo...
Parece ser que um chofer trouxe a notícia, um chofer de aluguel
que tinha levado à senhora Mônica ali... Esse homem foi o que
disse...
-O que disse?
-Estava furioso. Os soldados o jogaram dali lhe fazendo
perder a viagem de volta, e lhe obrigaram abandonar sua
cliente. Parece ser que o dono do imóvel, por onde se chega até
ali, fechou o caminho. Não sei até que ponto pode ser verdade
ou mentira, porque também ouviu dizer Cirilo que o senhor
vinha desse lugar... E quando nada advertiu...
-Deixaram-me passar... Tinha soldados, mas me abriram
passo... Agora recordo, sim! Então, Mônica... Não, não é
possível! Irei agora mesmo...
-Ao Cirilo asseguraram que o assunto era grave, que havia
uns pescadores em rebeldia, e que o próprio governador havia
dito...
-O carro! Um cavalo... Em seguida! Vou procurar Mônica,
tirá-la dali... E não haverá ninguém que me impeça!
-Renato... Filho...!
Renato D'Autremont se deteve, mal dominando seu
desgosto e sua ira, enquanto chegava Sofía, até apoiar as mãos
em seu peito...
-Falaremos mais tarde, mamãe... Agora não é possível...
Não sabe o que acontece!
-Sei. Acabo de falar com Cirilo... Por isso quero te falar, que
pense um momento antes de ir assim... O que ocorre é grave,
muito grave...
-Quanto mais grave seja, mais rápido preciso agir...
-Não fará a não ser te expor inutilmente em evidência. Os
soldados têm ordem de atirar contra tudo o que se aproxime da
linha.
-Já a cruzei uma vez e não aconteceu nada. Tenho certeza,
que não dispararão contra mim.
-Passou há umas horas... Agora tudo é diferente... Todo
Saint-Pierre tem os olhos fixos nesse desventurado assunto. O
que Aninha ia dizer-te é que o governador saiu para lá.
-Uma razão mais para que eu não tenha inconveniente...
-Mas, não percebe que sua atitude levará até o limite os
falatórios?
-O que importa, quando se trata de Mônica? Por mim foi ao
Cabo do Diabo! Por mim está sitiada entre inimigos! E pretende
que a abandone, mãe?
-Pretendo que tenha prudência, que evite o escândalo, por
ela mesma. É que se esquece já do que as pessoas pensam das
suspeitas que flutuam sobre você? Que não seja eu a que tenha
que te recordar que o sangue de sua esposa está fresco ainda...
-Que pensem o que quiserem que digam o que quiserem de
mim! Encontrei Ana, interroguei-a... Fez-me de brinquedo de
seus caprichos, zombou de mim e de você, mãe. Fez-se vítima
da mais sangrenta das brincadeiras. E espera me deter, dizendo
que seu sangue está fresco ainda? E pensa que o respeito
humano me impedirá de ir aonde o dever de meu verdadeiro
amor me chama? Já não há nada que me obrigue a calar que
quero a Mônica! E ela me quer. Deu-me entender isso, tenho
seu juramento e sua promessa... Considero-a já como minha
noiva!
Sofía D'Autremont correu para a porta lateral por onde
saia, apressado Renato... Franqueou a portinha para aparecer
até a rua, cuja luz mudou como se uma grande nuvem
avermelhada escondia por um instante a viva luz daquele
ardente meio-dia. De repente, o estampido de um trovão surdo e
longínquo, assustou-a... Procurou com o olhar a quem
interrogar, mas a ninguém divisou naquela tranquila rua do
mais velho e opulento bairro de Saint-Pierre... Ao suave ruído
que parecia soar sob a terra, o céu se avermelhou um pouco
mais, e depois empalideceu... Mas já Sofía não olhava o céu,
não levantava a vista até o áspero topo de Monte Briguei...
Vulcão adormecido desde sessenta e três anos atrás... Não
temia nada do gigante terrível em cujos pés estava a cidade
populosa e opulenta, ambiciosa e febril, cheia de lutas e
paixões... Só olhava o luxuoso carro que cruzava frente a ela em
uma corrida insensata, guiado pelas mãos de seu filho... Só o
fogo das paixões desatadas parecia sacudi-la, ao sentenciar:
-Tenho que defendê-lo... Tenho que salva-lo de si mesmo!

-Viu, Segundo? Ouviu os três trovões?


-Sim... vi e ouvi... Deixe-me tranquilo...
Acotovelado na janela mais alta, olhava o caminho, a lente
de longa vista estendida. Segundo Duelos observava o ir e vir de
uniformes atrás da linha guardada por soldados, entre o
cortante espinhaço das escarpas e o apertado verdor do espesso
bosque...
-Me deu medo, pois esses trovões não foram no céu. Eu os
senti como debaixo das pedras, como se o mar entrasse até aqui
mesmo por debaixo do piso... E o sol ficou feio...
-Ficou feio, mas já está bonito. Quer me deixar tranquilo,
Colibri?
-E você não vê lá encima, no monte? Volte à lente e olhe,
Segundo.
-O que tenho que olhar, porque o mandou o patrão, é aos
soldados, que não estão precisamente lá encima.
-Mas olhe um momento... Viu alguma vez uma nuvem
negra como a tinta? Há uma nuvem pequena, negra... Olhe...
Outra! É o monte que joga nuvens por cima! O que é isso,
Segundo? Há gente ali?
-Gente em Monte Briguei? Não diga tolices. Não vê que não
se pode subir? Nem até a metade sequer ninguém chegou
nunca. O Monte Briguei era um vulcão, mas se apagou quando
nem você, nem eu, nem minha mãe sequer, tínhamos nascido.
Minha avó diz que o viu arder uma vez quando, era jovem...
-Ah! Sim? Ardia a montanha? E como ardia?
-Jogava pela boca pedras acesas e uns rios de fogo que
acabaram com todas as plantas por ali. E dizem que tremia a
terra e que as casas caíam...
-Já se apagou a nuvem, Segundo... Apagaram-se as duas! -
assinalou Colibri com certo entusiasmo.
-Sim... Apagaram-se as nuvens, e você me distraiu -
queixou-se Segundo, mal-humorado. - Onde se meteu aquele
carro e aqueles soldados que estavam no caminho? O patrão me
mandou olhar daqui para onde foram. Olhe a ver se isso
importa mais que as nuvens de tinta. Agora, se me perguntar,
terei que dizer que por fazer caso a você...
-Segundo... Enguia... Martín...! -interrompeu-lhe a voz de
Juan, que chamava imperioso.
-O que acontece, patrão? - perguntou Segundo
aproximando-se sufocado. Todos correram para a porta onde a
voz de Juan os chamava com um grito. Também, pelo caminho
da praia, subiam os pescadores mais jovens, empunhando
tochas, remos e facas, como suas únicas armas disponíveis...
-Olhem todos... Olhem...! -assinalou Juan exaltado. - O
governador acaba de ir-se... Aquela nuvem de pó é seu carro
que se afasta pelo caminho. Recusou o encontro que pedi,
negou-se a escutar nossas razões, para nos ouvir; mas continua
abrindo sarjetas e levantando cercas... Negou-nos até o direito
de pedir justiça! Mas não vamos consentir! Se não quiser nos
ouvir, arrasaremos esses soldados policiais e faremos a justiça
por nossa própria mão...
-Patrão... Olhe um carro! -avisou Colibri.
-Vem um carro... Sim. Mas não o do governador... É um
carro pequeno - explicou Segundo.
-Detêm-no! Não... Já lhe abrem passo, mas não segue!
Juan avançou, descendo a saltos pelos ásperos penhascos.
Queria reconhecer o homem jovem, vestido de branco, que de pé
na boléia do carro parecia discutir furiosamente com os
soldados policiais... Depois dele correu Segundo, que chamou:
-Patrão... Patrão, aonde vai? O que é o que viu?
-Esse homem é Renato D'Autremont! Quero saber o que é
que veio buscar aqui!
-Juan... Juan...! -a voz de Mônica o feriu, obrigou-o há
parar um instante, voltando à cabeça para vê-la correr para ele,
gritando-: Juan! Não... Não vá lá! Não se aproximará dele... Não
posso consenti-lo!
-Ele vem me buscar!
-Não a você!
-Pior, se for a você a quem se atreve a buscar em minha
presença! Juro-te que...! Deixe-me, Mônica!
Um momento se desprendeu das mãos de Mônica e, partiu
para a linha onde Renato D'Autremont saltava da boléia,
chegando até o limite, onde um oficial lhe parou:
-Até aqui, senhor D'Autremont... Até aqui! Nem um passo
mais!
-Estou autorizado pelo governador a entrar a procurar a
essa dama, que tem que voltar para Saint-Pierre comigo! Você
não estava a meu lado? Não ouviu o que o governador me disse?
-O governador deu sua permissão para que essa dama
saísse, não para que passasse você ali!
-É você um...! -enfureceu-se Renato.
-Cuidado, senhor D'Autremont! Não me obrigue a tomar as
piores medidas! -ameaçou o oficial. - Tenho ordem de disparar
sem contemplações, de sufocar em sangue o motim! -E
afastando-se um pouco, ordenou-: Arma ao peito, sentinelas!
Preparados para disparar contra essa chusma se nos vem em
cima!
Renato viu Mônica... Com ira e angústia a viu lutar com
Juan, lutar para detê-lo, enquanto a enfurecida massa de
pescadores avançava também, seguindo aos homens de Lúcifer,
que tiraram do cinto as facas.
-Logo... Logo... Chame a essa senhora e leve-se a daqui!
Não vê que essa gentinha se amotina? - apressou o oficial
aproximando-se, exaltado, a Renato. - Que ela cruze sozinha a
linha! Farei disparar contra qualquer dos outros que dê um
passo mais!
-Mônica, só você tem o passo livre! Venha! Cruze sozinha a
linha! Logo! -gritou Renato.
-O que? O que? O que dizem?
Foi a cólera, mais que os débeis braços de Mônica, o que
pararam Juan a escassos vinte metros da linha que guardavam
os soldados em dupla fila. A uma ordem do tenente, jogaram-se
à cara os fuzis, apontando ao matizado grupo; mas Juan do
Diabo não parecia advertir sua ameaça... Fixou seu olhar no
homem que parecia acolher-se ao amparo dos soldados
policiais...
-Venha, Mônica! - chamou Renato, - Saia logo! Depois não
lhe deixarão sair! Venha, Mônica, venha agora mesmo!
-Por que não vem você buscá-la até aqui? -gritou Juan
furioso. - Covarde! Canalha!
-Alto! Alto! Alto, Juan do Diabo, ou dou a ordem para
atirar! -ameaçou o tenente.
-Deixa-a sair! - insistiu Renato. - Só ela pode cruzar a
linha! Deixa-a sair! Se for homem, me deixe salvá-la...!
-Que se for homem? Já verá! - Cego de raiva, fora de si,
Juan deu uns, passos em direção a Renato, cruzando apenas a
linha que defendia os soldados, e no mesmo instante, soou um
disparo e Juan se desabou na terra...
-Feriram o patrão! Mataram-no! -Segundo gritou
enfurecido, e atiçou a multidão-: Canalhas... Assassinos...! A
eles! A eles!
-Fogo! Fogo! - ordenou o tenente gritando como
desesperado À frente da segunda linha! Fogo!
Em um instante se desencadeou o motim, e a gritaria da
multidão, que atacava se avivou, confundiu-se com os disparos
e os ais de dor. E por entre essa barafunda de vozes de mando e
de gritos, eleva-se a voz angustiada de Mônica:
-Juan... Juan da minha vida!
Capitulo Onze

-Senhora D'autremont... Com sua permissão... Vi seu


carro, reconheci-o, informaram-me que está a várias horas
aguardando, e tomei a liberdade de vir a lhe dar algumas
notícias das que certamente está esperando com impaciência.
Posso falar?
Sofía D'Autremont se levou aos lábios o lenço de renda,
talvez para reprimir-se frente a um antigo servidor infiel, talvez
para afogar os soluços, o impulso de gratidão que a sacudiu,
obrigando-a a estender a mão que Pedro Noel se apressava a
estreitar...
-Minha pobre senhora! Compreendo o que sente neste
momento...
O mais luxuoso carro da casa D'Autremont está detido à
beira do caminho, entre os matagais que rodeavam o áspero
atalho que até o Cabo do Diabo, embora bastante longe do lugar
dos acontecimentos que ocupavam totalmente a atenção de
Saint-Pierre. Sentinelas, colocados em todos os possíveis
lugares de acesso ao lugar dos acontecimentos, obrigaram a
Sofía a permanecer ali, enquanto o sol daquele dia amargo se
afundava lentamente nas águas do mar, agora tranquilas...
-Você vem de lá? - interessou-se Sofía. - Pôde passar?
Deixaram-no?
-Usei antigas amizades, velhas astúcias e um bote, também
bastante antigo e inseguro. Mas o caso está em que fui e que
vim...
-Viu a meu filho? -perguntou Sofía ansiosa.
-Está perfeitamente bem... Mas não há forma de movê-lo
dali. Nem o tenente, nem o capitão que chegou com as tropas de
reforço, conseguiram-no. Apóia-se na permissão verbal que lhe
deu o governador para chegar até a linha, e ali está na fronteira,
aguardando a oportunidade de falar com Mônica.
-Ainda não o conseguiu? Não sabe ela a que meu filho se
expôs para tirá-la dali?
-Por desgraça, eu não pude chegar muito mais longe que
Renato. A vigilância é muito severa, e a passagem inacessível
em um bote até em um dia tranquilo. Tampouco pude ver
Juan... Sei que entre Segundo e Mônica lhe acertaram uma bala
e enfaixaram a ferida... Sei que, dada sua fortaleza, não é de
esperar que sua vida corra perigo... Os soldados estão alguns
golpeados, e alguns feridos gravemente, foram substituídos por
outros, enquanto os pescadores, depois de ganhar a
escaramuça e de apoderar-se de alguns rifles, retiraram-se,
vendo aproximarem-se os reforços. Entre eles feriu e temo que
tenha alguém morto...
-Retiraram-se? - estranhou Sofía. E com certa raiva
censurou-: E os soldados os deixaram assim, tranquilos, depois
de permitir que essa gente...?
-Essa gente resultou ser mais perigosa do que os soldados
acreditavam - declarou Noel em tom zombeteiro. - E, além disso,
têm toda a razão. Claro que isso, até agora, nada lhes valeu...
-Você, naturalmente, está do lado deles... De qualquer
modo, agradeço-lhe muitíssimo que tenha vindo me dar notícias
de meu filho, que é bastante louco e bastante ingrato para não
pensar no que tenho sofrido e no que estou sofrendo por causa
dele...
-Se o conselho de um que foi seu amigo pode lhe servir,
atreveria a lhe aconselhar que fosse descansar dona Sofía. Não
acredito que Renato corra nenhum perigo, posto que Juan esta
gravemente ferido por culpa de seu filho e da senhora...
-Por culpa de meu filho? - começou a indignar-se Sofía.
-Sim... Sim... Juan não teria perdido os estribos assim, se a
tudo isto não se unisse o assunto pessoal. Vi-a abrandar-se, e
vou ser justo. O que acontece é horrível, dona Sofía... A senhora
é amiga do governador, e pode falar com ele... Não é possível
que a primeira autoridade da ilha continue respaldando
semelhante injustiça. Se estiver a senhora verdadeiramente
pena pelo dano que causou seu filho...
-O que diz? Causar-me pena pelo dano que sofreu esse
bandido?
-A senhora não muda dona Sofía... Há um momento estive
a ponto de compadecê-la... Mas foi um erro... Tem que sofrer
imensamente mais do que sofreu, e o sofrerá... Sofrerá, sem que
ninguém tenha piedade da senhora, porque não merece
compaixão quem não é capaz de senti-la!
-Noel... Noel...! Como se atreve...? -balbuciou Sofía
indignadíssima. - Insolente! Estúpido!
Noel se foi, e não escutava já as últimas injúrias da dama,
que se voltou furiosa ao chofer cor de ébano, e lhe ordenou:
-A casa, Esteban! Voltemos em seguida para casa!
Na cabana em meio a penumbras, à luz dos últimos raios
do dia que penetravam pelas entreabertas janelas, apenas se
destacava o perfil moreno e brunido do homem imóvel sobre o
improvisado leito de campanha... Mais que sorrir, parecia
sumido em uma profunda letargia angustiante, e junto a ele,
com as mãos entrelaçadas, tensa a alma nas claras pupilas,
Mônica observava com angústia aquele rosto, cuja vida está
pendente. Um leve ruído na pequena porta lhe fez voltar-se com
sobressalto...
-Posso entrar patroinha?
-Entra, mas não faça o menor ruído. Precisa descansar,
tem muita febre... Precisamos de um médico. Colibri... Mas,
como...? Como...?
-Não sei minha senhora.
-Já sei que não sabe pobrezinho... Para que me procurava?
O que queria?
-O senhor Renato está ali - informou Colibri com o maior
mistério. - Chamou-me quando passei perto, e me mandou que
lhe dissesse que não se vai sem a senhora...
Um gesto violento foi à resposta de Mônica às palavras de
Colibri, enquanto volta o rosto para o improvisado leito de
campanha no qual descansava Juan, temendo de pudesse ter
ouvido aquela frase imprudente, de que algo alterasse o ritmo
daquele coração cujas batidas acredita ouvir ressoar em seu
próprio peito, como algo tão dele que sem isso não era possível
viver... Nervosamente afastou Colibri de junto a Juan, levando-o
até a entreaberta porta da casa em construção...
-Não quis ir, minha senhora... Olhe-o ali... A pequena mão
escura assinalava um lugar entre as linhas confusas, onde
começava o espesso bosque. Claramente se via a longa fila de
soldados que vigiavam com arma no braço, o carro abandonado
no caminho, e mais perto, junto aos postes cravados para
marcar o limite, a figura fina e altiva do último D'Autremont
Valois. Com seu impecável traje de linho branco, com sua
bizarra atitude de cavalheiro, com a violenta teimosia de sua
paixão, que proclamava ser filho legítimo da ilha passional e
selvagem onde tudo parecia bulir ao mesmo ritmo: montanhas
ásperas, bosque espesso, costa de rochas, mar rebelde, arroios
que se convertiam em correntes às primeiras chuvas, sangue
ardente e corações exaltados, mente acesas onde com terrível
frequência a loucura soltava faísca... Martinica...!
-Disse que era capaz de entrar para procurá-la se a
senhora não for minha ama...
-Pois que seja capaz de atrever-se a tanto...!
-Ai minha senhora... Olhe...! Se o virem Segundo ou Enguia
recebem-o a tiros. E eu mesmo, se tivesse uma escopeta...
Renato avançou para o promontório... Sem dúvida esvaziou
sua carteira entre os soldados que guardavam a linha, porque
estes permanecem imóveis como se não o vissem, enquanto ele
avançava com passo firme pela terra inimiga...
-Mônica... Agora sim... Vamos... Não vim a não ser para te
buscar...
-E eu não desci a não ser para te dizer que fosse daqui,
Renato! Não compreende que esses homens estão loucos de dor
e de raiva? Está-se jogando estupidamente a vida!
-O que me importa a vida se não for a teu lado, se não for
com você? Mônica, minha vida!
-Por favor, basta! Não irei contigo... Não entendeu? Não!
Não, Renato! Deixe-me, me solte, vá agora! Para que veio?
-E sua promessa? E nosso trato?
-Já não existe! Quebrou-o voltando aqui! Vá, e esqueça...!
-Esquecer? Esquecer o que é a razão de minha vida?
Abandonar-te sabendo que está em perigo, sendo o que é para
mim? Mas, percebe o que me pede? Não te deixarei, e menos
ainda se pretende voltar atrás na palavra que me deu!
-E se a sustento, se irá, Renato? - indagou Mônica com
angústia.
-Ouça-me, Mônica... Daqui ninguém vai sair com vida...
Levaram-se as coisas ao último extremo... O governador está
furioso... Sobram-lhe meios materiais com o que esmagar a
rebeldia de Juan e as três ou quatro dúzias de loucos que o
seguem. Se não se entregarem no ato, se não se renderem, vai
correr muito sangue. Ouvi dizer que estão decididos a tudo...
Por isso não pude me mover daqui. Percebe? Compreende? Não
pode perder a última oportunidade que te brinda!
-Não posso abandonar Juan! Não o farei embora me custe à
vida! Estou em meu posto, estou em meu lugar... Não faltei à
palavra que te dei, nem faltarei a ela, mas com uma só
condição: que saia daqui logo, que volte para Saint-Pierre...
-Prometeu-me...!
-Prometi-te ver em meu convento, não aqui... E a ele
voltarei quando puder sair daqui como vim: Sozinha e livre...
Solte-me!
-E se não te soltar? Se querendo ou não, levar-te comigo?
- Solte-me, ou gritarei pedindo auxílio!
-A esse extremo é capaz de chegar? – disse Renato ofendido
e despeitado. - Está bem... Seja como você quiser... Mas lembre-
se que adverti isso... Por sua culpa farei com que as coisas se
precipitem... Se eu tivesse falado com o governador como amigo.
Estava disposto a pedir clemência para esses estúpidos... -E em
tom quase suplicante, propôs-: Farei isso se vier comigo agora,
Mônica. Iremos vê-lo juntos, e com o pretexto de que Juan está
ferido...
-Juan não me perdoaria nunca... Ficaria aborrecido por
pedir piedade em seu nome... Ele não quereria a vida
conseguida a esse preço... E pedida por você... Vá, Renato, vá...!
Mônica retrocedeu, ganhou os contrafortes de pedra
negra... Pelo caminho da praia apareceu uma sombra... Dois
homens se moveram atrás da janela da casa em construção.
Sentindo que o despeito queimava suas bochechas, Renato sai
das terras de Juan do Diabo...
-Por que não foi, Mônica?
Levantando naquele leito de campanha, estreito e duro
como uma maca, perguntou Juan, olhando cara a cara a
Mônica, que se aproximou dele sentindo que vacilavam suas
pernas. De um pálido que o emagrecia, que lhe fazia parecer
branco e frio, estavam as bochechas de Juan, e sangue que
aparecia nas bandagens que cobriam o ombro e o peito, mas
seu tom soava sereno e firme:
-Nossa situação é critica Mônica. Fez mal perdendo a
oportunidade de sair...
-Como sabe...? Colibri?
-Nada disse Colibri. Apesar de meus conselhos e de meus
sermões, na hora sempre está do seu lado e não do meu.
Suponho que o pobre é mais uma vítima de sua influência... A
maior parte das pessoas que conheço, deixar-se-iam matar por
você...
-É que eu...
-Ouvi o que disse Colibri quando entrou a te chamar...
Logo, fiz um esforço para chegar nessa janela e te vi ir a seu
encontro... Certamente, pensei que não voltaria...
-É possível, Juan? - disse Mônica. - Queria...?
-Incomodava-me a idéia de que fosse com ele; mas, de
qualquer modo, era uma saída, e, por uma vez, o cavalheiro
D'Autremont se comportou pronto e sinceramente como um
homem, negando-se a te abandonar neste lugar...
-Isso é tudo o que te ocorre pensar?
-Se tivesse entendido o que esse imbecil me gritava quando
me aproximei... Teria te deixado ir...
Mônica se aproximou de Juan até sentar-se na beira da
estreita cama de pranchas, obrigando-o a reclinar outra vez a
cabeça no travesseiro, olhando-o muito de perto, com seu olhar
ardente e inquisitivo, como perseguindo a emoção que ele
escondia, como espiando o sentimento através daquele rosto
bronzeado...
-De verdade não entendeu o que ele queria?
-Talvez sim, mas naquele momento me cegou a ira. Tivesse
preferido matá-lo e te matar antes de consentir...
-Até esse extremo, Juan? -perguntou Mônica sentindo-se
um pouco adulada.
-Sim! Que tolice, verdade? Afinal sou tão estupidamente
soberbo como se fosse um D'Autremont legítimo. Às vezes, até a
mim mesmo enoja e me crispa o golpe do orgulho e de amor
próprio que me legou certamente ao me dar a vida, aquele dom
Francisco D'Autremont que por um triste azar foi meu pai...
Mônica se inclinou mais sobre o ferido, tomando entre suas
mãos brancas a dele, larga, torrada e firme... Sentia a alma
cheia de compreensão e de ternura; e com todas suas forças se
conteve para não deixá-la transbordar, para não entregar-se,
rendida e vencida, enquanto, como temendo que lhe delatasse a
luz de suas pupilas, Juan do Diabo entreabriu as pálpebras
sobre os negros olhos italianos...
-Queria de verdade que eu fosse Juan?
Mônica tremeu esperando a resposta, sentiu acelerar o
pulso de Juan sob seus finos dedos, mas a eterna desconfiança
e ressentimento se escondeu no coração daquele homem e lhe
faz dar por resposta outra pergunta:
-E por que não tinha que ir? Que razão, que motivo tem
você para estar aqui?
-Eu gosto de pagar minhas dívidas - declarou a altiva
Mônica de Molnar com um sorriso nos lábios. - Não sou esqueço
nada... Lembra um leito como este... Recordo-me doente,
prostrada, desesperada, sem mais esperança que morrer, e o
homem a quem eu acreditava meu maior inimigo, sentado à
cabeceira daquele leito, disputando à morte minha triste vida.
Agora trocamos os papéis, e embora a situação seja diferente,
podemos compará-la... Estou encurralada e ferida, como eu
estava desesperada e doente. E, como você então, não o
abandonarei, Juan, não te deixarei morrer...!
Mônica falou mascarando com um sorriso a cálida onda de
ternura que alagou sua alma, entregando-se pela metade,
defendendo-se, já quase sem forças para fazê-lo, daquele
sentimento que enchia sua vida, enquanto Juan saboreava cada
uma daquelas palavras como uma amarga e cobiçada
guloseima... Juan do Diabo, o eterno desconfiado, o
inconformado contra sua sorte e seu destino, o ressentido
contra o mundo inteiro, que não sabia estender as mãos para
pegar a sorte... E enquanto entreabriu as pálpebras, passou a
mão de Mônica sobre sua testa como uma muito suave carícia...
Se abrisse os olhos, se entregasse em um olhar tudo o que em
seu coração sentia... Mas o homem que não tremia ante as
tempestades, tremia ante o azul daquelas pupilas, temia as
encontrar frias, e falou sem olhá-la, com a teimosa obstinação
de criança:
-Acredito que exagera as coisas... O caso não é o mesmo...
Por te atender um pouco, eu não corria nenhum perigo.
-O contágio... Minha febre era contagiosa, e você sabia...
Viu-me adquiri-la nos barracões... Foi um milagre que em todo
o Lúcifer não houvesse mais doente que eu... Qualquer, em seu
lugar, teria me deixado no primeiro porto...
-Na Maria Galante, verdade? Com seu doutor Faber... Isso
era o que você queria – reprovou Juan com certa rudeza.
-Talvez você também tivesse querido esta noite verte
liberado mim...
Trêmula e contida, Mônica tornou a aguardar sua resposta,
mas Juan se defendeu ainda, buscando um meio termo, uma
saída para não confessar-se:
-Não foi por mim que disse isso... Só pensava no perigo, por
você, para você...
-Você não fala alguma vez por sua própria conta, Juan?
-Algumas vezes, mas não contigo - vacilou Juan. - Não
acredita que são muitas perguntas para fazer a um ferido?
-Talvez... Mas você não tem aspecto de te sentir muito
mal... Antes me enganei... Enganei-me uma vez com você...
Pensei que estava sem sentido, e, entretanto escutava até a
última palavra dita a meia voz... Acreditei que não tinha forças
nem para abrir os olhos, e foi até a janela... Imaginei que
precisava dos meus cuidados, e provavelmente renega da
casualidade que me trouxe aqui...
-Eu não renego...
-Então, o que acontece? Fale!
-Simplesmente, que me aflige Mônica. Sempre toma o
caminho mais duro, o mais espinhoso, o mais difícil, e quando a
gente pensa que teve alguma razão pessoal para fazê-lo, como
ocorre a todo mundo, resulta que só agia conforme a sua
consciência e que se conforma com a satisfação do dever
cumprido. Com razão quis te refugiar no claustro... É muita
perfeição para a vida, para a triste e vulgar vida...
-Por que fala assim? Seus elogios têm sabor de sarcasmo,
Juan do Diabo!
-Com que vontade fala: Juan do Diabo... Dito por você,
nessa forma, chega a me doer o nome...
-Se houvesse dito Juan de Deus, teria respondido o
mesmo... Contigo não se acerta... De um modo ou de outro,
protesta o mesmo...
-Por que tem que me dizer se de Deus ou do Diabo?
Chame-me Juan a secas... Dará menos trabalho dizê-lo...
-E será mais exato. Acredito que não te falta razão... Não é
de Deus nem do Diabo... É de você mesmo... Tão duro, tão
fechado, tão egoísta como uma dessas rochas que não se
movem mesmo as ondas as golpeando mil anos... Bom... O que
vamos fazer? Suponho que é melhor assim...
-Aonde vai, Mônica?
-Chamar Segundo para que fique com você... O que te
acontece? O que quer?
-Não vá assim... Aproxime-se um pouco... Há algo que
quero te dizer, mas... Não tenho muitas forças, sabe?
-Suponho que finge debilidade, como mais uma
brincadeira...
Apesar de suas palavras, acudiu solícita, ao ver sua testa
suada, seu pulso; olhou com angústia o sangue que molhava
suas bandagens, e observou:
-Terá que mudar essas bandagens... Voltou a sangrar a
ferida... Naturalmente, se não ficar quieto... Que necessidade
tem de te levantar e de aparecer em qualquer parte? É pior que
uma criança... Cem vezes pior que uma criança...
-Já vai passar... Não se preocupe... Na realidade, desejo
que fique aqui... Não me responda nada ao que vou dizer-te...
-Não me diga nada agora... Acredito que seriamente está
debilitado... -E afastando-se um pouco, abriu a porta e chamou-
: Colibri... Colibri...! Procura Segundo... Diga-lhe que traga água
fervida e as ataduras que lhe dei antes para pô-las a secar...
Anda. Corre... -fechou a porta e aproximando-se do leito,
ofereceu-: Aqui há um pouco de vinho... Toma uns goles... É o
único de que dispomos...
Apoiou a cabeça escura em seus joelhos, fazendo-o beber
pouco a pouco aquele copo de vinho que coloriu de novo as
torradas bochechas... Brandamente separou os úmidos e
frisados cabelos da testa e enxugou o suor com seu próprio
lenço, enquanto uma desconhecida sensação, como de imensa
sorte, a fez quase desfalecer...
-Mônica, há algo que quero te dizer, embora já te pedisse
que não me respondesse nada... Mas é preciso que o diga... Oh,
Mônica! Está chorando?
-Chorando eu? - tentou negar Mônica, dissimulando sua
doce emoção. - Que tolice! Por que tinha que chorar...?
-Não sei... Às vezes não sei nada... Peco de tolo ou de
bancar o esperto...
-Mais vale que feche os olhos, que tente te repor... Se o que
tiver que dizer são os gestos de algum tesouro escondido em
alguma ilha, espera que chegue Segundo de seu navio... É o
clássico, não? A herança de Juan o pirata... Assim você gosta
mais? Nem de Deus nem do Diabo...
-Mônica, antes não te respondi como devia... Às vezes
tenho a sensação de que me comporto como um selvagem com
você... Já te pedi que não me respondesse nada... Ouça-me
somente, me ouça, e se você não gostar do que escutar,
esquece-o... Agradeço-te de um modo infinito que não tenha
ido... Não diga nada... Quero imaginar eu mesmo o que queria
que me respondesse...
-Posso saber o que é o que queria que eu respondesse? -
indagou Mônica sem poder dominar sua intensa emoção.
-Aqui estão as bandagens e a água fervida... Está pior o
patrão?
Segundo olhou os olhos de Mônica, úmidos de pranto; logo,
viu o rosto de Juan, gasto, pálido... Olhou o sangue que
molhava a branca camisa e, alarmado, opinou:
-Terá que trocar as bandagens, patroa, tornou a abrir a
ferida...!
E com a habilidade de um soldado, Segundo se ocupou da
tarefa de trocar as bandagens, enquanto Mônica se aproximava
da janela aberta sobre o mar e aspirava o ar fresco, que parecia
lhe devolver a vida...
-Segundo, onde está Mônica? - perguntou a Juan com voz
débil e baixa.
-Aí mesmo, na janela, olhando o mar, patrão. Quer que lhe
diga que o senhor...?
-Não... Deixa-a... Ouça, Segundo, se quisesse a uma
mulher mais que a sua própria vida e pensasse que ela quer a
outro e que junto a esse outro pode ser feliz, reteria ela a seu
lado? Deixaria que corresse a triste sorte que é seu destino com
tal de vê-la perto de você, com tal de escutá-la, de senti-la, de
sonhar às vezes que pode chegar a te amar? Faria, Segundo?
-Não sei bem o que me diz patrão... Mas eu digo... O que
pode te importar a um uma mulher que não o queira? Não sei
se é responder, mas...
-É responder, Segundo... Respondeu...
Com desalento, Juan deixou cair rendido as pálpebras,
como afligido por uma repentina fadiga. Segundo acabou seu
trabalho e deu uns passos indecisos, enquanto Mônica se
aproximou dele ligeira e interrogadora...
-Já está... Acredito que o patrão precisa dormir... Tem
muita febre, e me parece que delira... Deveria... Ficar
tranquilo...
-Ficará Segundo. Vá... Eu estou com ele...
Mônica aguardou um longo momento para aproximar-se do
leito. De longe o olhou, até que o ritmo da respiração de Juan se
faz mais compassada, até que parecia que estava dormido.
Então se aproximou passo a passo, olhando-o com a alma nas
pupilas. Agora sim podia se envolver na onda gigante de sua
ternura, e, sem querer, pensar que abaixo aquele mesmo teto,
gretado e miserável, passou os dias mais amargos da vida
aquele homem que não sabia, quando crianças, o que era
sorrisos e carícias... Talvez tenha ficado doente muitas vezes
entre aquelas paredes inóspita, e só a Providência cuidou de
conservar sua vida... Como queria inclinar-se sobre a cabeça
morena, cobrir de beijos sua testa, suas bochechas, seus lábios
agora pálidos, colocá-lo em seus braços como se outra vez fosse
uma criança! Agora, ferido e indefeso, o amor de Mônica para
com ele tinha uma forma diferente... Queria estar perto,
respirando o ar que ele respirava... Seus joelhos se dobraram e
ficou abaixada ali, junto a ele, sobre chão, enquanto
sussurrava:
-Juan... Se você me amasse...
Mônica se levantou do chão junto ao leito de Juan, onde
um instante caiu rendido pelo sono e o cansaço... Trêmula, foi
para a janela totalmente aberta... Uma pequena sombra escura
se moveu entre as pedras, e Mônica lhe reprovou:
-O que faz aí, Colibri? Por que não dorme? O que te
acontece?
-Não me acontece nada... Estava aqui se por acaso a
senhora me chamasse... Não posso dormir, porque tenho muito
calor... Tem que ver o calor que faz... E o céu está outra vez
avermelhado, minha ama. Percebe?
Colibri se aproximou da janela do lado exterior, até apoiar-
se também no marco, onde as mãos de Mônica se crispam. Com
o olhar ingênuo de seus grandes olhos, contemplou aquele céu
carregado de nuvens avermelhadas, pançudas e espessas;
aquele céu tão baixo, que parecia uma imensa lona estendida
sobre a áspera paisagem; tão espesso, que não se viam os picos
das montanhas... Mônica não elevou a cabeça. Seus olhos
foram pelos caminhos de terra, rebuscam com ansiosa entre a
linha de soldados, e lhe parou o coração ao não divisar já o
carro de Renato... E com ânsia, perguntou a Colibri:
-O senhor Renato já foi, verdade?
-Sim, minha senhora. Foi, e trocaram duas vezes a
guarda... E lá embaixo, os pescadores estão arrumando uma
lancha grande... -E abaixando a voz, explicou em tom de
mistério-: Não querem dizer a ninguém... Querem sair daqui
pelo mar, e quando estiverem do outro lado, colocarão um barril
de pólvora entre os recifes, debaixo do acampamento onde estão
os soldados, e atearão fogo com uma mecha muito longa, para
que morram todos...
-Mas isso é crime, um verdadeiro assassinato que Juan
nunca vai autorizar!
-Eles não querem que o senhor saiba. Estão furiosos
porque o feriram e por outro dos quatro que feriram ontem, o
irmão de Martín, está morrendo...
-Conseguirão que matem a todos! Isso é só o que
conseguirão!
-Isso disse Segundo a Martín, e este respondeu que não se
importava com nada só em vingar a seu irmão, porque o que
mais queria neste mundo era sangue... E Segundo respondeu
que se importava mais o patrão que toda sua família junta...
Que o patrão era mais que seu irmão, e mais que seu pai... E eu
digo que é verdade, pois o patrão salvou a vida de Segundo, e a
mim também, minha senhora... Mas, está você chorando?
-Não, Colibri, somente pensava...
-No que pensava minha senhora? Em que está muito mau
o patrão, verdade?
-Não, Colibri, não acredito que esteja tão mal. Penso em
que nada há mais negro que esse ódio monstruoso que às vezes
brota entre irmãos, nem pior o rancor que o que pode levantar
nosso próprio sangue...
Ficou trêmula ao olhar Juan, e entre as sombras que
envolviam a escura cabana acreditou ver uns olhos, uns lábios
acesos, umas mãos brancas, uma forma imprecisa que parecia
encher tudo, apoderando-se de Juan, obrigando-a a retroceder
como se um passado invencível se elevasse separando-a do
marido a quem amava, e u em silêncio suas lágrimas... Aquelas
amargas lágrimas de renuncia, que tantas vezes derramou...
Capitulo doze

Catalina de Molnar sentou-se uma vez mais na cama,


escutando sobressaltada aquele surdo aproximar-se de
tambores que durante toda a noite esteve ouvindo... A tênue luz
de um abajur, piedosamente colocada aos pés da imagem que
ficava no quarto, estendia-se pela estadia uma luz morna,
trêmula cujo pálido reflexo parecia aumentar a angústia que
enchia o coração daquela mãe... Foi para a janela que dava à
galeria. Durante as horas intermináveis daquela noite,
inutilmente quis chamar as donzelas, puxando as bolas de seda
que ficavam penduradas perto da cama... Agora, uma espécie de
terror pueril saltou à garganta fazendo apagar-se sua pena em
um instante, e chamou em voz alta:
-Petra... Juana...! É que não há ninguém? Meu Deus! O
que é isto? O que acontece? Padre Vivier!
A sombra que cruzava perto se aproximou solícita. Era o
sacerdote, hóspede forçoso da opulenta casa de Campo Real, e
seu pálido rosto magro parecia tão inquieto como o de Catalina
de Molnar, ao interrogar:
-Catalina, o que tem? O que acontece? Quer algo?
-Não; mas esse primeiro silêncio... E logo... Logo esse ruído,
essa música... É indigno que os trabalhadores estejam em festa,
quando apenas se secaram as flores que cobrem a tumba de
minha filha...!
-Essa música que você ouve Catalina, não é de festa.
Conheço bastante os sons nativos destas pessoas, e isso não
soa a festa... Ao contrário...
Na penumbra da galeria, Catalina de Molnar se aproximou
do sacerdote, e juntos olharam, em uma espécie de invencível
espanto, o estranho cruzar daquelas formas negras...
-É um rito fúnebre, e ao mesmo tempo... Escute Catalina,
escute bem: alguns falam... A ver... Sim... Dizem uma estranha
palavra em línguas africanas, que significa o mesmo em várias
delas... É a única que entendo de todas as que vão
pronunciando. Significa vingança. Essas pessoas estão pedindo
vingança... E, além disso, levam algo, como uma maca com um
cadáver...
-De quem? De quem?
-Não sei... Não posso adivinhar minha filha. Tudo isto é tão
estranho...
-Você chame a alguém, Padre. As donzelas não respondem,
mas a casa está cheia de criados...
-Não há nenhum na casa. Estamos totalmente sozinhos,
Catalina.
-Totalmente sozinhos? O que você disse Padre? Sabia que
Mônica se foi, mas outros...
-Renato se foi quase em seguida, e a senhora D'Autremont
não demorou também em seguir viagem, levando com ela a
Aninha e seus criados de mais confiança...
-Tenho medo, Padre! Devemos voltar para a capital...
Devemos ir... Devemos ir...
-Já pensei nisso, mas não há a quem pedir uma carruagem.
-E Batista?
-Não sei. Vi-lhe sair cedo capitaneando o grupo de
trabalhadores armados que ele chama vigilante. Muito me temo
que todo mundo esteja aqui contra ele, e se a senhora
D'Autremont tivesse me escutado, há tempos teria colocado
reserva a seus abusos e a suas crueldades.
-Os D'Autremont... Os D'Autremont...! - murmurou
Catalina com rancor doloroso, - Por eles morreu minha filha...
Por eles está morta minha Aimée! Me leve daqui, Padre Vivier,
não quero pisar mais nesta terra...! Quero ir para longe desta
casa, onde não lhes veja nem lhes ouça mais!
-Cale-se, Catalina! Você ouve? Gritam lá, junto aos
barracos... E vêm aqui com tochas... Esses gritos parecem
ameaças. Vamos daqui... Vamos! Chegaremos até a igreja...
Junto ao altar poderemos nos refugiar...
-Nos refugiar? Acredita que vêm contra nós?
-Seus gritos são de vingança. Algo lhes irritou, rebelaram-
se... Parece que perseguem a alguém que vai a cavalo... Mas,
vamos, vamos!
A fez descer as escadas, cruzar com passo rápido os jardins
laterais, mas o cavaleiro perseguido se aproximava já da casa,
lhes fazendo parar pela surpresa. O cavalo estava muito perto
deles, enquanto saltava o cavaleiro livrando-se milagrosamente
de ser esmagado. Era Batista, o mordomo dos D'Autremont, que
tinhas as roupas e o rosto ensanguentado, despojado de toda
sua soberba pelo espanto que lhe fazia tremer, olhando para a
senhora e o velho sacerdote, as mãos implorantes:
-Me defendam... Amparem-me! Vão matar-me, Padre Vivier,
vão matar-me!
-O que aconteceu? O que é o que acontece? -perguntou o
sacerdote.
-Feriram-me a pedradas e me perseguem como chacais!
Acharam morta a Kuma no caminho... Querem vingar-se me
matando, matando-os a todos, ateando fogo a casa... São
demônios... Matar-me-ão! Já vêm...! Amparem-me...! Fale-lhes,
Padre!
-Batista... Batista...! Mora... Mora...! -ouviu-se uma voz
longínqua. - Justiça contra Batista! À senhora! À senhora!
-Procuram à senhora D'Autremont... Não sabem que não
está... Pedem justiça... Justiça contra você, Batista - comentou
o velho sacerdote.
-O que querem é me enforcar, me matar a pedradas! -
choramingou Batista, dominado pelo pânico. - Olhe meu
sangue, Padre Vivier, olhe meu sangue! Já se atreveram a me
atacar esses canalhas... Mataram dois vigilantes que tentaram
me defender... Os outros foram embora...
-Jesus! Vêm também por este lado! -avisou Catalina.
-Me matarão...! Salvem-me! - suplicou Batista terrivelmente
apavorado.
-Por desgraça, acredito que não está em minhas mãos fazê-
lo - apontou o Padre Vivier. E ante os gritos que já soavam mais
perto, apressou-: Logo... À igreja! Vamos...!
Uma das pedras, lançadas ao azar, deu no joelho de
Batista, lhe fazendo cair, obrigando-o a parar, enquanto o
sacerdote, depois de medir o perigo com um olhar, correu para
a próxima igreja levando quase em seus braços à espantada
Catalina...
-Morra Batista...! Morte a senhora! -clamou uma ruidosa e
rouca voz. - Lá vai à senhora...! Também a ela...! Morra!
O Padre Vivier conseguiu fazer saltar o ferrolho da pequena
porta do templo, e com as mãos trêmulas fechou-a atrás de si...
Era uma das antigas criadas da casa D'Autremont, que se
refugiaram ali, temerosas também das possíveis represálias
daquela multidão enlouquecida e cega... Loucas de espanto,
firmavam a porta arrastando os bancos, enquanto o sacerdote
lutava em vão por soltar-se das crispadas mãos de Catalina,
que, dominada pelo espanto, suplicava:
-Não me deixe Padre! Acham que sou Sofía! Vão matar-
me...!
-Tenho que socorrer a Batista! Sim lhe matarão sem
remédio! Deixem-lhe passo!
-Já estão aqui, Padre! Que não abram! -recomendou
Catalina, assustada pelos ferozes gritos da inquieta multidão. -
Matarão a todos... A todos!
A alta janela de vidros chumbados foi destroçada por um
golpe certeiro... Deixando sobre um banco o corpo desacordado
de Catalina, o Padre Vivier foi à porta frontal, abriu com esforço
os ferrolhos da portinha, e a entreabriu lentamente...
A multidão se afastava, ia em direção a casa, tomando por
assalto alguns adiantados; como demônios, cruzavam
pisoteando os floridos jardins, agitando as tochas incendiárias,
destruindo tudo o que tropeçavam a seu passo, arrastando
como um troféu o destroçado corpo, já sem vida, de um homem
branco...
Paralisado de angústia, o sacerdote só conseguiu levantar a
trêmula mão direita, enquanto seus olhos se abriam frente ao
horror do espetáculo, e com uma oração abriu seus lábios:
-Senhor... Tenha piedade de sua alma.

-O senhor dá sua permissão, senhor governador?


-É obvio Renato. Entre, entre e sente-se. Não posso negar
que só por tratar-se de você tenho feito passar...
-Suponho que a hora é absolutamente inoportuna; mas,
recordando a antiga amizade que uniu o senhor com meu pai...
-Já pedi que se sentasse. Agora trarão café para os dois.
Contendo o desgosto, dissimulando o mau humor sob a
perfeita cortesia a que se sentia obrigado, o governador de
Martinica fez um gesto discreto a seu secretário para ficar a sós,
frente a Renato, e, à medida que seus olhos de homem de
mundo iam o examinando dos pés a cabeça, seu cenho se
franziu, sua boca se rendeu em um gesto de desagrado... E
longa barba, as botas salpicadas de lama e a roupa também, o
aspecto de Renato D'Autremont era francamente lamentável.
Quando a porta se fechou, o governador comentou:
-Me perdoe se lhe interrompi antes. Eu também, enquanto
lhe deixava entrar, recordei a antiga amizade que me ligava a
seu pai, mas estimo preferível não mencionar esse assunto
diante de terceiros, já que como amigo, e não como governador,
quero falar com você, Renato.
-O senhor a mim?
-Você só deseja ser escutado, sei. E até poderia lhe dizer
por que chegou até aqui, sem voltar para sua casa, depois de
passar infelizmente à noite em claro. A senhora... Digamos
Molnar, já que será difícil lhe atribuir outro nome a que é
esposa legal de Juan do Diabo...
-Senhor governador... - interrompeu Renato com uma
velada recriminação na voz...
-Me deixe terminar, o pedido. Já sei que se negou a aceitar
a facilidade que, por consideração a você, foi outorgada. Sei
sobre o incidente lamentável que seguiu a essa negativa, e o
extremo a que chegaram as coisas, não admito por minha parte,
contemplações de nenhum tipo. Tenho um oficial ferido, vários
soldados com lesões mais ou menos graves... Sei que houve
mortos entre essa gentinha, e que está ferido o próprio Juan do
Diabo. Infelizmente, os rebeldes se apoderaram de algumas
armas e, o que é pior, de um dos barris de pólvora destinados a
voar as rochas, para abrir uma sarjeta que deveria deixá-los
totalmente isolados... Se agora pretende você advogar por eles...
-Ao contrário. Venho perguntar por que demoram tanto
seus soldados para tomar o penhasco do Diabo...
-Ah, caramba! Você acredita poder fazê-lo mais depressa?
-Sem dúvida alguma, e isso é precisamente do que se trata.
Venho pedir que me permita proceder. Por que não dá a ordem
de atacar? Por que não tomam entre dois fogos, ordenando o
ataque por mar, com as duas guarda - costeiras que há
disponíveis no porto?
-Quer você que todas as nações nos chamem selvagens?
Que se cubram os jornais de todas as capitais da Europa nos
condenando a respeito de um massacre, o assassinato
perpetrado pelo governador da Martinica, de um grupo de
pescadores que reclamam seus direitos? Quer fazê-los heróis ou
mártires? Até tal ponto o enlouquecem o despeito e o ciúme?
-O que diz? - se indignou Renato. - O proíbo...
-Acalme-se, Renato. Para mim é você quase um moço.
Estamos sozinhos, e com razão, ao entrar, invocou minha
amizade que não só foi com dom Francisco, mas também com
dona Sofía, sua pobre mãe a quem está você atormentando...
-Basta, basta! Agora compreendo sua atitude: minha mãe
se adiantou a visitá-lo.
-É certo, Renato; mas os falatórios chegaram antes.
-Falatórios? Também os falatórios subiram as escadas do
Palácio? Não pensei que você...
-Por favor, cale-se! Não se deixe levar assim pela cólera -
interrompeu-lhe tranquilamente o governador. - Deveria me
ofender, mas não o faço. Compreendo seu estado de ânimo e me
limito a lhe dar um bom conselho: Com exceção deste assunto.
Já se renderão e pagarão muito caro sua rebeldia nos
calabouços do Forte de São Honorato...
-Com dois mananciais de água potável, e o mar para
prover-se de mantimentos, podem demorar semanas, meses, até
anos em render-se!
Impulsivamente, Renato ficou em pé. Com absoluta
descortesia voltou as costas ao mandatário para aproximar-se
da janela, através de cujos vidros olhou, sem ver a cidade que
acordava sob as primeiras luzes da alvorada. A voz do
governador chegou até ele, lhe estremecendo:
-Sua esposa morreu recentemente a menos de uma
semana...
-Mas eu não tive nada a ver com sua morte, nada... Nada!
Não acredita? -revolveu-se Renato furioso.
-Quero acreditar, mas você não faz nada para por reserva à
maledicência. E as versões do acidente que até mim chegaram...
-Mentem, mentem! Nada fiz contra ela. Ao contrário...
-Você a perseguiu...
-Só com a esperança de deter seu cavalo desbocado. Eu
não queria sua morte, queria sua vida. Acreditei que ia me dar
um filho... Como podia querer matá-la? Quis brincar comigo,
me dirigir como um fantoche na farsa que tinha preparado...
Não contou com a Providência, não contou com a justiça de
Deus... E quando viu que eu ia detê-la , quando estava a ponto
de alcançá-la, de um acidente brutal fez encabritar-se o cavalo,
e escaparam de minhas mãos as rédeas que estava a ponto de
segurar. Desesperado, cravei também as esporas e me adiantei
atravessando o campo fechado pela colina. Ela virou em
círculos e o alazão que montava elevou-se em duas patas. Não
sei se romperam as rédeas ou se não pôde dirigi-lo mais. Como
uma flecha partiu o animal para o desfiladeiro. Forçando o meu
até arrebentá-lo, segui-a e parei milagrosamente na beira do
abismo, enquanto o que levava a Aimée, impulsionado por
aquele golpe sem freio, deu o salto no abismo e caiu no fundo,
ricocheteando contra as pedras e as árvores...
Sinceramente impressionado, o governador ficou de pé,
sacudido por aquele relato dramático... Mas um servente entrou
silencioso e oportunamente, levando um serviço de café sobre
uma bandeja de prata. A um olhar de seu senhor, deixou-a
perto e saiu... O amadurecido mandatário se aproximou do
jovem D'Autremont e lhe pôs no ombro a mão com gesto quase
paternal:
-Perfeitamente... O resto do relato já escutei dos lábios de
sua mãe. Quanto você me contou, e quanto ela me disse, não
fazem a não ser crescer em meu conceito; com exceção desse
assunto do Cabo do Diabo, volte para sua casa, reflita,
descanse...
-Não posso refletir nem descansar... Não posso cruzar os
braços...
-E não percebe que essa pública manifestação de interesse
por sua cunhada...?
-Mônica é a mulher a quem amo! Não a deixarei, não a
abandonarei nos braços de outro! A sangue e fogo se for preciso,
tenho que arrancar-lhe. É inútil seus conselhos, senhor
governador...
-Já vejo. Bem compreendo a angústia de sua mãe... Não
desmente você a quem puxou, Renato...
-O que quer dizer?
-Um dia vi seu pai tão exaltado quase, quase como está
você neste instante, por uma mulher tão fascinadora como
certamente é essa Mônica de Molnar, a quem não tive o prazer
de conhecer... Gina Bertolozi era uma esplêndida beleza
italiana... Perdoe-me se ao nomeá-la recordo algo que parece ter
esquecido. O homem com o qual você quer acabar a sangue e
fogo...
-Não esqueci esse lamentável capítulo da história de meu
pai - afirmou Renato com ira e desdém, - mas nada me importa
como a ele então não importou nada...
-Não é a mesma coisa, Renato - rebateu o governador com
gesto severo. - O homem a quem seu pai inflamava, não levava
seu sangue.
-Não estou inflamando ninguém. Mônica não foi jamais a
verdadeira esposa de Juan. O pretendido matrimônio era só
uma farsa, e muito em breve terei a anulação do mesmo em
minhas mãos. É o único prazo que aguardo para fazê-la minha
esposa. Por isso peço por isso reclamo do senhor o apoio... Não
o apoio: a justiça... A justiça seca e plana... Que se domine a
esse rebelde, que o detenha, que o obrigue a deixar em
liberdade à mulher a quem, sem verdadeiros direitos, foi
sequestrada.
-Tenho entendido que a senhora Molnar se declarou várias
vezes, publicamente, em favor de Juan do Diabo...
-Zomba o senhor de mim?
-Não, Renato, não sou capaz. Só tento lhe obrigar a voltar
para a razão...
-Minha única razão se chama Mônica de Molnar, e quando
o proclamo desta maneira é porque tenho todos os direitos
morais!
-Quando tiver, além disso, os direitos legais; quando contar
ao menos com essa anulação de matrimônio que está
aguardando, pode voltar a me pedir autoridade e soldados.
-Não esperarei tanto! Procederei antes por meus próprios
meios!
De repente, ouviram umas detonações longínquas, como de
um canhão de grosso calibre, e ambos correram para o balcão,
abrindo-o de par em par. Com impaciência, olharam a uma e
outra parte. Tudo estava calmo na ponta do Cabo do Diabo.
Pelo Noroeste, uma fumaça avermelhada cobria o céu, uma
baforada de calor asfixiante lhes passou pelo rosto, abrasante e
o governador comentou:
-Não é nada... Não aconteceu nada... Simples desafogos de
Monte Brigue, aos que já me disseram que não lhes dê a menor
importância... Pode que se estraguem os campos semeados
mais próximos ao vulcão, e até que chova cinza, mas daí não
passará...
-Muito seguro está o senhor...
-Me atento à opinião do doutor Landes, homem de ciência
de fama mundial, que me tranquilizou totalmente a esse
respeito. Pelo resto, confesso-lhe que durante um instante tive
medo... Acreditei que esses patifes tinham feito qualquer
disparate com o barril de pólvora do qual se apoderaram...
-E mesmo assim, você pretende esperar?
-Naturalmente. E lhe aconselho que você faça o mesmo.
Penso ir a Fort-de France por um par de semanas... Lá tenho
uma linda casa de recreio, de onde todas estas coisas se vêem
pequenas e distantes... Gostaria de me acompanhar?
-Muito obrigado, mas, com sua ajuda ou sem ela, farei o
que tenho que fazer...
-Faz você muito mal. Não há no mundo uma mulher que
valha...
-Exceto a que muito em breve será minha esposa! -disse
Renato em tom seco e áspero- E não incomodo mais ao
senhor... Desejo-lhe uma feliz semana de descanso, mesmo que
a sua volta tenha ardido Saint-Pierre de ponta a ponta... Com
sua permissão...
O governador voltou a aparecer no balcão e olhou para a
negra e longínqua ponta do Cabo do Diabo... Com gesto senhoril
acendeu um cigarro, olhando para lá... De repente, voltou-se ao
ouvir uma surda, longa e longínqua detonação... O ruído
inquietante pareceu agora correr sob a terra, estremecendo a
cidade... Outra baforada de fuligem parecia se romper no ar.
Como se tivessem sido espantados, cruzando, voando por cima
do mar, um bando de pássaros e uma chuva muito fina caía
brandamente, como flocos de neve, sobre os tetos e as ruas... O
governador geral de Martinica estendeu a mão recebendo nela
aquela espécie de chuva estranha, seca e fina, que se desfez em
seus dedos, e comentou depreciativo:
-Cinza... Danificará os jardins... É uma verdadeira
lástima... Enfim, já virão as chuvas de maio...
E ainda ficou um instante olhando à cidade, como ele,
ditosa e confiada...

-Juan, levantou?
-Só um momento, e acredito que já era tempo... Cuidei
muito de minha ferida, Mônica...
Devagar, com um ritmo diferente ao que estava
acostumado, chegou junto à Mônica, que surpresa saiu ao
passo ao vê-lo aparecer no cruzamento dos caminhos, e sua
mão se estendeu um instante como se procurasse o apoio das
rochas... Seu rosto menos branqueado pela palidez, tinha agora
um selo de severa nobreza. Ainda o braço esquerdo descansava
no xale de seda dobrado que levava como tipóia, e avultava sob
a camisa branca as bandagens...
-Mas, que loucura! Pensei que estaria um momento ao sol,
logo...
-Fez falta minha presença lá embaixo, Mônica. Essas
pobres pessoas sofrem... Falaram-me de sua visita, de seus
presentes de provisões...
-Não me pareceu justo monopolizar, eu sozinha, as
bolachas e o pão, especialmente tendo feridos...
-Em um dia devoraram o que teria bastado para uma
semana...
-Que mais dá? Posso comer peixe, como o comem os
outros...
-Já sei que não lhe falta nunca raciocínio a uma
generosidade como a tua... Também sei que curou os feridos...
O irmão de Martín, quase moribundo, está já sem febre...
-Só tinha a ferida infectada... Enfaixaram-lhe com trapos
sujos... Não pensei que estaria demais, as mulheres da aldeia,
aprenderam a utilidade de água fervida, das bandagens
relativamente esterilizadas...
-Fez muito por todos. Seu nome está, entre as bênçãos, em
todos os lábios...
-Devia-lhes algo, Juan. Acredita que não sei que minha
presença piorou a situação de vocês? O desventurado incidente,
quando Renato veio me buscar, provocou as feridas desses
homens. Embora de forma indireta, considero-me responsável...
-Já... E responsável em forma direta...?
-Você, Juan, você... Mas também por minha causa...
-Por que não diz seu cavalheiro Renato? -rebateu Juan com
ira.
-Também ele... Embora sua intenção não fosse má. Se não
tivesse sido por seu mau gênio... Que razão podia ter para te
enfurecer até perder a noção do lugar em que estava? Amor
próprio? Não, mau gênio...
-Já sei que também esteve pregando aos pescadores
mansidão e amor a seus semelhantes. Mas, quem são seus
semelhantes? Esses miseráveis soldados que se convertem em
verdugos para defender as bem repletas arcas de um agiota?
Bem merecido tinham que os tivessem feito saltar em pedaços!
-Passava em sua cabeça esse plano? Era coisa sua?
-Sabe que não... Mas não pelo que pensa... Teria dado ao
governador pretexto para nos exterminar, para fazer voar a
pedaços o Penhasco do Diabo, a aldeia e a praia...
-Pode fazer uma coisa assim?
-Naturalmente que pode fazê-lo. Às vezes me pergunto por
que não o fez ainda... Acaso seu cavalheiro D'Autremont
interveio porque você está deste lado... De verdade não sabe
nada dele? Não recebeu nenhum recado nenhuma carta?
-Por que pensa que minto Juan?
Juan se aproximou de Mônica até pegar seu braço... Por um
instante, os fortes dedos a oprimiram algo um pouco parecido a
uma arruda carícia. Logo, deixou a mão cair em desalento,
enquanto ele retrocedia...
-Mônica, é preciso que você saia desta armadilha...
-Por que eu? O que acontece?
-Não é que acontece nada, mas... -tentou tranquilizar Juan
fazendo um esforço. E ao ouvir os murmúrios longínquos que
iam se aproximando, ordenou-: Volte para a cabana...
-Por que tenho que voltar? O que é o que está acontecendo?
Parece que choram que lamentam algo... vou...
-Não, Mônica, não vá...!
Mônica se esquivou, correndo até a reborda de rochas. A
população inteira da aldeia está ali congregada, abaixo, onde
descendo de muito alta montanha formavam remanso os dois
arroios de água doce... Mas neste instante, não era água o que
arrasta... Uma lama espessa, de violento aroma impregnado de
enxofre, que rodava lentamente deixando na borda cadáveres de
peixes e pedras vulcânicas... Sem compreender, Mônica se
voltou para Juan, perguntando:
-O que acontece?
-Não compreende? Esses arroios são nosso único
abastecimento de água... E olhe o mar... Olhe a praia...
Foram juntos uns passos pela borda quase impraticável.
Tremendo, Mônica se inclinou, enquanto a única mão de Juan a
segurava com angústia, ao advertir.
-Tome cuidado! Pode escorregar...
-Mas... A praia está cheia de peixes... Alguns saltam...
Outros...
-Alguns agonizam; outros morreram... Percebe? Estão
envenenados. Essa lama que arrasta os riachos, e que
certamente outros rios estão arrastando...
-Envenenados? Envenenaram os riachos? Mas, quem?
Quais?
-Isso, Mônica... O vulcão... O velho vulcão que acordou para
cuspir sua maldição sobre o Cabo do Diabo!
Trêmula de angustiada surpresa, Mônica se voltou para
olhar o alto cone do vulcão... Dali se via ainda mais perto que
da cidade de Saint-Pierre... Parecia mais sinistro o aspecto de
suas ladeiras nuas e escarpadas... Da estranha cratera
escapavam agora pequenas baforadas de fumaça muito negra e
havia uma fina linha cadente que transbordava de um dos
flancos até apagar-se. Seus olhos se voltaram em interrogação
assustada, até encontrar o rosto de Juan, sereno e grave...
-O que acontece, Juan?
-Bom... Veja... Veja só o que está olhando: o Monte Brigue
transborda em lava sobre os riachos, sobre os rios, e no
momento nos deixa sem peixe e sem água potável...
-E pode vir um terremoto, verdade?
-Pode vir claro... Não seria o primeiro nem o último...
-Ouvi histórias terríveis a respeito do que pode fazer um
vulcão...
-Certamente foi uma erupção vulcânica o que tirou a
Martinica do fundo dos mares, e bem pode outra voltar a
sepultá-la...
-Por que fala assim, Juan? Diria que te agrada essa idéia
horrível...
-Não, Mônica, não me agrada... Embora às vezes, frente à
injustiça dos capitalistas, frente à dor e a miséria dos
eternamente sacrificados, chegue a pensar que a natureza tem
razão em apagar o homem da superfície da terra... Olha-os,
Mônica...
Os dois abaixaram juntos a cabeça para contemplar o
doloroso espetáculo daquele grupo desolado e miserável...
Sombrios, os homens apertavam os punhos, e as mulheres,
assustadas, choravam ou abraçavam os seus pequenos...
Ingênuos e audazes, os moços mais velhos tocavam com suas
pequenas mãos negras os peixes mortos inflados de lama...
-Estamos no século vinte, em um mundo que se diz
civilizado, e esses infelizes podem que pereçam de sede e de
fome às portas mesmas de uma cidade, porque a ambição de
um agiota assim o decretou...
-Morrer de sede e de fome? -assombrou-se Mônica. - Mas
você não pode consentir!
-Mas não posso remediá-lo...
-Não, Juan, não! Está ofuscado... As autoridades não
podem ser tão desumanas... Se nos déssemos por vencidos, se
elevássemos a bandeira branca...
-O governador não quis me ouvir... Quer dizer que não
admite uma capitulação honrosa. Só nos render sem condições.
Sabe o que isso significa? Já foi alguma vez aos calabouços
subterrâneos do Forte de São Pedro?
-Sim... Uma vez fui...
A lembrança se tornou aguda... Um momento acreditou
voltar a ver aquela espécie de cova subterrânea, e através dos
grossos barrotes, que fechavam o único respiradouro, outra
havia uma mulher nos braços de Juan: Aimée, sua própria
irmã. Mônica empalideceu tão intensamente, que Juan sorriu
fazendo um esforço para brincar:
-Não se preocupe tanto... A você não vão trancar...
-Pensa que é por isso? Que longe está de meu coração e de
meu pensamento, Juan!
-Efetivamente... Acredito que muito longe, embora nos
estreitemos às mãos neste instante...
Juan apertou na sua a mão de Mônica, obrigando-a a
aproximar-se mais, compreendendo que a feriu com suas
palavras, mas decidido a sustentar o muro que entre eles se
elevava, a escorá-lo se fosse necessário, naquela hora dura e
amarga:
-É melhor que estejamos assim, e que assim nos
mantenhamos, Mônica.
-Posso saber por que, Juan?
-Porque começo a te conhecer. Buscas os sacrifícios, joga-
os sobre você com o mesmo empenho, com a mesma ânsia com
que outros monopolizam comodidades, honras ou riquezas...
Não, Mônica... Você deve se salvar... Tem que se salvar... Nada
tem em comum entre você...
-O que vai dizer? Acaba! Fere-me de uma vez com a
ingratidão, com a crueldade de suas palavras... Recusa-me com
a mesma frieza, com a mesma dureza que me vem recusando...
-Não, Mônica não fale desse modo... Não me faça fraquejar!
Esta não é sua batalha... Você não tem que sofrer conosco...
Sua família, seu nome, sua posição se colocam ao outro lado da
barricada. Por que louca casualidade está aqui?
-Preciso dizer isso com palavras, Juan?
Juan acreditou adivinhar, ia estreitá-la entre seus braços,
mas se conteve com violento esforço, remoia furiosamente seus
lábios acesos de anseio por aquele beijo que não chegou a dar,
enquanto tensa de angústia aguardava Mônica a palavra que
não chegou... Como se rezasse uma ladainha, respondeu Juan:
-Não é este o momento em que podemos falar de nossas
coisas, Mônica. Não tenho o direito de fazê-lo, porque não me
pertenço... Devo a estas pessoas, às que elevei em uma rebeldia
que por si mesmos jamais teriam tido... Se esse homem que nos
governa tivesse me escutado, se entendesse que aceito inteira a
responsabilidade de todas as culpas, de todas as faltas, que me
ofereço eu só como único e verdadeiro responsável...
-Juan... Juan... Dê-me um minuto de sua vida - pediu
Mônica com angústia. - Falemos de nossas coisas um instante,
só um instante...
-Pois bem... Eu...
Interrompeu-lhe o estampido de três ou quatro explosões,
seguidas do murmúrio de vozes e gritos de espanto. Correndo a
toda velocidade de suas pernas, sufocados, chegou até eles
Segundo, com a notícia:
-Fizeram-no, patrão, fizeram-no!
-O barril de pólvora? Fizeram-no voar? -inquiriu Mônica
profundamente espantada.
-Não... Não... Eles não... Foram os outros, os canalhas... -
retificou Segundo.
-Os outros? - duvidou Juan. E violento, para ouvir outras
duas ou três explosões algo mais longe, apressou-: Acabe de
falar.
-Ouça... Olhe... Estão fazendo voar as rochas, abrindo essa
sarjeta que nos deixa totalmente isolados, cortando toda
comunicação possível... É como se nos arrancassem da ilha,
patrão!
Juan olhou com a raiva inflamada... Em um instante viu
tudo claro... As explosões, cada vez mais longínquas, eram
como um cinturão de fogo que corria, cerceando o Cabo do
Diabo, arrancando-o à costa para convertê-lo em uma ilha, já
que pela larga brecha aberta se precipitava rugindo o mar.
Espantados e enfurecidos, aproximaram-se os homens por toda
parte, e Segundo se queixou:
-Não percebe, patrão? Não está olhando? Teríamos evitado
dando o golpe nós primeiro!
-Não teríamos evitado nada... Teria nos destruído o canhão
por terra e por mar - respondeu Juan com uma calma
impregnada de amargura.
-Melhor seria morrer brigando. Pelo menos, gastemos as
balas que temos tentando fazer baixas... Fogo! Fogo!
Cegos de raiva, os poucos homens que empunhavam armas
de fogo dispararam contra os uniformes longínquos; mas Juan
saltou na frente de todos, transfigurado.
À voz de Juan obedeceram seus homens... Bem a tempo
procuraram refúgio atrás das rochas, já que, contra elas se
estrelavam descargas fechadas com as quais respondiam os
soldados do outro lado da sarjeta... Lentamente, Juan se
levantou sobre o promontório de rochas, e deu uma olhada
abrangendo o panorama... Pela larga sarjeta aberta se
precipitava rugindo um mar furioso, por todos os lados ferviam
espumas ao redor do Penhasco do Diabo... É como se os
tivessem abandonado em um navio incapaz de navegar... Uma
mão suave se apoiou em seu braço, e Juan se voltou para
cravar seus olhos no rosto de Mônica que ardiam como brasas...
-Você tem que se salvar Mônica... Você não pode perecer
aqui...
-Não me salvarei sozinha, Juan. Correrei a sorte de todos.
Se houver algo que possa fazer por todos, faça-o... Mas nada
mais, Juan, absolutamente nada mais.
Capitulo Treze

Consternada, Indignada, Trêmula, incapaz de falar, Sofía


D'Autremont se segurava desesperada no braço de Renato,
depois de ouvir dos lábios do Padre Vivier o relato dos horríveis
sucessos desencadeados em Campo Real. Mal pôde dar crédito
a seus ouvidos, mal pôde sua imaginação se converter em
realidade o que estava escutando, quando uma ou outra vez se
voltou para seu filho, que escutava também, gelado e imóvel,
como se fosse de mármore...
-Por desgraça, fui testemunha de tudo...
-Mas, como? Quando?
-Há cinco dias... Três dias e três noites durou a loucura
coletiva que se apoderou desses desventurados... Três dias
destruindo, incendiando, destruindo tudo... Assassinando os
poucos empregados fiéis que tentaram impedir aquele horror...
E nesse tempo não foi possível abandonar o refúgio da igreja.
Estávamos cansados quando conseguimos escapar e cruzar a
pé os campos, sofrendo mil penalidades, até chegar ao imóvel
mais próximo...
-E os soldados? E as autoridades municipais? - indagou
Sofía escandalizada, - O que fizeram as autoridades de Anse, de
Arlets, de Santa Ana, de Diamant?
-Por ali não chegou ninguém. Campo Real é um reino à
parte... Mas, o que teriam podido fazer? Em cada uma dessas
populações não há mais de uma ou duas dúzias de soldados, e
são vários milhares de homens e mulheres os que se rebelaram
em Campo Real...
-Então, tudo está ainda em poder dessa gente?
-Só a infeliz senhora de Molnar, e três das empregadas
mais antigas, escaparam comigo, transpassaram, que eu saiba,
os limites de Campo Real...
-Meu Deus! Meu Deus... É para perder a razão...!
-Calma, mãe, calma. -aconselhou Renato.
-Calma? Calma? Atreve-se ainda me dizer que tenha
calma? Temos que chamar policiais, soldados, alguém que
esmague a esses canalhas! Temos que sair para lá
imediatamente!
-Seria muito perigoso... -assinalou o sacerdote.
-Não importa! Verdade é que não se importa Renato?
-Iria procurar a morte, mãe! - explicou Renato.
-Iria? Irei eu sozinha? Quer dizer que você não pensou...?
-Sim, mãe... Irei... Irei, mas não neste instante... Tenho que
esperar... Não sei se horas ou dias, mas tenho que esperar... Há
algo que me importa mais que Campo Real, mais que nada...
Alguém a quem, a qualquer preço, tenho que pôr a salvo.
Sofía D'Autremont olhou para seu filho, desesperada... Mal
deu crédito a seus ouvidos, escutando o horrível relato do Padre
Vivier... Mal podia imaginar o que estava acontecendo em seu
Campo Real... É como se tivessem anunciado que o mundo
inteiro se afundava, acabava, arrebentava... Como podia dizer
Renato que havia algo que importa mais que Campo Real? Para
sua consternação e seu espanto, a acometeu uma ira violenta,
uma indignação sem limites, que a fez repentinamente se voltar
contra o filho desde suas vísceras:
-É que não compreende? A desordem está em nossa casa,
destroem e arrebentam o nosso lar, destruindo Campo Real,
incendeiam, matam! Entende o que está acontecendo? Concebe
sua mente que esses cães, essa gente imunda...?
-Naturalmente que entendo... Não é a primeira vez que
acontecem essas coisas no mundo, mamãe. No Haiti, em São
Domingo, na Jamaica...
-A última coisa que te importa é o que está ocorrendo em
Campo Real! A mim, a ti, a nós...! São nossas terras, é nossa
casa! O que tem nas veias em lugar de sangue?
-Já disse que irei assim que for possível...
-Pois eu vou neste instante, embora procure a morte como
você pretende! -E elevando a voz, chamou a gritos-: Aninha...
Cirilo... Esteban...! Que tragam imediatamente meu carro de
viagem! Que se disponham a me seguir, em outro carro quantos
criados leais houver na casa! Que carreguem provisões e as
armas que encontrarem!
-Entretanto, Renato tem razão, senhora - interveio o
bondoso Padre Vivier. - É uma verdadeira loucura...
-Mamãe... Mamãe... Espera! -suplicou Renato.
-A que vou esperar? Se isto tivesse acontecido nos tempos
de seu pai, se vivendo seu pai tivesse ousado uma coisa assim,
os teria submetido a chicotadas! Mas você... Você...!
-Eu o que, mãe?
-Não é mais que um covarde! Um fantoche com quem as
mulheres brincam a seu desejo! Indigno de seu nome e de sua
posição!
-Oh, basta! Juro-te que...! -saltou Renato indignado e fora
de si.
-Não jure nada! Deixe-me sair! Abra-me passo! Serei eu...
Eu... Terei que ser eu a que...! - Sofía parou, como se afogando,
e de repente cai no chão.
-Mãe... Mãe...!
-Não se aproxime... Não me toque...! -recusou Sofía furiosa.
-Aninha! - chamou Renato com ira contida. E ao se
aproximar interpelada, ordenou autoritário-: Atende a minha
mãe, leva-a a seu quarto e que não se mova da cama. Que não
saia, embora seja preciso trancá-la com chave!
-Renato... Renato...
-Peço-lhe que me deixe em paz, Padre.
-Não posso fazê-lo sem terminar de lhe falar... Há algo em
que não falta razão a dona Sofía... Terá que ir a Campo Real,
pedindo antes auxílio às autoridades... Terá que consertar as
coisas... Aquilo esta como um inferno, um caos... Claro que só
pela força será impossível, mas terá que procurar um meio...
talvez essas pessoas, já saciadas, escutem um intermediário.
Prometo ficar junto à dona Sofía e tentar acalmá-la; mas se você
fosse agora mesmo à casa do governador...
-Nosso governador não está em Saint-Pierre - desprezou
Renato com ira e sarcasmo. - Encontrou a fórmula de
comodidade que aplicar a todos os problemas... Terei que ir
buscá-lo em sua casa de recreio em Fort d’ France...
-É lamentável... Mas restam outras autoridades: o chefe de
polícia, o comandante do Forte... Deve haver alguém a quem
pedir ajuda necessária...
-Não farei nada, Padre Vivier, embora você pense como
minha mãe, que sou um covarde...
-Por Deus! Vai você levar em conta esse arrebatamento de
cólera momentâneo... De desespero, melhor dizendo? Porque
ela...
O olhar frio e cortante de Renato deteve as palavras do
sacerdote... Muito eloquente, mais eloquente que todas as
palavras, fez com que o Padre Vivier permanecesse imóvel,
enquanto ele se afastava cruzando o pátio...

-Mônica... Olhe lá! Venha... Diga-me que você o vê também,


que não são meus olhos, que não estou sonhando...
Surpresa, trêmula, Mônica se deixa levar, quase arrastada
pela mão de Juan, a beira dos cortantes picos de pedra do
escarpado... Com sua agilidade de felino, ele desceu ajudando-
a, sustentando-a, como se para seus pés muito firmes não
existissem atropelos nem dificuldades... E ao fim, a faz se
adiantar por aquela parte da rocha que entrava no mar como
um rústico terraço...
-Olhe... Olhe Mônica! Não vê? Não compreende? O
promontório, a promessa de pedras que se elevava formando
um redemoinho...
-O promontório? - repetiu Mônica toda confusa. E
compreendendo de repente, exclamou-: Oh, já não está!
Desapareceu... Voou!
-Isso... Isso! Fizeram-no voar com as explosões que abriram
a sarjeta. Separaram-nos da terra, cortaram-nos de um talho,
convertendo em uma ilha o Cabo do Diabo, mas com isso não
contavam... Também desmoronou o obstáculo! Não recorda o
que falávamos? Seria preciso andar muitas milhas para poder
cruzar essas correntes. Não era possível aventurar-se em um
bote sobre o enxame que se formava lá o promontório. Agora
não há obstáculos, não vê? Não choca as ondas, o mar esta
tranquilo...
-Juan, o que está pensando?
-Há um caminho por onde escapar. Sua primeira idéia se
fez realidade: a rota do mar e por essa rota vou salvar-te...
Mônica se voltou para olhar Juan cara a cara. Um
momento, seus olhos se iluminaram. E como uma onda de
gratidão frente àquele anseio por salvá-la, se expressou melhor
que nunca neste instante... Logo, reagiu quase bruscamente:
-Por que diz me salvar, e não nos salvar? Não te disse
antes...?
-Fará o que eu quiser, o que eu mandar, o que tem que
fazer... É que não compreende? Dispomos apenas de um bote o
bastante forte para fazer essa travessia com probabilidades de
êxito... Aproveitando a hora mais calma, e na escuridão da
noite, acredito que poderemos cruzar, sem ser vistos, frente à
cidade. Tomaremos terra na enseada do Sul, perto de sua
antiga casa. Com um pouco de sorte podemos fazê-lo. Além de
nós dois, no bote cabe um moço. Levarei Colibri, o deixarei com
você... Eu posso retornar antes que amanheça... O que
acontecer depois não tem importância, posto que você estará a
salvo...
-Que não tem importância?
-Ficarei tranquilo, disposto a tudo...
-Tanto cheguei a te incomodar, Juan?
-Me incomodar? Acaso não te agradeci quando decidiu ficar
junto a mim? Acaso...? Oh, não, não!
-Continue falando, Juan. Peço-te que diga o que está
pensando neste instante. Que mulher acredita que sou Juan?
-Sou tolo para os elogios...
-Não os mereceria se aceitasse o que pretende. Não, Juan,
não tenho que aceitar. Sairemos todos, nos arriscaremos todos.
Se, como diz, está aberto o caminho do mar, por ele temos que
ir, correndo a mesma sorte. Esses homens têm madeiras,
ferramentas, botes pequenos... Você saberá como arrumá-los,
como repará-los, como unir todos se for preciso. Antes falaram
de construir uma espécie de balsa...
-Que teria se arrebentado contra as rochas.
-Agora já não. Você mesmo acaba de dizer.
-Um só bote pode passar inadvertido. Se forem vários, já
não seria a mesma coisa. De qualquer modo, tentaremos, mas
quando o seu já tiver passado.
-Então sim que será impossível. Tem que unir todas as
vontades em um só esforço...
-É que não pode ser. Outros teriam que ir muito mais
longe. Você pode desembarcar em qualquer parte...
-Não está o Lúcifer perto da enseada Sul? Ali o ancorava
antes... Não pode nos servir de refúgio?
-Sim, talvez... É muita carga para ele... Embora, na
realidade, não sejamos muitos... Só um pobre punhado de dor e
miséria...
-O Lúcifer é um navio marinheiro, forte... Suas adegas são
amplas. Se como suponho, estiverem vazias...
-Efetivamente. Podem esconder-se todos, sim... Claro está
que foi confiscado, mas não acredito que exerçam sobre ele
nenhuma vigilância. Bastou-lhes deixá-lo o mais longe possível
do cais, ancorando-o no outro extremo do Cabo do Diabo... Não
lhes ocorrerá ir lá para nos buscar...
-Verdade que não?
-Sua idéia é excelente, Mônica; mas é muito mais perigosa
que a minha...
-O que importa um risco mais? Antes, quando me falou,
disse-me que estava disposto a tudo para salvá-los... Queria
pedir ao governador que jogasse sobre você a responsabilidade
de tudo que aconteceu... Muito devem te importar, quando
estava disposto a uma coisa semelhante.
-Sim, Mônica, muito... Mas há algo que me importa cem
vezes mais.
Tornou a olhá-la estranhamente, e ela aguardou tremendo;
mas foi uma pergunta inesperada a que brotou dos lábios de
Juan:
-Mônica, pensa que Renato te abandonou? Pensa que o que
nos fez foi obra de sua vingança, lançada contra você?
-Pode ser... Ao ir-se, falou-me em tom de ameaça -
recordou Mônica, vacilando. - Mas não acredito Juan. Ao
contrário... Tenho a convicção de que se ele tivesse podido
evitar, o teria evitado...
-Por amor a você? O que acredita que pode mais ter em seu
coração: o amor que te tem, ou o ódio que me guarda?
-Nele, o amor é mais forte que o ódio, Juan. Acredito que
não nasceu para odiar... Em sua alma, o rancor e o ódio são
passageiros... Um arrebatamento, uma labareda, e logo tudo se
desfaz... Sempre foi assim... Não acredito que de repente possa
mudar... Foi educado para a cortesia, para a vida suave e fácil...
Mas, a que vêm todas essas perguntas? Que espera ou o que
teme dele?
Mônica olhou com ânsia, e a seu olhar respondeu o de
Juan, grave, profundo, carregado de tristeza...
-Acho que aceitarei seu plano, Mônica. Não deveria aceitá-
lo, porque significa mais risco para você; mas, afinal, é a mesma
coisa, já que do perigo maior não posso te liberar... Porque sou
eu mesmo, e não poderia tampouco deixar nas mãos de
ninguém os remos do bote que tem vai te levar... Vou falar com
os outros, levar esse último raio de esperança... Era para você,
como esse pão que repartiu a minhas costas... Venha comigo...
Leve você mesma, como um presente...

-Aninha... O que aconteceu? Minha mãe...?


-A senhora já está um pouco melhor. Teve um terrível
ataque de nervos, e depois, um colapso... Veio o doutor e quase
à força a fez tomar o calmante... Mas já está dormindo, e junto
com ela ficaram Josefa e Juana...
Renato bebeu uma taça mais, afastando depois a bandeja
com um gesto de desgosto e desagrado. Estava no fundo
daquela biblioteca, que uma vez mais lhe servia de refúgio,
enquanto procurava inutilmente no álcool a serenidade e a
calma. Ficou ali várias horas consumindo-se em uma dura
batalha contra si mesmo, esperando com ânsia... Era o dia em
que, segundo seus cálculos, deveriam chegar os papéis que
aguardava... Eram as densas horas intermináveis em que cada
minuto se alargava como uma eternidade...
-Não falou mais minha mãe de ir a Campo Real?
-Não, senhor. A senhora não fez mais que chorar... Nem
sequer quis voltar a escutar o Padre Vivier... Eu sim... Eu acabo
de ouvi-lo, além do que já contaram na cozinha as moças. Que
horrível, senhor, que horrível tudo!
-Imagino que o que aconteceu com Batista te afetou mais
que a ninguém...
-Tinha que acabar assim... É horrível, senhor, mas é a
verdade. Todos o odiavam tanto... Tanto... E ter queimado
Kuma...
-Queimá-la? -surpreende-se Renato.
-O senhor não sabe como começaram as coisas? Não,
claro... Contaram depois. Batista ateou fogo à cabana de Kuma,
sem deixá-la sair. Dizem que ria quando os vigilantes lhe
atiravam pedras cada vez que aparecia...
-É inaudito! O que está dizendo?
-Quando ao fim a deixaram escapar, terrivelmente
queimada e meio afogada pela fumaça, arrastou-a até o muro
grande, que fica mais à frente do desfiladeiro. Ali a deixaram
como a um animal, ameaçando-a com os rifles se tentasse
voltar a entrar... E ali a acharam morta os que saíram com as
carretas na manhã seguinte. Por isso se levantaram todos
contra Batista, por isso queimaram a casa...
-Minha mãe sabe isso? - perguntou Renato, que ficou de
pé, intensamente pálido.
-Sim, senhor, sabe. O próprio Batista o disse diante de
mim, embora não tão claro... E disse que tudo era por ordem de
sua...
-Minha ordem? Como podia eu ordenar uma coisa
semelhante?
-É o que eu me atrevi a dizer, senhor. Que o senhor não
podia ter mandado fazer isso... Mas nem a senhora nem ele me
deixaram falar... Agora, ele pagou sua dívida... -E você parece
satisfeito por ele ter pago - reprovou Renato em tom lento e
suave. – No entanto, Batista era seu parente, seu sangue...
-Não era meu sangue... E Kuma sim era minha amiga...
-Kuma... É verdade...
Renato mordeu os lábios, recordando, olhando de cima
abaixo à estranha moça, que se transfigura sob seu olhar...
Ardiam seus olhos, tremia sua escura carne...
-Você comprou de Kuma uma poção de amor... Acredita na
eficácia dessas beberagens?
-Kuma tinha poder, senhor, e bem claro o demonstrou: os
três homens que a maltrataram estão mortos já...
-Mas não pelo poder dessa infeliz, Aninha...
-E por que não, senhor? Kuma nunca amaldiçoou a
ninguém sem razão, e nunca amaldiçoou a ninguém em vão...
Poder de amor, e poder de morte tinha...
-Poder de amor... -repetiu Renato em um murmúrio. A idéia
passou por sua mente como um relâmpago, mas a recusou
imediatamente-: Basta de tolices... Traga-me uma garrafa de
conhaque e cuide para que não me incomodem por nada nem
por ninguém... Só que...
-Sim, senhor... Lembro-me da ordem... Só se trouxerem
esses papéis do Bispado, que está esperando...
Renato bebeu até o fundo uma taça mais, e ficou imóvel,
com a cabeça baixa e os olhos entrecerrados... Bebeu para
aturdir-se, mas não conseguia apagar a faísca ardente de seu
pensamento, afrouxar o anseio daquela espera tensa,
interminável... De novo tomou outro gole que na garrafa
restava, e a jogou de lado, ficando de pé com passo vacilante
para ouvir as surdas detonações como se fosse trovão...
-Oh...! O que é isso? - E elevando a voz, chamou-: Aninha!
Aninha...!
-Aqui está o conhaque, senhor - mostrou Ana, indo com
passo rápido.
-O que é esse ruído? Esses canhões?
-Estão soando faz vários dias, senhor. Não recorda? Dizem
que é o vulcão... Há esta hora fica o céu vermelho e está
voltando a cair cinza como na outra tarde... Já os tetos e as
árvores estão brancos... Dizem que assim é a neve...
Renato passou os dedos pelo batente da aberta janela,
recolhendo aquela cinza muito fina, que ia caindo espessa e
cálida, e comentou depreciativo:
-A neve? Ora! Neve quente... Quase queima, e apenas deixa
respirar... Ponha aí essa garrafa e não volte a entrar a não ser
para me dar os papéis que estou esperando... Uh...! Faz um
maldito calor do inferno!
Bebeu um gole, outro e outro... Na realidade, o ar ia ficando
irrespirável... É um calor abafado como fogo penetrava pela
janela aberta... Enquanto se retirava muito devagar, voltou
Aninha a cabeça para olhá-lo com dor... Renato voltou a cair na
poltrona. Em sua mente se mesclavam as imagens... A
biblioteca se povoava de sombras que não existiam... Alguém se
destacava entre as demais: tinha os olhos negros e os lábios
como chama... Sorria... Sorria enquanto lhe oferecia uma taça
de champanha, e ouviu, como dentro de si, as palavras que
profeticamente lhe disse um dia Aimée:
"Chorará... Chorará por ela, e eu me rirei de suas
lágrimas... Rirei de verte cair cada vez mais baixo... cada vez
mais baixo, até o inferno onde te aguardo..."
-Não é verdade... Não é verdade! - gritou Renato, como se
despertando de sua letargia. - Não está aqui...! Não existe! É um
fantasma... Nada mais que um fantasma...!
-Senhor Renato... Senhor Renato...! –entrou Aninha na
biblioteca, espantada.
Renato se estremeceu, voltando para a realidade... Frente a
ele, Aninha elevava um abajur cuja luz dissipava as trevas e os
fantasmas... atrás dela, um empregado vestido de branco, em
cujas mãos estavam um grande envelope lacrado...
-Traga aqui... Já pode dizer que o entregou em própria mão
– advertiu Aninha ao empregado, pegando o envelope. E
dirigindo-se a Renato-: Empenhou-se em entrar ele mesmo, em
vê-lo, senhor...
Renato fez saltar o selo do lacre com o escudo da sede
episcopal de Saint-Pierre, e começou a ler com ânsia as
palavras que dançavam diante de seus olhos injetados pelo
álcool, enquanto Aninha retrocedia, empurrando o curioso
mensageiro:
-Pode ir... Eu te levarei o envelope assinado...
-Livre! Livre! Concedida a petição! Passada! Livre! Já
Mônica não é de Juan do Diabo!
Quase fora de si, tremendo as mãos na quais sustentava
aqueles papéis tão desejados, quase sem dar crédito aos olhos
que viam o que tão ansiosamente lutou por conquistar; Renato
D'Autremont repetiu, como miserável pelo delírio de uma
obsessão, aquela palavra que significa tudo para ele nesses
instantes:
-Livre! Livre!
Da porta, cravados seus grandes olhos muito negros no
homem branco, Aninha saboreava os sedimentos daquela dor,
daquela angustiada desesperança que vivia sempre junto ao
objeto de seu amor impossível... Com uma emoção enorme, a
obscurecida mente de Renato se limpou com um golpe violento;
as névoas do álcool, a tortura do remorso, o negro mundo de
sombras em que seu pensamento estava sepultado, tudo se
filtrou através de uma peneira de prata, tudo vibrou de novo
como um cristal, e alegremente comentou:
-Aninha não te parece maravilhoso? Estas coisas, às vezes,
demoram anos!
-Sim, senhor... É muito estranho - assentiu Aninha lenta e
tristemente. - Mas como seu Muito ilustre é parente da senhora,
e, por conseguinte, seu... Como, além disso, ele tem tão boas
amizades no Vaticano...
-Com tudo isso contava. Mas, de todos os modos...
-O senhor estava seguro de receber hoje esses papéis,
verdade?
-Como podia estar seguro, Aninha? Estava desesperado...
Era o prazo que minha necessidade tinha posto a minha
esperança... Não era possível esperar que as pessoas do Cabo
do Diabo resistissem mais. Tinham que render-se, que entregar-
se, e para que Mônica não caísse enredada com esses bandidos
era preciso romper este maldito laço, ter nas mãos a
perseverança de minhas palavras. De sobra sei o que significava
a viagem do governador a Fort d' France... Não queria
comprometer-se, não queria ver-se obrigado a ir abertamente
contra mim nem contra as leis. Com estes papéis irei buscá-lo...
-Agora? Mas, a senhora...
-É certo... Mamãe... Campo Real... De repente, não
recordava tudo isso...
Levou-se as mãos às têmporas, as oprimindo ali onde um
martelo surdo e tenaz parecia golpear. Era a ressaca do álcool, a
que não conseguia vencer apesar de todo seu entusiasmo...
Seus pés vacilaram sua visão não estava clara, mas seu coração
pulsava triunfante, sua impaciência partia os obstáculos para
chegar ao fim desejado...
-Irei amanhã a Campo Real... Ou depois de amanhã... Logo
que puder... Falarei com o governador sobre duas coisas...
Isso... Falarei sobre as duas coisas... Diga isso a minha mãe,
Aninha, diga que saí à procura do governador e que estou
decidido a arrumar também o assunto de Campo Real... Entre
para tranquiliza-la, faça com que se acalme... Diga que eu...
Não sei o que lhe dizer...
-Então, é verdade que o senhor sai agora mesmo para Fort
d’ France? Mas antes precisará descansar um pouco, trocar de
roupa, comer algo...
-Seria o razoável, mas o tempo apressa... Tomarei um
banho, trocarei de roupa... Faça com que me preparem um café
bem forte... O que tem na mão? O que é esse envelope?
-Os papéis que recebeu senhor. Estava esperando que o
assinasse... Exigiu o mensageiro...
-Oh, sim, claro! E tenho que adicionar umas palavras de
gratidão. Terei que escrever uma carta... Não... Na realidade,
devo ir eu mesmo... É o menos que posso fazer... Seu muito
ilustre me serviu de um modo admirável... Não há mais
remédio... Passarei um momento antes de sair para Fort d’
France... Reserve o mensageiro... Que lhe dêem uma taça e uma
boa gorjeta... Faça com que preparem tudo... Logo, falarei com
minha mãe... Avise também a Cirilo...
-Fará a viagem a cavalo, senhor? Parece-me... Perdão,
senhor, mas me parece que não pode mais...
-É certo, Aninha... O cavalo é mais rápido, mas tenho que
medir minhas forças. No carro posso descansar algo... Diga a
Cirilo que sele o carro pequeno, o de dois assentos... Que ponha
o novo alazão...
-Para o carro pequeno?
-Não entendeu que preciso voar em vez de correr? Anda...
Anda...
Obedeceu a donzela, estremecida com a dor de seu amor
enquanto as trêmulas mãos de Renato oprimiam contra o peito
aquele grosso maço de papéis selados que tanto significavam
para ele, e exclamou jubiloso:
-Minha Mônica, já está quebrado o último laço que te
atava!

-Então, esta noite, Juan?


-Sim... Acredito que poderá ser esta noite, se ao sair à lua, o
mar se acalmar...
-E não será mais perigoso que possam nos ver à luz da lua?
-Sim, claro... Mas não há bote que possa separar daqui com
este fluxo. Neste tempo, o mar está acostumado a se acalmar
quando aparece a lua... É lua nova... Não ilumina muito... E em
uma empresa onde são tantas as dificuldades, não podem
evitar-se todas... Terá que escolher as que menos possam
prejudicar...
Juan e Mônica estão sozinhos no escuro mirante da rocha,
aquele que se levantava sobre as ondas encrespadas... E na
quase absoluta escuridão daquela noite estranha, na sombra,
como duas figuras densa, que uma da outra se aproximavam,
levemente iluminadas de quando em quando pela baforada
avermelhada que lançava contra o céu o vulcão...
-Tudo está preparado, verdade, Juan?
-Estão acabando de prepará-lo. Foi preciso agir com muita
cautela, pois essas pessoas não param de nos espiar. Depois do
golpe que nos deram, esperavam que nos rendêssemos
totalmente desesperados. Nosso silêncio pode levantar suspeitas
sobre termos uma saída, que tramamos algo, e nesse caso...
É melhor não pensar, Santa Mônica... Há tantos canhões nos
Fortes de Saint-Pierre, que olham para o mar... Mas não tem
que pensar no pior... Não quero vê-la preocupada... Disse-te
Santa Mônica para te zangar e te devolver com isso os ânimos,
mas não fique ofendida. É que está começando a aceitar que
mais de que mulher tem de Santa?
Aguardou o protesto, que não chegou. Mônica não
respondeu. Talvez tivesse alguma ternura nas palavras com que
ele falsamente pretendia zombar dela; talvez até em silêncio,
estivessem muito perto seus corações apaixonados, e pulsavam
juntos no mesmo ritmo com que as robustas ondas se
arrebentavam contra o escarpado... De repente, Mônica advertiu
assustada:
-Outra vez esse ruído... Não ouvi?
-Teria que estar surdo... E olhe como se acende o vulcão...
Derrama rios de lava... Os vales daquele lado devem estar
assolados, queimados por esse fogo, e se canalizar para o rio
grande, arrastará os moinhos e fábricas... Seria gracioso...
-Gracioso? Como pode dizer isso, Juan?
-Por não dizer que seria magnífico, Mônica. Se isso
acontecer, todo mundo correrá para aquele lado. Pode que até
nossos guardiões se distraiam. No momento, somos o ponto de
atenção de toda a cidade; mas se do outro lado há uma
catástrofe...
-Não fale assim, Juan.
-Essa é a vida, Mônica. Uma catástrofe para outros,
poderia ser a salvação para nós, e estranho é o momento de
felicidade que não custa a alguém lágrimas ou sangue...
-Não diga isso. A verdadeira felicidade é a que não fere nem
maltrata a ninguém. De pouco vale o que conseguimos
atormentando a outros...
-Vivemos em um mundo de atormentados, Mônica. De
sofrer, ninguém pode nos liberar...
-Por que fala sempre de um modo tão amargo?
-Porque cheguei ao fundo de muitas coisas. Mas também
aprendi outras, Mônica, e não me importo de dizer que algumas
delas as aprendi a seu lado. Quase não importa sofrer, já que
parece que para sofrer nascemos, sempre que puder sofrer-se
com dignidade. Conservar nosso direito de homens, elevar a
cabeça como seres humanos, como já uma vez te disse, nos
manter duros e erguidos sobre a terra áspera e amarga... É o
que me consola de ter levado a estes homens talvez à morte...
Talvez morreram por sua rebeldia; mas, ao rebelar-se,
conquistaram seu direito a viver...
-Que horror! Ouviu? - exclamou Mônica quando um forte
trovão retumbou imponente.
-Sim... Ruge a terra, mas o mar vai acalmando-se, é o
caminho do mar o que nós temos que percorrer... Se houvesse
um terremoto, se esta cidade de amontoados de ouro se
sacudisse até as vísceras, cairia tudo, e tudo ficaria à mesma
altura. Às vezes, esse a quem vocês chamam Deus deveria
passar a mão sobre o mundo e fazer uma tábua rasa...
-Está cheio de ódio, Juan - queixou-se Mônica com
profunda dor.
-Não acredita... Antes, sim... Antes, as raízes de meu ódio
se molhavam em fel, mesmo que quando parecia só um alegre
marinheiro disposto a rir e a embebedar-se em todos os
portos... Agora há algo dentro de mim que mudou, e talvez você
tenha a culpa, Santa Mônica... Agora, meu ódio é como uma
indignação contra toda a injustiça, contra todo o mau... Uma ira
contra os que esmagam os que estão sob seus pés, contra os
que dirigem um chicote nas plantações ou no quartel, do
palácio do governador ou no cavalo do capataz... E com ira, com
ânsia de remediar o mal e de mudá-lo, um desejo selvagem de
impor a justiça... com murros... Sim, Mônica, estou cheio de
algo que me formiga no sangue... Antes, era ódio, era rancor;
agora, é algo mais nobre: é uma ânsia de lutar para que seja
melhor esta terra que habitamos uma esperança de que o dia de
amanhã...
-O dia de amanhã, o que?
-Ora! Loucuras...!
-Embora sejam loucuras, diga-me Juan, para aparecer em
sua alma, para saber que guarda nela, o que deseja...
-Riria se te dissesse que queria ter um filho? Não um...
Mais... Filhos... Muitos filhos, e que quando chegassem,
encontrassem um mundo melhor, obtido pelo esforço destas
mãos...
-É o melhor homem da terra, Juan do Diabo!
Os brancos dedos de Mônica acariciaram uns instantes
aquelas mãos que Juan juntou com um gesto de força e de
ternura; escorregaram por aquela cicatriz que um dia beijou
seus lábios, o rastro da adaga de Bertolozi, e logo se elevaram
para acariciar os hirsutos cabelos, como se repentinamente
deixasse de ver nele o homem forte e duro, erguido contra a
adversidade, para olhá-lo como um triste menino desamparado,
maltratado e ferido, vítima de uma escura vingança. Outra vez,
como então na luminosa manhã do convés de Lúcifer, seus
olhos se encheram de lágrimas... era o momento decisivo em
que a mesma emoção invadia as duas almas, à hora bendita,
cem vezes esperada, em que tremiam para cair às máscaras do
orgulho, e com esforço, Juan se defendeu até o último instante:
-Saiu à lua e o mar está aquietando-se... Embarcaremos
quanto antes... Jogaremos tudo por todos...
-Sim, Juan, tudo por todos... Mas antes de nos lançarmos
nesta aventura que talvez seja a última, antes de descer a essa
praia de onde talvez veremos o céu pela última vez...
-Patrão... Patrão...! Patrão... Senhora Mônica...! Onde
estão?
-Aqui, Colibri! Venha logo! - chamou Juan. E em voz mais
baixa, advertiu-: Algo acontece Mônica...
-Ai, patrão! Ai, minha senhora! -lamentou-se Colibri
aproximando-se sufocado pela busca. - Estou à uma hora
procurando-os sem encontrá-los...
-Por quê? Para que?
-Todas as pessoas estão juntas na praia, ao lado dos botes,
preparados para jogá-los ao mar...
-Bom, e o que? - estranhou Juan. - Ali é onde justamente
lhes mandei estar...
-Sim, já sei meu senhor. Mas não estão porque você o
mandou; ao contrário...
-Ao contrário? O que quer dizer? -perguntou Mônica.
-Estão discutindo, brigando... Querem separar os botes que
o patrão mandou juntar, arrancar os barris das balsas...
-Mas, estão loucos? -surpreendeu-se Mônica.
-Estão como loucos, minha senhora. Há muitos moços
assustados, muitas mulheres chorando...
- Segundo não está lá? -interrompeu-lhe Juan.
-Sim... Claro que está. Mas isso é o pior, meu senhor.
Segundo é um dos que querem separar os botes... Está de
capitão dos que não querem ir para o Lúcifer. Dizem que em vez
de chegar tão longe, podem desembarcar por aqui mesmo, um
pouco mais abaixo, e tratar de meter-se no monte.
-Mas ali estão os soldados! Serão capturados...! -advertiu a
surpreendida Mônica, sem chegar a compreender.
-Naturalmente! E o que diz Segundo...? -perguntou Juan.
-Segundo diz que o Lúcifer vai se afundar quando meter
nele toda a essa gente que vamos...
Juan se ergueu com as pupilas brilhantes. Só um momento
pareceu vacilar. Logo, puxou o braço a Mônica e propôs:
-Vamos... Olhe... As ondas abaixaram. É o momento
propício e teremos que aproveitá-lo. Não percamos nem um
minuto...
-Mas, se negarem a te seguir, Juan?
-Seguirão... Os que são dignos de ser salvos...
Com passos rápidos e velozes, chegaram os três à praia
onde se formavam redemoinhos de pessoas, e a voz forte e
imperiosa de Juan ordenou com decisão:
-Todo mundo aos botes! Chegou a hora! As mulheres e as
crianças primeiro! Os homens, que empurrem os botes, e saltem
depois! O que esperam? Não me ouviram? Você Martín, move às
pessoas de seu bote! Você, Enguia, com sua gente à água!
Julián... Preparados...!
Como se à voz de Juan a dúvida se desvanecesse, como se
sua presença tivesse o dom de exaltar o valor e sua voz a força
para empurrar, um a um, os três primeiros botes entraram em
água. Só Segundo permaneceu imóvel, com os braços cruzados,
como se a dúvida mais cruel lhe torturasse, e junto a ele, os
poucos pescadores que tinham que ir ao último bote,
esquivando o olhar de Juan...
-Me perdoe patrão, mas os destes botes preferem ficar...
-Ficar? A que?
-Já sabe patrão. Pensa que não vi Colibri correndo pelas
pedras para lhe avisar?
-Então, é verdade... E é você precisamente Segundo...
Você...
-Sinto muito, patrão, mas tenho família a quem minha
morte vai importar...
-Você tem medo... Você...? -duvidou Juan com mais
surpresa que ira.
-Não tenho medo de morrer brigando, mas isto que o
senhor quer que façamos é como atirar-se a um poço de cabeça.
Prefiro me entregar aos soldados! Pelo que fizemos, não vão
matar-nos...
-Trancar-lhe-ão pior que a um animal...
-Do cárcere se sai, e do fundo do mar não sai ninguém. Se
tivéssemos ido sozinhos...
-Cale-se! Cale-se e embarque!
-Não embarcaremos patrão! E se o senhor pensasse... Falo
à senhora Mônica... Se pensasse, ficaria do nosso lado, que ao
fim não vai passar lhe nada, nem tem por que esconder-se... E
se aceitar a segurança que lhe dá Segundo Duelos...
-Prefiro a insegurança que me dá Juan do Diabo - replicou
Mônica, suave e irônica. - Vamos, Juan!
-Um a um vão separando - ordenou Juan elevando a voz. -
Remem até estar a cem metros da costa, e ali aguardem que
meu bote passe o primeiro... Colibri solte essa amarra! Pode?
-Pois, claro. Agora eu sou o segundo de Lúcifer, patrão,
verdade?
Os três botes, unidos por longas pranchas, protegidos por
barris flutuantes, entraram saltando sobre a crista das ondas, e
Juan levantou Mônica em seus braços depositando-a no
pequeno bote do qual Colibri soltou a amarra. Uma pontada lhe
atravessou o ombro esquerdo... Só então se lembrou de sua
ferida, mas um instante bastava para entrar ele também,
empunhando os remos...
Como uma mola negra, o Cabo do Diabo foi ficando atrás.
Mônica estava muito perto, de frente a ele. Primeiro como uma
forma branca que iluminava como a tênue lua nova; logo, como
a escuridão mais densa. Uma cortina negra se estendia
tampando as estrelas, apagando o estreito fio de prata, e as
ondas, um instante tranquilas, saltaram como um cavalo que se
encabritava... De repente, a noite escura se voltou luminosa,
um feixe de chamas ardeu no topo do Monte Brigue como uma
tocha gigante rompeu-se no ar como um fornecedor de fogo
líquido, e um rio de lava rodou montanha abaixo...
Capitulo Quatorze

-Aninha o que foi isso? Vi como ardia a casa por essa


janela...
-Foi na montanha... O vulcão... A senhora viu a labareda...
Ainda brilha no pátio! O céu negro ficou vermelho...
-Mas não treme a terra... Não tremeu. Foi como uma
explosão...
-Não, senhora, foi na montanha... Não lhe disse que é a
montanha?
Sofía D'Autremont deixou a cama, correu à porta de seu
quarto que dava para o pátio, e pelo largo corredor negro ficou
contemplando, a densa sombra, aquele rio de lava aceso que
rodava pelas colinas levantadas, saltando em cada pedra, em
cada obstáculo... Logo, sua cabeça se voltou com angústia, ao
perguntar:
-Onde está meu filho? Onde está Renato? Saiu verdade?
Ouvi-o chamando Cirilo; logo, o carro que se afastava, e bem
posso supor aonde foi. Não tem mais vida que rondar o maldito
Penhasco do Diabo.
-Agora não, senhora. O senhor Renato recebeu os papéis do
Bispado. Parece ser a resposta que ele desejava.
-A anulação do casamento de Mônica? - surpreendeu-se
Sofía. - Não pode ser! Não teve tempo para uma coisa
semelhante!
-Acredito que seu Muito ilustre o ajudou muito, e tão
agradecido está o senhor Renato, que disse que lhe agradeceria
antes de seguir para Fort d’ France, iria procurar o
governador...
-Meu filho foi a Fort d’ France? -perguntou Sofía cada vez
mais desgostada e surpresa. - E demorou uma hora para me
dizer isso estúpida? Ai, Meu deus, Meu deus!
-Eu, senhora... É que não foi para o que a senhora pensa...
-O que importa para o que tenha ido! É que não sabe por
onde corre o caminho para Fort d’ France? Certamente, para o
Sul; mas antes dá a volta a essa montanha...
-Esse é o caminho novo, que cruza os picos de Carbet...
-E o que outro pode ter tomado meu filho, se certamente
saiu para lá arrebentando os cavalos? Não foi assim?
-Si... Sim, mandou enganchar o novo alazão no carro. Disse
que não precisava correr, a não ser voar...
As duas chegaram à porta lateral. Desde ela, os olhos
ansiosos seguiam a rota ígnea da lava que transbordada, que
saltava; alarga-se e logo se afundava como se rodasse o fundo
do vale.
-O fogo corre para o engenho de Clerc - explicou Aninha.
-por ali justamente vai o caminho de Carbet! Se ele tiver
prudência...!
-Saiu como um louco... fora de si, e tinha bebido tanto...
Tanto...!
-Chist! O que é isso? O que gritam esses homens? - quis
saber Sofía ao ouvir vozes ansiosas a certa distância. - Corre
atrás desse homem, Aninha, grite... Alcança-os...!
-Dizem que um rio de fogo levou o engenho de Fernando
Clerc, a refinaria, as casas... Que arrasou os canaviais e correu
sobre o caminho de Carbet - explicou Aninha, retornando onde
se encontra sua senhora.
Sofía D'Autremont se sustentava segurando-se ao marco da
porta com as mãos crispadas, afogando-se, tentando em vão
respirar aquele ar espesso e ardente que envolvia a cidade
descendo como um hálito avermelhado da alta cúpula do
sinistro vulcão. Desde seus mil trezentos e cinquenta metros de
altura, o Monte Brigue arrojava aquele rio candente que ia
ficando mais pálido, como se apagasse, o rumor de mil vozes
que gritavam, milhares de pés que corriam apressados,
centenas de carros que rodeavam, saiam da cidade
bruscamente sacudidos pela notícia da catástrofe...
-Há mais de vinte mortos, madrinha... E feridos com
queimaduras horríveis...
-É preciso ir, procurar o Renato, encontrá-lo...
-Apenas ficaram três cavalos nas cavalariças, e o carro
grande. Esteban pode me levar...
-Levará nós duas Aninha! Corre, corre e dá as ordens
necessárias!
Apoiando-se nas paredes, Sofía D'Autremont entrou no
largo pátio de sua casa e escorregou seu corpo cansado até ficar
com as mãos, juntas enquanto murmura chorando em voz
baixa:
-Humilhei meu filho, recusei-lhe e Deus me feriu com a dor
mais profunda, com o espantoso medo de que me arrebate...
De pé na boléia, segurando com todas suas forças as
rédeas dos cavalos encabritados, Cirilo, o mais fiel chofer dos
D'Autremont; conseguiu desviar o pequeno e frágil carro,
afastando-o da vertente onde, em lagos de fogo, esparramava-se
a ardente lava que caía como uma avalanche da cúpula do
Monte Brigue até a concha do rio Branco, estendendo-se como
um lençol candente sobre ladeiras, caminhos e semeados.
Também Renato ficou de pé para percorrer o terrível panorama
com olhos arregalados pela surpresa: o novo caminho de Carbet
desapareceu, a florescente fábrica de açúcar de Fernando Clerc
era só um monte de ruínas fumegantes. Nada da refinaria, da
casa dos colonos... Mas como uma espora implacável, que se
cravava em sua vontade, sentia ânsia de seguir...
-Logo! Dobre pela direita, Cirilo. Apurem-se os cavalos,
cruzaremos o vale antes que a lava nos alcance!
-Cruzar o vale? Os cavalos estão espantados... Conhecem o
perigo, não obedecem ao freio... Olhe-os, meu senhor!
-Sujeite bem as rédeas, estúpido! Dobre à direita, digo-te!
-Não pode ser senhor! Terá que voltar atrás... Atrás...!
-Temos que chegar a Fort d’ France, custe o que custar!
Traga para cá! Solte! Não é mais que uma carga inútil! Volte
sozinho a Saint-Pierre, se quiser!
Renato saltou à boléia, tomou as rédeas, empurrou
bruscamente o chofer fazendo-o cair na terra, e lançou-se a
galope os briosos animais sob a chuva de cinza ardente que
arrojava o vulcão... Subitamente, a labareda que coroava Monte
Brigue se apagou. Empalideceu a lava esfriando-se e um áspero
sopro de ar do mar varreu as nuvens cor de fuligem, limpando
outra vez a lua nova, que brilhava como um aro de prata...

-Ali está a cidade!


De pé sobre o pequeno e forte bote que servia de guia à
expedição, Juan do Diabo estendeu a mão assinalando as luzes
de Saint-Pierre, que brilhavam á distância, ao pé da massa mais
escura das altas montanhas. Estavam longe, muito longe da
costa, totalmente desviados da rota que propuseram seguir,
devido à terrível marejada que se elevou arrastando-os. Mas
nada grave lhes aconteceu. A cinquenta metros escassos
podiam ver as três barcaças unindo-se de novo. O golpe do mar
rompeu as pranchas e as cordas estendidas entre elas para não
separar-se, mas não os arrastou as suas profundidades a
nenhum de seus tripulantes, e sobre o mar, que voltou a se
acalmar, os olhos de Juan localizam o lugar...
-Sabe onde estamos Juan? -indagou Mônica.
-Muito perto da desembocadura do rio Carbet, totalmente
ao sul da enseada de Saint-Pierre. Vê aquelas luzes, aquelas
cabeças de alfinete que brilham na escuridão?
-Sim. Vejo-as um momento, quando as ondas baixam.
-Para lá enfiaremos a proa - explicou Juan. E elevando a
voz, ordenou-: Acende o farol, Colibri. Aqui já não há perigo.
Acende o farol e levante-o do lado do cristal verde. É o sinal o
para que comecem a remar atrás de nós.
Que escura estava a noite e que longínquos os pontos de
luz! Repentinamente, apagou-se aquela labareda avermelhada
que iluminava o firmamento. Todo rastro de fogo empalideceu
até desaparecer, como se o terrível e velho vulcão voltasse a
afundar-se em sua letargia, e parecia mais profunda e solene a
imponente solidão da noite, estendida sobre o duplo abismo do
céu e o mar. O rapaz negro obedeceu com destreza. Apoiando as
mãos nos remos, Juan voltou a sentar-se. Foi até Mônica, que
profundamente percebeu aquela presença que lhe embriagava;
um terrível e repentino desejo o invadiu de aproximar-se de seu
coração, de mostrar a sua alma!
Estendeu a mão até tocar a dela, úmida e gelada, e não
pode soltá-la. Segurou-a com uma angustiada ternura em que
se acendeu lentamente a paixão, e perguntou com suavidade:
-Mônica, tem medo?
-Por que tenho que ter medo?
-Está tremendo, e bem pode ter. Talvez não devesse dizer
que estamos em perigo...
-Sei embora não diga Juan. Mas, não tremo. Estremeceu-
me esse sopro de ar gelado que passou de repente.
-Sim... É o que varreu a nuvem negra... Esteve a ponto de
nos envolver, e acaso tivesse sido o final...
-Sim... Claro... Ocorreu algo em Saint-Pierre, verdade?
-Certamente ocorreu algo. Ainda brilham as luzes da
cidade, vêem-se também as dos bairros na montanha.
Entretanto, algo deve ter passado pelo rio Branco.
Provavelmente desembocaram nele as lavas, e chegaram até o
mar. Por isso se salvou a cidade, por isso estivemos a ponto de
perecer. Foi milagroso que essa onda enorme nos arrastasse,
tirasse-nos do meio. Foi provavelmente a mesma força da lava
ao cair do alto... Sabe que parece o que vocês chamam milagre,
Mônica?
-Sim, Juan, é um milagre. Esta noite tudo é como um
milagre...
A sombra da morte pareceu apagar-se. Acaso não sentia
entre suas mãos a de Juan, larga e cálida, rio de vida, sustento
invencível, objeto de esperança? Acaso não estava perto daquele
a quem desesperadamente amava com um amor que não
encontrava palavras com as quais se expressar? Acaso não
parecia que ele também calava, porque um nó de emoção se
apertava em seu peito? Acaso não brilhavam na sombra seus
grandes olhos, como duas brasas de paixão inconfessada?
Acaso não sentia estremecer a mão viril, unindo ao de seu
próprio coração os batimentos do coração daquele sangue?
-Agora é você que treme Juan.
-Talvez... Mas não de frio. Você me faz tremer, Mônica. Sua
presença nesta noite, que pode ser a última de nossas vidas...
-Não diga isso, Juan. Eu... Eu... -balbuciou Mônica
turvada. E mudando de repente, surpresa, exclamou-: Mas, o
que é isto? Sua camisa está molhada de sangue! É sua ferida,
que tornou a abrir-se. É um absurdo... Não pode remar com
esse braço...
-Este braço, embora sangre, saberá te defender e te
amparar...
-Me dê um momento para enfaixar sua ferida de novo...
-Quando estivermos no Lúcifer o fará. É perigoso pararmos
aqui... Pode vir outra avalanche... E não se preocupe... Só é o
sangue que me sobra, que estou derramando...
Sem saber como, ela já estava a seu lado e as duas mãos
brancas se apoiaram no remo...
-Juan... Juan...! Vou ajudar-te...
-Colibri poderia fazê-lo, se realmente o necessitasse; mas
não precisa. Iremos muito devagar... É o mais prudente... Mas
não te afaste... Estamos bem assim...
-Sim... Estamos bem... A vida é tão estranha...
Esteve a ponto de repetir aquela frase que ele jamais
esqueceu, mas um profundo rubor a faz calar... Sim, a vida era
muito estranha... Tão estranha que ela se sentia loucamente
feliz, com uma felicidade profunda e ardente, como se também
seu coração transbordasse em rios de lava, como se aquele
minuto valesse por toda uma vida, como se àquela hora de
sombras, que oscilava como um pêndulo nas bordas da morte e
da vida tivesse forças de eternidade...
-Juan, não te dói à ferida? - perguntou Mônica, sentindo-se
emocionada. - No que pensa?
-Nos homens que ficaram daquele lado...
-É incrível que Segundo fizesse uma coisa assim. Mas não
se atormente por eles... São traidores...
-Sofrem Mônica, e às vezes, ao sofrer muito, peca-se de
torpe e de desleal... Olhe já se vêem as luzes mais claras, mas
ainda estamos longe... Passará uma meia hora antes de
cruzarmos na frente a sua casa...
Várias lembranças vieram à mente de Mônica; como um
golpe do mar, rude e amargo, e repentinamente se separou de
Juan, que perguntou sentido surpresa:
-O que te aconteceu? No que está pensando? Diga-me no
que está pensando...
-Em Renato...
-Deveria saber. Preocupa-se com o que possa dizer o que
possa pensar... Acaso deve...
-Cale-se! Não quebre o encanto...
-O que? O que diz?
-Nada... Que queria chegar quanto antes ao Lúcifer... A
qualquer parte...
Juan não respondeu. Só afundou com força os remos na
água, e o pequeno barco parecia voar sobre as escuras ondas,
enquanto sangrava gota a gota a ferida mal fechada...

-O que acontece? Por que não prosseguimos?


-Acredito que não podemos madrinha. O caminho está
fechado... Há muita gente... Não nos deixam passar - respondeu
Aninha. E elevando a voz, perguntou a sua vez-: Esteban...
Esteban... O que acontece?
Sem esperar a resposta de Esteban, Aninha saltou do
grande carro fechado com vidros, no qual, com mil dificuldades,
Sofía D'Autremont chegou até o cruzamento do caminho de
Carbet. Soldados de uniforme detiveram o passo naquele lugar,
contendo a avalanche de curiosos que pretendiam e aproximar
do lugar do desastre. Ao longe, apenas se distinguiam as ruínas
fumegantes do que fora o engenho; a cinza, ainda quente, as
mudanças e as árvores, mas, por todos os atalhos que iam até
Saint-Pierre, rodavam para a cidade carros e carrinhos de mão,
e partiam pessoas a pé e a cavalo, em um êxodo improvisado e
repentino. Tremendo de impaciência, Sofía D'Autremont abriu
também a porta do carro, para indagar:
-Por fim, o que é o que acontece? O que acontece?
Esteban... Aninha...!
-Não podemos seguir madrinha. Por aqui não deixam
passar a ninguém - explicou Aninha.
-Mas, meu filho...
-Talvez tenha passado antes... Talvez também tivesse
retornado... É o mais provável, madrinha. Não pôde chegar a
tempo... Não pôde chegar antes...
-E se chegou no preciso momento da catástrofe? -
angustiou-se Sofía.
-Oh, não... Não, madrinha! Essas pessoas dizem que só os
trabalhadores do engenho, o administrador e seus familiares,
foram as vítimas... Contam-no de mil modos, mas nesse ponto
todos estão acordes. Dizem que a lava acesa caiu como uma
catarata e levou o engenho e as casas... Logo, caiu no rio e por
isso não queimou a ninguém mais... Dizem que aqui mudou de
rumo, que no caminho não queimou a ninguém. O senhor
Renato deve ter seguido viagem... Estava tão desesperado...
-Desesperado?
-Sim, madrinha. Estava mal, muito mal... Antes disse que
tinha bebido muito... Estava como louco, transtornado... Falava
sozinho, como um louco, quando eu entrei na biblioteca...
Falava sozinho... Ou com um fantasma, madrinha. Nomeava a
senhora Aimée... Ouvi-lhe chamá-la...
Aninha entrou muito devagar no carro, soprando-se junto à
dona Sofía, e um instante se olharam as duas mulheres
desoladas. Logo, aquela faísca de energia que tão ferozmente
sustentava a vontade de Sofía D'Autremont, ardeu em seus
olhos claros, ao dizer:
-Procuraremos por toda parte. Não voltarei para casa sem
havê-lo encontrado!
Como uma trilha de pólvora, sobre a qual corria uma
chama, ia de boca em boca por Saint-Pierre os relatos confusos
ou exagerados daquela catástrofe preliminar... À medida que o
carro dos D'Autremont ia avançando através das ruas, mais
densa era a multidão que paulatinamente ia aparecendo...
Fazendeiros, trabalhadores e comerciantes de todos os
arredores, iam à capital, uns em busca de notícias, outros
fugindo por antecipado do novo transbordamento de lava que
alguns anunciavam... Os cafés e restaurantes estavam lotados,
transbordavam de pessoas nos portais da praça... Obrigaram às
agências de vapores a abrirem seus escritórios, e rapidamente
se esgotaram as passagens nos navios que deveriam zarpar no
dia seguinte...
-O que aconteceu aqui? – quis saber dona Sofía.
-Vão ler um anúncio do prefeito. Sim, madrinha... São os
pregoeiros do Município - explicou Aninha. E dirigindo-se ao
chofer, elevou a voz-: Aproxime-se mais, Esteban, se aproxime
mais...
O murmúrio da multidão foi apagando-se brandamente, e
agora só se ouvia a voz do pregoeiro que ia debulhando o
anúncio como uma cantiga:
-Vizinhos de Saint-Pierre... Desprezem todo temor e todo
alarme. O que tinha que acontecer, já aconteceu; e nenhum
perigo ameaça ao que é propriamente a cidade. Aconselhou-se a
evacuação dos campos e povoados situados nas saias de Monte
Brigue, únicos que podem sofrer em último caso, e isso está se
levando a cabo de forma espontânea e com a maior rapidez.
Neste momento, segundo nossos cálculos, a cidade recebeu já a
mais de dez mil pessoas dos arredores, e continuam chegando.
Só as pessoas do povoado vizinho de Pescador ficaram isoladas,
mas está sendo prestando oportunos auxílios. Durmam
tranquilos, vizinhos de Saint-Pierre, e voltem amanhã às suas
ocupações habituais. Se as lavas voltarem a transbordar-se,
tomarão como antes o caminho do mar. Não há nenhum perigo
para a cidade. “Assinado Fouchet, Prefeito Municipal da Cidade
de Saint-Pierre de Martinica; a seis de Maio de mil novecentos e
dois...”
O carro dos D'Autremont reatou a marcha, e de repente,
com grata surpresa, Sofía exclamou apontando para o café em
frente ao qual estavam cruzando nestes momentos:
-Cirilo! Não é aquele Cirilo?
-Oh, sim! -concordou Aninha com alvoroço. - Para o carro,
Esteban... Para!
Aninha saltou da carruagem sem esperar sequer que esta
parasse, e correu para o bar aberto sobre a rua, cheio de
público como se fosse pleno dia, até pôr as mãos no braço do
grande homem cor de ébano, que ostentava a impecável camisa
de linho branco, típica dos serventes do feudo dos
D'Autremont...
-Cirilo... Cirilo... Onde está o senhor? Onde o deixou?
Horas estamos à senhora e eu desesperadas procurando a
vocês... Horas! Entende? Onde está o senhor?
-Não está comigo... Seguiu viagem...
Sofía D'Autremont não teve paciência de esperar. Saltou
também do carro, que parou no meio da estreita rua obstruindo
a passagem, até chegar ao servente cada vez mais turbado, e
perguntou:
-Seguiu viagem, aonde? O que aconteceu com meu filho?
-Ao senhor Renato, que eu saiba, não aconteceu nada.
-Mas, onde está? -Persistiu Aninha.
-Já deve estar chegando... Não disse que seguiu viagem?
-Para Fort d’ France? - perguntou Sofía.
-Sim... Sim, senhora - confirmou Cirilo. - Eu ia com ele,
mas me tirou as rédeas das mãos porque não quis mudar os
cavalos por sobre a sela. Tirou-me da boléia de um chute, e a
todo galope pegou o caminho velho, que dá volta por detrás do
píton de Carbet...
-Mas, não lhe aconteceu nada? –indagou ansiosa Aninha. -
Não sofreu nenhum dano?
-Responde idiota! -saltou Sofía sem poder conter sua
indignação.
-Como que não lhe aconteceu nada, minha senhora. Eu o
vi passar por cima de todos os canos presos e aparecer lá longe,
no caminho... Então, não ficou mais que pôr-se a andar...
-E por que não voltou para casa? Por que não foi me
avisar? -reprovou Sofía furiosa. - Era mais divertido dar voltas
pela rua, verdade?
-Não... Não, minha senhora. É que eu estava assustado...
Tentei ver o senhor e nada... Ele correu para Fort d’ France, e o
governador, que dizem que já vem para cá... Dizem que o
mandou chamar o prefeito e ele disse que vinha para aqui com
sua senhora e com esses dois doutores; que dizem são sábios,
para que todo mundo se convença de que não vai acontecer
mais nada. As pessoas ficaram loucas... Estão comprando
passagens para ir amanhã a todos os navios, mas dizem que o
governador não vai deixar que ninguém se vá, que vai mandar
soldados para que não deixem embarcar a ninguém... Lá na
outra quadra, no escritório da Companhia de Navegação de
Quebec, as pessoas quebraram as portas e os vidros... E até
para ir no convés desse navio que chamam o Roraima,
compraram passagens...
-Quem te disse tudo isso? -perguntou Sofía intrigada.
-Vi-o com os meus olhos, minha senhora. E, além disso, o
senhor Noel, o advogado...
-Onde está esse homem?
-Aqui mesmo estava, mas saiu, disse que iria esperar o
senhor governador em sua casa, porque tem que lhe falar
primeiro que ninguém...
-Primeiro que ninguém? - estranhou Sofía sem
compreender o alcance destas palavras.
-Está com uns papéis que já muitas pessoas assinaram, e a
todo mundo fala para que os assine, porque quer que o senhor
governador veja que são muitos os que desejam que perdoe a
Juan do Diabo e aos pescadores estão do lado de lá, e que
joguem uma ponte de para que saiam desse lugar, onde há mais
perigo que em nenhuma parte...
-O que está dizendo, Cirilo? Entendeu bem isso?
-Pois claro, minha senhora. É desta altura o montão de
papéis que têm assinados... Para mim acho que o governador
vai ter que lhe fazer caso...
-Cale-se e sobe à boléia! - ordenou Sofía autoritária. -
Acomode-se ao lado de Esteban... Vamos imediatamente ao
Palácio... Já veremos quem fala primeiro como governador!

-Acende a luz vermelha, Colibri... -A luz vermelha, patrão?


Para que parem? Vamos parar?- Eles vão parar para me
esperar... Vamos Colibri! Juan afundou um remo na água,
elevando o outro para fazer girar sobre si mesmo aquele bote
tão dócil em suas mãos, pondo proa à próxima costa... Estava
muito perto dos subúrbios de Saint-Pierre, nos contrafortes da
montanha que se elevava ao sul da cidade, conhecida como
Monte Parnaso. Uma pequena praia se abria ao pé dela, entre
as rochas; alegres quintas de recreio que fazia fronteira em seus
flancos, e na parte mais elevada, como um mirante sobre a
cidade e o mar, elevava-se um velho convento de religiosas,
edificado séculos atrás pela piedade de um colono enriquecido...
-Por que muda de rumo? Aonde vamos? - perguntou Mônica
surpresa.
Juan não respondeu... Remou com todas suas forças,
apertando os lábios, até que o bote estremeceu ao escorregar a
quilha na areia da praia, foi então quando ordenou:
-Segura os remos, Colibri. Vire o leme e fique atento a
marejada...
-O que aconteceu? -voltou a perguntar Mônica indecisa.
-Venha comigo...
Juan a tomou nos braços; saltou, afundando-se até mais
acima dos joelhos na água, e avançou com passo firme
facilmente a carregou, até depositá-la em terra...
-Juan... Está louco? O que pretende?
-Não posso te arrastar ao que quase é uma morte segura,
Mônica. Não faltou razão a Segundo ao temer que o Lúcifer não
resistiria à carga. Por egoísmo te arrastei comigo... Faltava-me o
valor para me desprender de você, para me arrancar de seus
braços... Sofri, lutei com todas minhas forças para deixar de ser
o que sou. Loucamente sonhei ser outro homem, fazer com que
minha vida mudasse para obter o milagre de vencer a distância
que nos separa...
-Que distância, Juan?
-A que você bem conhece. Que sua piedade não minta
neste momento decisivo.
-É que não compreendo nada - desesperou-se Mônica,
confusa. - Pretende me deixar aqui? Abandonar-me? - Muito
perto de um convento... Ali pode passar a noite, e depois, de
qualquer forma, se transladar a Saint-Pierre...
-Mas, o que diz? Que fala? Não quero te deixar, Juan!
-E eu não quero te levar à morte. Para que me obriga a te
dizer a horrível verdade? Estou perdido, Mônica!
-Não pode ser! -negou-se Mônica a aceitar o que Juan lhe
dizia.
-A estas horas, Segundo e os homens que ficaram com ele,
certamente foram capturados.
Serão obrigados a falar, dirão onde estamos, sairão em
nossa busca... E eu não vou entregar-me, Mônica. Irei ao mar,
mesmo sabendo que não poderei chegar muito longe...
-Mas então, mentiu... Mentiu-me!
-Calei-me enquanto lutava com minha consciência, mas a
razão ganhou. Não era mentira...
-Era mentira! E não só a mim, mas também mentiu a esses
desventurados...
-Para eles não há engano. Sabem bem seu destino. Têm a
mesma sorte: a desgraça, ou um pouco de esperança. A
esperança de uma vida miserável, que não é para você, Mônica
de Molnar...
-E se eu a aceitasse?
-Não me faça entrever um paraíso que não existe. Cale-se
Mônica, cale-se, pois se continuar te escutando talvez não tenha
forças para fazer o que é necessário... Porque te amo tanto...
Tanto...!
Estreitou-a em seus braços, pôs em seus lábios um beijo de
fogo; logo, bruscamente, desprendeu-se, rompendo o terno laço,
para correr ao bote contra o qual se estrelavam as ondas,
enquanto Mônica, em um grito dilacerador, clamou e suplicou:
-Juan! Não! Não! Não me deixe! Leve-me contigo! O que me
importa a morte?
O grito de Mônica se perdeu na noite, afundou-se nas
escuras águas cada vez mais inquietas que se elevam
encrespando-se e chegavam a golpear com suas gotas de
espuma suas mãos estendidas, seus olhos que olhavam sem
ver, seus lábios que ardiam como uma labareda; o rastro
daquele beijo indelével, o beijo que Juan deixou neles, forte
como o abismo que os separava: beijo amargo e, de uma vez,
cheio de doçura infinita... O primeiro, o único beijo de amor que
Mônica recebeu...
Uma onda gigante lhe banhou totalmente, mas ela não se
moveu... Ficou cravada naquela praia, destruída e deslumbrada
a alma, como se por um instante tivesse visto brilhar uma
estrela em suas mãos e esta tivesse deixado nelas só o ardor da
queimadura, só a ânsia de capturar o que por um momento
tremeu entre seus dedos... Dom supremo e sonhado que, pela
segunda vez, a vida lhe arrebatava... E a mais triste frase que
jamais escapou dos lábios humanos, subiu aos seus em fervor
de soluços:
-Juan, porque me abandonou?
De pé na praia, ainda olhando o horizonte, ainda registrava
com ânsia, esperando que a luz do dia nascesse e ajudasse a
encontrar a vela de Lúcifer, cheio de toalhas do audaz veleiro do
marinheiro, que se ia ao longe com sua pesada carga que
significava a perdição e o naufrágio, com seu audaz capitão
cujas últimas frases ainda soam nos ouvidos de Mônica sub-
julgadoras e torturantes... Juan de Deus... Juan do Diabo...
Aquele que loucamente apareceu em sua vida como flecha de
luz e de fogo, perfumando-a e rasgando-a... Aquele que, por fim,
deixou escapar seu segredo a beira da despedida brutal...
Aquele a quem ainda reclamava, com branda recriminação
dolorosa, os ternos lábios da ex-noviça:
-Se pudesse te seguir... Se pudesse...
Olhou com ansiedade a todas as partes, mas nada havia ali
que pudesse servir ninguém que pudesse estar disposto a
ajudá-la. Atrás dos escarpados de rocha negra mudas
testemunhas de cem catástrofes passadas, arrancavam as
ladeiras de intenso verdor do Monte Parnaso; quintas floridas se
elevavam entre as ruas desiguais e, em sua parte mais alta,
aquele velho convento com o qual Juan contava para que lhe
servisse de refúgio. Com o anseio de que sua vista alcançasse
mais longe, Mônica subiu o atalho de cabras, mas nada via ali,
a não ser a imensidão do mar...
-Como te achar? Como chegar a você, Juan?
Dali se divisava também a cidade inteira. Está quase a dois
quilômetros de distância. Um instante, a imaginação de Mônica
pareceu arder... Em Saint-Pierre havia lanchas, navios... Talvez
pudesse encontrar quem a levasse, mas, até onde? Estava de
costas ao caminho e não via a fila de carros que ia
aproximando-se, os veículos que cruzavam deixando a cidade,
rumo as quintas do Monte Parnaso. Um deles diminuiu a
marcha, detendo-se muito perto dela. A porta se aberta ao
impulso nervoso da mão de uma pessoa que chamou, surpresa:
-Mônica! Mas, é você... Você realmente? Não estou
sonhando? Está sozinha? O que faz aqui? Asseguro-lhe que não
podia dar crédito a meus olhos e agora, até apalpando-a... Você
não estava lá...?
-Compreendo sua surpresa, Madre...
-Quem está com você?
-Ninguém. Acalme-se. Para minha desgraça, estou
completamente sozinha, pois só me impôs a obrigação de me
salvar...
A Madre Superiora das Servas do Verbo Encarnado
apalpou com mãos trêmulas as molhadas roupas de Mônica,
olhou com os olhos arregalados de surpresa a praia próxima e o
inquieto mar, e conteve com esforço as centenas de perguntas
que chegavam a seus lábios; enquanto três carros mais
pararam atrás do deles e se abriam as cortinas para mostrar,
sob as negras toucas, semblantes assombrados. Logo, a
compreensão e a piedade se sobrepuseram ao assombro... O
rosto pálido, as roupas molhadas, as profundas olheiras, o
olhar de angústia e extravio nos olhos da ex-noviça, tinham
força o bastante para obrigar a reagir à madre abadessa:
-Vejo que está você doente, Mônica, e acaba de me dizer
que se encontra sozinha. Entra no meu carro... Vamos ao
Convento das Dominicanas. Convidaram a nossa comunidade a
refugiar-se nele em vista do grande alarme.
-Alarme?
-Parece ser que se aproxima o fim do mundo, minha filha, e
o senhor Bispo nos disse para evacuar nosso velho convento da
Praça de Víctor Hugo – comentou a madre abadessa quase em
tom jovial. - Muitos dizem que não vai acontecer absolutamente
nada. O prefeito não faz mais que lançar anúncios e proclamas
tranquilizando aos habitantes de Saint-Pierre, e diz que o
governador chegou para proibir o êxodo. Por isso decidi
apressar a minhas filhas espirituais, para poder cumprir com os
desejos de seu Muito ilustre... Agora penso que foi uma
inspiração do céu, já que graças a isso a encontramos. Vamos,
venha, suba ao carro!
-Não, Madre; não posso ir com vocês... Tenho que
embarcar... Tenho que ir em busca de Juan...
-Em busca de Juan? -surpreende-se a abadessa. E com
certa satisfação, indagou-: Quer-me dizer que pôde escapar
Juan do Diabo? Oh, perdão! Você o chama Juan de Deus, e
realmente...
-Está como quem diz perdido... Vão a uma morte segura...
O Lúcifer não pode com sua carga... Meu Deus... Meu Deus...!
-Filha querida, temo que você esteja desvairando...
-Não, Madre, não. Juan me trouxe para esta praia, deixou-
me aqui me ordenando que me salvasse que fosse precisamente
a esse convento, e que ali...
-Então, o que espera? Não é a obediência seu primeiro
dever como esposa?
-Se ele morrer, não quero eu viver, Madre!
-Abaixe a voz, por favor. As noviças estão muito perto,
justamente nessa carruagem que não levantou suas cortinas.
Venha comigo, está você doente e de momento não pode fazer
nada...
-Se morrer Juan, perderei a razão, Madre...
-Não se desespere. Não é só seu Juan, somos todos os que,
ao parecer, estamos em grave perigo neste instante. Nossas
irmãs dominicanas estão em oração desde ontem, e o mesmo
faremos nós ao chegar. Nunca se reza em vão. A misericórdia de
Deus é infinita. Considero que havê-la encontrado aqui é quase
um milagre. Rezaremos para que se faça outro em honra desse
louco generoso com quem está você casada. Nestes últimos dias
quase não se falava de outra coisa na cidade, mas sim de sua
grande luta em defesa dos pescadores. Muitos o atacam, mas
não lhe faltam grandes partidários: nosso Capelão, entre
outros...
Meigamente fez Mônica subir à carruagem, e com um
discreto gesto, outra vez se pôs em marcha a caravana...
Capitulo Quinze

-Que arriem a maior... Arranquem! Meia volta a estibordo,


muito suave. Enguia... Assim... Acima foque agora para nos
manter ao pairo!
As primeiras luzes do dia romperam seus raios nos mastros
nus de Lúcifer, que repleto até o convés, balançava-se
pesadamente sobre o encrespado mar. Ao seu lado, seguros por
cabos que faziam mais lentas e penosas sua marcha,
encontravam-se os três barcos de pesca, vazios agora, cascas de
ovo sobre a inquietação das tempestuosas águas. Mais sombrio
do que nunca esteve, mais duro o cenho e apertados os lábios,
Juan do Diabo dirigia a delicada manobra, voltando-se logo
para olhar com ânsia aquela terra que se elevava lá, ao longe...
Era Martinica, que parecia surgir da bruma... Pouco a pouco
foram se apagando os pontos de luz que indicavam a cidade
longínqua... À esquerda, o Monte Brigue, sua alta sinistra
silhueta, as longas saias, levantadas ladeiras nuas, e no topo o
espesso penacho de fumaça, negro como a fuligem, que ia
estendendo-se sobre o céu da manhã como um gigantesco
tinteiro que se derramava... Mas só uns instantes o contemplam
os olhos de Juan... O olhar ansioso se voltou para o Monte
Parnaso... Apenas se distinguia dali sua massa verde, salpicada
nos pontos multicoloridos de seus jardins e suas casas. Apenas
se distinguia, e, entretanto, com força desesperada pulsava o
coração de Juan!
-Nós vamos ficar aqui, meu senhor? -perguntou Colibri. -
Sem lançar as âncoras?
-É muito fundo o mar aqui para poder jogar as âncoras...
Já deveria saber isso...
-E sei patrão. Sei que não se pode ancorar e por isso
ficamos ao pairo... Até quando, patrão?
-Até ver o que acontece com esse maldito vulcão...
Já era quase de dia... Sobre a Antilha florescente, marcada
com o dedo de um destino trágico, apareciam os primeiros
resplendores de sete de maio de mil novecentos e dois... Bulia a
cidade como no meio-dia de uma grande festa... As nove aldeias
situadas nas saias de Monte Brigue esvaziaram nela sua
população íntegra; chegaram também os ricos colonos, donos de
plantações e de engenhos, com seus empregados e familiares.
Era um êxodo nervoso e excitado, de todo o noroeste da ilha. Da
área encerrada em um círculo de mais de trinta quilômetros de
diâmetro, que rodeavam os contrafortes do terrível monte,
deslocaram-se até os últimos habitantes, justamente alarmados
por estranhos sinais... Um calor infernal escapou da terra,
grandes rios arrastavam-se por volta do mar em vez de água,
uma lama pestilenta, de insuportável fedor a enxofre... As aves
marinhas abandonaram totalmente a região inóspita, e sobre os
altos escarpados e as estreitas praias se amontoavam milhões
de peixes que o mar jogava, mortos ou agonizantes... A cidade
de vinte e cinco mil habitantes tinha agora mais de quarenta
mil, mas não se estendeu o pânico; ao contrário... Uma vez ali,
os ânimos pareciam acalmar-se, o despreocupado otimismo dos
habitantes de Saint-Pierre parecia exercer sua força de contágio.
Conversava-se, bebia-se e riam como se tudo fosse uma festa, e
a absurda segurança se afirmava mais quando a última notícia
corria de boca em boca...
-O governador acaba de chegar... Disse esses homens,
senhora - explicou Aninha a sua senhora. - Parece que entrou
pela porta de trás, porque havia muita gente na praça, mas que
já está falando com o povo do balcão do palácio.
-Diga a esse imbecil do Esteban que arrume os cavalos! -
apressou Sofía D'Autremont.
-É que não se pode passar, senhora. Apareça para que veja
a rua...
-Que toque o timbre, que se abra passo de qualquer
maneira! Diga que dê a volta pela outra rua, que chegue até o
palácio, embora seja pela porta de serviço. Eu farei com que me
abram! Vamos!
Sofía D'Autremont chegou por fim à rua lateral da ampla e
luxuosa residência do Governador Geral de Martinica, e
apoiando-se em Aninha , deixou a pesada carruagem que com
tanta dificuldade a levou até ali. Fervia os transeuntes como
ressaca da multidão que se amontoava na praça, frente ao
balcão de onde o mandatário falava com povo:
-Meus filhos, minha presença em Saint-Pierre é a melhor
prova de que todo o alarme é vão. Vim trazendo comigo a minha
família. Também me acompanham dois homens de ciência a
cujo testemunho acabo de apelar, e em cuja autorizada opinião
Saint-Pierre não tem mais o que temer de Monte Brigue, que
Nápoles do Vesúvio. Nosso velho vulcão ruge um pouco, mas
não morderá. Foguetes e jatos de lava que no final, vão se
apagar no mar. É esta razão para que queiramos deixar
despovoada a mais florescente colônia francesa nas Antilhas?
Nascidos ao pé de Monte Brigue bem podem rir desses tolos
alarmes, e eu aconselho a todos que se despreocupem e riam;
porque estou disposto a reprimir com toda energia as atividades
dos que gozam em semear o pânico, os vaticínios dos alarmistas
e qualquer outra atividade que venha a provocar a desordem.
Uma vez mais digo aos vizinhos de Saint-Pierre, que cada qual
reate suas ocupações habituais e que não insistam os maus
profetas em ser enviados ao cárcere...
Um carrinho de dois assentos acabava de deter-se na
mesma rua, era Renato D'Autremont o homem que, soltando as
rédeas, ia a passo rápido para a cobiçada porta de serviço,
quando sua própria mãe lhe fechou o passo:
-Renato!
-Mãe! O que faz aqui?
-Não imagina que saí para te procurar? Não pensa que
passei a noite morrendo de angústia, entrando até no último
lugar da cidade atrás de seus passos? Não pensa, verdade? Não
pode pensar em nada nem em ninguém que esteja fora dessa
paixão funesta...
-Por favor, basta!
-Foi me deixando doente, afastou-se de mim sem uma só
palavra...
-Quis evitar cenas como esta mamãe. Já tinham acontecido
muitas coisas desagradáveis. Era preciso terminar, cortar...
-Já o vejo. Foge das consequências de sua loucura, mas
não renuncia a sua própria loucura...
-Já não é uma loucura meu amor pela Mônica, nem sequer
para você pode sê-lo, porque Mônica é livre e sei que me ama.
-Livre...?
-Livre, sim. Aqui tenho os papéis que me enviaram do
Bispado, os que me exigiu o governador para me dar o respaldo
necessário, os meios materiais que me faltavam para arrancá-la
das mãos desse homem...
-E Campo Real? Seu Campo Real?
-Ao seu tempo me ocuparei de Campo Real. Com as
mesmas pessoas que o governador colocar sob minhas ordens,
cairei sobre a essa gente logo que Mônica tenha sido resgatada.
Farei mãe, farei pessoalmente, porque mesmo que me tenha
chamado covarde, por você mesma verá até que extremo foi
injusta. E o verá muito em breve!
-Espere um momento, Renato. O governador te deu
soldados?
-Ainda não, mas não me vai negar isso. Por desgraça,
inclusive não pude lhe falar. Cruzamos no caminho. Ao chegar
ao parentesco do caminho de Carbet, soube que o governador
retornava a Saint-Pierre, e meus cavalos estavam muito
cansados para poder alcançá-lo. Mas já estou aqui, e volto para
sua presença como ele me pediu que voltasse: com todos os
direitos legais. Venha comigo, mãe...
-Naturalmente que vou. Mas espere... Espere. Não irá ser
você quem tomará o comando dessas pessoas para prender a
Juan do Diabo, verdade? Isso não, filho, isso não...
-Por que não? Sempre quis que alguém o esmagasse. Sabe
quem está lá, junto ao governador? Quem reuniu quantos
elementos que foi humanamente possível para liberá-lo?
-Sei que Noel se ocupa desse assunto. Certamente, deve
estar tentando conseguir audiência.
-Estou mais bem informado. Disseram-me que Noel
aguardou o governador em seu próprio escritório. A estas horas
pode haver tomado a dianteira, mas não vai servir muito...
-Toda sua vida à sombra desse maldito Juan!
-Sim, toda minha vida... Não sabe até onde, até que
extremo chegaram às coisas! Mas esta é a última batalha, e vou
ganhar, tenho-a ganha já... Aqui está meu triunfo, que me
redime de todos meus erros, que ninguém poderá já me
arrebatar! Vamos, mãe!

-É que se converteu você em minha sombra, Noel?


-Converti-me em sua consciência, senhor governador, e me
perdoe que tome a liberdade de lhe falar com a franqueza e a
claridade a que estamos acostumados... É proverbial que
detesta a violência e a crueldade... Sempre governou esta cálida
ilha de forma paternal e descuidada... Sua Excelência não
comete atropelos em seu proveito pessoal, mas os atropelos dos
capitalistas se multiplicam, sem que sua Excelência faça nada
por evitá-los...
-Basta! Se pensa você que vou seguir lhe escutando...
-Escutará, porque sua Excelência tem o coração de ouro, e
isso também é proverbial... E porque sabe que tenho razão e,
além disso, porque precisamente agora é quando tenho que
dizer algo importante. O descontentamento é maior do que sua
Excelência acredita; a consciência popular despertou... Um ato
de simples de justiça pode salvar muitos erros passados...
Tenho três mil assinaturas pedindo a vida de Juan do Diabo e a
dos pescadores que lhe acompanham...
-Três mil assinaturas? A vida? Que tolice é essa, Noel? Não
estão condenados a morte...
-Pois aí está o grave do caso. No lugar em que sua
Excelência os tem encurralados, estão ameaçados de uma
morte horrível a cada transbordamento de lava, e se, como sua
Excelência acaba de afirmar, seguem correndo para esse lado
irremediavelmente...
-Ninguém sabe para que lado vai correr!
-Sua Excelência acaba de afirmar, desse balcão, que sim
sabe...
-Bom... Era necessário tranquilizar ao povo alarmado...
-O povo acredita na palavra de sua Excelência, e julga com
razão que esses infelizes estão condenados a serem queimados
vivos pelo só delito de não deixar-se explorar por um agiota sem
vísceras...
-Em todo caso, por ter feito arma contra minha
autoridade...
-E não foi um abuso de autoridade converter em ilha o Cabo
do Diabo?
-Basta, Noel. O que é o que se propõe?
-Excelência, o momento vem que nem pintado. Se der o
senhor uma oportunidade a Juan, de capitular honrosamente,
ninguém poderá criticá-lo... Trata-se da vida de mais de
cinquenta cidadãos da França, e a opinião popular está de sua
parte. Estas assinaturas não são mais que uma amostra...
Poderia continuar recolhendo e as convertê-las em milhares de
milhares. Poderia... - Noel se interrompeu de repente e com
visível desgosto prorrompe em um significativo-: Oh... Oh...!
O governador virou vivamente a cabeça, seguindo o olhar
do advogado. Na porta do escritório que dava à sala de espera,
totalmente aberta, estava Renato D'Autremont e sua mãe, e ao
gesto de surpresa e desgosto do mandatário, desculpou-se
Renato aproximando-se:
-Perdão, Excelência. As portas estavam abertas e o passo
franco...
-Já o vejo... Todos esquecem seu dever no momento em que
mais deveriam cumpri-lo - recordou o governador sem esconder
sua contrariedade.
-Não nos acuse de abuso de confiança, meu amigo -
defendeu-se Sofía D'Autremont.
-A você nunca, Sofía. Mas peço passem à outra sala.
Atendê-los-ei dentro de um instante, logo que tenha resolvido
este caso...
-Não pode resolver este caso sem me escutar, senhor
governador - corrigiu Renato. - Há quinze horas que corro atrás
do senhor, e cada minuto pode ser já muito tarde...
De repente, a terra tremeu tudo se estremeceu em um forte
e rápido movimento de oscilação, que torceu os quadros e
deixou balançando os abajures, e o mandatário, a cada
momento mais aborrecido, exclamou com contrariedade:
-Só nos faltava Isto!
-Senhor governador, eu ainda não terminei - recordou o
velho advogado.
-Senhor governador, duas palavras antes - insistiu Renato.
- Há só uns dias, quando solicitei de sua Excelência o apoio
necessário para arrancar pela força, da mãos de Juan do Diabo,
à senhora de Molnar, me comprometendo a obrigar a essas
pessoas a voltar para a obediência das leis, me respondeu que
precisava não só do direito moral, mas também do direito
legal...
-Em efeito, Renato, disse-o e o sustento. Enquanto essa
senhora estiver casada com Juan do Diabo...
-Esse casamento foi anulado. Na realidade, não existiu
jamais, porque nunca chegou a realizar-se... E com os
documentos que o provam, na mão...
-Como... É possível? -assombrou-se o governador. - Tão
logo...?
-Logo ou tarde, aqui estão - afirmou Renato muito ufano e
orgulhoso. - Segundo suas palavras de então, era o único que
precisava para ceder a minha petição. Olhe o senhor mesmo,
leia-o com toda a calma que seja necessária, comprove a
autenticidade destes fatos e, por Deus, não demore muito em
dar as ordens necessárias.
-Um momento, Renato. Esses papéis... – disse o senhor
advogado.
-Também você pode examiná-los, Noel - acessou Renato. -
E se como é mais que provável, tenha meios de comunicar-se
com Juan, advirta que será inútil toda resistência, que retém
indevidamente a seu lado a Mônica, e que aconselho...
-Não acredito que Juan atenda conselhos de ninguém! -
encrespa-se Noel. - Se o senhor governador responder ao que
lhe tenho proposto, na forma que espero, Mônica de Molnar
será livre para fazer o que lhe der vontade.
-De todas as maneiras, já é, e custará a vida de Juan
tentar retê-la pela força - ameaçou Renato em tom detestável.
-Estou seguro de que não a retém pela força! - insistiu o
advogado acendendo-se seu rosto de indignação.
-Eu estou seguro do contrário, mas não é com você com
quem tenho que discutir estas coisas. Noel. Nem estas nem
nenhuma outra. Você não é mais que um empregado infiel de
minha casa...
-Justamente é o que ia advertir-te, Renato - interveio Sofía
desdenhosa, - e o que ia pedir ao senhor governador. Nem
temos nada que tratar com este homem, nem acredito
necessário suportar a companhia de um tipo semelhante.
-Pois não deveria ter vindo a interromper minha audiência,
senhora D'Autremont! - saltou Pedro Noel sem poder dominar a
ira que lhe acossava. - Nem vocês têm nada que tratar comigo,
nem eu com vocês. Portanto, bem podem passar à outra sala,
como lhes sugeriu sua Excelência, e esperar sentados.
-Você é o mais insolente dos imbecis, Noel! - disse Sofía.
-Se não olhasse... -ameaçou Renato furioso.
-Peço a todos que se acalmem, ou não poderemos nos
entender! -aconselhou o governador. - Acredito que todos têm
um pouco de razão, e se pudéssemos reunir...
-Senhor cumpra sua palavra, governador, e entregarei aos
rebeldes vencidos e maniatados! - se enganou o jovem
D'Autremont.
-Não é você quem vai maniatar a Juan do Diabo, Renato! -
estalou Noel sem poder-se conter.
-A ele e a quantos lhe replicarem, além de castigar a sua
insolência!
-Por favor, basta! - recomendou o mandatário, avivando-se
a sua vez. E de repente, um pouco alarmado, sobressaltou-se-:
Não é...? O que? Um momento...
Correu ao encontro de um mensageiro suado, que chegava
quase sem fôlego cruzando a sala de espera. Um silêncio
espectador mantinha em suspense os ânimos durante um
momento, até que o governador se aproximou com um conselho
nos lábios:
-A discussão é completamente vã, senhores. Os rebeldes
escaparam do Cabo do Diabo.
-Como? -surpreendeu-se Renato alterado. - Escaparam?
Mas, como? Por que meios?
-Naturalmente que pelo mar, utilizando botes e lanchas -
explicou o governador. - O capitão dos reforços que enviei de
Fort d’ France capturou a uns fugitivos, entre eles não está
Juan do Diabo.
-E ela? E Mônica? O que fez com ela? Onde a levaram? –
quis saber Renato sem poder abandonar sua obsessão.
-Por desgraça, não posso lhe responder; mas isto custará
uns ao chefe da guarda permanente, que devia manter o lugar,
e que me põe em ridículo uma vez mais... O pânico segue se
estendendo por toda parte e as pessoas se desmandam...
Acabam também de me avisar que a estrada de Fort d’ France é
uma romaria de gente que se vai, e não há nem o mais um
pequeno espaço nos dezesseis navios que, ancorados na baía,
esperam zarpar.
-Se houvesse me levado em conta, Excelência... -reprovou
veladamente Noel.
-Por fazer caso aos que falam como você, as coisas estão
como estão! -disse o governador algo violento, - Mas vou
resolver isso no ato, proclamando a lei marcial. Acabaram-se as
contemplações... Se tivesse mais soldados e uns oficiais mais...!
-Eu sou subtenente da reserva, senhor governador, e estou
oferecendo meus serviços e minha espada - brindou-se Renato.
-Já sei... Já sei, mas... -pressentindo o governador ser
presa de indomável mau humor.
-No sul da ilha, a maior parte dos latifundiários estão nas
mesmas condições que eu - explicou Renato. - Irão ficar as suas
ordens se o senhor os chamar. A nenhum deles faltam armas
nem vigilantes adestrados. Todos, e eu o primeiro, formaremos
um guarda suplementar para impor a lei e a ordem.
-Está você disposto a tudo isso, Renato?
-Só peço entrar em ação quanto antes. Em menos de meia
hora posso preparar até uma vintena de homens entre os
empregados e criados de minha casa.
-Aceito sua oferta, meu jovem amigo. É um grave caso de
emergência nacional. Considero um dever lhe deixar escolher
seu primeiro trabalho.
-Já está escolhido, e o senhor sabe qual é.
-Compreendo, compreendo... É absolutamente natural. Vou
falar agora mesmo com o comandante da praça. De que
elementos você acredita precisar?
-Quarenta soldados, um guarda - costeira e faculdades de
comandante, até levar ao feliz término o assunto do Cabo do
Diabo.
-Pede o bastante, mas está concedido.
-Mas, senhor governador... - tentou reprovar Noel.
-Me desculpe e retire-se, senhor advogado - pediu o
governador. E ante o forte retumbar do vulcão, que se ouviu de
repente, apostilou-: Você ouviu? O vulcão nos marca a pauta.
Não podemos vacilar...
-Começarei a interrogar os homens capturados. Onde
estão? - perguntou Renato.
-A disposição de você no pátio do comando, tenente
D'Autremont - ofereceu o governador.
-E agora, volte para casa, mãe, e me aguarde tranquila.
Meu segundo trabalho será reconquistar Campo Real, e não
sentirá minha falta a têmpera de meu pai...

-Mônica, minha filha, não você ouve o sino? É para ir ao


refeitório.
-Peço-lhe que me deixe permanecer aqui, Madre.
Na larga galeria de arcos que rematava o vetusto edifício
que servia de convento às antigas dominicanas, e de temporário
refúgio às Servas do Verbo Encarnado, Mônica estava a muitas
horas contemplando com ânsia o inquieto lençol do mar,
encrespado sob o ar de fogo daquela tarde sufocante. Passaram-
se as horas e até o sol brilhava estranho através das baforadas
avermelhadas, das negras nuvens de fuligem que o cone do
vulcão pulverizava pelos ares. No Monte Parnaso tudo estava
calmo, mas próximo ao vale que abrigava a cidade, leves
tremores e ruídos subterrâneos aconteciam inquietando os
angustiados ânimos. Entretanto, havia um sorriso otimista nos
lábios da Irmã Maria da Concepção, ao explicar:
-Nossas irmãs suspenderam a oração contínua que faziam
já há várias horas. Parece que as coisas vão melhorando...
Constantemente, as autoridades asseguram que não há o
menor perigo para a cidade. Proibiu-se que ninguém saia sem
um salvo-conduto assinado pelo governador, e têm feito
retornar filas de carros e cavalos que partiam para o Sul a toda
pressa. O governador declarou que tomou essas medidas para
evitar que a ilha se despovoasse sem nenhuma verdadeira razão
para isso, e há uma ordem que retém até amanhã a saída de
todos os navios. Escapamos a tempo, verdade? Em Saint-Pierre
deve estar um mormaço. Não me ouve? No que pensa?
-Me perdoe Madre. Não penso em nada...
Outra vez tornou a olhar o mar. Se seus olhos tivessem a
estranha faculdade de pular a atmosfera e distância, chegariam
a ver o Lúcifer balançando-se sobre as inquietas ondas... O
formigar dos refugiados pelo estreito convés e veriam também o
homem que, no mastro, fixos os olhos no cone do vulcão,
aguardava com um ânsia inenarrável seu amor e sua angústia.
-Patrão... Patrão! Não vai descer?
-Suba você se quiser Colibri.
Com a agilidade de um felino subiu o moço negro até
alcançá-lo, e juntos, recostados na primeira travessa da vela,
ficaram olhando a montanha imponente e longínqua.
-Quanta fumaça, verdade, patrão?
-Sim... E até aqui caem as cinzas quando sopra o ar
daquele lado. No mar flutuam os peixes mortos, e centenas de
bandos de aves marinhas. Vai mar adentro, como fugindo...
-Mas não vamos, verdade, patrão?
-Não, Colibri, ao contrário. Quando vier a noite nos
aproximaremos o bastante para poder jogar um bote à água.
Quero me aproximar da costa, quero ver mais de perto o que
acontece... Saint-Pierre vai perecer, estou seguro... É como se,
ao passar, gritassem-me isso essas aves que fogem, como se o
escrevessem com letras de fogo as baforadas do vulcão. Algo
espantoso espera a terra em que nasci algo terrível ameaça à
mulher que amo...

-Falará imbecil, falará! Dirá tudo o que sabe, ou pagará por


ele! Entende? Não terei compaixão de nenhum tipo contigo nem
com ninguém!
-Senhor D'Autremont, eu não sei onde está!
Em um dos primeiros pátios do Castelo de São Pedro, sede
do comando militar de Saint-Pierre, Renato apressou o jovem
marinho que segundo fora de Lúcifer... Corria o suor pelas
torradas bochechas do detento... Suor copioso que brotava sob
a bola de fogo que envolvia a cidade e molhava também a testa
altiva e branca do último D'Autremont...
-Gostaria que te espancasse? Você gostaria de passar seis
meses em um calabouço subterrâneo? Quer carregar um
processo com todas as culpas que é de seu patrão, para que o
condenem a dez anos de trabalhos forçados?
-A mim? A mim? - Segundo balbuciou com o espanto
refletido em seu lívido rosto.
-Pois fale, fale de uma vez! Aonde foi Juan?
-Me deixará em liberdade se falar? Soltará aos que estão
comigo se...?
-Matarei agora mesmo se continuar! Vai falar?
-Pois bem... Sim senhor. Afinal, eu não tenho culpa de
nada.
-Onde estão? Onde foram?
-Foram ao Lúcifer, que estava ancorado em frente à
enseada Sul. Não tinha mais que dois vigilantes; talvez
nenhum, com as coisas que estão acontecendo...
-Ao Lúcifer! Como não pensei antes! O maldito navio não
está no porto! Por sua culpa, com seu silêncio, deu tempo para
que escapassem... Certamente ontem à noite mesmo levantaram
âncoras... Juro-te que vai apodrecer no cárcere!
-Não podem estar longe, senhor... O Lúcifer não pode
navegar muito com tanta carga... Foram quase todos os
pescadores, as mulheres, os meninos, o patrão, Colibri, os
outros tripulantes, e, além disso, a senhora Mônica...
-Mônica! Mas, como é possível que esse canalha...?
-A levou, senhor. Eu lhe pedi que a deixasse comigo, mas
quis levá-la.
Tão rudemente sacudiu Renato o prisioneiro, que seus
dedos rompem a áspera jaqueta de marinheiro, e apareceu um
anseio nas espantadas pupilas do homem encurralado, em uma
ansiosa interrogação, cuja resposta, entretanto, temia escutar:
-Ele quis levá-la. E ela? Não chorou? Não suplicou? Não lhe
pediu que a deixasse salvar-se?
-Não... Não, senhor - segundo balbuciou. - A senhora Mônica
ama o patrão...
-Mentira, Vilão! Mentira, cão! - enfureceu-se Renato,
esbofeteando o indefeso Segundo.
-Basta... Basta! É inconcebível que se abuse deste modo de
um homem indefeso! -intercedeu o advogado Noel,
aproximando-se de onde se achava Renato. - Mal posso
acreditar que você seja... Você...
-Me deixe em paz! -revolveu-se Renato furioso.
-Não há nenhuma lei que autorize a interrogar dessa forma
a um detido!
-Quer você largar-se ao inferno, Noel? - desprezou o jovem
D'Autremont. E elevando a voz, grito, enquanto se afastava,
apontando para Segundo-: Este homem, a um calabouço
subterrâneo!
-Renato... Renato... -suplicou Noel, indo atrás dele-:
Renato, por piedade...
-Que alistem imediatamente a guarda - costeira para
zarpar no ato! Que arrumem provisão e embarquem em seguida
os quarenta soldados! -ordenou Renato, sem prestar atenção ao
velho advogado, - Me dê essas duas pistolas, Cirilo!
-Renato, filho. Pelos pregos de Cristo - suplicou o senhor
Noel. - Eu não sei já nem como te falar... Parece mentira que
quando a natureza nos está ameaçando desta maneira, não
haja nos seres humanos um pouco de piedade... É que não tem
nem uma só lembrança sobre a vontade de seu pai?
-Para a vontade de ninguém! Não vê você que estou me
afogando de ciúme, de dor e de raiva?
-Renato! É seu irmão!
-E o que me importa, se precisar do seu sangue? Deixe-me
em paz!
Afastou-o com um empurrão, e ganhando a porta da
estadia, correu pelos largos corredores, descendo as
desgastadas escadas de pedra. Em vão o velho advogado tentou
ir atrás dele, detê-lo, falar uma vez mais... Quando quase se
afogando às portas do Forte, um estrepitoso trovão, muito
longo, deixou-se ouvir, e comentou como em uma reza:
-O Senhor nos ampare! Mas, como vai amparar-nos com as
coisas que acontecem?
Outra vez a terra se estremeceu, fazendo vacilar as
cansadas pernas do advogado que, já sem forças, recostou-se
no velho muro, enquanto ao longo da rua que beirava a
enseada, Renato D'Autremont se afastava rapidamente
estendido em um brioso corcel, rumo ao cais onde a guarda -
costeira lhe esperava...
-Santo Deus, Santo forte, Santo imortal... Livra-nos,
Senhor, de todo mal...!

-Ana! Mas, é você? -surpreendeu-se Noel.


-Bendito e gabado! - proclamou a típica empregada com
grata surpresa. - Já me ia atirar no chão, porque não podia dar
um passo mais; desde meio-dia o estou procurando, senhor
dom Noel. Desde meio-dia, sem descansar, rezava que rezava,
andava que andava, suando e com as cinzas caindo nos
cabelos... E sem encontrá-lo... Mas, graças a Deus... Graças a
Deus...
-Graças a Deus, por quê? O que quer? Para que me
procura?
-Eu, para nada. Mas a senhora Catalina se empenhou em
que tenho que encontrá-lo, e terá que ver o que é caminhar com
o calor que faz... Não se sufoca dom Noel?
-E pode que sufoca a você se não acabar de me dizer o que
quer a senhora Molnar - impacientou-se Pedro Noel.
-A pobrezinha chegou em casa chorando... Ela tem uma
carta que lhe mandou a Superiora... Diz-se Superiora, senhor
advogado?
-Suponho que sim. Uma carta da Superiora do convento...
O que lhe diz nessa carta? O que é o que acontece?
-Bendito e gabado... Olhe como são as coisas... Dizem-lhe
que a senhora Mônica está lá, com essas monjas com as quais
ela estava...
-Impossível! Não diga bobagens. Nem sequer as outras
monjas estão ali. Foram-se não sei aonde...
-Lá para cima, senhor. Não o estou contando? Para esse
outro convento velho, muito velho, que está no Monte Parnaso...
-O convento do Monte Parnaso? O velho convento das
dominicanas? Oh, senhor, é verdade! - exclamou Noel
compreendendo. E com esperança, indagou-: E Mônica está ali?
Mônica está com elas? Está segura?
-Eu não, mas o dizem na carta, e a senhora Catalina o
anda procurando porque quer ir lá, mas não a deixam passar.
Em todos os caminhos mandam que voltem para trás os carros
e os cavalos... Isso diz a senhora Catalina...
-Mônica no convento! Mônica sã e salva! Então, Renato...?
-Aonde vai? É na sua casa onde está à senhora Catalina!
-Renato... Renato... Esta notícia pode detê-lo, pode evitar
que vá contra seu irmão - alvoroçou-se o velho advogado. E
fazendo caso omisso das observações da mestiça empregada,
apressou-se-: Um carro... Um cavalo... Algo para alcançá-lo!
Corre, me ajude, busque-o! Ajude-me, Ana!
Quase sem fôlego, o velho advogado conseguiu um carro de
aluguel tomado ao azar, que chegou ao embarcadouro da costa
norte no preciso instante em que a guarda - costeira, que o
governador pôs à disposição de Renato, realizava as últimas
manobras para levantar âncoras... Caia à tarde daquele
borrascoso sete de maio, no qual surda e imperceptivelmente ia
crescendo a misteriosa cólera do vulcão, e um movimento
inusitado, uma animação febril encheu as ruas da cidade,
estremecida por tão diversas emoções... A ninguém pareceu
notar aquele carro que chegava correndo, aquele senhor
desesperado que corria chamando a gritos, enquanto soldados e
tripulantes ocupavam seus postos já no pequeno, mas robusto
navio de combate...
-Renato, por favor... Faça com que me deixem passar!
Uma vez mais se aproximou da escada, a ponto de elevar-
se. Duas sentinelas com a baioneta a guardavam, mas uma voz
conhecida soou atrás do advogado fazendo-o voltar-se de um
salto:
-Basta de gritos estúpidos! Até quando vai durar esta
farsa?
-Renato! Acreditei que estava a bordo, filho de minha alma!
Como um louco gritei...
-Pois pode você continuar gritando, porque vou a bordo.
-Não, Por Deus, me ouça. Só quero evitar que cometa um
disparate. Mônica não está no Lúcifer, a não ser no convento...
-Não diga loucuras. Esse homem, esse canalha a quem
mandei trancar, viu-a tomar o bote e partir com Juan.
-Pois não é certo... Não partiu! Dou-te minha palavra...
Acredito que posso jurar isso, a senhora Molnar acaba de me
mandar um aviso... Recebeu uma carta da superiora do
convento dizendo que Mônica está com elas...
-O convento foi evacuado, acredito que desde ontem.
-Já sei... Já sei, mas as monjas estão lá encima, no Monte
Parnaso, no outro convento, e a superiora escreveu a Catalina
de Molnar lhe dizendo que sua filha estava com ela sã e salva.
Ouviu? Sã e salva...
-É isso verdade? Está você seguro? - interessa-se vivamente
Renato. - Onde está essa carta? Quero vê-la em seguida, no ato!
-Catalina a tem. Ela mandou a esta moça para me buscar e
a pobre correu como uma louca para me dar notícias... Toda a
tarde a passou me procurando, e ao fim... Ao fim...
-Basta, a trama é muito áspera! - gritou Renato com
profundo desgosto ao ver Ana. - Acredita que sou um menino?
Pensa que vai deter-me com uma notícia apoiada na palavra
dessa embusteira, dessa imbecil cretina que não sabe sequer
em que lugar está parado?
-Mas, Renato, não tem mais que chegar você mesmo até o
Monte Parnaso...
-Pretende zombar de mim?
-Como vou querer zombar? Irei eu a procurá-la e a trarei
aqui mesmo... Verá essa carta e verá a Mônica. Só te peço que
espere os minutos necessários... Aguarde-me, Renato, espera
aqui! Em menos de uma hora terei retornado...
Correu para o carro no qual Ana aguardava; deu gritos e
uma ordem ao chofer, que lhe obedeceu fustigando os cavalos, e
o velho carro se afastou dando tombos, enquanto Renato
D'Autremont voltava com desprezo às costas e subia a escada,
enquanto recomendava:
-Dê as ordens de zarpar, capitão! Procuraremos o Lúcifer
até encontrá-lo!
Ferozmente, Renato D'Autremont chegou ao convés da
guarda - costeira. Não, não acreditava, não podia acreditar
jamais nas palavras do advogado... Seu insensato afã por detê-
lo, sua intervenção continuada e desesperada, só lhe produziam
a sensação de um áspero estratagema, de uma torpe mentira
estendida como um laço para apanhá-lo, lhe detendo embora
por umas horas, uns minutos, em vantagem de Juan, daquele
irmão admirado e aborrecido, procurado com ânsia e recusado
com raiva...
O vulcão soltou outra enorme e muito negra baforada que
obscureceu a luz do dia, já por si escassa, e as ondas se
agitaram em volta da casca de ovo de ferro, com um movimento
desigual e estranho, como se fervesse o mar. E com inusitada
violência, Renato ordenou altivo:
-Capitão, destaque seis homens para a contínua vigilância!
Que se preparem refletores se por acaso à noite nos vem em
cima. Monte uma guarda de artilheiros para que a todo
momento estejam preparados. Que ninguém se descuide um
instante... A batalha é a vida ou morte, e o Lúcifer não pode
estar muito longe!
Capitulo Dezesseis

Monte Parnaso acima, vencidas ao fim as mil dificuldades


que impediram o advogado Noel cumprir a promessa
empenhada a Renato, marchou no desmantelado carro de
aluguel em que ao fim foi possível empreender a curta viagem...
Toda a noite, o vulcão lançou ao ar aquela espécie de dantesca
função de fogos de artifício: setas de luz, estrelas, baforadas de
fumaça avermelhada, chuva de cinza candente... De quando em
quando, uma daquelas breves sacudidas que rompiam o ritmo
da vida por um instante, e o ar espesso que flutua, fazendo
subir os termômetros, enquanto os barômetros baixavam e
baixavam...
-Meu Deus! Quando chegaremos, Noel?
-Já vamos chegando, dona Catalina... Não há viagem que
não tenha seu término, embora resulte tão inútil como a que
estamos fazendo agora...
-Não diga isso... Saber que minha Mônica está a salvo, me
aproximar dela...
-Muito bom e muito santo. Mas a boa hora, Senhor, a boa
hora! Quando já provavelmente esse louco alcançou a esses
desventurados, e sabe Deus...
-Quem sabe, dom Noel! -comentou Ana. - Ao melhor, o
senhor Renato foi por lá e saiu tosquiado...
-Essa é a única esperança que também me resta... Enfim,
acredito que já chegamos...
Com uma agilidade imprópria de seus anos. Noel saltou
primeiro do carro, ajudando a descer a triste mãe. Com sua
calma habitual, no mundo feliz de sua inconsciência, desceu
Ana, olhando a todas as partes com seus olhos curiosos, e um
comentário a flor dos lábios:
-Ai, que lindo! Daqui se vê todo o mar... E Saint-Pierre lá
embaixo... É como esse nascimento grande, grande, que põem
na catedral, por Natal. Ai, dom Noel, olhe a baía! Quantos
navios!
-Mas o único que deveria estar não está... Anda... Anda...
Faz o favor de se adiantar e chamar a essa porta... Não
percamos mais tempo...
O Lúcifer estava perto da terra... Muito perto... Chegou até
quase o lugar em que se detiveram as barcaças, ao pé mesmo
do Monte Parnaso. Toda a noite duvidou Juan em jogar esse
expulse à água, que poderia levá-lo até a praia. Toda a noite
torturou-se pelo anseio insensato de procurar Mônica, frente a
tudo, contra todos... Havia uma calma densa e estranha...
Silencio na terra e o mar... A cidade parece sumida na letargia
do cansaço, e o céu escuro se clareava lentamente...
-Já está amanhecendo, patrão...
-Sim, Colibri. Logo será de dia, e é preciso nos afastar... É
muito perigoso ficar aqui... Pode que, na realidade, não
aconteça nada... Sem dúvida, estou louco imaginando uma
catástrofe que nunca chegará... Mas, por que morrem os peixes;
por que fugiram os pássaros?
Voltou à cabeça para olhar atrás, e foi como se despertasse
à realidade. Mudos, imóveis, sem atrever-se a chegar muito
perto, os homens de cuja vida se fez responsável, aguardavam
com ânsia... Ninguém falava, mas ninguém dormia... Estão de
pé uns contra outros, pendentes de sua voz, e Juan faz um
esforço para que esta soasse firme e severa:
-O que fazem todos no convés? Cada um ao seu posto... Ao
lugar que lhes atribuí! Martín, Julián... Às velas! Enguia... Ao
leme! Vamos zarpar rumo à Santa Luzia... São cem milhas
escassas...
-Ali, patrão... Por aquele lado! - interrompeu Colibri. - Um
navio com canhões se aproxima!
-O Galião! Pode ter saído para nos buscar, mas nos
retiraremos do meio antes que chegue. Todo mundo à adega,
menos os tripulantes! Curta as cordas dos botes, Julián! Acima
as velas! O tempo está de nossa parte! Dê-me o leme, Enguia!
Como eletrizados, moveram-se os homens a suas vozes de
comando, e suas mãos empunhavam o leme do navio, que
virava em circulo, elevando as velas ao vento como um dócil
cavalo sob a rédea do cavaleiro acostumado... Rangendo,
cambaleando-se, o Lúcifer, arrasado pela carga que levava nas
vísceras. Sua silhueta se destacava branca, como uma mancha
de luz sobre o mar escuro, que douravam as primeiras luzes do
sol daquele oito de maio de mil novecentos e dois...
-Aí está o Lúcifer! Buscávamos mar afora, e tinha retornado
para esconder-se na própria costa! Capitão force as máquinas
para nos pôr a tiro de canhão! -Renato correu à proa da guarda
- costeira. Ali está o Lúcifer, muito perto, indefeso, ao seu
alcance... Uma alegria selvagem lhe alagava a alma, ao ordenar-
: Afina a pontaria, artilheiro! Um tiro curto, e, se não se detiver
no ato, o segundo para arrancar!
A toda força partiu o Galião contra o indefeso navio a vela a
quem um vento propício deu repentinamente forças
inesperadas... Inflados, a fina proa como uma faca cortando a
água, fugiu mais depressa que o barco a vapor conseguiu
aproximar-se.
-Patrão... Patrão os deixou atrás! -gritou Colibri alegre. -
Enfiam-nos com os canhões...
-Não importa. Não terão ocasião de fazer nada.
Juan tornou a virar em circulo, enquanto rangia o navio
um momento, para endireitar-se de novo domando o fluxo...
-Agora se aproximam patrão... Voltam a aproximar-se!
-Não importa. Voltaremos a deixá-los para trás!

-Mônica, minha filha...


À voz de Irmã Maria da Concepção, Mônica despertou, não
de um sonho, mas sim de uma curta e dolorosa letargia...
estava junto à janela onde passou as horas intermináveis
daquela longa noite, escutando o rugir do vulcão, espiando em
vão, sobre as águas negras, a luz que indicava um navio...
Elevando a cada instante os olhos deslumbrados para aquele
céu onde Monte Brigue riscava com setas de fogo a infernal
pirotecnia de sua estranha erupção... Agora, os olhos
carregados de cansaço olhavam com surpresa o nobre rosto que
emolduravam as toucas sob a clara luz das primeiras horas da
manhã...
-O que é o que vejo? Passou aqui a noite, não se deitou?
Isso é um verdadeiro disparate. Não tem direito de abusar assim
de sua saúde nem de sua vida, quando tantos se preocupam
com você amigos e familiares. Não queria alterar mais seus
nervos com uma surpresa muito profunda... Mas vieram visitá-
la...
-A mim? -alarmou-se Mônica. E com desgosto, perguntou-:
Quem? Os D'Autremont acaso?
-Mônica! Filha de minha alma! - chamou Catalina
irrompendo no modesto quarto. - Em fim... Em fim! Parece-me
mentira... Cheguei a temer que não fosse vê-la mais...
Esqueceu-me, filha, esqueceu-me...
-Não, mãe. Como poderia te esquecer? Deixei-te junto a
amigos que podiam cuidar de você melhor que eu mesma.
Arrastaram-me as circunstâncias...
-Sei filha, sei. Noel me contou tudo. Ele me trouxe,
vencendo todas as dificuldades...
-Noel... Meu bom Noel. Não sei como lhe agradecer...
-Envergonharia-me se o fizesse, Mônica, como me
envergonha também este momento de expansão e ternura
familiar - desculpou-se o velho advogado aproximando-se quase
nas pontas dos pés. - Vim a sua procura, porque preciso de
você. Ou para falar mais claro: alguém precisa de você a quem
espero você quererá ajudar, embora já não una a essa pessoa o
menor laço... Ao anoitecer saí em sua procura, jurando levá-la
no término de uma hora. Não contava com o milhão de
obstáculos que tinha que me opor. Para sair da cidade foi
preciso procurar o governador, conseguir salvo-condutos,
garantias do comando, expor minhas razões a dez pessoas
distintas, e enquanto fazia eu tudo isso, zarpou o navio.
-Que navio?
-Claro você não sabe nada. Como tampouco Renato tem a
menor idéia de que está você a salvo. Foi inútil dizer a ele e não
quis acreditar. É preciso que você mesma o diga, que você
mesma fale com ele, que você tenha um pouco de piedade e
ajude a Juan...
-Ajudar, A que? O que lhe acontece? Onde está?
-Fugitivo em um navio muito carregado para poder chegar
muito longe, açoitado pela melhor guarda - costeira que
dispõem nossas autoridades... Com todas minhas forças lutei
para evitar, mas Renato D'Autremont saiu com a sua...
-Então é Renato...
-O governador terminou, com sempre, por deixar a
autoridade em outras mãos, e Renato obteve o que queria.
Enfurecido pelo ciúme, apressado há todas as horas por sua
mãe, que não fazia mais que jogar lenha no fogo, saiu a
perseguir o Lúcifer com as piores intenções... Disse-lhe que você
não estava com ele, e não quis acreditar. Implorei que viesse a
comprová-lo, e pensou que eu mentia. Como um louco, tentei
chegar logo até aqui, mas não consegui a não ser agora...
-É preciso deter Renato, que o façam retornar, que enviem
outro navio para buscá-lo! Eu sei que Juan não se entregará
vivo, que entregará sua vida na última batalha... Noel, meu
amigo, faça algo!
-Você é a única pode fazê-lo, Mônica! E se estiver disposta
a vir comigo... Queira Deus que cheguemos Á tempo, porque se
o Galião e o Lúcifer já toparam...!
-Não é? O que é isso? Outra vez o vulcão... -comentou
Mônica ao ouvir um ruído surdo e prolongado.
-Não, não é o vulcão... Foi como um canhão do lado do
mar! –afirmou Noel. E ao deixar-se ouvir outro novo disparo,
lamentou-se-: São os canhões do Galião! O que eu temia... O
que eu esperava!
Correram todos à galeria das arcadas. Quase frente ao
Monte Parnaso, em violenta batalha desigual, o Lúcifer, com as
brancas velas cheias, e o Galião, com toda a força de suas
máquinas...
-Renato não retrocederá enquanto não afundar ou capturá-
lo! -profetizou Noel. - Se Juan não se render...!
-Juan não se renderá jamais! - assegurou com firme
convicção Mônica.

-Este passou mais perto, patrão! Quase nos acerta! -


exclamou Colibri.
A bala de canhão passou roçando, e ao brusco movimento
que deram ao leme as mãos de Juan, os tripulantes rodaram
pelo convés... Estão muito perto, muito perto os dois navios...
Um armado como tubarão de terríveis presas... Sem mais defesa
que saltar e abanar o rabo, o veleiro Lúcifer, como o golfinho
acossado por um tubarão... Quase em circulo virou o Lúcifer,
perdendo o equilíbrio, e um violento golpe do mar varreu o
convés a estibordo, que afundou quase até as águas...
-Levou-nos o foque! - gritou Colibri espantado, - vamos
afundar patrão!
-Ainda não! Se conseguir sair do meio desse maldito
artilheiro...! –empertigando-se orgulhosamente Juan. E a voz
em gritos, ordenou-: Ao convés os que tenham rifles! Dê-me
aqui o seu Genaro!
Voaram a ponta do pau da vela, e soltaram no ar as cordas
como terríveis chicotes de morte, derrubando a dois ou três dos
que chegavam à voz de Juan... De um salto, estava ele sobre o
ferido... Deixou o leme nas mãos de Enguia, e aguardou com
incrível sangue-frio o aproximar do terrível inimigo...
- Renda-se! Renda-se ou te faço voar em pedaços! -
intimidou Renato.
-Fogo! Fogo! - foi a resposta de Juan. Antes que alguém
disparasse, ele disparou, e rodou no chão o artilheiro do canhão
de proa... O Galião, a poucos metros do veleiro, disparou e a
atingiu no meio, arrancando o segundo pau... Ferido de morte
estremeceu-se o Lúcifer... Desmantelado, desmantelado, varrido
o convés pelas ondas, imóvel sem remédio, presa indefesa da
guarda - costeira, que já chegava com seus soldados preparados
à abordagem...
-Todos acima! Todos às armas que tenham à mão! -
ordenou Juan. - A vender cara a vida! A morrer, matando!
-Renda-se, Juan do Diabo! -ameaçou Renato.
-Venha me buscar! - desafiou Juan. E seu grito foi abafado
por um estampido formidável, seguido de uma série de fortes
trovões.
O vulcão arrebentou... De cima abaixo com mil metros, o
Monte Brigue lançou sua gigantesca labareda, sua corrente de
fogo e fumaça, que parecia um raio arrasando a terra, varrendo
a cidade e o mar, destruindo tudo de um só golpe, como
esmagado por um enorme tapa...
Do chão onde foram derrubados pela sacudida brutal, semi
abrasados pela baforada candente; quase afogados pela
atmosfera irrespirável, os lábios entreabertos e os olhos
arregalados de espanto, um a um foram levantando os que, da
galeria do convento das dominicanas no topo daquele Monte
Parnaso, que era como um balcão sobre a cidade de Saint-
Pierre. Aproximaram-se para ver o horrendo espetáculo. Mônica
se ergueu, elevou-se com impulso que nada deteve, nem aquela
fumaça que passava queimando a pele, quase cegando suas
pupilas... Correu até chegar ao muro... Suas mãos agitadas
seguraram na beirada daquela espécie de terraço, e seu olhar
procurou com ânsia, com desespero, como querendo penetrar a
nuvem que a envolvia, sem conseguir ver nada... Nada ficou de
pé. Uma espessa capa de cinzas fumegantes cobria a extensão
total do que fora a cidade, como ardente sudário... A baía estava
deserta... Cais, embarcadouros, centenas de botes e barcaças
desapareceram tragados pelas águas ferventes e fumegantes...
-Onde estão? Onde está o veleiro... A guarda - costeira...? -
perguntou Mônica. - Onde está o navio de Juan?
O ar espesso clareou lentamente. Como miserável por um
redemoinho, destroçado e fumegante, o casco de madeira de um
veleiro girava impulsionado pelo golpe furioso das ondas... Ao
seu redor, emergindo das águas, brotavam vultos: madeiros
enegrecidos, placas destroçadas... Cadáveres, sim, cadáveres
despedaçados e quebrados que iam aparecendo como macabra
devolução do mar... Mônica voltou-se, sentindo que seu coração
vacilava, e um grito rouco de angustia brotou de sua garganta:
-Juan! Juan! Por que não me deixou morrer a seu lado?
Capitulo Dezessete

Juan apareceu à cabeça entre as inquietas águas, e tornou


a afundar nelas... Abrasavam as águas quentes do mar, mais
queimava o sopro de fogo que a descida da montanha... A seu
redor havia outros homens que se agitavam como ele,
debatendo-se entre os dois elementos terríveis: a água que
queimava e o ar que abrasava... Rostos enegrecidos e
queimados, braços que se estendiam em busca de auxílio,
corpos imóveis e corpos gesticulando, vivos e mortos, lesados e
sãos... Massa múltipla que lutava enlouquecida de espanto, sem
conseguir compreender o que acontecia... Em duas braçadas,
Juan chegou ao lugar no qual viu afundar a escura cabeça do
rapaz negro, segurando-o pelo magro pescoço, puxando-o
fazendo com que flutuasse, depois voltando a afundá-lo,
sacudindo-o até obrigá-lo a limpar-se...
-Patrão... Morri... -queixou-se Colibri com voz abafada. -
Queima a água... Queima o ar...
-Não morreu... Agarre-se a essa placa... -Com todas suas
forças, Juan nadou, arrastando o moço. O pequeno bote muito
perto estava boiando... de lado, mas é fácil voltá-lo. - Sustente
Colibri!
Outra mão crispada surgiu entre as águas, agarrando-se
também ao pequeno bote. Outro rosto desfigurado, outra cabeça
chamuscada e ferida se elevou procurando o ar, outro homem
chegava para disputar daquela deformada casca de ovo que
representava a última esperança de salvação.
-Solte, Renato!
-Não, Juan!
Outra vez frente a frente... Outra vez, no instante mais
duro da última batalha, uma fatal casualidade se enfrentavam e
os atavam naquelas duas mãos juntas e desesperadas,
naquelas duas bocas que aspiravam com idêntica ânsia à
última rajada de ar respirável. E um relâmpago de ódio ardeu
nas pupilas de Renato, ao repreender:
-Afundou meu navio, o fez espatifar, partiu em pedaços!
-Está louco? Como poderia? Acredito que foi o vulcão!
-O vulcão... O vulcão...? Oh! E Mônica? Estava no Lúcifer...!
-Não, não estava! Deixei-a salvo!
-Então, era verdade... Oh, não posso mais!
Apagou-se o rancor de seus olhos claros. A seu redor, a
água se tingia de sangue, enquanto a mão livre de Juan
sustentava o corpo de Colibri, agora inanimado como se
houvesse voltado a desmaiar...
-Renato... Vamos! Sobe no bote... Se apóie em mim! Não se
deixe afundar!
-É inútil, Juan! Estou ferido! Salve o moço! Salve você!
-Vamos, Colibri... Dentro! Ajude-se... Vamos! -ordenou
Juan empurrando o corpo do rapaz. - Agora você... Rápido,
Renato não vou te deixar! Vamos!
Com esforço o levantou, e rodou o corpo até o fundo da
pequena embarcação... Com o último fôlego, levantou-se ele
também, e um instante ficou de pé na frágil casquinha,
abrangendo com olhar de horror e espanto tudo que lhe
rodeava... Sangrava por dez feridas, a roupa queimada caia em
pedaços mostrando a pele avermelhada e chamuscada, mas
nada disso o preparou para o que suas pupilas contemplam... A
seus pés, como um animal ferido, agitou-se Colibri:
-O que aconteceu, patrão? As balas nos acertaram...
Afundaram-nos, verdade? Afundaram ao Lúcifer!
-O Lúcifer? Oh, não! O Lúcifer não se afundou... Aí está,
queimado, destruído, mas flutuando... Outros navios
afundaram, afundou-se o Galião , como se o mar o engolisse,
afundaram-se, todos, Colibri, quase todos... Olhe!
Obrigou o rapaz a levantar-se para olhar em volta daquele
estranho mar vazio, tragicamente coberto de destroços... Muito
perto, como balsa destruída, agitada com violência pelas ondas,
um pequeno grupo de homens lutavam... Como uma visão de
um pesadelo, Juan os contempla e os reconheceu:
-Enguia... Martín, Julián... Genaro! Agarrem-se nas
pranchas, agarrem-se às cordas que estão penduradas do
navio, sustentem-se enquanto eu vou em busca de auxílio!
Inclinou-se, recolhendo do mar uma larga tabela, e
afundando-a na água, como se fosse um remo, o rosto
levantado para olhar à borda próxima, e um grito de espanto
brotou de sua garganta:
-Colibri! Estou louco... Estou cego? Olhe Colibri, olhe
Saint-Pierre! O que é? O que é o que temos a frente?
-Nada, Patrão! Não há nada!
Como enlouquecido, Juan remou para a terra, e o seu
impulso gigante avançou o bote em direção ao que seriam
embarcadouros, cais, praias... Seus olhos procuram as casas
que não existiam, o panorama familiar que se apagou. Não
havia um teto, nem uma árvore, nem um muro sequer, que
tenha se conservado em pé... O verde vale, onde se elevava a
mais rica e populosa cidade das pequenas Antilhas, era um
enorme buraco nu, coberto de cinzas e de lava, que lentamente
vai petrificando-se...
-Mônica... Mônica...!
O nome amado era a única coisa que saia dos lábios de
Juan... Seta de luz e fogo que transpassou. Com ânsia de
demente voltou a empunhar a tabela e continuou remando...
Precisava aproximar-se, chegar. Não dava crédito a seus olhos
avermelhados. Sua mente, enlouquecida de surpresa e de
espanto, não conseguia captar ainda a terrível verdade... Até
que o bote tocasse a costa. Correu uns passos sem sentir em
seus pés a quentura da terra calcinada. Suas mãos apalparam
o chão candente, insensíveis já corpo e a alma à dor e ao
espanto...
-Aqui estava Saint-Pierre... Aqui estava! Não, não...
Impossível, não é verdade o que vejo! Não pode ser verdade! -E
gritando como um louco denegou-: Não é verdade!
O rugido do monstro pareceu responder. Aí está Monte
Brigue. Também ele mudou. O que fora sua frente poderosa
voou em pedaços, e ao longo do alto, uma larga e tremenda
greta deixava ainda escapar o ar mortífero, enquanto através da
horrível fenda se via ferver a enorme lava, como um fornecedor
das forjas do inferno. Juan voltou até o bote, em cujo fundo
estava Renato D'Autremont e ao seu lado se elevava a escura
cabeça de Colibri, que perguntava com ansiedade:
-O que aconteceu, patrão, o que é o que passou?
-Isto era Saint-Pierre! Foi, e não é mais... A cidade em que
nasci não existe... E ela, ela... Mônica... - E com inusitado
desespero, clamou-: Mônica...! Onde está?
No beirada do parapeito daquele balcão, de onde olhava
aquela última e terrível batalha definitiva de sua própria vida,
entre Juan e Renato, Mônica permaneceu desmaiada, quase
insensível... As rajadas de ar abrasador chamuscaram em parte
sua pele e seus cabelos, mas seus olhos, um momento meio
cegados, estavam vendo já, e exclamou assinalando com a mão
estendida:
-Ali! Ali!
-Mônica, filha...! Perdeu o juízo? -angustiou-se Catalina de
Molnar.
-Ali... Na água, junto ao navio... Junto ao Lúcifer, há
pessoas! Agitam-se! Há pessoas vivas... Nadam...!
-Oh, sim... É certo! Alguém ficou com vida! - apoiou Pedro
Noel.
-Corramos! Corramos! – disse Mônica com tremenda
excitação.
Os habitantes do Monte Parnaso foram a auxílio dos
poucos sobreviventes dos naufrágios da baía: alguns tripulantes
do Roraima, quatro ou cinco dos pescadores que se dispunham
a estender as redes ao amanhecer, e a maior parte dos
passageiros do Lúcifer... Quantos permaneceram na adega por
que não tinham armas, os meninos e as mulheres, salvaram-se.
Também alguns dos tripulantes: Martín, Enguia, Julián,
Genaro... Feridos, extenuados, queimados pelo ar e a água, os
tristes corpos formavam uma longa fila de macas na beirada da
praça. A estes iam se somando muitas vítimas que havia
também no Monte Parnaso, nos lugares aonde o fogo chegou
com mais força... Como uma sombra branca, cruzou Mônica
frente às vítimas doloridas, e, pela primeira vez, suas mãos
piedosas não conseguiram curar nem consolar.
-Não está... Não está...! Juan não está entre eles! Juan não
está entre eles que se salvaram! Separou-me dele, não me
deixou morrer ao seu lado! Por quê? Por quê?
-Filha, é preciso que se acalme - suplicou Catalina. -
Perderá a razão...
-E não será ela sozinha - assegurou Noel. - O único milagre
é que estejamos vivos, que tenhamos visto isto e que possamos
contá-lo, sem ter enlouquecido. Viver depois de uma coisa
assim... Talvez não seja por muito tempo! Ainda ruge o monstro!
E terá que ouvir esses desventurados, especialmente os do
Galião...
-Você falou com eles? -esperançou-se Mônica. - Pôde
perguntar...?
-Dizem que o mar tragou ao Galião como se o sorvesse...
-Mas Juan... os homens do Lúcifer, disseram algo? Você
pôde falar com eles?
-Dois deles me asseguram que o viram pegar um bote e
remar para terra. Eu não acredito... Esses homens estão
enlouquecidos, transtornados... Tiveram visões no meio de seu
espanto. Como teria podido Juan, nem ninguém, pegar um bote
e remar? Afundou o Galião, e o Lúcifer não ficou uma placa sã...
Como se Deus tivesse querido castigar o crime daquela luta a
morte entre dois irmãos... Porque irmãos são... Irmãos! O
mesmo sangue e, apesar de seus erros, de suas violências e de
suas crueldades, o mesmo coração e a mesma nobreza... Não
posso negar...
-Mas esses homens que viram Juan...! – Mônica se apegou
com desesperada esperança.
-Não puderam vê-lo, Mônica. Enganaram-se... Juan já não é
deste mundo...
-Oh! -disse Mônica, soluçando com verdadeiro desespero, -
Juan... Juan!
-Chora você por ele, Mônica? Por ele?
-É que não sabe? Juan era minha vida! E se ele morreu,
para que quero eu viver e respirar? Mas não... Não... Não
morreu! Não pode ter morrido! O mar era seu amigo, e não pode
lhe fazer mal... O devolverá!
Correu como uma louca para a estreita praia... Aquela que
se abria como uma concha de ouro entre a pedra negra dos
escarpados, agora coberta de cinza e despojos, e chegou até
esse mar onde viu afastar-se, saltando do barco Juan... Como
então, estendeu as mãos, e em seus olhos quase cegos de
lágrimas, fingiu a loucura daquele minuto, um bote imaginário
que se afastava levando Juan...
-Juan! Não me deixe... Não vá... Me leve contigo... Me leve
para morrer ao seu lado! Volta para me buscar! Volta para me
buscar, Juan!

-Patrão! Não está morto! Move-se...! Da ferida sai sangue...


Muito sangue...
O olhar de Juan pousou no alto do topo calcinado do
Monte Brigue, até o pequeno bote em cujo no fundo jazia
Renato. Em meio daquele atroz espetáculo de morte, frente à
cinza que servia de sudário a mais de quarenta mil cadáveres,
ainda aquele coração palpitava fracamente... Juan se inclinou
para ele, acabando de rasgar a fina roupa, até encontrar o
manancial daquele sangre por onde gota a gota escapava vida
do último D'Autremont. Uma parte cortante de madeira, a ponta
afiada de uma madeira estilhaçada, está cravada sobre as
costelas, muito perto do coração... Mas a mão de Juan não
vacila em arrancá-la com um brusco puxão...
-Quanto sangue! -comentou Colibri espantado.
-Rápido! Temos que estancá-lo! -Com a última parte de sua
própria camisa, Juan preencheu o horrível buraco, contendo a
profusa hemorragia. - Dispa-lhe, Colibri, me ajude! Traga algo
para que possa lhe enfaixar!
Aos puxões se proporcionou uma áspera atadura e a
enrolou, abrangendo o torso nu de Renato com habilidade de
marinheiro...
-Olhe, abre a boca, patrão...
-Tem sede... Perdeu muito sangue... Mas nem um gole de
água pode dar já esta terra para Renato D'Autremont...
Voltou a olhar a espantosa desolação que lhe rodeava, e ao
homem que agoniza a seus pés. Pulverizados no fundo do bote
estavam os papéis que Renato recebeu do Bispado na noite
anterior, e outro grosso papel com selos e lacre que, por
estranho impulso, pegou rapidamente as mãos de Juan...
-O que é isso, patrão? - perguntou curioso Colibri.
-Suponho que o direito de me matar como a um cão onde
quer que me encontre. São os selos do governador, sua
assinatura... Ainda ontem era ele quem decretava a vida ou a
morte...
Espremendo-se junto ao disforme montão de papéis
molhados, símbolo inútil do poder terrestre: os selos do
Governador e a assinatura do mesmo. Tudo era demais, tudo
valia agora, frente a seus olhos, o que pudesse valer aquela
planície calcinada, aquela cidade feita cinzas... Os papéis
caíram de suas mãos. Através do ar, agora claro, distinguia a
colina do Morne Rouge, cinza, afogada sob as cinzas... Mas as
casas de sua aldeia estavam intactas. Seu olhar de águia pode
ver os tetos e as árvores arrancadas, e como caravana de
insetos, pontos escuros. Que descendiam pelas ladeiras para o
lugar em que estava a cidade...
-Lá, na aldeia do Morne Rouge, há gente viva... Movem-se...
Veja... Podem nos auxiliar... Vamos...!
Colibri puxou a mão, em um impulso de instinto
desesperado. Juan vacilou, e voltou os olhos para Renato. Logo,
sem uma palavra, levantou-o em seus braços de Hércules...
-Vai levá-lo, patrão?
-Não valeria a pena tê-lo tirado do mar para deixá-lo no
caminho, Colibri. Toda obra começada tem que terminar...
Recolhe esses papéis e venha atrás de mim...
-Os papéis? - Perguntou Colibri estupefato, - Os papéis
com a permissão de nos matar?
-E os outros também, Colibri. Pode que valham mais que a
vida para Renato... Vamos andando!
Naquela mesma tarde chegou uma brigada de auxílios de
Fort d’ France... Que não encontrou a quem auxiliar. Novas
erupções e transbordamento de lavas fizeram necessário o
imediato traslado dos sobreviventes do Monte Parnaso por volta
da segunda cidade da ilha, e as notícias do cataclisma voaram
até chegar aos pontos mais longínquos... O monstro do Caribe
seguiu rugindo, arrojando suas mortíferas baforadas.
Sacudindo e gretando a terra, vertendo rios em correntes de
lava. Toda a população civilizada do planeta leu avidamente os
relatos da catástrofe e seguiu com inquietação angustiosa os
terríveis fenômenos que aconteceram ao primeiro desastre...
Fort d’ France viveu semanas de terror coletivo, e seus
espantados habitantes só desejavam fugir daquela terra antes
ditosa...
-O que aconteceu, Ana? -perguntou Mônica à mestiça
empregada.
-O senhor Noel me mandou lhe avisar... Há três postos no
navio que sai esta tarde para a Jamaica... Diz que nós temos
que ir as três, que em Martinica não vai ficar ninguém vivo...
-Vamos, filha, vamos! O que pode esperar? Juan morreu...
Por que não se convence? Por que não aceita?
-Não posso ir, mãe! Não posso ir, porque há algo que me
grita no coração, algo que me sustenta não sei como, não sei
por que, na loucura de uma esperança!
Juntou as mãos naquele gesto de dor e de súplica que
semanas de angústia gravaram nela, Mônica se afastou uns
passos entre as ruínas que formavam o pátio daquela quinta
semi destruída, triste refúgio de um dos grupos que
milagrosamente escaparam antes das catástrofes do Morne
Rouge e Monte Parnaso. Daquela antiga casa que ficou de pé
três ou quatro habitações entre escombros e gretas... Também
Ana, a antiga donzela de Aimée, juntou as mãos assustada e de
joelhos, em um gesto já peculiar:
-Nos vamos morrer todos! Tem razão o senhor advogado! E
a senhora Mônica sem querer partir... Ai, Meu Deus... Meu
Deus!
-Por favor, Ana, cale-se já - reprovou Catalina em tom
suave, mas aborrecida. - Incomoda Mônica, que certamente está
rendida... Por que não descansa um momento, filha?
-Não vale à pena, mamãe. Tenho que voltar a sair... O
monstro não está satisfeito... O vulcão não se apagou ainda...
Hoje chegaram pessoas de Lorraine, de Marigot, de Sainte
Enjoe, de Grose Morne, de Trindade...
-Como? Novas catástrofes? -alarmou-se Catalina.
-Sim... Sim, senhora. Mais e mais catástrofes, como diz -
afirmou a nervosa e intrometida Ana. - Em um povoado de lá de
cima se abriu uma greta grande, grande, que tragou tudo: as
pessoas, as casas e os animais, e depois se fechou... Fora não
ficou a não ser um negro que veio correndo para contar. Ouvi-o
dizer na praça... E também contaram ao senhor Noel, diante de
mim, que por aí vem descendo uma nuvem grande, grande,
igual à outra que no Morne Rouge abriu de repente com uma
chuva de pedras e de água quente, e acabou até com os cães e
os gatos...
-Jesus! Não será exagero Ana? - duvidou Catalina.
-Por desgraça, é verdade, mãe - confirmou Mônica, - A
espécie de hospital que temos na Prefeitura, chegaram pessoas
desses povoados, feridas e queimadas. Falei com todos, olhei
todas as caras...
-Sem o menor resultado, naturalmente - terminou Pedro
Noel, aproximando-se do grupo. - Vim para escutar eu mesmo a
negativa... Suponho que Ana lhes deu meu recado...
-Pois claro que sim, senhor advogado; mas como se não
fosse nada. A senhora Mônica está empenhada em que nos
fritemos...
-Cale-se Ana, cale-se! -interrompeu Catalina, - Não tem
nada a fazer lá dentro?
-Teria que fazer a comida se houvesse o que comer. Mas
para escaldar as mandiocas nessa água cheia de enxofre, não é
possível mais tarde ou mais cedo...
-De todas as maneiras, vá fazer - ordenou Catalina. - Eu
vou ver se te preparo algumas coisas mais, Mônica... Anda Ana,
venha comigo...
-Ia vê-lo, Noel - explicou Mônica, depois que se foram sua
mãe e Ana. - Para suplicar que utilizassem vocês essas três
passagens... Têm razão... Aqui morreremos todos... Salve-se
você, Noel, e as ponha a salvo...
-Não querem ir sem você, e fazem muito bem. Da minha
parte, eu considero que já vivi muitos anos. Quase, quase me
remói a consciência de me mover e respirar ainda, quando
homens jovens e esplêndidos perderam a vida... Entretanto, tem
que aceitar a realidade, Mônica...
-Não posso aceitá-la! Recuso-me a isso, o instinto se nega a
dá-lo por terminado. Acredito que perderia a razão como
naqueles primeiros dias... Por que me falou de seu amor Juan
no último minuto? Por que me cravou isso no coração como
uma seta envenenada?
-Ele amava você tanto! Tudo que fez foi por amor a você,
desde que retornou daquela viagem...
-Por que não me disse isso então?
-E quem podia adivinhar que te interessava esse pobre
amor? Os dois pecaram por orgulhoso, Mônica. E agora já...
-Continuarei procurando!
-Busca inútil... Se Juan estivesse vivo, estaria a seu lado,
Mônica. Naquele mar se afundaram juntos os dois irmãos...
Juntos expiraram... Não poderia ser de outra maneira...
-E se for certo que pôde pegar um bote e alcançar a praia?
-A teria procurado, Mônica, não duvide...
-E se não pôde fazê-lo? E se lhe surpreendeu uma nova
catástrofe? Acaso tivemos um momento de repouso, dormimos
mais de três noites no mesmo lugar? Quantas vezes fugimos de
Fort d’ France e voltamos para ele? Quantas aldeias se
esvaziaram e tornaram a encher-se com os fugitivos de outras,
mais desventuradas ainda? Quantos infelizes jazem
desfigurados, com o rosto envolto em vendagens, sem ter
recuperado o sentido, em qualquer hospital improvisado?
Quantos Noel? Cada dia, durante quinze, dezesseis, dezoito
horas, vou aos lugares em que se auxilia os feridos... quantos
enfaixam e atendem cada dia estas mãos! E tudo por ele... Por
ele!
-Não tire mérito de seu esforço, a sua obra extraordinária.
Sua caridade e sua abnegação não são só uma busca, Mônica...
-Não... Claro... Não é só uma busca de seu corpo; é também
a busca de sua alma. Porque cada vez que pego nos braços a
um menino doente, cada vez que aproximo um copo de água a
uns lábios acesos de febre, cada vez que reparto com uma
mulher fugitiva minha ração miserável, estou pensando: isto
teria feito Juan... Isto o fez sempre... Ninguém foi mais generoso
com os desventurados, ninguém foi mais abnegado nem mais
nobre que aquele a quem chamam Juan do Diabo...
Uma sacudida brutal os tem fez rodar quase por terra. Um
pó espesso se elevou dos escombros, enquanto tangiam
sozinhas, nas abandonadas torres, os velhos sinos. O ar denso
cheio de relâmpagos...
-Mônica, aceite esses bilhetes - aconselhou Noel em tom
suave. - Um dia ou outro terá que ir, se não morrermos. Fala-se
seriamente de ordenar a evacuação total da ilha. Vi os bandos
que estão preparando-se... Por que não aproveita agora? Será
menos dura a situação dos que saírem primeiro...
-Eu serei a última a sair! - asseverou Mônica com decidida
tenacidade.
Capitulo Dezoito

DE PRIMEIRO A vinte de agosto continuaram os fenômenos


alarmantes. O Monte Brigue lançava sem piedade, sobre a ilha
em ruínas, vapores mortíferos, correntes de lava, terríveis
ruídos subterrâneos que culminavam em fortes terremotos.
Logo não ficaram casas em pé, nem sequer nos lugares do sul
mais distantes do monstro enfurecido: Lamentine, Anse de
Arlets, Sainte Anné, ficaram reduzidos a escombros, e as cinzas
abrasadoras, levadas pelo vento sobre o mar, chegavam a
centenas de milhas de distância... Dois milhões de toneladas
daquelas cinzas mortíferas foram recolhidas nas ilhas
Barbadas... O arco inteiro das pequenas Antilhas, desde a
Carlota Amália ao Porto da Espanha, das Ilhas Virgens às de
São Jorge e Tobago, estremeceu-se em pequenos ou grandes
tremores de terra, às convulsões do vulcão da Martinica... E
muito perto de Fort d’ France, entre os refugiados em covas ou
cabanas de Palmas a beira da enseada do Forte de São Luis, o
último D'Autremont lutava com a morte, atravessado no peito
por uma horrível ferida...
-Tenho sede... Tenho sede... Água... Água...!
-Não ouviu Colibri? Aproxime um copo...
-Não resta a não ser um gole de água limpa, patrão...
-Pois dê a ele... Não vê que tem sede?
Juan se aproximou para levar àqueles lábios ardidos pela
febre, a tosca vasilha de barro onde o último pouco de água
potável se mantinha fresca... A loira cabeça emaranhada tornou
a cair sobre os trapos que serviam de travesseiro, o rosto nobre
e pálido voltou a ficar imóvel, e um algo parecido a um sorriso
apagou um momento a profunda amargura dos lábios de Juan:
-Agora dormirá umas horas... Está melhor, tem menos
febre, melhor pulso, vai recuperando as forças... Se pudéssemos
alimentá-lo...
-Ficará bom, patrão?
-Espero que se reponha de todas as maneiras... É de boa
cepa... A primeira vista parece delicado e frágil, mas não,
Colibri... Tem muito de D'Autremont e pouco de Valois...
-Você quer que sare patrão? Que fique bom, que vá a seu
palácio, para aquela fazenda grande onde maltratam os
trabalhadores como a escravos?
-Já não há em Martinica fazendas grandes... Tão somente
há ruína e morte, e esse que ruge sordidamente, esse monstro
que é o vulcão, é nosso único senhor...
-Tenho medo, patrão - queixou-se o rapaz quase chorando.
-Muito em breve encontrarei uma forma de nos tirar deste
inferno, moço... Assim que Renato se levantar... Parece que será
fácil conseguir posto em um desses navios que saem... Pedirei
que te levem. Estou seguro que não se negará a te salvar...
-E o senhor, patrão?
-Eu não, Colibri. Ainda tenho o que fazer aqui...
Informaram-me que algumas religiosas do Convento do Verbo
Encarnado se encontram refugiadas na Riviére Salee, e que
outras estão chegando de diferentes lugares. Ao amanhecer
sairei para lá...
-Ai, patrão, o senhor vai se matar de tanto andar de um
lado a outro! Onde quer que diga que há uma monja, lá vai... E
todas lhe dizem o mesmo: que a pobre senhora Mônica...
-Cale-se! O que sabe você? O que sabe alguém?
-Se o senhor Renato ficasse bom e procurasse lugar em um
navio para o senhor também, patrão...
-Para mim não buscará, nem tampouco o aceitaria, Colibri.
Não sairei de Martinica, não renunciarei a minha última
esperança... Eu serei o último a sair!
Bruscamente ficou de pé, sublinhando com o gesto as
últimas palavras, e deu uns passos até chegar àquele buraco
estranho que servia de habitação... Paredes de esteira e teto de
Palmas e canos, encostados à entrada de uma gruta de pedra
vulcânica... Lava ressecada de muitos séculos atrás, esfriada ao
sol quem sabe de que dias longínquos, que formava uma
espécie de muro natural ao redor do Forte de São Luis, na
própria baía de Fort d’ France. Que perto estava daquela a
quem ansiosamente procura! Que trama inexplicável, que
brincadeira inconcebível da sorte, fazer-lhe correr para os mais
longínquos lugares da ilha, quando bastaria andar pouco mais
de um quilômetro para encontrá-la!
-Patrão, na casa não há nada...
-Bom... Atende ao ferido se necessitar algo. Vou ver se
consigo algumas coisas... Dessas que não há na casa...
Sua galharda figura se afastou, perdendo-se sobre a
cinzenta praia até cruzar junto aos muros do Forte centenário.
Só sua residência de pedra não se deixava cair, só ela parecia
eterna e imutável na paisagem desolada... Timidamente, com
um sentido indefinível no qual se mesclavam o respeito
inevitável e o supersticioso temor, Colibri se aproximou muito
devagar do rude leito, onde Renato se agitava e murmurava:
-Água...!
-Já não há água, senhor. O senhor mesmo bebeu o último
gole que restava. Não há água nem de onde pegá-la. A do rio
esta suja e impregnada de enxofre, e a do mar é salgada... Se o
patrão não trouxer a que repartem em Fort d’ France por partes,
como se fosse leite, vamos padecer de sede como os cães...
Pela primeira vez em muitos dias Renato D'Autremont
abriu os olhos, fixos, inteligentes, claros... Já não ardiam, como
uma labareda de loucura, o delírio da febre... É como se
começasse a compreender e tentasse se lembrar... Ante um
fraco gemido do ferido, Colibri perguntou:
-Dói-lhe? O patrão me disse que cuidasse do senhor. Meu
nome é Colibri, e meu patrão é dom Juan do Diabo...
Lentamente, Renato se levantou, olhou a parede de rochas
nuas, o teto de soltas folhas de palma, as esteiras onde estavam
penduradas e se moviam com o vento, e ao moço negro vestido
de farrapos, que parece ser seu enfermeiro. Em seus finos
lábios de aristocrata se desenhou um sorriso breve e amargo, ao
comentar:
-Você é Colibri... Sim... Acredito me lembrar... E em que
país estamos para que Juan do Diabo seja "dom"? A que ilha
nos levou as ondas? A que costa selvagem foi dar naquele
barco? Onde estamos?
-Onde vamos estar mais que na Martinica? Ao lado de Fort
d’ France... Não se lembra do que aconteceu? O senhor andava
atrás do Lúcifer atirando do canhão...
-Sim... Vou me recordando... A guarda - costeira... O veleiro
fugindo, minhas pessoas prontas para a abordagem... E de
repente...
-Arrebentou o vulcão... Caímos na água e o senhor Juan
nos salvou. Tirou-nos flutuando, jogou-nos juntos no bote ao
senhor e a mim... A mim, que sou como seu cão; e ao senhor...
Ao senhor, que andava atrás dele para matá-lo... Lembra-se
agora?
-Sim... Lembro-me do bote, da horrível dor desta ferida, e
depois... Depois...
-No ombro o senhor o carregou até o Morne Rouge. Ali o viu
o médico e o curaram, e nos curaram também... Eu estava todo
queimado... O senhor soltava a pele em pedaços e saia sangue
pela ferida da bala... Mas não se dobrou nem se queixou de
nada... O patrão sim que é macho, senhor Renato...
Renato entreabriu as pálpebras, sentiu-se afundar de novo
na névoa avermelhada dos dias passados... Quase desejou
aquela inconsciência benfeitora; mas algo o acordou,
sacudindo-o...
-O que é isso?
-O vulcão... O terremoto - balbuciou Colibri contendo com
muita dificuldade o medo que lhe embargava. - Vem com
frequência... Mas o patrão disse que não gosta dos covardes,
que, embora eu esteja morrendo de medo, tenho que me
agüentar e não correr, porque em qualquer parte mata um o
terremoto, e em qualquer parte traga a terra...
Renato conseguiu sentar-se com enorme esforço e tentou
ficar em pé, mas o impediu sua dor e sua debilidade. A cabeça
deu voltas, o ar lhe faltou, mas um relâmpago de orgulho se
acendeu em suas claras pupilas:
-Não entendo nada, mas preciso entender tudo rápido. Por
que estou aqui com você desta forma? O que significam esta
cova e estes farrapos? Sou acaso prisioneiro da pessoa de Juan?
E minha roupa? E meus papéis? O que se fez de tudo? Onde
está?
-O que? - estranhou o rapaz.
-Não entende? - enfureceu-se Renato.
-Não, Renato. Há coisas que Colibri não entende - explicou
Juan com serenidade, entrando na estadia. - Tenha um pouco
de calma... Já irá dando conta de tudo... Não acredito que deva
abusar de suas forças no primeiro dia que acorda... Além disso,
esperam-lhe notícias altamente desagradáveis... Bebe um pouco
de água...
Um instante, Renato parou antes de tomar o cântaro de
argila que lhe oferecia Juan, com um olhar de assombro.
Também ele mudou... Mudou quase tanto como o panorama
que lhe rodeava... Muito mais magro, parece mais alto; a barba
cheia, os longos cabelos revoltos e encrespados, e sob a velha
camiseta de marinheiro, que voltou a vestir, estava mais
robusto e largo seu torso de atleta... Tinha a aparência
desventurada de um náufrago, sem seu gesto altivo de chefe de
piratas, mas a máscara de cor de seu rosto moreno se acendia
pela força de seu altivo olhar, que era toda vontade...
-Bebeu toda a água! - exclamou Colibri consternado ao ver
que Renato consumia avidamente o conteúdo do cântaro.
-Não... Ficou um pouco... Tome-a e nos deixe... Quando
Renato estiver descansado, temos que conversar...
Mais de duas horas se passaram antes que voltasse a abrir
os olhos de Renato, para se cravarem ansiosos em Juan: olhos
interrogadores e desconcertados, nos quais ardiam juntos o
desejo de saber e o medo das terríveis verdades que pressentia e
aguardava. Outra vez, como antes, parecia Renato medir e
avaliar a miserável estadia, outra vez tremeu em seus lábios as
palavras, para brotar ao fim como corrente que rompe o dique:
-Não precisa dizer que estou em seu poder. Vejo-o, percebo.
Ferido e indefeso, ao seu arbítrio, e, se tiver que acreditar nesse
moço, te devendo, além disso, a vida.
-A vida a estamos devendo todos a um milagre que talvez
não se prolongue muito - explicou Juan com pasmosa
serenidade.
-O que quer dizer? Acredito recordar algumas coisas... Mas
não, não é possível, são pesadelos da febre, imagens do inferno,
quadros de dantesco horror...
-Recorda a realidade, Renato... Muito pouco resta da terra
que nos viu nascer. Faz três meses que, dia e noite, ruge esse
vulcão jogando sobre ela cinzas candentes e rios de lava. Suas
cidades são ruínas; seus rios, lodaçais infectados; seus campos
pararam calcinados... Por seus caminhos corre uma multidão
de desesperados que em vão procuram um teto ou um lugar
seguro. A cada dia do único porto ainda navegável, saem navios
repletos de pessoas que fogem...
-Nosso único porto navegável? - surpreendeu-se Renato,
sem compreender.
-Sim, Fort d’ France. Junto a ele estamos na enseada do
Forte de São Luis...
. - Saint-Pierre...? A capital...?
-Já não existe.
-Não pode ser! -recusou Renato com gritos de rebeldia e
espanto. - Minha mãe... Morreu? Minha mãe morreu! Oh...!
- Acalme-se... Acalme-se, Renato. Não é só você que tem
que chorar uma dor tão grande. Quarenta mil cadáveres ficaram
sob as cinzas do que foi Saint-Pierre. Logo, foram-se somando
centenas, milhares de vítimas mais...
-Tudo é verdade... Lembrei-me de da verdade! Oh...!
-Talvez a ilha seja logo totalmente evacuada... Embora
quase não ficou nenhuma autoridade, possivelmente o nome
D'Autremont possa te conseguir lugar em um dos navios que
saem...
-O que está dizendo? - rebelou-se Renato quase com ira.
-Todos acham que a fuga é a única esperança de salvação...
E para você não haverá dificuldades. Além disso, não tem a
ninguém por quem olhar, mais que por si mesmo...
-Não tenho a ninguém... Não tenho nada! Minha casa,
minhas terras, minha fortuna nos bancos dessa cidade que... E
minha mãe, Juan, minha mãe!
Desesperadamente, segurando-se às largas mãos de Juan,
que estreitaram as suas, talvez pela primeira vez, com gesto
fraterno... Por um longo momento ficou em silêncio, com
lágrimas nos olhos. Logo, secou-as de repente como se uma seta
de fogo o transpassasse sua alma o despertando, sacudindo,
enlouquecendo de novo:
-E Mônica? O que foi feito dela? Onde está? Você a tinha no
Lúcifer... Mas não, não... Disse que a havia deixado a salvo.
Aonde a levou? Aonde a enviou? Rumo a Dominica? Rumo a
Guadalupe?
-Rumo a Saint-Pierre! - disse Juan com infinito desespero,
- Eu mesmo a deixei na praia, frente ao Monte Parnaso... Não
sei nada mais... Não sei absolutamente nada mais!
-Morreu também? Quer dizer que morreu?
-É a lógica pensar assim! -augurou Juan com gesto
sombrio. - Procurei-a como um louco, como um desesperado.
Procurei-a enquanto você agonizava, enquanto você delirava
ardendo em febre, semanas inteiras... Enquanto como um
cadáver me arrastava de aldeia em aldeia, de ruína em ruína, te
dando cem vezes por morto e outras cem por ressuscitado...
-Três meses... Três meses! Disse três meses? -perguntou
Renato com desespero.
-Procurei-a em todos os lugares onde há religiosas
refugiadas, nas intermináveis listas de desaparecidos, nas
relações dos que cada dia escapam enchendo esses navios...
Procurei seu cadáver entre todas as ruínas dos conventos, e
procurei seu nome nas cruzes de madeira dos cemitérios
improvisados... Mas procurei em vão!
-Mônica morreu! Mônica morreu! -repetiu Renato obcecado.
-Mas não me resigno a aceitá-lo! Não sei se é uma
inspiração do céu, não sei se é um louco raio de esperança, não
sei se minha vontade doente se agarra a uma mentira, se uma
intuição clarividente me sustenta sem deprimir em uma verdade
incrível... Mas enquanto restar um sopro de vida, continuarei
procurando-a!
Juan deu um passo para a porta, mas as mãos de Renato
se estenderam, detendo-o com o gesto, e os claros olhos, que
minutos antes choravam por Sofía D'Autremont, se acenderam
agora com a luz diabólica do ciúme, do despeito, do anseio
desesperado que o só nome de Mônica acendia em sua alma e
em sua carne...
-Por que essa procura? A ama? A ama?
-Naturalmente que a amo! Pois o que pensou?
-Eu... Eu... Não sei... Amá-la? Disse amá-la...?
-Mil vezes mais que a minha própria Vida! Não percebe? O
que me importa a vida se não tiver ela de volta, se não
encontrá-la? Minha vida inteira é ela, era ela, mesmo quando
acreditava que não me amava, mesmo que a olhasse tão
longínqua como às estrelas, pela quais me guiava, o olhar nos
céus, minhas mãos ao leme de meu navio... Louca,
desesperadamente a amei desde que algo mais forte que meu
orgulho me obrigou a respeitá-la; desde que a vi indefesa em
meus braços; necessitada e doente senti que os desejos se
apagavam que a soberba arriava seu estandarte, porque a força
de sua pureza me transformou em um homem diferente, porque
sua vida e sua felicidade começavam a ser, para mim, mais
importantes que tudo, que ninguém... Se a amei? Se a amo?
Cem vezes mais, mil vezes mais de quanto você tenha podido
amá-la!
-Mentira! -disse violento Renato. - Mais que eu, ninguém!
Ninguém! E ela...
-Ela também me amava! - cortou com energia Juan. -
Contra tudo o que supõe, contra tudo o que pensa, contra tudo
o que tinha direito a esperar, Mônica me amava, queria morrer
comigo. À força tive que arrancá-la destes braços, para não
arrastá-la a minha triste sorte...
-Isso não é verdade! Não é verdade!
-É, Renato! Ainda parece e a vejo naquela praia; ainda
tenho nos ouvidos seu último grito me chamando...
-Não pode ser! Uma mulher como ela...
-Não podia amar a mim, verdade? - rebateu Juan em tom
colérico, - Pois se engana! Amava-me! Amava-me! O que importa
seu nome e sua posição? Amava-me, ao marinheiro, ao pirata,
ao bastardo! E preferiu os perigos, e até a morte a meu lado,
antes que a comodidade de seu palácio! Essa é a única
verdade... Era minha, é minha, e a procurarei até encontrá-la!
-Não, não é tua!
Renato vacilou, tremeu, e voltou a cair na cama. Ali, seus
olhos olharam com ânsia... Recordou sua carteira, os papéis
guardados nela... Agora estava nu, sob um teto de Palmas, ao
total arbítrio daquele homem que era para ele, ao mesmo
tempo, salvador e rival, inimigo e irmão... Repentinamente, sua
vontade se esgotou, seu valor se apagou, mas os ferozes olhos
de Juan pareciam lhe penetrar adivinhar, ao assinalar:
-Seus papéis estão nessa caixa... Já vejo que não me
enganei ao pensar que acaso eram para você mais preciosos que
a própria vida. Pode pegá-los, embora acredite que não lhe
servirão de nada. Um poder mais forte que toda a vaidade
humana, rege-nos agora... E é esse... O vulcão... Escuta-o...
Essa é a única voz que dispõe e ordena sobre a terra de
Martinica... São seus golpes cegos os que decretam a vida ou a
morte, a dor ou a fome... É o novo poder que nos rege... Vá ver
com ele se seus papéis lhe servem de algo!
Renato voltou a levantar-se, queria ir atrás de Juan, que se
afastava com passos pesarosos, mas desabou de novo... Cem
lembranças amargas brotaram como adagas. Pensou em sua
mãe morta; em Mônica, que talvez estivesse sob o sudário
trágico que envolvia o que foi Saint-Pierre, e sentiu uma dor
nova, uma dor estranha, que lhe acendeu com uma vergonha
infinita... Que era desconcerto, remorso, gratidão amargura...
-E devo a vida a Juan do Diabo...

Durante mais de uma semana rugiu ainda o terrível Monte


Brigue. Ao final, em vinte e seis de agosto de mil novecentos e
dois, depois de um último e terrível terremoto que sacudiu a
ilha inteira, tudo ficou calmo. Apagaram-se as nuvens negras do
cone do vulcão, sossegaram-se os ruídos subterrâneos, voltou a
ser azul o céu, e as águas do mar se aquietaram... Chuvas
benéficas caíram a correntes arrastando as capas de cinza que
arrancavam as árvores e afligiam os campos... De novo
correram limpos os rios e os riachos, e voltaram em enormes
bandos os fugitivos pássaros... Uma alegria febril espumou do
desespero e as dores passadas, sacudiam-se agora as
desmanteladas ruas de Fort d’ France. Puseram-se em
movimento os poucos cavalos e os escassos carros que tinham
disponíveis. Brigadas de voluntários afastavam os escombros e
acondicionam o melhor possível o cais e embarcadouros, na
entrada da muito formosa baía, frente à qual se elevava a
pequena cidade. E quando os navios tanto tempo esperados se
distinguiam na linha imprecisa do horizonte, saúdavam-lhes os
velhos canhões do Forte de São Luis e os sinos, montadas em
travessas sobre os escombros, para que pudessem lançar ao ar
a voz de seus repiques... Enquanto, na quinta quase em ruínas,
onde era o refúgio dos Molnar, os sinos e o canhoneio se ouviam
como algo longínquo...
-Aqui está o senhor dom Noel, minha senhora! - avisou Ana
gritando.
-Que bom, minha apreciada Catalina... Mas, Mônica, onde
está? -avisou e perguntou o velho advogado.
-Onde tem que estar mais que no hospital? - explicou
Catalina. - Para lá se foi antes que amanhecesse como toda
manhã...
-Hoje é um dia diferente, caramba!
-Para ela, não. Cada dia que passa, parece que sua dor
cresce, porque restam menos esperanças...
-Tem razão. Mas, de todos os modos, não pode abandonar-
se à dor como o faz... Vim procurá-la, porque o novo governador
está desembarcando, e o comandante das forças, que tanta
admiração e tanta gratidão sente por Mônica, queria que ela
fosse uma das primeiras pessoas a saudar sua Excelência. A
senhora disse que foi ao hospital?
-Justamente o que instalaram junto ao Palácio... Lá a
encontrará...
-Bom, nesse caso, vou para lá... Adeus. Catalina...

-Colibri... Colibri...! O que é o que aconteceu? Colibri! Não


me ouviu? - chamou Renato alarmado ante o estrondo de uma
salva de canhões.
-Já vai... Já vai, senhor Renato... Estavam olhando as vela
dos canhões do Forte. Acaso pensou o senhor que era o vulcão?
Dizem que está apagado, e bem apagado... Que não vai tremer
mais...
-Então, esses canhões...?
-O novo governador está desembarcando. De acima da
colina vi quando se aproximava o navio... Um navio grande,
grande, e outros dois que vêm atrás... em um dizem que traz
soldados, e em outro, quanto Deus criou... Todas as coisas que
mandam de presente da França para os que ficamos na
Martinica, para os que não tiveram medo do vulcão...
Lentamente, com visível esforço, Renato se levantou de sua
cama e, apoiando-se na frágil parede, deu alguns passos
vacilantes sobre aquele piso desigual...
- Juan não retornou?
-Não, senhor. Mas é certo que vem esta tarde... Ele sabe
que o que trouxe para comer, já acabou. E o senhor sabe...
Desde onde quer que seja, ele o traz...
Outra vez Renato D'Autremont sentiu uma onda de rubor
acender suas bochechas. Não só pelo fato heróico de lhe haver
salvado da morte, de haver carregado em seus braços vencendo
a dor e fadiga... Também aquele homem estranho, irmão e
inimigo, salvador e rival, levava cada dia, para ele, o alimento
necessário, faixas para sua ferida, remédios para sua febre,
humana piedade para seu desamparo... Durante três meses,
ele, o opulento Renato D'Autremont, recebeu o pão das mãos de
Juan do Diabo!
-Vai sair senhor Renato? Não esperará o patrão?
-Acredito que o mais certo é que não o espere...
-Mas sozinho não vai poder andar. O patrão disse que o
senhor estava ainda muito debilitado...
-Tenho que fazer um esforço... É preciso...
Apalpou a camisa destruída, que mal cobria seu corpo nu;
seus pés descalços, as rasgadas e gastas calças de áspero...
Pormenorizado, Colibri sorriu e explicou:
-Naquela caixa temos guardadas suas botas e uma jaqueta
que encontramos. O patrão me fez carregar essa caixa, dizendo
que se o senhor se levantasse, não iria, ou seja, caminhar
descalço... Também há uma carteira, um anel e um relógio que
não funciona...
Renato pegou aquela caixa, uma arca com seus pobres
tesouros... Ali estava sua jaqueta de linho, estragada e
queimada; seu relógio, seus anéis, as altas botas que calçou
para comandar o Galião, e sob a carteira, com seu dinheiro
intacto, enrugado e desbotado, a anulação do casamento de
Mônica e a nomeação de oficial em ativo, que o autorizava
perseguir Juan do Diabo...
-O senhor disse que essas coisas eram suas, e que as desse
se algum dia as precisasse... Vai vestir-se? Vai sair por fim?
-É preciso... Devo fazê-lo... Devo fazê-lo quanto antes...
Tenho que me aproximar desse homem que acaba de chegar...
Tenho que ver o novo governante que nos envia a França!
Com esforço, vestiu-se Renato. Com passo vacilante, que só
era sustentado pela tensa força de vontade, cruzou a longa
parte da praia e, logo desapareceu sua figura atrás do saliente
que formavam as muralhas do velho Forte de São Luis; outro
passo bem conhecido, agora lento e cansado, fez ir Colibri à
outra entrada da desmantelada cabana, para dizer excitado:
-Por aí vai, Por aí vai... Ainda o pode sujeitar se quiser...
Ainda posso ir eu em uma corrida e dizer o que você lhe quer
falar... Ouviu patrão?
-Ouvi... Mas, de quem fala?
-De quem pode ser, mas sim do senhor Renato? Levantou-
se, vestiu-se e pegou tudo, patrão... Os papéis também...
-É tudo dele, Colibri - Falou Juan com desalento e
cansado.
-Esteve-os olhando muito momento... Eu acreditei que iria
deixá-los, mas os guardou no bolso... Também o grande, o dos
selos, o que lhe dava permissão para... Não se lembra, patrão?
-Sim, Colibri... Perfeitamente... Para nos perseguir, para
prendermos, para me matar se resistisse a me entregar
mansamente. É natural que leve esse papel com ele...
-E disse que ia ver o governador esse que acabou de
chegar. Também é natural, patrão?
-Também, Colibri. Esse homem que chegou, representa a
volta à ordem estabelecida antes, o respeito aos privilégios, aos
sobrenomes ilustres, às grandes fortunas, ao poder dos que têm
o direito à terra assinado e selado... Como não tinha que ser
Renato o primeiro que fosse a saudá-lo, se ele é um dos
primeiros privilegiados?
-Mas o senhor o tirou da água quando estava se afogando!
O senhor o curou e cuidou dele três meses! O senhor... o
senhor...
-Esqueça esse pequeno detalhe, Colibri, como
provavelmente Renato o esqueceu... Esqueça-o e me dê um
pouco de água...
Sentou-se na dura cama, com gesto de profundo desalento,
de absoluto cansaço... Um momento fechou as pálpebras, e logo
as entreabriu para deixar vagar o olhar pela estranha e áspera
paisagem...
-Aqui está à água, patrão. Vê-se que está muito cansado...
Não encontrou à senhora Mônica, verdade?
-Não... Nem em Ducos, nem em Saint Spri, na Riviere Salee
há monjas refugiadas, mas nenhuma pôde me dar noticias
dela... Todas me repetiram a mesma frase horrível, todas me
recordaram, com palavras mais ou menos corteses, que são
mais os mortos que os vivos, os desaparecidos que os sãos,
sobre esta terra desventurada... Talvez tenham razão, talvez
sejam os outros que tenham razão... E agora, me deixe Colibri...
Quero ficar sozinho um momento...
Afundou a testa entre as mãos, e enquanto o moço se
afastava muito devagar, a eterna e dolorosa pergunta acudiu
inconsciente a seus trêmulos lábios:
-Mônica, onde está?

-Mônica... A manhã inteira estive procurando-a...


-Oh... Amigo Noel! Aqui estou...
-Onde menos pude pensar. Parece que tem você um
empenho especial em esconder-se... De ponta a ponta percorri o
hospital, sala por sala e cama por cama...
-Retirei-me, deixando o posto às verdadeiras enfermeiras.
Disseram-me que o novo governador havia trazido pessoal e
material apropriado para atender às necessidades de todos...
-Naturalmente que trouxe consigo algo que muito nos faz
falta... A piedade o mundo inteiro se comoveu de nossa
desgraça; mas essa não é uma razão para que você se
esconda... Não sabe você com que interesse, com que empenho
pediu o governador Vauclín que a levem a sua presença. É
primeira de uma lista que lhe entregaram ao desembarcar... A
primeira entre as pessoas que, com sua abnegação e seu
heroísmo, há sustenido o espírito coletivo nesta desventurada
Fort-d' rance.
-O que diz Noel?
-Filha de minha alma acredita que se conta por milhares as
pessoas a quem você atendeu, cuidado e enfaixado. A seu
exemplo se formaram as brigadas de voluntários para socorrer
os feridos sem família... E quem a não ser você, e as mulheres
que seguiram seu exemplo, ocupou-se de tantas crianças
desamparadas e órfãos? O novo governador está surpreso,
maravilhado... São tantos os que lhe falaram que você...
Vamos... Disponha-se a vir comigo...
-Oh, não, Noel! Para que? Fiz o que pude, enquanto foi
necessário. Agora que não é, mais vale...
-Mas, está louca, Mônica? Vamos... Vamos. Comprometi-
me a levá-la imediatamente. Não pode deixar cair assim o
ânimo, quando todos a reconhecem e a aplaudem, quando, com
toda justiça, vão começar a premiar suas insônias...
-Não mereço nenhum prêmio, e você mais que ninguém
sabe. Lutei com todas minhas forças contra a desgraça... Há-me
sustentado uma louca esperança... Tive forças incríveis que só
dá um desejo parecido na carne, na alma...
-Mônica! Mônica!
Mônica de Molnar e Pedro Noel retrocederam pálidos,
tremendo, sem dar crédito aos olhos que afirmaram o que os
ouvidos escutaram... Pálido, vacilante, desfigurado até parecer
outro homem, Renato D'Autremont parou sob o arco que dava
ao pátio em ruínas... Parecia abafado de emoção, exagerados os
olhos que se cravaram nela, paralisado pela sacudida brutal
daquela surpresa enorme... Mas era ele, e foi para ela com as
trêmulas mãos estendidas... O velho advogado o sustentou,
quando o jovem D'Autremont cambaleou como se fosse desabar.
Logo, as mãos de Mônica o alcançaram, e ele as estreitou
enlouquecido, beijou-as alegre, para em fim apertá-la em um
abraço sem palavras...
-Era verdade! Era verdade! É você... Você...! Vive... Vive...!
E você também, Noel... Você...
-Cuidado, Renato... -aconselhou Noel em tom carinhoso.
Ajudou-o a sentar-se em uma das colunas do pátio, ao lhe ver
sem fôlego, aspirando com dificuldade o ar, abrindo por fim a
andrajosa jaqueta e rasgada camisa, enquanto Mônica e Noel
contemplavam com espanto a horrível cicatriz de seu peito, e
Renato confessou fazendo um esforço:
-Sim, Mônica... É um milagre que esteja vivo depois desta
ferida, alguém me tirou daquele inferno de água fervente, onde
caí com o peito atravessado... É um milagre que possa respirar
que possa ver a luz do sol, e te olhar...
Como uma corrente; brotaram as lágrimas dos olhos de
Mônica, ressecados desde semanas e meses atrás. Seus pés
vacilaram, enquanto em vão a sustentava nos braços o
advogado, enquanto aquele nome que era sua vida inteira ia de
seu coração a seus lábios sem acabar de formar-se em uma
palavra...
-Mônica, minha vida... Quando vi seu nome naquela lista,
quando me repetiram que estava viva, que estava aqui, que
tinham ido te buscar, saí como um louco. Não podia acreditar...
Não posso acreditar... Ele te procurou tanto!
-Ele? - surpreendeu-se Mônica dando um sobressalto no
coração. E quase com um grito, indagou-: De quem está
falando?
-Do homem a quem devo minha vida. Já mandei procurá-lo
antes de correr a você, até antes de correr a você, enviei para
lhe buscar. O devia, Mônica...
-Mas, de quem fala?
-E de quem posso falar?
-Juan... Juan... Juan...! - gritou Mônica como enlouquecida
de alegria. - Vive... Vive...! Onde está? Onde está?
-Foram atrás dele... Mandei a alguém que corresse... Não
pode demorar... Está muito perto, junto ao Forte de São Luis,
e... Mônica...!
Mas Mônica corria já pelo caminho aberto entre as ruínas...
Capitulo Dezenove

QUANTO DUROU o longo abraço, o imenso abraço onde


não cabiam as palavras, onde se afogaram as vozes e corriam as
lágrimas... O abraço desesperado e aceso que tinha sabor de
eternidade!
-Você... Você...! Mônica...!
-Juan... Juan...!
Nada mais forte que aqueles dois nomes, que se uniam
como em fim se uniram as bocas, em um beijo depois do qual
poderiam morrer, porque já se viveu... Nenhuma outra palavra
pode expressar nada, a não ser os nomes que brotaram entre o
calor amargo das lágrimas e a doçura sem término de uma
felicidade tão sonhada...
-Eu já não podia continuar vivendo, meu Juan! Tudo
estava perdido, tudo tinha terminado! Não queria mais nada
que morrer!
-Também eu tinha perdido a esperança, minha Mônica... Já
não queria a não ser procurar a morte... E, entretanto, você está
viva, você respira... Estava perto, perto... Incrivelmente perto!
Falaram, unidos ainda naquele abraço, os olhos nos olhos,
as mãos nas mãos, quase os lábios nos lábios... Falaram
indiferentes a tudo, ausentes do mundo que ao seu redor
parecia se apagar sob o peso de uma felicidade que era quase
entristecedora, em um delírio dos sentidos e da alma, que lhes
fez pensar que viviam um sonho... Do quebrado arco do foi um
pátio, Renato D'Autremont olhava as duas figuras longínquas
que formavam uma só no abraço interminável... Ao lado dele
estava Pedro Noel, a tudo que davam seus cansados pés... A
testa de Renato se rendeu em uma ruga profunda, seu rosto se
conteve... Logo, apoiando-se nas ruínas, afastou-se muito
devagar...
-Você me esperava Mônica, e eu corria enlouquecido atrás
de cada indício, de cada rastro, de cada possibilidade... E a
cada desengano, rebelava-me; e a cada golpe da lógica, a divina
injustiça de meu amor gritava mais alto... Sabia que estava
viva... Sabia que me esperava... Só por um momento senti a
certeza horrível...
-Eu também. Foi um momento nada mais, um momento de
desespero, de loucura... Logo, tive a certeza, e há todas as horas
pronunciava seu nome, te chamando; e há todas as horas, meu
pensamento era como um grito querendo vencer tempo e
distância...
-E chegava até mim... Chegava Mônica, chegava...
-Juan... Juan...! Moço é a coisa mais maravilhosa que
pensei que acontecesse!
-Oh, Noel, meu amigo!
Retornaram ao mundo, olharam a seu redor como se
despertassem. A pouca distância, aguardavam dois soldados, os
que foram procurar Juan, e um estranho estremecimento lhe
percorreu, quando perguntou:
-E Renato?
-Não sei... Foi-se... Ele mandou te buscar... Disse que te
devia a vida, que por você respirava... Mandou te buscar logo
que soube que eu estava viva... O que te acontece Juan? Por
que esse gesto?
-Sabe que não tenho direito a te ter em meus braços? Sabe
que não somos mais casados?
-Nada nem ninguém poderão nos separar!
Outra vez Mônica se jogou nos braços de Juan, abertos
para estreitá-la; outra vez se apertou contra aquele peito rude e
largo, e mais um instante ficaram de novo unidos por aquele
forte abraço que fundia e unia suas duas almas. Mas a mão de
Juan se levantou assinalando aos soldados que, surpresos e
indecisos, ficaram aguardando a curta distância:
-Esses homens têm a ordem de me levar ante o novo
governador. Segui-lhes porque, apagando-se em minha alma a
esperança de voltar a te encontrar, já não me importava nada, e
nada me importa ainda, pois nenhum preço será muito alto por
ter te encontrado. Eu saberei confrontar meu destino, Mônica,
esse destino do qual quis me afastar porque sou filho da
desgraça...
-Não poderá me afastar nunca! O que seja o
confrontaremos juntos. Só quero estar ao seu lado, ser sua
esposa. Se estiver quebrado o laço que nos unia, nos uniremos
de novo, uma e cem vezes... Aonde tiver que ir, irei contigo...
Não me importa a terra nem o lugar!
-Mônica... Mônica... É certo que me amava? É certo que me
ama? Nada me importa tendo esta verdade na alma! Agora é
preciso nos separar de novo...
-Não nos separaremos! Irei aonde você for. E se Renato
tiver sido tão vil, tão canalha...
-Ele também te ama, Mônica; ama-te desesperadamente.
Eu sei que lutará até o final...
-Não lutará... Ouvirá a verdade de meus lábios! E se for
certo que esse novo governador pensa que eu mereço algo...
-Saberei me defender, Mônica, não se inquiete... Renato
conserva os papéis que anulam nosso matrimônio, te devolverá
a liberdade absoluta...
-Ninguém pode anular meus sentimentos, Juan!
-E o papel que lhe autorizava a me perseguir, a me
prender... Outra vez Renato D'Autremont contra Juan do
Diabo...
-Vamos, andando... O senhor governador aguarda -
apressou o sargento aproximando-se do casal.
-Adeus, Mônica... Minha vida, minha alma!
-Não, não me separarão de você outra vez!
Juan se afastou já entre os soldados. Só um instante
vacilou Mônica, e depois o seguiu com passo veloz...
-Oh, Noel, prenderam Juan!
-Já sei... Já o vi... Por que se imagina que me pus a correr
para cá assim que percebi que chegava entre dois soldados?
Queria ganhar pela mão a Renato... Mas, por desgraça, não
pôde ser...
-Onde está Renato? Entrou? É possível que Renato...?
-Calma, minha filha, calma... Renato entrou antes que
ninguém, e essas malditas portas estão bem guardadas... Mas o
pior que podemos fazer é precipitar os acontecimentos... Temos
que ter calma...
-Eu não posso ainda acreditar que Renato seja capaz...!
-Eu tampouco quero acreditar, mas uma vez lhe vi pior que
a um tigre de Rojão de luzes. Vi-o cego de ciúmes e de raiva...
-É preciso salvar a Juan... Fazê-lo fugir, se esconder...!
-Justamente é o que estou pensando. Se aproveitássemos a
confusão que reina ainda nestes primeiros momentos... Se
pudéssemos tirá-lo daqui...
-Por essa grade que fecharam atrás deles, fizeram-lhe
entrar...
-Então, a coisa vai depressa. Por ali o colocarão
diretamente à sala que o novo governador tomou como
escritório. Pode que a estas horas já esteja ali se enfrentando a
Renato... Daremos a volta... Do outro lado há paredes
derrubadas...
-Preciso dizer a Renato que o odiarei enquanto viver se fizer
algo contra Juan! Preciso lhe dizer que sua vida é a minha, que
sempre o quis que o amarei enquanto o meu coração bater!

-Com quanto prazer estreito sua mão, senhor D'Autremont!


Entre outras notícias, igualmente lamentáveis, tinha a do
absoluto desaparecimento de sua família... Mas faça o favor de
sentar-se... Vê-se que está mal... Compreende-se quanto
sofreu...
-Todos sofreram senhor governador...
Pálido e vacilante, em luta desumana contra seus próprios
sentimentos, Renato D'Autremont aceitou o assento que
Gerardo de Vauclín acabava de lhe oferecer. Culto, refinado,
arrogante, o novo governador de Martinica não tinha mais de
trinta e cinco anos, e contemplava com interesse e simpatia o
rosto juvenil e gasto do cavalheiro D'Autremont, mais duro e
viril depois das penas e dores passados...
-Não quero lhe falar das desgraças que sem dúvida
passaram senhor D'Autremont. Além disso, o tempo apressa.
Asseguro-lhe que estou aflito frente à enormidade de tarefa que
aceitei... Quase não sei por onde começar... Preciso estar seguro
da cooperação dos melhores, de você o primeiro...
-Sinto desiludi-lo. Pessoalmente, não acredito poder servir
de nada...
-Não diga isso. Claro que se vê rendido, esgotado... Já me
contaram sobre a ferida que sofreu, a que pouco faltou para ser
fatal... Preciso lhe infiltrar otimismo... Precisamente neste mapa
acabam de me mostrar o lugar onde ficam suas fazendas...
Cerque Menino e Campo Real têm uma situação privilegiada...
Terá todas as facilidades para voltar às explorá-las...
Renato ficou de pé como sob um sofrimento intolerável.
Sua mão apalpou trêmula aqueles papéis que guardava no
bolso da jaqueta, e cravou o olhar no amplo escritório cheio de
papéis, enquanto o novo mandatário o observava surpreso, e
indagava:
-Sente-se mau? O que se passa?
-Que lista é esta?
-Ah! Nela assinala os homens e mulheres que mais se
distinguiram na ajuda a seus semelhantes... A senhora Molnar,
pela qual você mostrou um interesse tão vivo, está entre as
primeiras. Encontrou-a por fim? Pôde lhe falar? Eu ainda não
pude saudá-la...
Renato vacilou. Sua mão trêmula e branca se levantou para
enxugar o suor que banhava suas têmporas e sua testa. Pelo
buraco de uma parede destruída, viu o desencaixado rosto de
Mônica, seus claros olhos fixos nele, carregados de
recriminação... Viu agitar a redonda cabeça do velho Noel...
Uma espuma amarga subiu aos lábios, um golpe mais violento
que todos, sobre seu coração, obrigam-lhe a acalmar-se, a
erguer-se com um gesto galhardo de cavalheiro:
-Senhor governador, quer me permitir que o presente à
senhora de Molnar? Parece muito impaciente por saudá-lo.
Permita-me o senhor lhe fazer entrar? -E sem esperar a
autorização do mandatário, alterou a voz, enquanto se afastava
uns passos, e convidava-: Mônica... Noel! Adiante...! O senhor
Gerardo de Vauclín, novo governador geral de Martinica...
Mônica de Molnar...
-Excelência... -saudou Mônica toda confusa.
-Beijo seus pés - replicou galante, o governador. - Tinham-
me falado de você como de um anjo de caridade; mas não pude
suspeitar que, além disso, fosse tão jovem e tão bela...
-A Pedro Noel acredito que não é preciso apresentá-lo -
prosseguiu Renato. - Foi o mais fiel servidor de Francisco
D'Autremont, meu falecido pai. Ultimamente nos desgostamos
por uma diferença familiar, que hoje vai ser resolvida...
-Hoje...! -exclamou Mônica impulsiva.
-Me perdoe que ainda não te deixe a palavra, Mônica -
desculpou-se Renato. - E me perdoe. Excelência, que siga
abusando de sua bondade. Quase ao mesmo tempo em que lhe
falei da senhora de Molnar, pedi-lhe que enviasse a procurar
um homem junto à enseada do Forte de São Luis...
-E você mesmo deu a ordem aos soldados - confirmou o
governador. - Certamente não demorará...
-Chegaram há um momento. Permita-me sua Excelência
dar a ordem de que o tragam? -E afastando-se uns passos,
depois da aquiescência do governador, Renato ordenou-: Traga
o detido, sargento! Aproxime-se, Juan...
O governador se voltou para este, vivamente assombrado.
Seu olhar percorreu com curiosidade e surpresa o altivo homem
que chegou entre dois soldados, observando o peito nu até os
pés descalços, e indagou:
-Quem é este homem? Acaso...?
-Um pouco de paciência - pediu Renato em tom afável. -
Explicarei a sua Excelência dentro de um instante. Antes quero
fazer uma referência ao que o senhor e eu falávamos. Referia-se
a seu amplo programa de ajuda para os que ficaram em
Martinica, verdade? Falou de dar todas as facilidades...
-Sim... Claro... E até da partilha das terras que ficaram
sem dono. Entre estas contávamos Campo Real. Agora, por
fortuna...
-Por fortuna, a situação mudou. O senhor esperava que
essas terras, as mais ricas da ilha, voltassem a ser exploradas
como antes, não é certo?
-Certamente e tentava lhe infundir o otimismo necessário
para que você ficasse...
-E se eu lhe disse que, pessoalmente, não contasse comigo.
Mas tenho meu candidato... Não ficarei em Martinica, senhor
governador. Sou dos que fogem, dos que se afastam, dos que
preferem escapar... Sou do grupo dos covardes...
-Não acredito assim, senhor D'Autremont, mas...
-No primeiro navio aonde haja um posto disponível, voltarei
para a França. Algo fica ali da herança dos Valois, que
correspondia inteiramente a minha mãe. Irei pessoalmente a
recolhê-la...
-Mas... Não compreendo... Este homem...?
-Acabarei de lhe explicar. Sou dos poucos que, por acaso,
puderam conservar seus papéis... Estavam em minha carteira,
junto com uma boa quantidade de dinheiro, que alguém
resgatou ao me salvar a vida. Espero que com meu testemunho,
e com a assinatura de um advogado como dom Pedro Noel,
poderá reconstruir-se os de uma pessoa que perdeu na
catástrofe todos seus meios de identificação...
Olhou lentamente para Juan. Acaso esperava uma palavra
de seus lábios, que agora estavam lívidos, duros e apertados.
Também subitamente silenciosos Mônica e Pedro Noel estavam
pendentes de suas palavras, e respirou Renato, como tomando
fôlego, antes de terminar:
-Cerque Menino e Campo Real é meu desejo que sejam
imediatamente entregues ao homem a quem de direito lhe
correspondem, com o que, além disso, cumpro a vontade de
meu pai. Dom Pedro Noel sabe...
-O que eu sei? -perguntou este surpreso.
-O que meu pai desejou sempre... O nome daquele em
cujas mãos tivessem querido ver Campo Real... O homem a
quem por um engano trouxeram detido entre soldados, quando
só tentava pôr suas coisas em ordem...
-Por um engano? -inquiriu Mônica confusa.
-Sim, Mônica. Já sei que é isso o que está tentando dizer
desde que entrou. Leio-o em seus claros olhos eloquentes, e
também nos de nosso bom Noel. E agora, responderei a sua
pergunta, Excelência: Cerque Menino e Campo Real devem ser
postos legitimamente em nome de meu irmão...
-O que diz? Seu irmão? - assombrou-se o governador.
-Não sou o primogênito. Excelência, embora como tal me
tenha criado; nem o único sobrevivente da família cujo
desaparecimento o senhor lamentava. Fica também o homem
que tem diante do senhor: Juan Francisco D'Autremont, meu
irmão!
-Mas... - tentou protestar Mônica.
-Não replique mais, Mônica. Minha parte nesses imóveis é
meu presente de casamento... Porque há algo que ainda não
havemos dito a sua Excelência: a razão de meu profundo
interesse pela senhora Molnar é que é a noiva de meu irmão...
Mônica, Juan e Noel, voltaram-se, tremendo de emoção,
para o homem pálido e gasto cujas costas acabaram de fechar
as portas do escritório do novo Governador Geral da Martinica,
e sufocou a gratidão da voz de Mônica, ao comentar:
-Renato, o que fez...
-O que fez é sublime, filho de minha alma! –completou Noel
com lágrimas nos olhos.
-Não, Noel. Sublime foi Juan - recusou Renato. - Sublime
foi duplicar, triplicar o próprio risco para me tirar daquele
inferno de águas quentes... Sublime foi me salvar quando eu o
perseguia como o mais feroz dos inimigos, Juan... Sublime foi
enfaixar minhas feridas, me levar em seus braços através da
desolação e da morte, e, mais sublime ainda, guardar para mim
esses papéis que lhe condenavam. Como pôde fazê-lo? Como
achou generosidade e nobreza no fundo de sua alma?
-Por favor, cale-se - pediu Juan sem dominar sua emoção. -
O que fez... Mas não... Não posso aceitar... É muito...
-Por que muito? Recusa então a vontade de nosso pai?
Nosso pai, Juan, nosso pai... Ele sempre te reconheceu como
filho... Felpa o rancor que possa guardar em sua alma...
Acredito que nunca te pude dizer que suas últimas palavras
foram para me pedir que te procurasse e que reparasse no
possível sua falta... Sim a morte não tivesse truncado
prematuramente sua vida, como filho teria crescido ao lado
dele... Acaso como filho predileto...
-Não, Renato! -protestou Juan.
-O filho da mulher a quem mais tinha amado... Pensa-o, e
acaso possa perdoar o rancor de minha pobre mãe... Como vê
nada do que te entreguei é porque merece que não tenha
ganhado, nem ao que eu não deva renunciar... Até a Mônica
você salvou Juan... Seu amor a levou a Cabo do Diabo, e sua
generosidade ao Monte Parnaso... Se tivesse permanecido a meu
lado, sua juventude e sua beleza seriam hoje cinzas, como o é
tudo que amei como o são aquelas que me amaram: minha
mãe...
Apertou os lábios sob a força lhe queimavam as lembranças
amarguíssimas. Logo, voltou-se para apertar as mãos de Mônica
com gesto apressado:
-Que seja feliz, Mônica, que seja tão feliz junto ao homem a
quem ama como eu tivesse querido te fazer...
-Renato...! Meu pobre Renato...! -murmurou Mônica
comovida.
-Só um pedido... Não me tenha pena!
-Só quero te agradecer, Renato, obrigada com toda minha
alma...
-Não fiz nada que na verdade não os mereça.
Simplesmente, não sou um canalha... E agora, abreviemos a
despedida... Sairei muito em breve, no primeiro navio que
queira me levar...
-Mas inclusive não está reposto, filho - disse Noel.
-Reporão-me os ares da França. Obrigado, Noel, e adeus.
Você sempre foi um homem honrado e nunca vacilou em
assinalar o caminho com seu exemplo...
-Que Deus te abençoe! Digo-lhe isso como lhe pudesse
dizer isso seu próprio pai...
-Renato... Não sei o que te dizer... -sussurrou Juan
terrivelmente confuso.
-Não tem que dizer nada. Admirei-te desde menino; desde
menino tive a consciência de que era o mais forte, que valia
mais. Não é nenhum mérito reconhecê-lo... Quis ser seu amigo.
As circunstâncias me converteram no contrário... Acredito que
cheguei a te odiar. Mas, até te odiando, estimei-te, e se nunca
pude te chamar amigo, agora quero te chamar, mesmo que seja
como palavra de despedida, irmão...
-Renato... Irmão... - exclamou Juan profundamente
comovido.
-E agora, um abraço... -Os dois irmãos se estreitaram em
um emocionado abraço, e Renato comentou com forçada
jovialidade-: Não aperte tanto, Juan do Diabo...
-Sua ferida, Renato - alarmou-se Mônica.
-Não se preocupe Mônica, que já não sangra. Está
cicatrizando e sarará. - deu uns passos, mas repentinamente se
voltou para estreitar de novo as mãos de Juan, e lhe
recomendou-: Cuida de nosso Campo Real... Faça-o fecundo...
Faça-o ditoso e próspero, como soube fazê-lo nosso pai...
EPILOGO

A nova casa de Campo Real se elevava justamente no


extremo oposto do vale florido onde estava à primeira. Ficava
muito perto do desfiladeiro, naquela colina ensolarada de onde
chegavam de quando em quando às ásperas rajadas do ar do
mar. Era uma casa fresca e clara, bonita e alegre, pequena se
comparada com o velho palácio cujas ruínas de mármore
cobriam as trepadeiras silvestres; larga, porque nela cabiam
íntegros e triunfantes, o amor e a paz... Amor e paz no coração
da mulher que aguardava no balcão que agasalhavam as
madressilvas; luz em seus olhos claros, que percorriam os retos
caminhos a cujos lados marcavam os sulcos suas trincheiras de
paz... Esperava docemente, sem inquietações, sem angústias...
Esperava os frescos lábios acesos para o beijo que não podia
demorar, as finas mãos sensitivas enlaçadas, preparando-se
para a carícia... Essa mulher sorria, essa mulher amava, e era
seu amor como os raios desse sol que fecundava a terra e
iluminava as almas... E o cavalo que sentiu aproximar-se, ao
chocar dos duros cascos, elevou seu coração como um repique
de sinos de prata...
Um homem cruzou as longas terras férteis... Sobre o mais
brioso e inquieto corcel que pisava na terra americana, a mão
forte sustentava as rédeas, retardando o galope como quem um
instante atrasava a sorte para melhor gozá-la. Seu olhar se
estendeu a um e outro lado. Já não era Campo Real terra de
servos e senhores... Terra fecunda e alegre, onde homens livres
ganhavam com seu suor o pão. Ao passo de que era guia e
exemplo de todos, não tiravam o chapéu as cabeças humildes,
não se inclinavam as servis costas... Elevavam-se as mãos em
uma saudação de respeito e afeto e ele sorria ao passar...
Sorria, e seu olhar inquieto subiu pelas colinas até a casa
Branca, até o balcão coberto de madressilvas, onde lhe
aguardava a mulher a quem amava...
-Demorei muito, Mônica?
-Para minha impaciência, sempre demora. Mas, na
realidade, não foi muito... Tenho a avareza de todas as horas, de
todos os minutos de sua vida... Sei que não é possível... Não
pretendo ter uma águia enjaulada... Pequenos são para você
Cerque Menino e Campo Real. Como posso te trancar nas
quatro paredes de minha casa?
-Me tranque em um circulo mais estreito ainda, minha
Mônica; no cerco de seus braços... Quero esta promessa em
meu pescoço, como quero seu olhar em meus olhos e sua boca
em minha boca... Sem sua presença, faltaria o ar, o sol, a vida
mesma... Por você sinto o fôlego de vida que é luta, triunfo...
Trabalho... Por sua inspiração, estes campos são outra vez
fecundos, e ditosos os homens que os lavram. Hoje estive no
porto para contratar cem trabalhadores mais...
-É possível? Voltaram os que se foram, os que deixaram
Martinica?
-Não... Quase nenhum retornou... Mas não importa... Vêm
homens novos, de terras mais duras... Homens de todas as
raças: negros e bronzeados, amarelos e brancos... Metais novos
para o crisol que é nossa pátria. Se visse que alegria me deu ver
como se levantam já as casas em Fort d’ France... Logo teremos
uma capital limpa e alegre, possivelmente mais formosa que
Saint-Pierre...
-Saint-Pierre... Ficou pensativo... Há algo mais que queira
me dizer?
-Sim... Hoje se foi Renato... Separou-se de nós dizendo que
se ia em seguida, mas não foi verdade... Esperou em uma
quinta dos arredores...
-Renato... Que Deus lhe dê a felicidade!

Um homem cruzou com silencioso passo a cabine de luxo


de um navio que se ia... Era alto, fino, altivo, vestia roupas de
cavalheiro, seus cabelos eram loiros e havia em seus olhos
claros um intenso olhar de nostalgia... Sua mão, de compridos
dedos, procurou entre seus bolsos até encontrar umas folhas...
Papéis descoloridos, espremidos, quase apagados pela água...
Papéis nos quais, entretanto, ainda podiam ver-se os selos do
Governador e a assinatura do Bispo. Com gesto lento e suave,
fez brotar a chama de um fósforo, aproximou as folhas
espremidas. Um momento, sua mão as sustentou no ar, as viu
arder, e as deixou cair sobre as inquietas águas...
O navio cruzava frente às ruínas de Saint-Pierre... Deixou
atrás o promontório de rochas sobre o qual se elevava o farol, a
proa em alto mar apressava a marcha. De pé junto ao corrimão
do convés, olhou Renato aquela terra da qual se afastava. Sua
cabeça se levantou, seus olhos olharam à alta cúpula do vulcão,
sereno, sombrio, morto ou adormecido, talvez como um símbolo
ou como uma ameaça. Pensou em Mônica e Juan... Um instante
nublou seus olhos claros; mas, com robusta vontade, voltou as
costas e se dirigiu para o salão iluminado, deixando atrás a
terra que lentamente parecia apagar-se...

Martinica... Terra florida e convulsa, surta ao impulso de um


grande fogo... Vulcão de amores e de ódios, de paixões sem
freio, de abnegações e crueldades... Terra única, onde teriam
que chocar aqueles dias quatro corações apaixonados: Mônica,
Aimée, Renato, Juan... Martinica... Ilha brotada onde o
brilhante mar do Caribe parecia mais inquieto, broche de ouro
no colar de esmeraldas das Antilhas... Exuberante e áspera,
generosa e selvagem, presa de aventureiros, refúgio de piratas,
filha predileta do sol mais ardente do planeta, berço do grande
vulcão que é como o coração ardente e contido pulsando em
suas vísceras... Terra feroz e misteriosa, abrupta e enigmática...
Ilha bravia; com nome de mulher: Martinica!

FIM

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