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Pégasus Lançamentos
Capitulo 1
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Pégasus Lançamentos
— Pois busca ao moço e me traga isso sem que ninguém te veja, sem que
ninguém se inteire de que sou eu quem vai falar com ele. Sirva-me bem. Ana me
sirva bem e terá o anel mais lindo do mundo. E dinheiro, todo o dinheiro que
queira. Anda. Vê, corre!
Com gesto de determinação e desesperada empurrou Aimeé à escura donzela
nativa, obrigando-a a acelerar o sempre pausado ritmo de seus movimentos. Logo
vai de um lado a outro pelo luxuoso quarto sem saber como acalmar-se, como
aplacar seus nervos, submetidos há várias horas a penosa tensão da espera. Nunca
pôde pensar que Juan do Diabo tomasse tão rapidamente uma determinação
semelhante. Seguir-lhe, fugir com ele, deixá-lo tudo, trocar sua posição e sua
riqueza pela sorte daquele aventureiro, por muito atrativo que fosse para ela, por
muito grande que fosse a sugestão que sobre seus sentidos exerce, é mais do que
humanamente está disposta a dar. Não, não irá com ele daquela maneira. Mas, como
aplacá-lo? Como evitar a feroz vingança de seus ciúmes? Pensando nele se
estremece de temor e desejo de uma vez. Deseja-o e o repudia, ama-o e o aborrece,
desespera-se ao não poder dominá-lo a seu desejo e lhe ama mais ao vê-lo como é:
duro e rebelde, feroz em seu domínio, implacável naquela amargura que agora
destilam suas carícias e seus beijos.
Tem cansado de joelhos ao pé da janela, apertadas uma contra outra as mãos
engarfadas, dilatadas as pupilas que espiam inútil e ansiosamente. Uma férrea
determinação se levanta também em sua alma e prorrompe em voz alta:
— Não será como ele deseja muito! Será como eu queira! Terá que ser
como
eu queira!
— Ana. Ana. — exaspera-se Aimée. — Acabará de mover esses malditos
pés? Acabará de chegar?
— Já chego senhora Aimée. Mas é que faz um calor.
— E demônio carregue contigo! Onde está o menino?
— Pois não o encontrei, mas me disseram onde estava o senhor Juan. Foi ao
engenho. Aninha estava dizendo ao Batista que o senhor Juan. Juan do Diabo como
diz ela, havia mandado selar o cavalo branco do amo e havia tombado nele para o
engenho, e que terei que ver como mandava e como dispunha, como se o amo fora
ele. Se você quiser, eu posso ir para lá. Agora mesmo estão carregando no pátio vos
carrinhos de mão grandes com tudo o que vão mandar para o engenho. Eu posso ir
com um deles e digo ao senhor Juan o que você me mande que diga, minha ama.
Que venha, não?
— Sim. Que preciso lhe falar, vê-lo. Mas espera, espera. Não confio muito
de que chegue a tempo — Com angustia crescente foi para a janela. Já o sol está
muito baixo, logo que doura com seus últimos raios a cúpula altiva do Mont-Brigue,
e murmura como para si: — Ele me espera esta noite às doze.
— Daqui as doze há muito tempo.
— Ninguém perguntou por mim na casa?
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— Ninguém saiu que seu quarto desde esta manhã. Nem a senhora Sofia,
nem a senhorita Mônica, nem a senhora Catalina. E o senhor Renato está com o
notário no escritório que foi do amo dom Francisco, é o único que pediram que
entrassem foi conhaque e café. Aninha mesma entrou e leva-lhe, disse que não
podia entrar outro a incomodá-los, porque estavam arrumando as contas.
— Menos mal. Bom, vais procurar, onde esteja o senhor Juan. Vais dizer-lhe
que estou doente, muito doente; que por piedade aguarde a manhã para me falar e
para ver-me. Diga-lhe que o pedido chorando. Diga-lhe.
— Por que não me escreve tudo isso em um papel, minha ama?
— Em um papel? Sim, tem razão. Mas...
— Em um papel sem assiná-lo. Eu já lhe digo que é de você. De sua própria
mão e ponho. Só a ele o entrego. O juro, minha ama, só a ele. Não tenha medo.
— Vou confiar em ti, Ana, vou escrever esse papel, mas me responde com
sua vida de que só ao Juan o tem que entregar. Jura-me isso Ana, jura-me isso.
— Por Deus e a Virgem do Céu! Só ao senhor Juan lhe darei o papel, e se
não for assim, que me caia morta!
A escura donzela jurou cruzando os dedos, e um instante Aimée parece
vacilar entre a necessidade peremptória de confiando-se a ela e a pensar a arma
terrível que fabrica contra si mesmo naquelas letras. Com ânsia febril vai até a
pequena escrivaninha e nervosamente rebusca até achar o que necessita.
— Ana, vais ter muito cuidado com isto. Se alguém quiser lhe tirar isso se te
vir em qualquer apuro.
— Como a carta antes que dar-lhe a outro! Juro, minha ama.
— Está bem, está bem. — Acata Aimée ficando a escrever, mas de repente
duvida e rompe o papel. — Não posso expor-me dessa maneira! Espera. Não sabe
você escrever. Ana?
— Eu escrever? O que vai! Sei tirar contas e pintar muito bonito. Aninha
sim sabe escrever e ler. Puseram-lhe professor como às meninas brancas. Das
faxineiras, é a única que sabe escrever. Mas você não vai confiar nela. Além disso,
se o senhor Juan não vir sua letra não vai acreditar que o papel é de você.
— Ele nunca viu minha letra. Mas espera. Espera. Posso escrever um papel
que não me comprometa muito. Sim, isso, ele compreenderá. O compreenderá que
não posso mandar outra coisa contigo. Ele entenderá.
Agora sim escreve, rápida e firmemente, uma carta ambígua, cerimoniosa,
que é, entretanto, um pedido dilacerador. Logo a dobra, guardando-a em um
envelope com seus dedos que tremem, e murmura:
— Para o Juan. Para o Juan de Deus. Sim. É melhor assim.
— Juan de Deus? — se estranha a faxineira.
— Alguém lhe chama assim. O entenderá perfeitamente. Mas você lhe diga
que a carta é minha, que estou realmente doente, que a escrevi chorando e
desesperada. Anda. Vê, corre, não vás perder a oportunidade dessa carreta.
— O que vai, minha ama! Quem a leva é Esteban e esse sim é meu amigo
para tudo o que seja.
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— Olha, Renato, eu não sei mais que o que pressinto, e o que pressinto são
amarguras e desgostos que podem evitar-se sem dar às coisas tantas voltas. Juan
quer ir sim, quer voltar para mar. Deixe-lhe que se vá. Mais adiante, quando as
coisas troquem, procuraremos a fórmula de lhe compensar com uma boa quantidade
de dinheiro que em uma ou outra forma se faça chegar a ele. Mas, de momento.
— Não, Noel, não decidirei nada até falar com o Juan, até lhe mostrar meu
coração e lhe obrigar a que me mostre o seu. É meu irmão, dá-se você conta? Esta
verdade que para mim só existia pela metade, agora está clara e diáfana. Tenho um
irmão, um irmão no que a nobre figura de meu pai parece reviver. Você não pode
imaginá-lo que significa isto para mim, e acaso tampouco possa medir toda a
felicidade que me negaram de menino ao me negar esta verdade íntima e humana —
Renato falou com exaltado entusiasmo, e em um arranque de emoção, roga: —
Conte-me isso tudo. Noel me diga quanto saiba disso. É a história de meu próprio
sangue. NÃO me negue isso!
O velho notário começa a relatar a história, tão bem conhecida dele, desde
aquela noite tormentosa em que o pequeno Juan do Diabo fez o papel de mensageiro
da morte. Renato bebe sedento de saber, o relato pormenorizado, e, de repente,
indaga:
— E essa carta. Noel?
— Bom. Ficou em mãos de seu pai, certamente. Eu suponho que ele a
queimou ou a rompeu depois.
— Ou a guardou. Quem sabe!
— Talvez; embora não acredito. Seu pai, ao princípio, mostrou-se muito
desconfiado. Bertolozi era um homem vingativo, cruel e traiçoeiro. Algo podia
esperar-se dele: a maior mentira, a maior infâmia. Estou bem seguro que depois de
seu perdão aparente, atormentou a Gina até fazê-la morrer de desespero. E quanto
ao Juan.
— Posso muito bem adivinhar sua horrível infância. Que fácil é perdoar sua
rudeza e seus defeitos sabendo tudo isto!
— Com quanta razão temia sua mãe que o saber tudo isto te desarmasse
mais frente a Juan, tirasse-te a pouca vontade de te defender que possa ter.
— O que pensa você que possa fazer Juan contra mim?
— Eu não penso, mas sua mãe teme e tem razão em temer. Não quero nem
pensar o que dirá quando souber tudo isto.
— Eu falarei com ela depois de ter falado com ele. E acaso dê a ela e a
surpresa de comprovar que se equivocaram. Às vezes, o coração sabe mais que a
cabeça. Juan não pode me odiar se eu for a ele como irmão, se o demonstro todo o
sinceramente que lhe quero se nobremente me adiantar a oferecer o que incluso não
pediu.
— Não caia em uma loucura de generosidade, Renato! Pensa que a só
existência do Juan é, para sua mãe, uma ofensa viva, candente; que até o nome da
Gina Bertolozi a fere como uma faca envenenada.
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— Não pode ser. Minha mãe tem que ser mais generosa. Gina Bertolozi já
está morta.
— Há ódios que não se aplacam nem com a morte. Há rancores. E ciúmes
dos que não tem uma ideia. Você não há sofrido nunca, Renato, não pode medir a
amargura, a dor, o desespero a que a alma descende em alguns momentos. Você não
pode ser juiz, porque a vida foi até hoje, para ti, um caminho de rosas.
— Talvez por isso compreenda e compadeço mais aos que sofrem, e ao Juan
o primeiro. Vou mandar buscá-lo. Noel, para lhe falar como irmão. Para lhe dizer.
— Certamente, ele sabe.
— Mas pensa que eu o ignoro. E se não o pensa, acredita algo pior: que sou
insensível, egoísta. Quero que saiba que estou disposto a reparar, a devolver. Que o
mundo não é tão mau como ele pensa.
— Nem tão bom como você imagina, Renato. Deixa-o que se vá. É o maior
desejo de sua mãe!
— Até agora minha mãe cumpriu nesta casa todos seus desejos, até os mais
injustos. Vou contraria-la por uma só vez e confio em que sua contrariedade não
dure muito.
Renato se levantou, foi para a parede e touca um timbre, ante o qual, sentido
saudades, Noel pergunta:
— O que faz filho?
— Chamo um servente para que vá em busca do Juan. Aguardei quinze anos
por este momento.
— E se Juan não merecesse sua generosidade, Renato? Se não fora nem
sequer capaz de compreendê-lo? Se respondesse a sua boa vontade com sarcasmos,
com desprezo, acaso com uma amarga ingratidão?
— Pensaria que a culpa não é dele, mas sim dos que o converteram em um
emparelha, dos que lhe desapropriaram de tudo. Meu bom Noel deixe de dúvidas e
vacilações. Não há mais que um caminho e é o que me assinala minha consciência.
— Uns golpes discretos, dados na porta, interrompem-lhe momentaneamente e,
elevando a voz, convida: — Adiante. Se, Luiz, eu fui quem te chamou. Procura o
senhor Juan por toda a fazenda e lhe diga que o espero em meu escritório, pois
preciso falar com ele imediatamente. Que se apresse que não se detenha por
nenhuma razão, e te apresse você também.
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necessito que me compreenda para que não te pareça uma ingratidão o que vou
dizer-te. É preciso que Batista, e que você mesma, afastem-se desta casa.
— Como? O que? — surpreende-se dolorosamente Aninha. — Vai você nos
jogar, madrinha?
— Para que empregar essa frase tão feia, e que ao mesmo tempo não é certa?
Não, Aninha. Pensei que seu tio deve voltar para a França e que é justo que você lhe
acompanhe. Você não gosta da ideia de fazer uma viagem a Europa?
— Eu o único que quero é estar junto a você, madrinha.
— Esperava essa resposta. Agradeço-lhe isso, e certamente, é a justa no
primeiro momento. Mas a pouco que pense nele, tomará gosto à viagem. Sentirei-te
falta, é para mim um verdadeiro sacrifício.
— Mas pensa você que o senhor Renato não quer ver-me, verdade?
— Ao menos por algum tempo, mais vale lhe evitar a ocasião de ver Batista.
Você nada tem feito, já sei. Mas se o recorda. Pensa que ficou aqui Batista contra a
vontade de meu filho. Nestes dias espero que também Juan do Diablo se afaste. Pus
os meios, e se irá. Quero dar ao Renato uma verdadeira lua de mel, pois não a teve
pela intranquilidade destes dias, pelos contínuos problemas que lhe apresentam.
— Se o senhor Renato voltasse a pôr a meu tio em seu posto, não teria
problemas. Com ele não os havia. O senhor Renato está cego, não sabe onde estão
seus amigos e seus inimigos. Não sabe distinguir.
— Aninha, por que diz isso? — atalha-lhe Sofia com severidade.
— Você sabe igual a mim, madrinha.
— Talvez saiba, mas não ficam bem essas palavras em seus lábios. Além
disso, quero que me diga que razão tiveste para dizê-las. A quem te refere? Viu,
ouviste algo para?
Aninha levou as mãos ao peito, apalpou de novo o duro papel daquela carta,
mas seu rosto permanece impassível, nada delata nele a fogueira em que se abrasa.
Suave e cortesmente, diz sua mentira:
— Só sei o que lhe ouvi dizer a você, madrinha. Perdoe-me.
— Não é nada. Compreendo o que sente. Tenho por ti gratidão e carinho,
filhinha, e não te abandonarei nunca. Compreende? Se não achar bom na Europa,
pode voltar seguir-me acompanhando, e quando aqui ou lá chegue o momento em
que queira te casar com um bom moço de sua classe, darei-te um dote com a que
tem que te sentir proprietária e senhora de seu lar..
— Obrigado, madrinha. Não esperava menos de você — observa Aninha em
forma fria, embora cortês.
— Sei que te tenho feito acontecer um gole amargo. Vete a descansar.
Parece nervosa e impaciente. Anda, vete a procurar a seu tio, lhe fale disto e lhe
diga que, não voltará para a França com as mãos esvazia, a não ser com dinheiro
para viver sem trabalhar ou para estabelecer por sua conta um pequeno negócio.
— Obrigado outra vez, madrinha.
Aninha beijou a mão da Sofia com um gesto automático e se afastou depois.
Frente à porta fechada do despacho, detém-se, com as mãos no peito para sentir o
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Juan é onipotente, onde teria que submeter-se, como uma escrava, a seu domínio,
perdido tudo: fortuna, dignidade, posição, direitos. Até o nome. Juntou as mãos,
elevou os olhos ao céu. Se soubesse rezar, rezaria e neste instante; mas como um
relâmpago passa um nome por seu pensamento:
— Mônica! Mônica! Ela pode me salvar. Só ela. Como uma fera
perseguida, salvou Aimée o largo terreno que separa as cavalariças do luxuoso
edifício central, mas não torce pelo lado esquerdo. Vai diretamente para as
habitações dos hóspedes, sobe a escada de pedra, chega junto à porta do quarto da
Mônica e alta sem chamar o trinco, entrando de repente.
Lentamente, Mônica se levanta do genuflexório em que orava inclinada a
frente, e pouco a pouco vai dominando sua emoção, sua angústia, sua estranheza,
enquanto juntas as mãos, vivendo um minuto de verdadeira agonia, Aimée lhe
aguarda.
— O que te passa Aimée? O que tem? Para que vem a me buscar assim?
— Não sei nem para que venho nem sei como me arrisco ir a ti. Não mereço
sua ajuda nem seu apoio. Mereço que me volte às costas, que me jogue daqui sem
me ouvir sequer.
— Fala que já te estou ouvindo.
— Não, não me atrevo nem a te falar sequer. Perdoa-me. Estou perdida se
você não me salva, se você não me ajudar, se você não o detiver!
— Deter quem? — apressa Mônica francamente alarmada.
— Ao Juan do Diabo. — estala Aimée.
— Ah! — tranquiliza-se Mônica. — Pensei.
— Renato não sabe nada. Acredita-me pura, poda, inocente, e não me
importa morrer cem vezes com tal de que siga acreditando. É por ele, Mônica,
juro-te que é por ele. É pelo Renato que não quero cometer essa infâmia! Como
posso destroçar o coração de um homem tão bom? Como possa amargar sua vida
para sempre? Como posso lhe cravar a adaga de uma desilusão assim? Se te pedir
que me ajude, se te pedir que me salve, é por ele, Mônica. Você me compreende.
Irmã. Irmã.
— Eis resolvido me apartar de seu caminho, Aimée. Eis resolvido deixar que
siga sua sorte. Minha luta foi inútil, e a abandono. Faz o que queira tudo o que
queira.
Como desaba no tapete, aos pés da Mônica, está Aimée, que agora se
incorporou, tomando desesperadamente entre as suas as mãos geladas e brancas de
sua irmã. Como longínqua, como ausente, permaneceu Mônica sem dar amostras de
que aquela dor, verdadeiro ou fingido, ou comover-se. Fez o gesto de afastar-se, de
apartar-se, mas Aimée, se desesperada, fecha-lhe o passo:
— Não pode me abandonar agora!
— Cem vezes me pediu que me fora, que te deixasse em paz.
— Cem vezes o pedi, e não o fez. Continuou aqui impedindo com sua
presença que eu resolvesse minhas coisas mau ou, me exasperando, me
enfurecendo. E agora. Precisamente agora.
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Capitulo 3
Nervoso, inquieto, com uma impaciência que é alegria febril, vai Renato de
um lado a outro do escritório, seguido pelos cansados passados do velho Noel. Um
instante, os olhos do jovem D'Autremont olham compassivos ao velho notário, para
em seguida lhe propor:
— Está você cansado. Vá-se descansar se quiser.
— Pensa que poderia descansar sem saber no que acaba tudo isto? Vamos
fazer um trato, filho: você te vais descansar, e eu o espero.
— Que ocorrência! Você sim que se vê que não pode mais. Vá, Noel, vá
repousar.
— Vou, mas só a dar uma volta. Muito me temo que dona Sofia não se
deitou esperando que eu passe a falar com ela. Se me permite usar esta porta secreta.
Dá diretamente frente à quarto de sua mãe, conforme me disse ela. Abre-se
oprimindo a moldura, acredito que neste lado. Aqui. Sim. Se afunda a moldura,
mas não se abre a porta.
— OH! O esconderijo que procurávamos! Não lhe disse ficava neste painel?
Abriu-se ao apertar você à moldura.
Foram as duas para a prateleira, onde efetivamente se encontra o oco de uma
portinha. Mas na escura cavidade só há um papel enrugado. Um papel do que os
dedos do Renato se apoderam rapidamente e, emocionado exclama:
— Aqui está! Isto era! Diante de mim, meu pai enrugou esta carta e a arrojou
aqui dentro.
— Era essa a carta que?
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— Minha compaixão por ele tinha como vê, toda a razão do mundo. Era bem
justa, como justo era o empenho de seu pai em protegê-lo. Mas todo ficou contra
ele.
— Foi minha mãe a que ficou contra ele. Recordo àquelas horas, como se as
vivesse de novo. Lembrança aquela noite em que meu pai saiu a cavalo por última
vez, e a lembrança é como uma queimadura. Porque eu também me voltei contra
ele!
— Renato, filho, o que diz?
— Foi defender a minha mãe, e suas últimas palavras foram para liberar do
peso a minha consciência. Sim, Noel. Em Seu leito de morte, meu pai me disse
duas coisas: que tinha feito bem defendendo a minha mãe, até contra ele, e que
ajudasse ao Juan, que lhe tendesse minha mão de amigo, de irmão. De irmão, sim,
essa foi à palavra que usou a lembro perfeitamente. E essa palavra se cravou para
sempre em meu coração de menino, e lhe jurei cumprir seu desejo. E contra o
mundo inteiro o cumprirei, Noel!
Deixou cair à carta sobre a mesa, Enxugou-se as têmporas, úmidas de um
suor de angústia. Logo, com rápido movimento, toma o velho papel espremido e o
acende na chama amarela do abajur, comentando:
— Agora queimo esta infâmia, este papel odioso, este grito de rancor e
baixeza, que é a herança do Juan. Eu lhe darei outra, darei-lhe ao que meu pai quis
que lhe desse: minha confiança meu afeto, meu carinho de irmão. E a metade destas
terras que por seu sangue lhe pertencem.
— Filho, Por Deus. Tenha prudência.
— Prefiro ter justiça, Noel. Que ao fim haja justiça sobre a terra dos
D'Autremont. Justiça, compreensão, amor e piedade para os que vivem, e perdão
para os pecados dos que morreram.
Deixou cair sobre o largo cinzeiro de porcelana a carta que é já só um
punhado de cinza negra; logo, com rápido gesto, vai para a porta, e o velho notário
pergunta:
— Aonde vai, Renato? Não espera ao Juan?
— Não posso esperá-lo, Noel. Agora vou a seu encontro! No largo portal
quase em penumbras, Renato retrocede um passo contemplando a Aninha. Esteve a
ponto de tropeçar com ela ao sair do escritório. Pela primeira vez, os olhos claros e
doces do filho da Sofia se fixam nela com suavidade. Tem o coração cheio de
ternura, de compreensão humana, de amor e compaixão para todos os seres da terra.
Sente-se imensamente generoso, disposto à bondade e à indulgência, e domina até
ele movimento instintivo de antipatia que lhe produz a magra e escura mestiça, e
pergunta afetuoso:
— O que acontece, Aninha, por que me olha dessa maneira?
— Parece você contente senhor.
— Sim, Aninha , estou contente.
— Entretanto, é preciso que saiba a verdade, que não lhe enganem mais, que
não se burlem mais de você. Que saiba quem lhe mente, quem lhe desonra.
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Aimée se dirigiu para a janela, tratou que perceber todos os ruídos, mas
nenhum chega até ela no longo silêncio da noite. Tudo está em sombras, tudo
parece totalmente tranquilo, só um passo que chega muito depressa faz gelá-la
sangue em suas veias. Quer retroceder, esconder-se, fugir, mas já é tarde, pois
Renato irrompe na habitação e ordena autoritário:
— Aimée! Veem!
Arrastou-a quase, levando-lhe consigo, os dedos como ganchos de ferro de
aço cravados no braço dela, obrigando-a a afastar-se daquela quarto onde fica
sozinha a assustada Catalina, que não teve tempo sequer de pronunciar palavra
alguma. . Empurrou-a, colocando-a pela força sob o farol de luz amarela, e fica
olhando-a muito de perto de marco em marco, com expressão? Fera e terrível,
enquanto ela treme e em vão tenta retroceder. Não tem onde dar um passo atrás, e
ele está ali. Em seus olhos lhes dar há uma labareda de cólera infinita, de rancor
sem nome, um fogo que Aimée nunca viu naquelas pupilas, mas que bem conhece
em outros olhos, e suplica assustada:
— Renato! Está louco?
— Louco e cego tudo que ter sido! Hipócrita! Perdida!
— Por que falas desse modo? Por que me olha assim? — E com afogado
espanto tenta defender-se: — Renato perdeste o julgamento?
— Recorda esta carta? Diga-me!
— Eu. Eu. Eu. — balbucia Aimée sem encontrar saída.
—É tua. Não o negue, não pode negá-lo. É tua sim, você a escreveu!
Enganava-me!
— Não, Renato, não.
— Nesta carta geme, suplica, pede-lhe compaixão a outro homem, e é para
mim a quem devia pedi-la. Mas não o faça, porque será inútil. Será inútil!
Aimée tratou que fugir, mas as mãos do Renato a atendem oprimindo-a
sobem a sua garganta, arrudas e decidida. Com a suprema audácia do terror, Aimée
obtém forças para fugir para destilar o veneno de uma acusação:
— Não sou eu a culpada. Juro-lhe isso! É ela. Ela. Peço compaixão, mas
não para mim. Peço piedade, mas é para ela. Humilho-me e suplico, mas é para
salvá-la a ela. A Mônica!
— O que é o que diz?
— Mônica é a amante do Juan do Diabo!
— Não! Impossível!
— Jurei calar a custa de tudo. Jurei não dizê-lo. Por minha mãe. Renato,
por nossa pobre mãe, quis salvar a minha irmã. Quis salvá-la a custa de mim
mesma. Tenha piedade dela, Renato! Tenha piedade dela, e tenha piedade por mim!
Como se um golpe brusco despertasse, como se ascendesse do fundo de um
abismo, como se em suas trevas se fizesse a luz de repente, como se em meio de seu
desespero sem limites um raio de esperança chegasse lhe deslumbrando, Renato
retrocedeu procurando a verdade nos olhos do Aimée, que agora choram de espanto,
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em suas mãos estendidas que pedem compaixão e piedade, é aquela voz que o terror
há quebrado em soluços, enquanto torpe e desesperadamente resmunga sua mentira:
— É Mônica. É Mônica. Minha pobre irmã que está louca, já lhe disse isso.
Escrevi a essa fera do Juan para detê-lo. Não era possível abandoná-la em mãos
dessa besta sem coração. Dá-la ao Juan é igual a entregá-la indefesa nas garras de
um tigre. Não me entende, Renato? Mônica é a amante do Juan! Entregou-se a ele
em um momento de loucura, sem saber o que fazia, e ele a converteu em sua
escrava, em sua vítima. Não compreende?
— E como posso compreender?
— Lhe quis, perdeu a razão um momento, e agora ele é o amo. Manda,
ordena, arrasta-a como a um farrapo, e ameaça com o escândalo. E ela morre de
medo, e sofre, e chora e... É um canalha, Renato, um canalha, um bandido! Mas
não lhe provoque, não ponha frente a ele. Deixa que eu seja quem lhe fale quem lhe
diga.
— Não minta mais! — estala com fúria Renato.
— Não acredita o que te digo? Juro-te que é pela Mônica que escrevi esta
carta! Ela estava enlouquecida de espanto e me pediu auxílio. Tem-na encurralada,
aterrada, e agora mesmo.
— Agora mesmo, o que?
— Estão discutindo ali, depois da igreja! Ela luta por convencê-lo de que se
afaste, de que a deixe voltar para seu convento. É o único que lhe pede o único que
lhe implora.
— Atrás da igreja disse?
— Renato querido, tenha pena da Mônica. E perdoa-me. Perdoe-me por
não lhe haver isso dito. Ela não me perdoaria jamais se soubesse que você sabe. Ela
está arrependida. Quer matar-se, morrer.
— Pelo Juan do Diabo? — Prorrompe Renato com desbordado sarcasmo e
amargura.
— Não por ele, mas sim por seu pecado, por sua vergonha. Eu quero ajudá-
la a que ele se afaste. O prometi. Comprar marcha e seu silêncio. Talvez um pouco
de dinheiro bastaria
— Você acredita que basta com um pouco de dinheiros salta Renato com ira
concentrada. — Acredita que Juan é o mais vil, o mais canalha, o mais prostituído
dos homens?
— Sim, Renato, sim. É todo isso. Por isso Mônica está enlouquecida. Sabe
que mamãe morreria se ela desse um escândalo assim. Prometi-lhe falar com essa
fera, lhe deter, lhe pedir. Interrompe-se de repente e ao observar o movimento de
Renato, pergunta espantada: — Aonde vai?
— Vou ali, e você vem comigo!
Arrastou ao Aimée, levando-a consigo. Em vão ela luta, em vão resiste. O
vai como louco, como cego, sem acertar sequer a distinguir em que caos de
sentimentos, em que torvelinho de loucura vão envoltas sua razão e sua vida. E
lutando, Aimée suplica:
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daquela conversação entre a mãe. E o filho, e agora lhe assalta a lembrança daquelas
horas que foram como a ameaça de uma adaga sobre seu peito. Como o vértice de
um torvelinho, volta a sentir-se arrastada pelo Renato até aquela cena de pesadelo
em que saltam como visões de horror os rostos conhecidos: Mônica, Renato, Juan.
Juan, sobre tudo. Aquele Juan amado e aborrecido, temido e desejado, a cuja
evocação o sangue de suas veias parece ferver.
— Não é possível. Não é possível. Todos hão enlouquecido. Todos! Ele
disse que sim. Ela disse que sim.
— Senhora Aimée.
— Ana! — surpreende-se Aimée. — Como entraste? Por onde?
— Não entrei senhora, estava aqui. Esperando-a como me ordenou. Quando
senti que vinha com você o senhor Renato, escondi-me. Como você me disse que
não falasse com ninguém a não ser o que me mandasse lhe dizer. Já não se lembra
senhora?
— Não tenho nada que te dizer! Vete daqui!
— E por onde, senhora? O senhor fechou com chave a porta.
— Quer me dizer para que me encerra como a uma fera?
— O senhor anda desconfiado, senhora Aimée, bem desconfiado. Não há
mais que ver como a olha. Se eu fosse você, andaria com muito cuidado, porque ao
senhor Renato lhe deveram dizer.
— Algo mais que dizer, Ana. A carta que mandei contigo, essa maldita carta
que lhe arrebataram essa carta que seguramente roubou Batista, está em suas mãos.
Deveu entregar-lhe ele, para comprar seu perdão com esse serviço. E tinha que ser
você a que deixou cair minha carta. Você, maldita estúpida! Negra imbecil!
— E você para que o fez? Se for uma negra imbecil, para que se confia em
mim,
— Porque às vezes Sou tão estúpida como você mesma. E porque estou
desesperada, encurralada e perseguida pela má intenção de todos. Ana, Ana, tem
que voltar a me servir!
— Eu. , Ai, não, minha ama! Se o Batista deu a carta para que o perdoasse,
se o amo Renato souber. Ai, minha ama! Eu não quero me colocar em mais
confusões. O Batista tem a mão muito larga, e se ele voltar a mandar aqui.
— Eu serei a que te esbofeteie se não me serve! — assegura Aimée,
impaciente pelos reparos da faxineira. E mudando de tom, oferece: — Darei-te
quanto me peça, mas agora mesmo sai daqui.
— Por onde.
— Pela janela do quarto penteadeira. Cairá no pátio pequeno, onde não há
ninguém nunca, e ali te espera miras bem e buscas ao Juan, que não pode estar
longe.
— E se me vê o amo Renato,
— Se te vir, não importa. Ele não sabe que estava aqui. A mim é a quem
não pode ver. Procura o Juan e lhe diz que se aproxime justamente pela janela
pequena por onde você vais sair. Diga-lhe que lhe estou esperando, que venha em
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Pégasus Lançamentos
seguida e que não me leve ao desespero, que não me faça enlouquecer porque vai
pagar muito caro. Acaso com a vida! Procura o Juan e diga-lhe, Diga-lhe.
Com oblíquo olhar depreciativo, Juan percorreu que trecho de piso os quatro
ângulos do desmantelado galpão onde Mônica e ele se encontram neste instante. É
um quarto anexo às cavalariças, onde se amontoam os sacos de forragem, os fardos
de feno, os velhos arnês, as gavetas e os barris vazios, sobre um dos quais, que
funge de mesa, está à garrafa de aguardente e alguns copos de áspero vidro, em um
dos quais Juan volta a servir o ardente licor para beber o de um só gole.
— Não beba mais, Juan. O suplico!
— Segue com sua mania de suplicar em vão. Incluso não se convenceu que
não atendo pedidos nem súplicas? De que é inútil.
Calou olhando-a devagar, como se a olhasse pela primeira vez, acaso
surpreso de sua debilitação, do esforço com que respira, das profundas olheiras
violáceas que fazem mais fundos e dramáticos seus claros olhos de olhar sombrio, e
acaso também surpreso de sua beleza em flor, pálida e ardente como um abajur
votiva, daquelas mãos brancas, finas como de lírios, cruzadas sobre o peito para
rezar ou para morrer.
— Juan. Você vai-se, verdade? — pergunta Mônica com dolorosa voz
suplicante. — Veio aqui esperando a ocasião de recuperar um dos cavalos que tinha,
de conseguir outro, de ir-se. Verdade? .
— E por que vou? — replica Juan com uma serenidade quase insolente. Há
ironia em suas palavras quando prossegue: — Não ouviu você ao Renato? Não lhe
ouviu dizer que não sairia vivo se tentava partir de Campo Real antes de ter lavado a
afronta que lhe fiz, tomando-a por esposa? Renato quer que repare minha falta, que
lave a honra dos Molnar manchado por mim, que lhe devolva a honra que lhe devo.
Que gracioso, verdade? O jovem D'Autremont exige que me leve como um
cavalheiro, lhe dando meu sobrenome. Meu sobrenome. Que gracioso é isto. Santa
Mônica! Suponho que será você a que tenha que me dar isso. Então me chamarei
Juan Molnar. Juan do Molnar! E herdarei com você quatro pergaminhos amarelos e
meia casa em ruínas. — Ri, e sua risada encerra em si uma amarga mordacidade, ao
prosseguir: — Renato o manda, e terá que obedecê-lo. Ele é como esse Deus que
está lá encima, que põe em meio da vida a um moço nu e faminto, sem nome nem
família, e lhe diz: "Não minta. não roube. Não mates". Mesmo que para não matar,
tenha que morrer. Pois bem, agradaremos ao Renato. A que vem assustar-se agora,
quando antes disse sim?
— Juan, é que não compreende? — protestou Mônica com voz afogada de
dor.
— Naturalmente que compreendi! O único importante é que Renato
D'Autremont não sofra, que não saiba nada, que não suspeite nada que possa
humilhá-lo nem feri-lo. Está sobre as nuvens. Não o disse? — E em um estalo de
repentino furor, protesto: — Pois não está sobre as nuvens! É uma bolota de lama
podre, é um homem como todos os demais. Pior. Mais desventurado, mais ridículo,
porque levou a altar a uma rameira. OH! É obvio isso não terá que dizê-lo. A
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Pégasus Lançamentos
história já não é essa, é muito distinta agora. Ela foi ao altar casta e pura, e você,
você, Santa Mônica, era a que corria pela praia ao encontro do Lucifer. Você era a
que me aguardava nua e ardente sobre a fria areia para me jogar ao pescoço o nó de
seus braços, para me afogar com o bafo de seus beijos, para me embriagar com seu
fôlego e com suas carícias. Você era a que passava a tormenta em meus braços, a
que saltava sobre as rochas negras para me despedir, enquanto eu me afastava com o
perfume de seus cabelos em minhas mãos e com a sede de voltar presa à garganta
como um espinho. Você era a amante do Juan do Diabo, Santa Mônica. — Volta
para rir com cáustica ferocidade, e termina com arruda violência: — E agora não
cabe voltar atrás. Ele perguntou, e você disse que sim. Que sim!
Só cego de desespero poderia um homem falar de modo tão bárbaro à pálida
mulher que tem diante e que agora retrocede respirando com esforço, como se lhe
faltasse o ar. Toda ela é como uma fibra de palha que girasse atracada pela fúria do
vendaval; mas alta a cabeça, crava nele o olhar, sustenta-se lhe enfrentando, como
se apoiasse na cruz que escolheu por martírio, estende os braços qual pudesse
estendê-los sobre o madeiro para ser crucificada, e confessa total e entristecida.
— Disse que sim. É verdade. Que outro caminho ficava? O que outra coisa
podia responder às palavras do Renato? Disse que sim, mas você.
— Eu também disse sim, claro está. Queria ver até onde chegavam todos
você, com sua loucura; Renato, com sua imbecilidade. E essa cadela maldita, essa
hipócrita, professora de todas as falsidades, essa cínica que merece ser pisoteada,
também quis ver até onde podia chegar. E chegou a tudo. Até a mentir daquela
maneira, olhando-me na cara. Por suposto, fez bem. Já estaria segura, já saberia até
onde você era capaz de suportar. — Vacila um instante e, com súbita suspeita,
pergunta: — Ou acaso foi combinada entre ambas?
— O que diz Juan? Está louco? Como podia eu?
— Saiu muito bem à cena! Tudo estava como ensaiado! Até a oportuna
chegada da ilustre senhora D'Autremont. Com que horror e com que asco me olhou
à cara!
— Juan, por piedade.
— Piedade! Conhecem vocês, os felizes, os bem nascidos, os de sangue azul,
o significado dessa palavra? Piedade. Pois você aplique-a se souber. Eu não terei
piedade de nada, porque de mim ninguém a teve jamais.
— Renato teve mais que piedade. Teve amizade, afeto, simpatia, desejos de
lhe ajudar contra tudo, contra todos. Se lhe ouvisse você lhe defender, lhe apoiar,
lhe justificar, recordar os dias em que lhe conheceu na infância, afirmar sua
determinação de lhe tratar como a um irmão.
— Como a um irmão!
Juan se mordeu os lábios, olhando para outro lado. Por cima de sua cólera e
de seu rancor, não pode negar aquela verdade que as palavras da Mônica lhe
recordam. Pensa no Renato menino pondo em suas mãos suas economias infantis,
disposto a lhe seguir. Pensa no Renato lhe buscando na mesa de um botequim, no
fundo de um cárcere. Em seus olhos limpos, em sua mão leal, e pensa também nas
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— Isso disse o amo. Eu ouvi quando o disse ao senhor notário. Que não
queria que você escapasse, porque amanhã tinha que casar-se. Ai, Deus! Assim
deviam fazer todos os irmãos: não deixar que escapem os noivos. Não haveria tantas
pobres mulheres como deixam plantada.
— Vigiar. Vigiar-me. E quem mandou a ti que me dissesse isso?
— Que o dissesse a você, ninguém. Mas eu os vi e pensei: É melhor que
saiba. E que se ande com cuidado até chegar à janela.
— Que janela?
— Não lhe disse? Ai, Deus, que não lhe disse! Tenho a cabeça que me dá
voltas para todas as partes, com tantos sustos e com o golpe na pedra que me fez dar
esse maldito Batista, que assim lhe comam as formigas os pés e as mãos.
— Acabará de uma vez? — impacienta-se Juan. — Já vou senhor Juan.
Aqui todo mundo está sempre apurado. A senhora Aimée me mandou que o
buscasse por toda parte, e me disse. Deixe ver se me lembro. Ah, sim! Disse-me
que estava desesperada, chorando a mares, e doente tanto chorar.
— Disse-te que me dissesse isso?
— Sim, senhor. Isso e muitas coisas mais, que me hão escapado. Mas
seriamente que está muito assustada, e tem razão, porque terá que ver como a olha o
senhor Renato. Eu o vi quando me escondi atrás da porta. A olha como se o fora a
arrancar a cabeça, e ela tem muito medo e quer que você vá.
— Que eu vá, aonde?
— A vê-la. Pela janela pequena. Por aí me fez sair quase de cabeça para
buscá-lo, porque o amo Renato a tem encerrada e disse muitas coisas muito feias. E
para meu que se vocês não se casarem, ele mata a alguém, porque está como o amo
dom Francisco, que em paz descanse, mandando de verdade. E a senhora Aimée
espera a você na janela. E me disse que fora. Que fora a lhe falar você esta noite,
porque se não ia, matava-se.
— Matar-se ela? — sorri Juan depreciativo. — Como se fora possível para
ela ir contra si mesmo por nada nem por ninguém. Matar-se ela
Um instante, cruzados os braços, Juan contemplou o rosto escuro, de
expressão estúpida. Logo, bruscamente, volta às costas e ordena ao Colibri:
— Vamos!
— Sim, meu amo, vamos. Trago os cavalos?
— Vai a cavalo? — pergunta Ana com estranheza. — Até onde?
— Até o inferno! Pode dizer-lhe assim a sua ama.
— Se for fora do imóvel, digo-lhe que não passa da portaria. São como dão,
todos com escopetas. E amo Renato mandou abrir o quarto grande onde estavam as
escopetas, e lhe deram um a cada guarda. Eu os vi de dois em dois dando voltas por
lá, e os viram todos na casa.
— Todos? Então era uma armadilha! — exclama Juan. — Quando Mônica
do Molnar me pediu que me partisse, que saísse esta noite de Campo Real,
certamente não ignorava que havia homens preparados para me deter. Talvez, para
me matar. Claro, depois de tudo, que valia minha vida, que vale minha vida
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— Não. Não tema. Isso queria você, verdade? Isso queria você e a outra:
que me voltasse louco, ou que fora tão inocente para escutar seus conselhos e me
abrandar frente a suas lágrimas. Mas não o farei. Não o farei. Fui o bastante
estúpido para te querer, o bastante imbecil para pensar que você também me amava,
o bastante asno para acreditar até na boa fé de sua irmã. Mas já sei o que querem as
duas, já sei o que entre todos me prepararam. Foi você a que aconselhou ao Renato
regar escopetas entre os guardas? Ou a ideia foi da Santa Mônica?
— O que diz? — desconcerta-se Aimée. — Não entendo nada. Juro-te.
— Talvez o combinaram entre as duas. Sabem muito, são iguais. Ardilosas
como serpentes. Somente esqueceu um detalhe: que enviava seu recado com uma
imbecil, com uma pobre tola incapaz de secundar seus planos, com uma estúpida
que teve a ingenuidade de me acautelar de quantos eram e que armas tinham.
— Juan. Juan juro-te que eu não sei nada. Nada.
— Eu te juro que vou vingar me fazendo as coisas como vocês as fazem,
cravando pouco a pouco a adaga. Você e ela. E ela mais que você, porque já te
odeio tanto e te desprezo tanto. Mas ela. Ela.
— O que fez ela? Juro-te que não sei nada, que não entendo nada!
— Entende muito! Falhou-te o último truque, falhou a ambas o plano para
desfazer-se de mim, fazendo-me prender ou matar. Melhor matar, verdade? Os
mortos não falam! Mas não me moverei desta casa. Não tenho nada que fazer fora
de seus jardins. Ao contrário, irei ao escritório para dizer ao Renato quanto lhe
agradeço que vá a apadrinhar-me e que contente estou com as bodas que me
prepara. Você é a madrinha, verdade? Com quanta alegria vai levá-la até o altar.
Como vais desejar lhe felicidades a sua irmã, e que doce viagem de bodas lhe
aguarda.
— Não, não, você não vais casar-te com a Mônica!
— Eu sim vou casar-me. Manda-o Renato, que é o rei de Campo Real.
Casarei-me amanhã, e a partir de agora vou começar a me preparar, vou pedir lhe a
meu futuro cunhado o presente que me faz falta: um barril de aguardente para a
viagem!
Sem escutar os gritos do Aimée que lhe chama com desespero, sem voltar
sequer à cabeça para escutar aquela voz que implora da pequena janela, Juan se
afastou cruzando o pátio, com uma só ideia, com uma só obsessão: vingar-se.
Vingar-se usando as mesmas armas que acredita usadas contra ele: a astúcia e o
engano. Vingar-se ferindo pouco a pouco, destroçar golpe a golpe outras vistas,
como uma a uma foram destroçadas suas ilusões. E pela diabólica alquimia daquela
intriga em que se agita seu ódio mais ardente não é para a mulher que lhe enganou,
não é nem sequer para esse Renato em cujas veias sabe sangue de irmão. É para a
Mônica do Molnar, para a frágil mulherzinha que, um instante prostrando-se a seus
pés, conseguiu lhe convencer até as vísceras; para a que esteve a ponto de ganhar a
batalha apelando a sua compaixão e a sua piedade. Agora, repentinamente, só pensa
nela, e com que furor, com que ânsia sonha tê-la a seu desejo e alvedrio sobre a
coberta do Lúcifer, como uma bota de cano longo mais em sua carreira de pirata,
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Pégasus Lançamentos
como uma propriedade de conquista naquela luta desesperada que é, e sempre foi
sua vida, em guerra contra todo mundo em que nascesse, contra a sociedade que lhe
rechaçasse, contra o teto e o pão que lhe oferecesse em sua infância, contra todos,
enfim. Contra tudo e contra todos.
Aimée saltou pela estreita janela, golpeando-se ao cair; mas dominando a
dor se levanta cambaleante, e mancando a perna dolorida, dá uns passos sem saber
que rumo tomar para segui-lo. E é um grito bronco de ansiedade e desespero o que
sai de sua garganta:
— Juan. Juan!
—Aimée! Por que gritas assim? Está louca? — repreende Mônica em voz
baixa, aproximando-se de sua irmã.
— Juan! Juan! Busca-o, corre atrás dele, Mônica! Detém, chama-o! Vai
como um louco.
— Como quero ir-se, mas que se vá. Que se vá!
— É que não se vai Mônica! Está como louco! Quer vingar-se!
— Sua única vingança é cumprir a palavra que me há dado: ir-se para
sempre. E esta vez serão inúteis seus gritos e suas lágrimas. Irá-se para sempre!
Com lágrimas e súplicas lhe arranquei a promessa, e vai cumprir.
— Não seja estúpida! Estou-te dizendo que não se vai. Não me entende?
Não se vai Não se vai! Fica para vingar-se. Diz que vai casar se contigo para me
castigar, para me voltar louca com o que sabe que pode me machucar mais, sabendo
que o que mais pode me ferir no mundo é pensar em você. Que você e ele.
Ferozmente, Mônica do Molnar enfrentou a sua irmã. Suas brancas mãos se
crispam nos ombros do Aimée. Sujeitando-a, sacudindo-a, obrigando-a a olhá-la
cara a cara, os olhos nos seus relampejantes, e ordena indignada:
— Cala! Cala! Não diga uma palavra mais, porque não respondo de mim!
Por quem me tomaste? Pensa que sou de sua mesma carniça, prostituta desprezível?
O que é o que chegaste a pensar? Cale-te já!
— Você é a que tem que te calar! Não sabe o que acontece, não o quer
saber! Ou acaso sim sabe e está muito conforme lhe levando isso
— Me levar a quem? O que é o que diz?
— Não faz a não ser ir rastreando atrás de meus passos, empenhando-se em
me disputar aos que me querem, a mim, a mim sozinha. Primeiro ao Renato, logo
ao Juan.
— Te cale! — exclama fora de si Mônica, ao tempo o que atira uma, sonora
bofetada no rosto do Aimée.
— Mônica! Aimée! O que é isto? — surpreende-se Renato, que chegou
silenciosamente até o grupo que formam as exaltadas irmãs.
— Renato! Já viu. — angustia-se Mônica.
— Vi que esbofeteava a sua irmã, e compreenderá que é necessário.
— Mônica não me perdoa que tenha tido eu descobri-la — interrompe
Aimée dominando a situação. — Está furiosa porque você sabe, porque a obriga a
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Pégasus Lançamentos
casar-se. E nisso não lhe falta razão, Renato. Nisso acredito que te excede. Se ela
não quiser uma reparação, por que tem que impor-lhe
Mônica apertou os lábios, baixou as pálpebras, retrocedeu até encontrar o
apoio de uma coluna para não desabar-se, e outra vez, depois do momento de
imponente cólera em que há sentido ferver seu sangue, sente que é gelo o que lhe
corre pelas veias, que são como de chumbo seu corpo e sua alma. E escuta, como
através de muitos véus, indiferente já à força de sofrer, as palavras de sua irmã:
— Está como louca e por isso lhe perdoo até que me maltrate. Ao fim e ao
cabo, este é um assunto que não te concerne diretamente, Renato. O melhor será que
deixe em paz ao Juan do Diabo, que envie a mamãe e a Mônica ao Saint-Pierre, e
que tenha piedade de mim, que já não posso mais. Que já não posso mais!
Há-se arrojado chorando em braços do Renato, mas ele a detém com um
gesto frio. Agora só olha a Mônica: seu corpo enfraquecido apoiado na coluna, seus
lábios apertados, suas fechados pálpebras, sua cabeça arremesso para trás na mais
amarga atitude de supremo desespero. E com gesto sereno e tom moderado, expõe:
— Se realmente Juan te dever uma reparação, Mônica, não é possível que
não queira aceitá-la. Se realmente teve a debilidade de cair em seus braços, não é
possível que uma mulher como você se negue a casar-se. Mau ou, teve que querê-lo
para fazer o que fez, e se o que te assusta é sua modesta posição, acaso devo te
adiantar que depois das bodas as coisas mudarão. Perdoe-me se insistir, mas tenho a
absoluta necessidade de saber que quer ao Juan, que quis ao Juan, que foi dele,
você, você. E tendo sido dele, não pode rechaçá-lo que te ofereço que é o único
digno, o único decente: ser sua esposa.
— Mas se ela não quer. — rebela-se Aimée.
— Sim quero Renato. Casarei-me, irei com ele aonde queira me levar. Disse
que sim, e é minha última palavra!
Aimée escutou tremendo as palavras da Mônica, e se diria que, sem logo que
trocar, algo se limpa no enfurecido rosto de Renato. Um instante aparta este a vista
da pálida mulher recostada na coluna, para cravá-la no rosto de sua esposa. Também
Aimée do Molnar está intensamente pálida; como os da Mônica, também tremem
seus lábios; mas há um relâmpago sinistro em seus brilhantes olhos de azeviche, e a
luz que um momento iluminasse o rosto do Renato parece apagar-se quando de seus
lábios destila sutil e dolorosamente a ironia:
— Vê? Não era necessário chegar aos extremos de antes para convencê-la do
que é justo e natural. Qualquer pode ter um instante de debilidade, mas as gente bem
nascidas. Sabem sempre que há necessidade de reparar, e Mônica não desmente a
casta. E agora, para ti, Aimée, uma pequena pergunta de ordem pessoal: Por onde
saiu do quarto?
— Eu? Pois. Bom. Por essa janela. Sua ridicularia de me encerrar obrigou
a algo, e aproveito a oportunidade para te dizer que não estou disposta a tolerar a
forma em que me trata.
— Temo-me que terá que tolerar muitas coisas mais, querida — anuncia
Renato com suavidade, mas com um oculto acento detestável. — Voltemos para
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Pégasus Lançamentos
quarto. Deixa a Mônica em paz. Ela me parece que compreende as coisas melhor
que você, e aceita plenamente as consequências de seus atos. Verdade, Mônica?
A pálida frente da Mônica se elevou seus claros olhos, limpos, puros, altivos,
cravam-se um instante nos do Renato lhe fazendo estremecer-se com uma
involuntária sensação de respeito, quando esta assente muito digno:
— Em efeito, Renato. Aceito e confronto plenamente as consequências de
meus atos.
Capitulo 5
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Pégasus Lançamentos
— Por que falas desse modo? Por que destilam assim ódio e amargura suas
palavras?
— Pergunta-me isso de verdade? Não sabe? Às vezes basta um raio de luz
para ver o abismo; basta um minuto para que a vida troque para sempre. — Renato
faz uma careta, e é mais intensamente amarga a baforada de veneno que sobe a seus
lábios: — Sim. É meu irmão. Meu irmão o perdido, o contrabandista, acaso o
pirata. Como Mônica é sua irmã hipócrita e rasteira, cínica e leviana. Verdade?
Esperou a resposta um longo momento até que, ao fim, escapou trêmula e
molhada de lágrimas dos lábios do Aimée:
— É muito severo com ela, Renato. Eu. Eu me atreveria a te suplicar que os
olhasse com mais indulgência. Com mais.
Calou, afogando-se, e Renato dá um passo mais para a janela aberta, de onde
divisa ele amplo panorama do vale, semeado-los, os campos verdes, as cúpulas das
altas montanhas que douram já os primeiros raios do sol. Sua vista baixa até mais
perto e se estremece ao ver o homem que, cruzados os braços, turvo e carrancudo
frente à morada dos D'Autremont, observa também ao sol que nasce. Logo sorri
com sorriso de fel e suas mãos baixando até o Aimée, obriga-a a voltar, a olhar por
aquela janela, ao tempo que assinala:
— Olha a, Juan. Está contemplando sair o sol do dia de suas bodas. O dia
em que a vida dos homens muda. O dia de suas bodas!
— OH. Juan! . O que faz?
— Já o vê, me tomar o café da manhã na moda blusa de marinheiro, com o
sobressaia que achei à mão. O serviço nesta casa está deixando bastante que desejar.
Onde se foram aquelas filas de lacaios de jaquetas brancas? São acaso os que
rondam agora os caminhos com a escopeta ao braço? — Juan, suplico-te que não
beba mais.
A mão do Noel, emagrecida e tremente, apoiou-se no braço do Juan
apartando a taça que este vai levar a seus lábios, e os tristes e cansados olhos se
fixam comprido momento no rosto do moço, endurecido de rancor e de cólera,
fechado como uma noite de tempestade. Estão em um ângulo da amplíssima sala,
junto aos armários carregados de baixelas de prata, Juan, revoltos os cabelos,
desabotoada a camisa, toscos os gestos de marinheiro, é uma figura tão estranha, tão
arruda e anacrônica, como quando de menino pisou pela primeira vez aquela estadia
com os pés descalços, com o traje de veludo do Renato como inútil presente.
— O que passa contigo, Juan? O que é o que realmente passou? Asseguro-te
que tudo isto é como um pesadelo. Ontem à noite te busquei por toda parte e, ao não
te encontrar, tive a esperança de que te tivesse ido. Logo vi os guardas. Avisaram-
lhe, verdade? Avisou-te ela?
— Não sei a que ela pode referir-se neste caso. Avisou-me uma "ela", mas
nenhuma das duas nas que certamente você pensou. Essas teriam estado muito
satisfeitas se me tivessem detido com uma bala na cabeça ou no coração, mas não
saíram às coisas a seu desejo. Minha hora não tinha chegado. Como para outros
homens dizem que há uma Previdência, houve sempre um demônio que protegesse
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Pégasus Lançamentos
ao Juan do Diabo. Um demônio que, para salvá-lo, não lhe pede mais que uma
coisa: Que parta adiante pisoteando a quantos fiquem em seu caminho. Que viva
sem piedade nem cuidados. Que atropele e ofenda, roube ou mate se for preciso
matar.
— Filho, é espantoso seu estado de ânimo, como espantosas são também o
desespero e a violência do Renato. Tenho a impressão de que enlouqueceu de
repente. Como pôde trocar assim em uma hora? O que digo uma hora! Uns minutos
nada mais bastaram. E não é possível que o que oficialmente sabe, tenha sido
bastante para.
— O que é o que oficialmente sabe?
— Não acredito que precise perguntá-lo. Seu pretendidos amor com a
senhorita Mônica do Molnar.
— Pretendidos? Diante de você ela confessou, há afirmado que foi minha
amante.
— Não pretenderá que cria esse disparate! Comigo pode ser absolutamente
franco.
— Sou absolutamente franco com todo mundo. Noel. Casarei-me com a
Mônica do Molnar, a levarei comigo em meu navio. Será útil uma mulher a bordo
para lavar a roupa, fazer a comida dos moços, remendar as velas e esfregar os
pratos.
— Não pode te casar para isso com a senhorita Molnar! Não lhe pode levar-
la a seu navio! Ela tem sua casa no Saint-Pierre. Aí é onde tem que ir e ali irei eu
também em seguida para.
— Para que, Noel? — interrompe Renato, aproximando-se da mesa onde se
acham os dois homens. — Termine a frase.
— Pois. Para lhes ajudar a instalar-se. Quando as coisas se fazem tão
precipitadas como estas bodas, tudo sai mal e há depois mil detalhes que arrumar, e
eu.
— E você acredita que sua presença pode ser grata a dois recém casados?
Não, Noel, vai você a estorvar de um modo lamentável. Juan e Mônica vão casar-se
por amor. Não é verdade?
— Naturalmente — desafia Juan destilando ironia. — Por amor. Um amor
que salva todos os escolhos, que suprime todas as distâncias. Não se preocupe pela
Mônica, Noel. Quando for minha mulher, não necessitará de nada, absolutamente de
nada.
— Não duvido que saberá atender e cuidar de sua esposa — concordou Noel
fazendo um esforço.
— Tanto como Renato à sua. Não a guardas sob chave, Renato?
— Não te dou o direito de me perguntar o que faço! — rechaça Renato
furioso. — Nem de entrar na sala de minha casa. Nem de beber conhaque em meus
copos. Canalha!
— Renato! OH, Juan! — alarma-se Noel ante o torcido que repentinamente
tomaram as coisas.
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— Se for por te agradar, terá que ir. Mas queria que me escutasse.
— Não escutarei a ninguém. É inútil. — Recusa Renato vê, mas com
firmeza. Olha, aqui chega precisamente Ana, oportuna por primeira vez em sua
vida.
— Mandei-a me trazer razão de como segue Aninha — justifica Sofia. E
elevando algo a voz: — Te aproxime, Ana Como está Aninha?
— Não sei. Mas seguro que está bem, porque não se achava em seu quarto
nem no pátio, onde o Batista estava Armando o grande escândalo.
— Retornou Batista? — murmura Renato lentamente.
— Trouxeram-no os guardas, e terá que ouvi-lo. Está mais bravo que um
escorpião. Não queria vir e o tiveram que amarrar. — Ana ri com divertida
estupidez. — Está que se remói sozinho, como um cão com raiva.
— Mandou detê-lo ele também, filho?
— Mandei deter quantos tentassem cruzar os lindemos de Campo Real.
Alegro-me muito de comprovar que minhas ordens foram cumpridas ao pé da letra.
Agora mesmo vou falar com ele, e não se preocupe mamãe, porque não vai mal.
Assim que você. Ana vá dizer lhe à senhora Aimée que se prepare. A cerimônia das
bodas é às três. Deve estar arrumada um pouco antes, já que é ela quem terá que
acompanhar ao noivo ao pé do altar. Anda! Prepare-lhe a roupa e ajuda-a a vestir-se.
Não me ouve?
— Mas, meu amo, como faço para entrar? A senhora Aimée está encerrada.
— Aqui tem as chaves do quarto. Anda! Anda logo! — Empurrou a Ana,
que se afasta assustada, e voltando-se para a Sofia, aconselha-lhe: — Te arrume
você também, mamãe. Eu vou a ordenar que soltem a Batista e a lhe devolver seu
importante cargo. Estou começando a te dar a razão em tudo, mãe: é o capataz ideal
para este inferno florido.
— Minha filha, acredito que é à hora. Aí está já Renato, e todos vão a
caminho da igreja Catalina se interrompe e balbuciando, adiciona: — Eu não sei o
que te dizer Minha filhinha. Eu.
— Não há nada que tenha que me dizer mamãe. Mônica se pôs que pé,
abandonando o genuflexório onde longamente rezou, e se move como uma
sonâmbula através da estadia. Em seus olhos há um brilho estranho, suas mãos
ardem, e estão seus lábios também ressecados e ardentes sob o bafo de fogo que
respira. Tímida e torpe, a mãe vai atrás dela como se não achasse gestos nem
palavras.
— Filha, deveria te haver mudado de traje. Vai te casar de negro, de luto
como uma viúva? E sem ramo de noiva?
— Que falta faz? Dê-me meu livro de orações e meu rosário.
— Ai, filhinha, tudo isto me parece horrível! Acredito que até poderia. —
tenta persuadir Catalina; mas a interrompem uns golpes discretos jogo de dados na
porta.
— Não posso nada. Aí está o homem que vai levar-me até o altar. É
Renato. Abra-lhe.
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respeite e obedeça a mulher a seu marido.” Não se lembra já? Foi faz umas horas
apenas. Estamos no dia de nossas bodas, e para a noite das bodas há no Lúcifer uma
larga câmara nupcial — burla-se Juan com uma risada impregnada de amargura.
Saltou a terra, arrastando a Mônica com ele sem solta-la, os dedos, como de
ferro, obstinados às brancas convoca, cravando-se nelas, enquanto há nos lábios
uma careta feroz que em nada se parece com um sorriso, ao comentar com amargo
sarcasmo:
— Assusta-te a noite de bodas, pomba branca?
— Me solte! Bruto, canalha! — luta Mônica tentando inutilmente escapar
das mãos do Juan.
— Não tente morder, porque ficará sem dentes e seria uma lástima. Não
tinha reparado, mas são muito lindos, tão bonitos como os de sua irmã. Aimée é
maravilhosa, sabes? E essas coisas revistam ser de família. Depois de tudo, acredito
que não fiz tão mal.
— Basta me deixe em paz! — exaspera-se Mônica. — O que quer é zombar,
me assustar, me desesperar, me enlouquecer, vingar-se em mim, que é a única
vítima que tem a seu alcance.
— Em todo caso, vítima voluntária. Eu não inventei que te casasse comigo,
abadessa. Inventou-o seu Renato. — Juan se interrompe para ouvir um ruído de
remos que vai aproximando-se, e elevando a voz ordena: — Aproxima a este lado.
Segundo e em voz baixa diz a Mônica: — Levarei-te nos braços para que não te
molha os pezinhos.
— Basta de estupidez! Deixe-me, vá-se, tome seu bote e acabe de embarcar-
se!
— Que graciosa é, Santa Mônica! Faria-me rir se não me entrassem vontades
de te esmagar a murros. Pensou seriamente que tudo era tão fácil? Pensou que
bastaria me dizer: deixe-me em paz, tome seu navio e largue-se, para que eu
obedecesse como um cão? Mas até onde pode chegar seu egoísmo e sua soberba? —
E com furiosa exasperação, exclama: — Basta! Já me mordeu também o cão das
súplicas, e sei o que significam o que valem e para o que servem. Já sei o que costa
comover-se por suas súplicas e suas lágrimas. Significa cair em uma armadilha,
pagar com a vida um momento de debilidade. Uma vez o obteve, mas não vais
comover mais. Não terei piedade de ninguém, e de ti menos que de ninguém! Ao
bote ao navio! Casou-te comigo, e nem você nem sua irmã vão seguir burlando-se.
Levarei-te embora nem que seja arrastando!
De um salto, triturada por aquelas mãos de falanges como de aço, arrastada
por aquele braço que rodeia imperioso sua frágil cintura, afogada a voz em sua
garganta, Mônica se viu obrigada a salvar a pequena distância que vai da terra ao
bote. Autoritário, Juan ordena a seu segundo:
— Proa ao Lúcifer, e rema com todas suas forças. Logo!
— Não esperamos ao moço? — Vacila o segundo, assombrado. — Vai
deixá-lo em terra?
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— Que venha a nado, para que aprenda outra vez a não atrasar-se! Dê-lhe
aos remos! Vamos!
— Não! Não! — suplica Mônica angustiada. — Você, senhor marinheiro me
ouça.
— Esse não ouça nada, nem vê nada, nem faz mais que o que eu lhe mando.
Entendeu? — E dirigindo-se a seu segundo, — Apura e chega logo! Pede que lhe
joguem um cabo.
— Mas, patrão. — resmunga o segundo.
— Não te meta no que não te importa nem procure o que não te perdeu,
porque o encontrará! — E voltando-se para Mônica, recalca-lhe em voz baixa: —
Vê como tudo é inútil? Tenho de minha parte a força da lei e a razão da força.
Assim é como mandam os que mandam. Chegamos! — Nesse momento se deixa
ouvir o estampido de um trovão longínquo, que pressagia a próxima tormenta, e
sarcástico, Juan comenta: — E como sempre, do céu me saúdam com salvas —
Logo grita a seu segundo: — Pede a escala, imbecil! — E dirigindo-se de novo a
Mônica, explica-lhe irônico: — Não é de mármore, mas sim de cordas. Mas não
importa, subirei-te nos braços. É a moda na Dominica e na Jamaica. A noiva vai
aos braços.
Um instante bastou ao Juan, e já seus pés, fortes e largos, afirmam-se na
estreita coberta. A noite tem cansado totalmente. Junto as gávea, os três tripulantes
do Lúcifer olham com surpresa a estranha cena. Segundo dá uns passos como se não
pudesse conter-se mais, e intercede:
— Patrão, um momento. Essa mulher.
— Está-me pedindo contas? — se violenta Juan. — Afaste-se. Aparte-te.
De um chute há totalmente aberto a porta da única cabine da nave, e um
instante depois a fecha atrás deles.
— Não! Não! — clama Mônica no paroxismo do espanto. — É você um
canalha, um perfeito canalha, e não é possível que esses homens não vão a meu
auxílio! Por favor. Socorro!
— Te cale! — Atalha Juan, iracundo, lutando e tampando a boca. — Não vai
vir ninguém, e se houver um que se atreva tocar a essa porta, o Mato! Não há perigo
que cheguem, porque muito sabem.
Arrojou a que um empurrão violento sobre a dura Litera de pranchas, e ela
fica imóvel, fechados os olhos, entreabertos os lábios, como se as forças a
abandonassem, afundada no mundo da inconsciência, enquanto corre por suas veias
o sangue aceso e o delírio da febre finge nuvens vermelhas sobre suas pálpebras
fechadas.
— Ao fim decidiu te estar aquieta, ao fim decidiu calar. — Juan faz uma
breve pausa e observando-a um momento, surpreende-se: — Mônica! Mônica! O
que tem? O que te passa? Estas te fazendo à doente? Acredita que vais me enganar?
Pois não. Não! Ouviu? Será minha, pertencerá-me, tratarei-te pior que a uma
escrava! Não terei compaixão, não voltarei a ter compaixão de suas lágrimas, não
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Capitulo 6
— Aonde vai? Ou melhor, dizendo, aonde foi? Porque não vais cruzar essa
porta.
— Não ia a nenhuma parte. Não sábia que dar uns passos fora um crime. Sua atitude
é insuportável, Renato!
— Volta a te sentar onde estava. Quer um plantador? Ou prefere o suco de
abacaxi com champanha? É delicioso, sabes? Por algo batizei com seu nome esta
bebida. Hei dito que se sente
Trêmula de raiva, Aimée se deixou cair, mais que sentar-se no divã de raso.
A noite cai já, e desde que horas antes terminasse a cerimônia das bodas estão
sozinhas naquelas habitações adornadas com tanto esmero para a lua de mel do amo
de Campo Real. Junto ao Renato, sobre a mesinha dourada, há copos e garrafas: o
melhor conhaque da França, o mais velho rum da Jamaica, o mais famoso vinho
Xerez da Espanha, e de um cubo de gelo emerge o pescoço dourado de duas
garrafas de champanha. Há também uma fresca jarra de suco de dente com o que
enche dois copos que acaba de mediar de champanha.
— Faz o favor de me acompanhar com a bebida de seu nome: Aimée. "M";
amada. Belo significado o de seu nome, verdade? Amada. Eu gostava tanto, tanto,
que pensei que se tratava de um desses acertos cegos do destino o que assim te
chamasse. Amada. Toma seu Aimée. Bebamos.
— Não quero beber!
— Não quer? Que estranho! Sempre me disse que adoravas o champanha.
Ainda me lembro da noite de nossas bodas. Quantas taças de champanha levou a
meus lábios, quantas. — E em tom imperioso, ordena: — Bebe agora. Bebe!
— Me deixe em paz! — rebela-se Aimée em forma violenta — Está louco.
Louco ou bêbado.
— Bêbado — repete Renato em tom caustico. — Isso ocorre quando se bebe
muito champanha: está um bêbado, e por mais que se empenha não pode recordar os
detalhes. É um recurso maravilhoso fazer beber as gente, envolver nas nuvens
douradas do champanha certas horas, para que apenas possam recordar-se.
— Que tratas de dizer? Não entendo nada, nem quero entender. Até onde
vais chegar Renato? Enlouqueceste-me, atormentaste-me, leva horas bebendo como
um estúpido sem me permitir que me mova de seu lado!
— É seu lugar, junto a mim. Não é minha esposa? Pois a meu lado é onde
deve estar. E que melhor lugar para estar a meu lado que este preciosa quarto? A
sucursal do paraíso. O ninho de amor que nos prepararam. As rosadas paredes que
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me viram de joelhos frente a sua beleza. E frente a seu pureza. — Renato ri com
uma risada breve e cruel.
— Renato. Está louco de verdade. — está pior que louco! — espanta-se
Aimée. Confusa e amedrontada.
— Sim, pior que louco: bêbado. Bêbado, como quis uma vez que o estivesse;
bêbado, mas com a mente mais clara como não a tive jamais. Tão clara, que nela as
ideias queimam a força de brilhar; bêbado e feliz de poder celebrar contigo a sós,
dignamente, as bodas de nossos irmãos. Bebe comigo. Bebamos juntos pela
felicidade da Mônica e do Juan!
Que perto esteve para o Renato D'Autremont, o céu do inferno, a felicidade
da desgraça, a divina embriaguez de seu amor com esta dúvida cada vez mais cruel,
cada momento mais amarga. Nó de espinhos aceso em sua garganta, flecha
envenenada que de um só golpe ferisse seu orgulho. Sua dignidade, seu amor e sua
confiança. Como por um instinto defensa rechaça a verdade, mas a verdade
ricocheteia como planta daninha a que não foi possível arrancar as raízes. A
suspeita aparece em cada gesto, em cada palavra, em cada detalhe. E com a
verdade, uma como necessidade se desespera para lavar honra . Coração, um desejo
insensato de destruir tudo, e mais que tudo, aquela beleza cálida, tentadora e lhe
traguem, aquela mulher a quem desesperadamente ama, mas a cujos lábios não pode
aproximar-se porque a dúvida e o temor são demasiado grandes, porque seu amor
tem já cós de ódio, porque ama muito para perdoar. E ao ver que Aimée, impávida,
conserva a taça na mão, apressa imperioso: — disse que bebesse!
— Me deixe em paz! Vete. Deixe-me!
— Não tem mais desejo que o de me afastar.
— Não tenho mais desejo.
— Que qual? Acaba, diga-o de uma vez, diga que quer morrer, que está se
desesperando, que a consciência não te deixa viver com suas recriminações. Acaso
te estou incomodando com minha curiosidade, mas não é em mim em quem pensa
ao te desesperar. Pensa no Juan, verdade?
— Naturalmente que tenho que pensar! — salta Aimée vivamente. — É um
bruto, um selvagem, a que você entregaste a minha irmã
— Eu, ou você?
— Você. Você! Eu não queria, mas sim esse homem se afastasse, que se
fora para sempre, que nos deixasse em paz. Isso é o que deveste lhe mandar. Que
se fora! Porque esse homem.
— Esse homem é meu irmão. Esqueceste-o já? Meu irmão
— Mas é certa essa história horrível?
— Parecem-lhe horríveis as histórias de traições e de adultérios? Diga o que
sente. Grita o de uma vez. Estala na Santa indignação se for inocente!
Outra vez as mãos do Renato se fecharam sobre o colo do Aimée. Outra vez
seus olhos relampagueantes a olham muito de perto como querendo lhe penetrar a
alma, e ela treme, gelada de espanto, esquivando aquele gesto que lhe causa horror,
ao protestar:
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desventurada como aquele menino de cuja vida pode dispor com uma palavra, e
metade compadecido, metade zangado, diz:
— Toma a chave, entra, e me deixe em paz!
As pequenas mãos escuras tocam com primeiro acanhamento, trêmulas de
angústia depois, aquelas mãos brancas, ardidas de febre, enfraquecidas com o passar
do corpo imóvel. Os olhos de Colibri percorrem a grácil figura deprimida. Os
grandes olhos estão fechados e se afunda mais a sombra das olheiras violáceas sob
as espessas pestanas. Dos lábios entreabertos, ressecados, escapa a respiração
fatigante com ritmo desigual.
— Ama. Patroa. Senhorita Mônica. Sente-se mau? Muito mal? Dói-lhe a
cabeça, verdade?
— Não. Não me toque. Mate-me. Mate-me! — Delira Mônica em um
girar de vagos e contínuos gemidos. — Isso não. Isso não! Solte. Solte. Deixe-me.
— O débil corpo se agita desesperado e as mãos se estendem no ar como
rechaçando um corpo imaginário. — Primeiro morta. Primeiro morta! Terá que me
matar antes! Não. Não! Não! OH.
Toda ela se retorce como em uma luta; sua próprias mãos, no lutar
desesperado, rasgam o escuro vestido. Colibri, tremendo, vai para a porta onde uma
robusta figura masculina acaba de chegar, e angustiado explica:
— Está doente, patrão. Tem o mal. Sim, patrão, sim. Isso mesmo. A febre,
a peste, o mal. Que lhe dava lá nos barracos aos que cortavam o cano. O mal que ela
curava!
— O que está dizendo?
— Tem-no, patrão, está igual aos doentes de lá. Assim se moviam, assim
gritavam. E vai se morrer, como morriam os homens lá abaixo, quando estavam
assim. O médico disse que a febre lhes queimava o sangue.
— O que sabe você, enganador? — Rechaça Juan em um arrebatamento de
mau humor.
— Sei patrão, sei! Eu ia com ela e a ajudava. Ficavam assim mesmo, com
essa cara, e falavam como loucos. E esse tremor. Olha-a! Olha-a!
Juan se aproximou muito devagar. Franzido cenho, contempla o belo corpo
de mulher, convulso, trêmulo; o rosto cada instante mais desfigurado; os lábios, dos
que escapam as palavras daquele delírio que além da inconsciência parece obcecá-
la:
— Não. Não. Não serei tua. Não serei tua sem que me tenha matado!
Mate-me. Mate-me primeiro. Mate-me. Mata-me de uma vez, Juan do Diabo!
Malvado. Deus lhe castigará. Tem que te castigar!
— Vete Colibri, me deixe!
— Sim, patrão. Mas, não vai lhe dar nada? Medicina, remédio. Dava aos
homens colheradas de uns frascos com pacote brancos que traziam da cidade, e
umas bolinhas brancas que vinham em umas caixas, e lhes punha na frente. Ah,
sim, já sei! Panos de vinagre. E também vinha: o médico e os olhava, patrão. A ela,
quem vai olhar?
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Juan foi até a porta da estreita cabine, há olhar, por sobre a amurada, a massa
escura, fervente, do oceano encrespado sob o golpe do vento; logo, volta-se
vivamente para perceber uma sombra que se aproxima sem ruído, os largos pés
descalços sobre a coberta molhada, É indaga:
— Quem vai? O que acontece?
— Sou eu: Segundo. Deixei à Enguia no leme. É a hora de seu guarda, e a
tormenta está amainando.
— Que rumo tomou por fim?
— O Noroeste, patrão, e faz momento deixamos atrás à costa da Dominica.
Dentro de uma hora passaremos a vinte milhas da Maria Galante.
— Pois lhe diga à Enguia que, dentro de uma hora, torça o rumo a estibordo.
Ancoraremos na Maria Galante. .
Outra vez, Juan se aproximou do duro leito que é a Liteira da única cabine
do Lúcifer rincão nu, habitação desmantelada, estreita e miserável, quase como a
toca de uma fera. Não tem mais móveis que aqueles dois beliches nus, um tosco
armário embutido nas pranchas, uma mesa, banquetas, e sobre o rebordo do que
pudesse ser uma prateleira, algumas cartas de navegação, plumas, tinteiro e o livro
de registros. Nunca, até esse instante, tinha reparado Juan na nudez, na sordidez
daquela estadia. Acaso a compara, com sorriso amarga, com as suntuosas habitações
do palácio do campo Real.
— Agora está quieta e calada, patrão — adverte Colibri.
— Traz água, vinagre e um trapo limpo. Anda, corre!
— Vou voando — obedece ao menino negro, saindo pressuroso.
Com os braços cruzados, Juan contempla a Mônica, agora imóvel, calada, o
perfil de medalha entre o nimbo dourado dos cabelos soltos, nu o pescoço branco e
suave. Por um comprido momento a olha, e a encontra formosa,
extraordinariamente formosa.
— Juan do Diabo. Juan do Diabo. — sussurra Mônica em voz baixa, a
impulsos do delírio lhe obcequem.
— Por que não me chama agora Juan de Deus. Santa Mônica? — Juan
tomou as mãos da ex-noviça, que ardem; procurou o pulso, que pulsa desbocado, e a
contempla com uma estranha, com uma indefinível expressão nos profundos olhos
italianos, ao murmurar como para si mesmo: — Mônica do Molnar. Minha esposa.
Quis rir, mas não o conseguiu. Elevou a cabeça altiva, e sobre sua frente
torrada, curtida pelo mar, rompe-se a primeira luz do dia que nasce.
— Deus meu O que é isto?
Aimée se ergueu subitamente sobressaltada, e quase com espanto olha a
todas as partes. Não está em seu quarto. Há despertado em um leito de bronze, largo
e alto, sobre cuja colcha dormiu totalmente vestida. Com olhar de angústia percorre
a estância, reconhecendo a habitação de dona Sofia, com a luxuosa chaminé de
mármore em que jamais se acendesse fogo algum, mas sobre cujo suporte um
pequeno relógio de porcelana marca as sete depois do musical repique de sinos que
a despertou. Com a consciência chega à lembrança; e com a lembrança, a angustia.
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Vagamente tem noção das últimas cenas passadas: sua violenta disputa com o
Renato, as mãos dele apertando sua garganta, a intervenção de dona Sofia, suas
palavras quentes e amáveis, a amargo sabor do calmante que lhe fizesse beber, e
logo o sonho turvo espesso, pesado, do que pouco a pouco vai voltando à realidade.
E ao ouvir um cantarolo próximo, chama gratamente surpreendida:
— Ana. Ana. , está aí?
— Sim, senhora Aimée, por aqui ando.
— Baixa a voz. Onde está minha sogra?
— A senhora Sofia? Ah, caramba! Você vá, ou seja, donde foi dar. Saiu bem
cedo. Acredito que ainda não clareava, e no carro grande, com o melhor tronco de
cavalos. Levou com ela a Aninha para que a acompanhasse, e ao notário o mandou
também a não sei que parte.
— E Renato?
— O senhor Renato segue tomando. Uma garrafa inteira de conhaque
mandou que lhe levassem a escritório, e para ele sozinho, porque no escritório não
havia ninguém. Depois fechou a porta e atirou ao chão livros e tinteiros, e acredito
que até quebrou o abajur.
— O Senhor me ampare! Tenho que fazer algo. Tenho que inventar algo.
Estou sozinha frente a esse burro bêbado. Diz que se foi até o notário? Diz que?
— Quão única pode ampará-la a você é a senhora Sofia.
— É verdade. Dona Sofia pode me amparar. Tenho que fazer algo para
ganhar seu coração, seu apoio, sua confiança. Com o Renato todo é inútil já, mas
ela pode me salvar. O que faço para que me ajude, para que me salve?
— Se você a agradasse no que ela está desejando mais.
— Que deseja minha sogra, Ana? Você sabe?
— Acredito que sim. O que a senhora Sofia anda desejando, desde que se foi
de viagem sendo moço o senhor Renato, é outro menino pequeno, outro menino em
fraldas, que seja como dele; mas como seu não pode ser já, teria que ser do senhor
Renato.
— O que diz estúpida?
— Se você lhe der um neto, a senhora Sofia a ampara. Como um raio de luz
muito vivo penetrando as trevas de sua alma, como a única porta de escapamento,
como o único caminho possível de salvação, a ideia que trazem as palavras da Ana
cruzou pela mente se desesperada para a Aimeé do Molnar, mas imediatamente a
rechaça com gesto de desgosto e chateio:
— Naturalmente que se lhe desse um neto teria que amparar-me. Mas como
posso dar um neto de repente e por arte de magia?
— Por arte de magia? Que não é você a esposa do senhor Renato, senhora
Aimée? Não tem já mais de um mês de casada? Ao melhor não tem nem que
inventá-lo. Ao melhor sai verdade.
— Inventá-lo? Disse inventá-lo?
— Bom. Digo eu. Se estiver em um apuro. Dizem que o que se está
afogando se agarra até de um prego ardendo, e você, senhora Aimée, como que se
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está afogando. Ao melhor, quem sabe. É o que eu digo. Já dizendo que vai vir é o
bastante.
— Talvez fora bastante — murmura Aimée pensativa.
— Pois claro. Quando o senhor Renato estava na França, todos os dias
chorava por ele a senhora Sofia, e algumas vezes estava tão triste que até a meu
falava, e suspirava olhando as montanhas, e me dizia: "Ai, Ana. Meu menino,
quando voltará?” E quando o senhor Renato voltou já não era seu menino, e então a
ama suspirou mais e ficou muito contente quando o senhor Renato lhe disse que ia
casar se. E por que você acredita que ficou contente? Porque ia ter uma nora? O que
vai! Porque ia ter logo outro menino. Outro menino que fora como se seu menino
Renato nascesse outra vez.
— Acaso tenha razão.
— O senhor Renato está que remói de raiva. Mas saber, saber de verdade,
não sabe nada. O pobre. Saber, saber, não sabe nada.
Com súbita desconfiança, Aimée olhou à donzela nativa; logo, aproxima-se
decidida a jogar o tudo pelo tudo:
— Não sabe nada, nem tem nada que saber!
— Está bem — assente Ana calmosa e complacente. — Não se sufoque
tanto. De todos os modos, eu não vou dizer nada, e quanto ao conselho que lhe dei.
— Não me deste nenhum conselho! Não te escutei, nem tenho por que te
escutar! Vete a suas obrigações e me deixe em paz! Se puser contra mim, vais
passar mal!
— Ai, senhora Aimeé Eu não me ponho contra ninguém. Você sabe que eu a
sirvo de joelhos, e se me dá esses cravos e esse colar de que me falou antes.
— Darei-te dinheiro para que compre «o colar e os brincos mais lindos que
encontre. Anda a ver o que está fazendo Renato, recolha todas as notícias que
circulem pela casa, e volta em seguida a me contar isso Vete já!
Só na enorme estadia de luxuosos móveis antiquados, revolve-se Aimée de
uma vez aterrada e furiosa, uma ideia cravada na mente, uma esperança se
desesperada lhe enchendo a alma:
— Um filho. Sim. Um filho poderia me salvar!
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ardente lábios ressecados, de onde escapam as palavras como em uma oração lhe
obcequem:
— Não. Não. Primeiro me mate. Mate-me, Juan do Diabo. Mate-me. Tua
nunca. Tua nunca. Mate-me. . Mate-me e joga ao mar meu cadáver. Mate-me,
Juan do Diabo.
Com gesto de impaciência, Juan se pôs que pé; logo, muito devagar, volta a
sentar- se. Ante ele, em um pequeno recipiente, estão os panos de água com
vinagre, que com paciência de enfermeiro vai aplicando sobre a frente atormentada.
Um áspero gesto faz sombrio o rosto do Juan do Diabo; endurece-lhe o cenho que
junta suas sobrancelhas, a careta amarga com que se distendem seus lábios. Só nos
olhos escuros e profundos há uma luz estranha, como de compaixão, como de
angústia, acaso como de remorso.
— Patrão, já estamos no canal — avisa Segundo aproximando-se ao Juan.
— Para que entra desse modo? Por que chega até aqui? Sal deste quarto!
— Tua nunca.Tua nunca, Juan do Diabo. — continuou Mônica em seu
cantoria.
Juan avançou com raiva para o marinheiro, que retrocede dando um salto até
ficar do outro lado da porta, olhando cara a cara a seu patrão, quase como se lhe
desafiasse, e Juan inquire:
— O que te passa, imbecil?
— Se quiser que lhe fale francamente — decide-se Segundo — como
sempre lhe falei, eu não gosto de nada do que está passando. Essa senhora que você
trouxe.
— Essa senhora é minha esposa!
— O que? Como? — exclama Segundo no cúmulo do assombro.
— É minha esposa, casei-me com ela ontem pela tarde, e os malditos papéis
que o creditam devem estar em qualquer parte. Pode ir buscá-los se lhe interessam
tanto!
— É que não pode ser patrão! Você, casado!
— Sim. Eu, casado. Não posso eu me casar como outros? Parece-te muito
estranho? Entretanto, pareceria-te natural te casar você; casaria-te em qualquer
momento que te desse a vontade, levaria a sua mulher a sua casa, deixaria-a junto a
sua mãe quando saísse a navegar, e a chamaria por seu sobrenome, marcaria-a com
seu nome como se marca uma potranca. Seria a esposa de Segundo Duelos. A
senhora Duelos, verdade? E neste momento está pensando que eu não tenho casa,
nem mãe, nem nome que lhe dar. Pensa isso, verdade? Responde! Responde que
isso imprensas, para te esmagar!
— Está louco, patrão?
Com esforço escapou Segundo daquelas mãos como ganchos de ferro que
rasgam sua velha blusa. Retrocedeu até dar com o batente da amurada, e de ali acha
de novo valor para falar com o grande homem que parece disposto a despedaçá-lo:
— Não fique dessa maneira, patrão. Eu não estou ofendendo a ninguém, nem
pensando todas essas coisas. Só queria dizer-lhe que essa senhora. Sua senhora está
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doente. Que você a meteu no veleiro quase a arrastando, e que alguém é homem,
que demônios! E quando vê uma mulher nessa forma, tratada como você a trata.
— O que? O que? — enfurece-se Juan. — Quer chegar à terra a nado? Quer
que te jogue de cabeça ao canal?
— Quero que a trate melhor, patrão. E se for sua esposa.
— A trato como me dá a vontade. Faço o que quero, na terra e no mar, e
você faz o que vou mandar-te: Que perfileem para chegar ao forte, chega ao Grand
Bourg e busca o melhor médico que haja. O melhor que encontre! E traz-o, sabe?
Traz-o, peça o que peça para chegar até este navio. Anda!
O Lúcifer avança já muito perto da costa fértil e plaina da Maria Galante.
Sobre a costa se divisam os muros brancos dos quartéis, as pedras negras da velha
fortaleza, as asas chaminés fumegantes das fábricas de açúcar e os vermelhos
trechos planos da pequena cidade do Grand Bourg, capital da pequena ilha francesa.
Um homem alto, magro, de pele cítrica e cabelos muito brancos,
cerimoniosamente vestido de negro, está na cabine do Lúcifer, junto ao beliche de
nuas pranchas onde, aturdida pela febre, afundada ainda na inconsciência,
enfraquecido o corpo e ausente a alma, parece que Mônica do Molnar agonizara. O
médico inclinou-se para escultá-la, para examiná-la com gesto grave: logo, aparta-se
um passo e fica olhando-a. O olhar do médico percorre depois a estadia e faz um
gesto ao homem que lhe segue até a porta para ficar frente a ele, cruzados os braços,
com a barba enchente, as roupas em desordem, mais rude e selvagem do que
pareceu jamais.
— Não conheço um lugar menos apropriado para uma enferma — assegura
o doutor. — Aqui falta até o mais necessário, e me perdoe que lhe fale com esta
franqueza, mas necessito salvar minha responsabilidade.
— Quer me dizer que não vai atendê-la?
— Quero lhe dizer que farei o possível, mas que seria preferível que
tratássemos de desembarcá-la. No Grand Bourg temos um bom hospital. Poderiam
deixá-la nele se é que tem que seguir viagem.
— Não vou deixá-la em nenhuma parte. Terá você o bote preparado para lhe
trazer e lhe levar sempre que quiser, e lhe pagarei o que me peça por seus serviços.
— Já. Já me disse isso o moço que foi me buscar. Mas não se trata só de
dinheiro, meu senhor. O marinheiro que chegou a minha casa, disse-me que a
doente era a esposa do patrão.
— O patrão o tem você diante, e estou esperando que me diga o que tem e
como a encontra. O moço que esteve cuidando-a supõe que é um mal contagioso
que adquiriu atendendo doentes de uma epidemia que se desenvolveu por lá abaixo,
na Martinica.
— Já. Vêm vocês da Martinica. Lá são frequentes essas epidemias. Muito
bem pode tratar-se de uma febre infecciosa, efetivamente, sobre tudo se tiver estado
em contato com doentes dessa classe. Mas, seja o que seja seu mal está agravado
por um terrível estado de ânimo. Se tiver que lhe falar claro, direi-lhe que sua
esposa se encontra sob um verdadeiro ataque de terror. Sem o antecedente desse
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possível contágio, digo o que se tratava de uma febre cerebral. De qualquer modo, o
que seja está agravado pelo terror, pelo espanto, pelo impacto indiscutível de um
muito grave golpe moral.
— Muito delicada a senhora, verdade? — comenta Juan com um sotaque de
ironia.
— Opino, pelo contrário, que muito valorosa e resistente — refuta o doutor
com gesto grave. — Estava já doente quando empreenderam esta viagem? Se for
assim, foi uma verdadeira loucura embarcá-la. A verdade é que eu não compreendo.
O doutor se mordeu os lábios, sob o olhar duro, fria, cortante, do Juan. Deu uns
passos dentro da cabina, para olhar a Mônica, e retorna logo aonde lhe aguarda
imóvel, com os braços cruzados.
— Insisto em que deve você desembarcá-la.
— E se não me fora possível?
— Faríamos aqui o que facilmente pudéssemos. Mas primeiro que necessita
uma doente é uma cama, uma cama com colchões e lençóis. Quanto tempo faz que
estão vocês casados?
— Importa muito isso para determinar a enfermidade de minha esposa?
— Embora pareça mentira, importa o bastante.
— Dias nada mais. O que vai fazer para lhe baixar a febre?
— Em seguida vou receitar. Sua senhora se chama.
— Mônica do Molnar.
— Não é a primeira vez que ouço esse nome. Se não recordar mau, uma das
primeiras famílias da Martinica. Não me enganei ao olhar a sua esposa. Trata-se de
uma verdadeira dama. — tornou a calar frente a aqueles olhos escuros que
relampejam. Procurou, com mão insegura, lápis e receituário, e aconselha: — Que
tragam isto quanto antes. Seu nome é? — Com o dela não basta?
— Suponho que sim. Perdoe-me se lhe parecer indiscreto. Um médico tem
às vezes a necessidade de aparecer um pouco às almas dos que pretende curar.
Da porta, o olhar do médico percorre pela terceira vez a desolada estadia,
detém-se com franco compaixão na doente, e se crava logo, curiosa e sagaz, no
torrado rosto do Juan, para observá-lo enquanto deixa cair cada palavra:
— A senhora Molnar está muito grave. Tem muito poucas probabilidades de
sobreviver. Para que estas poucas não se anulem, precisa cuidados e considerações
excepcionais. Até tendo-os, será muito difícil salvá-la.
— Faça o possível, doutor.
— Já estou nisso. Mas o possível é pouco em realidade. No momento ficarei
a seu lado.
Tornou a entrar na cabine. Juan fica fora, imóvel, com os braços cruzados.
Junto ao leito, os olhos do médico veem a pequena figura do menino negro, que fixa
no rosto da Mônica os grandes olhos cheios de lágrimas.
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Pégasus Lançamentos
Aimée. Há toda uma acusação naqueles lábios apertados, naqueles olhos claros e
brilhantes, que escorregam sobre a esposa do filho único, como em uma penetrante
recriminação sem palavras. Depois dela, como uma sombra infausta, a acobreada
figura da Aninha, em cujas mãos põe a dama o xale que cobrisse seus ombros,
enquanto lhe dá uma ordem sem olhá-la:
— Nos deixe sós e fecha a porta. Cuida de que não chegue a interrompemos
ninguém.
Esperou ver fechá-la a porta atrás da donzela, para aproximar-se mais à linda
moça que treme a pesar dele.
— Sabe de onde venho, Aimée?
— Não, dona Sofia, não tenho o dom de adivinhar.
— Não é necessário tanto. Bastaria-te com que escutasse a voz de sua
consciência, se é que há algo em ti que consciência possa chamar-se.
— Dona Sofia. — protesto Aimée, alarmada; mas sua sogra a atalha com
firmeza:
— Venho de seguir em vão os rastros desse bárbaro, em cujas mãos não
vacilou em pôr a sua irmã inocente, pagando por ti, sacrificando-se por sua infâmia,
aceitando-o tudo para te salvar, afundando sua vida para salvar a tua.
—Por que diz isso? De onde o tira? Asseguro-lhe que não entendo.
— Entende muito. Eu sou a que quase não posso compreender, a que cara a
cara olho seu rosto de anjo e me pergunto como pode esconder uma máscara assim
tanto cinismo, tanta hipocrisia, tanta maldade. E você é a esposa de meu filho, você
é a víbora a quem permiti que se atasse para sempre a vida de meu Renato! Você.
Você. Eu soube muito tarde.
— O que soube? Não é possível que nem você nem ninguém saiba nada!
— Nem o notário Noel? Ah, troca de cor! Pois bem, sim, falei com o Noel,
obriguei-lhe a me dizer quanto sabe, atei os cabos necessários.
— Mas estão todos loucos? — pretende defender-se Aimée com a angústia
apropriando-se de todo seu ser.
— Cegos estivemos. Agora, por desgraça, se feito para mim a luz, embora já
muito tarde. Agora compreendo a atitude de sua irmã, o desespero de sua mãe, a
insolência desse maldito que ousou te seguir até aqui, até a própria casa do Renato.
Não pode negá-lo. Você, e só você, é a amante do Juan do Diabo!
Como se a cuspisse, como se a esbofeteasse, saíram às palavras de lábios da
Sofia, e a seu terrível impacto se dobram joelhos de Aimée, estendem-se suas mãos
e uma angústia sem igual lhe sobe à garganta. De repente, fazendo um supremo
esforço, ergue-se vibrante, como a víbora encurralada que se levanta para atacar.
Elevou a cabeça vendo brilhar uma nova esperança, uma fresta por onde escapar,
uma possibilidade a que agarrar-se.
— O que pode saber Noel? O que pode lhe haver dito?
— Sua atitude e a desse canalha, acredita que não bastam? A forma em que
te aproximou dele. A forma em que lhe falou. Tratou-te corno a qualquer.
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— Tratou-me mau, mas por culpa de minha irmã. Eu lutava por defendê-la a
ela, queria convencê-lo de que partiram. Renato foi o culpado.
— Caia! Não manche o nome de meu filho; já manchaste bastante. Aos pés
do Noel se deprimiu sua mãe, espantada, tremendo, ao supor, com razão, que meu
Renato ia matar-te. E até me falou mais, até me contou mais. Sei que esteve a vê-lo
antes de te casar, que esteve em sua casa lhe perguntando por esse homem, por esse
maldito Juan do Diabo que é pesadelo de minha vida desde dia desgraçado em que
nasceu. E tinha que ser ele. Ele tinha que ser com ele e por ele, que traísse a meu
Renato. Confessa. Confessa. Declara-o?
— Não confesso nada nem declaro nada — nega Aimée refazendo-se de sua
confusão. — Para que quer me obrigar a falar? Para ir dizer ao Renato?
— Ao Renato? Não, muito sabe que não tenho que dizer-lhe ao Renato. Não
finja que está bem segura de que não vou delatar-te. Ou é que quer que te prometa a
cumplicidade de meu silêncio?
— Renato me matará. E não serei eu sozinha a pagar um momento de
debilidade e de loucura, quando incluso não era sua esposa. Não serei eu sozinha a
pagá-lo. Pagá-lo-ia também o filho do Renato, a inocente criatura que levo nas
vísceras.
— O que? Como? — sobressalta-se Sofia, sumida em uma completa
confusão.
— Que é carne de minha carne e que é também o sangue do Renato! Por ele
calei por ele me defendi, por ele aceitei o sacrifício de minha irmã, e ela quis fazê-
lo, quis sacrificar-se por amor ao Renato.
— Mas, o que está dizendo? — interrompe-a Sofia cada vez mais
surpreendida.
— Sim, sim, essa é a verdade! Se quiser você sabê-la toda, toda inteira,
tenho que gritá-la. Mônica estava apaixonada pela Renato, disputava-me ao que era
já meu prometido. Impulsionada pelo ciúmes, encurralada pelas circunstâncias,
cometi uma loucura. Depois me arrependi e chorei muito. Só ao Renato quero com
toda minha alma. Só a ele quis sempre, e agora morro porque perdi seu amor e sua
confiança!
Sofia D'Autremont retrocedeu querendo rechaçar aquelas palavras pérfidas e
venenosas, compreendendo pela metade, de uma vez surpreendida e espantada;
enquanto vendo que ganhava terreno, Aimée se eleva para correr a ela, jogando tudo
em um golpe de audácia:
— Mas não posso mais. Não suporto mais. Vou dizer tudo ao Renato, vou
confessar-lhe a horrível verdade, vou a que me mate de uma vez, a que termine;
juntos minha vida e de meu filho.
— Quieta! — detém-na Sofia em tom imperioso. — Não abra essa porta.
Não dê um só passo! Não seguirá fazendo quanto te deseje muito, não seguirá
ferindo e destroçando a quantos têm a desgraça de estar a seu lado. Não converterá
a meu filho em homicida, acabando de lhe destroçar e lhe desonrar! Pensa que não
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lhe tem feito já bastante mal? Acredita que não tenho já motivos de sobra para te
amaldiçoar?
— Pagarei com minha vida e ninguém terá que me amaldiçoar! Por isso vou
levar se ao Renato. Que dela disponha que aperte de uma vez esta garganta. Por
que não deixou você que me matasse?
— Porque não é você quem tem que julgar o castigo que merece sua falta, a
não ser eu que é a quem mais ofendeste. Eu, que te dei meu filho ditoso, feliz, cheio
de ilusões: eu, que acreditava, entregando-lhe a velar por sua felicidade, enquanto
você o banhavas de lama; eu, que agora te ordeno que cale. Que cales como calarão
todos!
— Não! — tenta protestar Aimée hipocritamente.
— Sim! Bem sei que a metade de suas palavras são falsas; sei que, apesar de
seu desplante, não tem que procurar a morte. Quem foi capaz de calar frente ao que
você calaste, tem que ser muito egoísta para deixar-se matar. Bom, ia a obrigar-te a
sair desta casa, a fazer que fugisse, que lhe afastasse sem que meu filho pudesse
verte nem te alcançar. Entrei disposta a proteger sua vida, não por ti, que não a
merece, mas sim por ele, que é o único que me importa já na terra. Mas agora não
vou deixar-te partir, agora ficará. Faz umas horas, se eu não tivesse entrado na
quarto de vocês, acaso teria pagado já sua dívida. Salvei-te uma vez e te salvarei
definitivamente; mas vais dizer o que eu te ordene, vais fazer o que eu te mande.
Condeno-te a viver, condeno-te a calar, te condeno a expiar seu pecado, sendo para
meu filho não uma esposa, a não ser uma escrava.
Repentinamente, deixam-se ouvir na porta uns golpes violentos, e é a voz do
Renato a que chama:
— Mamãe, mamãe, me abra em seguida! Abra-me!
— Algo novo passou — assinala Sofia. — Mas não trema, prometi te
defender e eu sei cumprir minha palavra, Aimée.
— Mamãe!Não me ouve?— volta a chamar Renato, golpeando já
violentamente a porta fechada.
— Entra nesse quarto — aconselha Sofia ao Aimée. — Não saias, a menos
que seja eu quem te chame. Anda!
Sofia a viu obedecer, levando-se logo as mãos ao peito, aí onde o coração
pulsa sobressaltado. Ela também treme, também está pálida, mas tomou uma
resolução heroica, decidiu em um instante sua atitude e sua conduta futuras, e
enquanto vai franquear a porta, um pouco parecido a uma oração se eleva de sua
alma. Uma oração para o homem que a chama impaciente.
— O que ocorria? Temi ter que jogar a porta abaixo. Com olhar de franca
desconfiança, Renato D'Autremont percorreu a larga estadia que é o quarto de sua
mãe. Busca, com raivosa impaciência, o grácil figura do Aimée do Molnar,
escorrega o olhar sobre a porta fechada que dá ao quarto de dona Sofia, e a volta
para sua mãe, interrogadora e ardente:
— Onde está? Onde se escondeu? Por que não me abria?
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cego, a não matar. Que quanto bebi…! O que importa quanto bebi? Nenhuma só
gota desse álcool está em meu cérebro. Nada conseguiu me acalmar; todo o tragou
esta angústia, este desespero, esta raiva, este desejo furioso de encontrar a verdade.
Ela tem que me dizer isso
— Ela não te enganou. Como esposa, não te há enganado. Se acaso, como
irmã da Mônica do Molnar.
— O que quer dizer isso?
— Renato, filho, me escute e me entenda. Aimée não te traiu como esposa,
viveu para ti e é a ti a quem ama. Está desesperada por sua desconfiança, pela forma
brutal como a tratou. Tão desesperada, que chegou a preferir a morte.
— Se fosse inocente, não teria mais que um desejo! Prová-lo!
— Não se considera inocente, porque te ocultou algo. Sim, toda essa triste
historia de sua irmã, sentimentos que você ignoras e que ela não podia
decorosamente te participar. Coisas íntimas, delicadas…
— Não há nada que minha mulher não possa me dizer. Se me amar, se me
tivesse amado.
— Amou-te e te ama. Se confiar em mim, saberá que sou tão ciumenta de
sua honra como você mesmo possa sê-lo.
— Sempre acreditei desse modo, e é por isso que sua atitude me estranha.
— Sente-se e me escute. Não é coisa que possa te dizer em duas palavras.
Entretanto, há algo que, embora não sou a indicada a lhe dizer isso não posso
ocultar isso mais. Ela, humilhada por sua atitude, não falará, e você deve sabê-lo no
ato. Renato, Aimée vai te dar um filho.
— O que? O que? Um filho!
Lentamente, Renato se sentou, jogou para trás a cabeça, fechando as
pálpebras, apertando os lábios, e sobre o tumulto de seu rancor, de seu ciúmes, de
seu ódio, de seu amor frustrado, vão caindo lentas e suaves as trêmulas palavras de
sua mãe:
— Seria terrível que pela violência de seu ciúmes cometesse uma injustiça.
Não te peço que o aceite tudo, não te digo que corra a estreitá-la em seus braços,
mas sim que modere sua caráter. Ela, como esposa, não te enganou. Bem pode ser
que seus pecados sejam veniais, e há algo que tem a obrigação de considerar: Vai te
dar um filho! Vai ser mãe!
CAPITULO 7
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sua cara de espanto. Só por isso, sinto não ter trazido os papéis; mas podemos
mandá-los procurar. Pensa que Renato será o bastante amável para mandá-los?
— Não penso nada, e aproximou-se de mim só para me atormentar.
— Justamente o contrário. Antes lhe quis dizer isso, mas o pediste ao
médico que ficasse em meu lugar, suponho que para lhe pedir amparo e ajuda. Por
isso tomei minhas precauções. Eu não sou dos que se deixam apanhar, nem dos que
servem de brinquedo ao capricho das mulheres. Espiou o rosto da Mônica, ficou
aguardando seu protesto, suas súplicas, acaso suas lágrimas, mas nada trocou no
pálido rosto da doente. Nenhuma frase, nem um gesto, nenhuma palavra. E
recorda: — Os navios se fizeram para navegar, não para estar ancorados.
— Opino igual: os navios se fizeram para navegar.
— E nós vivemos em um navio Juan tornou a ficar silencioso, olhando-a,
aguardando suas palavras, e a tranquila mansidão da Mônica pareceu lhe inquietar:
— Não lhe eleva seguir viagem?
— Mudariam em algo seus projetos que me importasse? Mônica entreabriu
as pálpebras. Parece ausente e triste. Sem poder conter-se, Juan chega até o bordo
do leito, e se detém a vê-la tremer.
— Não tenha medo, que não vou fazer-te nada.
— Não tenho medo. Quão único poderia me fazer, é me matar, e isso não me
importa. O roguei tantas vezes em vão!
— Tomaste-me, como seu doutor Faber, por um pirata, por um assassino
profissional? Mas, o que te passa? Por que está chorando? — Viu rodar uma lágrima
pela pálida bochecha da Mônica; uma lágrima que escapa furiosa das pálpebras
entreabertas. — Não chore. Faz-te mal. Não tem por que chorar nem por que te
assustar — Não vai passar nada, absolutamente nada. Não basta que eu lhe digo
isso? Se necessitar outro médico mais adiante, terá-o.
— O doutor Faber era meu amigo — aponta Mônica sem poder se conter. —
Agora não tenho a ninguém.
— Amigos não lhe faltam no Lúcifer. Quanto a mim.
— Não me toque Juan!
— Naturalmente que não a toco. Não se preocupe, não tenho nenhum
interesse em tocá-la. Fique em paz.
Profundamente sentido pela atitude da Mônica, Juan abandonou a cabine,
subindo a coberta onde quase se tropeça com seu Segundo que parece seriamente
agitado, e volta com frequência à cabeça para olhar para a costa próxima, por cima
da amurada. Intrigado, Juan pergunta:
— O que tem? O que te passa?
— Por fim! Aí estão já os moços com as pipas de água. Também comprei
um barril de bolacha e um pouco de carne salgada. Seus outros encargos estão aí: as
frutas, a roupa e o espelho. Acabava de pô-los no bote, saltei outra vez para procurar
aguardente e tabaco, quando.
— Quer acabar de me dizer o que acontece? — impacienta-se Juan.
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meu filho Renato é capaz de matar, e sei também que teria tido toda a razão e todo o
direito!
— Mas é que eu. — pretendeu protestar timidamente a angustiada Catalina.
— Você calou quando devia ter falado. Agora quer falar, quando é
necessário que cale. Não pude impedir o primeiro engano, mas não permitirei que se
produza o segundo.
— Obriga-me então a abandonar a Mônica? Renato tem influencia,
amizades. Ele pode fazer que detenham esse navio. .
— Faremos o possível, mas sem que intervenha Renato. Que meu filho não
saiba que não suspeite, que nenhum de vocês dois diga uma só palavra que possa
dar motivo a que renasçam suas suspeitas. Entendeu, Noel?
Noel inclinou a cabeça Sem responder. Catalina junta às mãos, olhando-a
com ânsia, e é Sofia quem dispõe decidida e rápida:
— Você volte para o Saint-Pierre, Catalina, e me aguarde em sua casa.
Dentro de umas horas estarei nela. Iremos juntas ver o Governador, solicitaremos
toda a ajuda das autoridades, faremos quanto seja preciso, mas que nenhuma só gota
desta lama alcance a meu filho. Você acompanhe-a, Noel, e não duvide minhas
palavras. O único culpado de tudo isto é Juan do Diabo, e nada importará se for
necessário fazê-lo enforcar!
— Boa marcha levamos patrão. Quinze nós desde que saímos da Maria
Galante. Se virássemos a estibordo amanheceríamos em Monserralhe, poderíamos
nos deter comprar o que nos faz falta.
— Não vire para nenhuma parte. Disse proa ao norte. Passaram dois dias.
Com as velas cheias, inclinado para estibordo tensos pela força da rápida marcha os
cordames e as toalhas sobre a arboaldura elástica, cruzamento o Lúcifer como se
voasse. Mais que um navio se diria uma gaivota que passa arrastando sobre a
espuma as branquíssimas asas, uma seta que vai a um ponto fixo com um só
propósito: afastar-se, pôr léguas e léguas de mar entre a frágil nave e tudo que
deixaram lá abaixo.
— Logo vão faltar provisões, patrão — insiste segundo.
— Aprovisionaremo-nos mais adiante, jogaremos um bote em qualquer
costa deserta, mas hoje não. Nem amanhã. Entendeu?
— Sim, patrão, você não quer que nos alcancem.
— Nem que nos vejam de longe. Não quero lhe dar o gosto a ninguém de
saber onde estamos. Proa ao norte até que eu te mande virar. Segundo.
— Mônica despertou estremecida, como sempre que seus olhos percorrem o
reduzido panorama daquela cabine semi deserta. É como se olhasse as paredes de
seu cárcere, como se voltasse para a consciência daquela estranha escravidão em
que até a esperança de escapar apaga. Mas ao voltar-se com gesto doloroso, os
grandes olhos doces, tristes e cândidos do menino negro lhe chegam à alma como
um quente fôlego de ternura.
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— Está melhor, verdade, minha ama? Já não tem febre. Seguro que já não
lhe dói a cabeça.
— Não, já não me dói. Colibri.
— Não vai comer? O amo me disse que lhe perguntasse. Aqui tem que tudo:
chá, bolachas, açúcar e uma cesta de frutas grande, grande. O amo disse que eram
para você e que não as tocasse ninguém. Para você só mandou o Segundo que as
buscasse por água o médico disse que isso era o que tinha que tomar. Antes, quando
você estava pior, o amo mesmo a fazia tomar suco de dente e de laranja, e chá com
muito açúcar, e me mandava que o preparasse. Eu sei prepará-lo, minha ama. Quer
que lhe faça uma taça? Se não comer nada vai morrer de fome, minha ama.
— Suponho que é o melhor que pode me acontecer.
— Ai, não, minha ama, você não vai morrer! O que eu tenho chorado e
rezado para que não morra. Eu e os outros; todos no navio queríamos que você se
curasse. O Enguia, o Francisco, o Julián. E o Segundo, que é o que manda mais
depois do amo, estava que mordia e que dava patadas, porque dizia que o amo ia
deixar que morresse, e que se o patrão fazia isso era para matá-lo.
— O segundo. O segundo disse?
— Segundo se chama, e é o segundo no Lúcifer. Que gracioso, verdade?
Entre os travesseiros, Mônica se incorporou com um pouco parecido a um
sorriso nos pálidos lábios, e a seu sorriso responde a de Colibri mostrando a dobro
fileira de seus dentes branquíssimos, aproveitando o gesto para insistir:
— Faço-lhe o chá, minha ama?
— Se te empenhar faz-o. Ouça Colibri, onde estamos?
— Deus sabe! Eu não vejo a não ser mar por toda parte.
— Não sabe tampouco aonde vamos chegar?
— Nem eu nem ninguém. O navio leva o amo, e quando o Segundo ou o
Enguia agarram o leme, vão por onde ele os manda.
— Não lhes interessa saber aonde os leva? Muito confiam nele!
— O patrão sabe.
— Sabe…? — repete Mônica com estranheza.
— Ao que parece, duvida-o, e não há razão para duvidá-lo. Quatorze anos
levo percorrendo este mar do Norte ao Sul, de cima abaixo, do Monserrate até a
Jamaica, das costas de QBA até as da Guayana. Quatorze anos!
Juan chegou até o centro da cabine, olhando a Mônica que ao lhe ver troca;
aperta os lábios, volta a deixar cair à cabeça sobre os travesseiros e fica outra vez
imóvel, enquanto ele a contempla dolorido um instante, para sorrir logo com gesto
de sarcasmo, ao dizer:
— Parece que minha presença te aumenta à febre. .
— A ama já não tem febre — indica Colibri com ingenuidade.
— Boa notícia. Vamos ter que celebrá-la, e como não há aguardente a bordo,
será com chá. Traz outra taça para mim, Colibri. Anda…
A mão da Mônica, estendida um instante como para impedir a saída da
estadia de Colibri, tem cansado sobre as Satanás, e seu olhar foge a do Juan,
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mas a que se aterra sua juventude com uma estranha força, depois de haver-se
sentido agonizar, e profetiza:
— Acredito que eu gostarei de ver a ilha de Saiba.
CAPITULO 8
Fechando a suave curva elástica que formam as Antilhas Menores, das ilhas
Virgens até as costas venezuelana, broche de ouro e esmeralda no magnífico colar
das ilhas de Sotavento, eleva-se Saiba verde como que emerge das águas azuis do
Caribe com sua redonda costa de rocha viva, com a apertado matagal de seu bosque
florescido de ata, hibiscos e poincianas, perfumada do aroma penetrante da noz
moscada, cujas árvores crescem nas estreitas gretas que são como pequenos vales
alargados. E acima, no alto, perto do que fora em outro tempo a cratera de um
vulcão, a pequena cidade holandesa do Botton, com suas poucas ruas em escada, de
limpíssimas casa do mais puro estilo flamenco, seus pequenos jardins bem cuidados,
suas calçadas de azulejos brilhantes e suas gente plácidas e lentas, que parecem
viver ao passo rítmico de um clima sempre igual, no êxtase de seu maravilhosa
paisagem.
— Fica muito bem esse traje, minha ama.
— Colibri, por que entra sem chamar? — repreende Mônica, levemente
sobressaltada.
— Perdoe minha ama, mas vi pela fresta que já estava vestida. Fica muito
bem esse traje.
Mônica fez um esforço para conter o sorriso inevitável que as ingênuas
palavras de Colibri levaram a seus lábios. Frente a aquele espelho que sem uma
palavra pendurou Juan na única cabine do Lúcifer, acaba de olhar-se embelezada
com o vestido que trouxesse Segundo da Marra Galante, e sente a impressão de
estar quase nua. O fino pescoço emagrecido emerge do encaixe que borda o decote,
as mangas chegam apenas na metade do braço. Em troca, a saia é larga, mas rodeada
na cintura, mostrando o fino talhe flexível. Penteou em duas suas tranças dourados
cabelos que caem sobre as costas, nimbo loiro de sua beleza agora mais frágil, mais
delicada que nunca. .
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vagabundos sem ofício, ou pobres diabos sem nome nem fortuna. No mole se
leiloavam, vendiam-se por um ano, por cinco, por dez, e neste clima morriam ou
trocavam. Gracioso, verdade?
— Não, não tem graça. É muito cruel.
— Sobre que coisas tem feito o homem seu mundo, a não ser sobre
crueldades? Os alicerces dos castelos e dos palácios se endurecem com lágrimas,
com sangue, com o suor da agonia de milhares de infelizes que arrebentaram de
fadiga. Graças a essas coisas somos civilizados. Se o mundo fora bom, não seria
mundo. Santa Mônica, séria o paraíso terrestre.
— Santa Mônica. — murmura esta lentamente. — Fazia tempo que não me
chamava desse modo.
— Sim — concorda Juan em tom jovial. — Segundo nosso novo calendário,
uns cem anos. Você, em troca, não tornaste a me chamar Juan de Deus.
— Nunca como agora poderia chamar-lhe e se aquela ideia que teve de me
deixar na Maria Galante foi verdade.
— Sim, foi verdade — declara Juan com gesto sombrio. — Mas alguém se
encarregou de frustrá-la e, como disse , está condenada a pagar pelas culpas alheias.
— Quer dizer que desprezou você esse bom pensamento de uma maneira
absoluta, total? — angustia-se Mônica.
Juan esquivou o olhar ansioso, sacudiu a cabeça como espantando o negro
pensamento que repentinamente tornou a invadi-lo. Logo, com rápida determinação,
eleva a Mônica em braços, fazendo-a protestar assustada:
— OH, Por Deus! O que faz?
— Levá-la à cidade. Não falta mais que um lance. Com a incrível agilidade
de um tigre que salta monte acima entre as pedras, pôs-se a andar quase correndo.
Nada parece pesar Mônica em seus fortes braços, mas ela se agarra com angústia de
seu pescoço. Outra vez sente que não é proprietária de nada, nem de sua própria
vida, e entorna as pálpebras, entregando-se. Como poderia lutar contra essa força
cega? Seria tão inútil, tão insensato, como opor-se à força de um torrente, como
querer sujeitar com as mãos o bufo de um ciclone. Pertence-lhe, é daquele homem,
e ele a leva nos braços monte acima, igual a, se quisesse, poderia arrojá-la ao fundo
de uma daquelas sarjetas que se abrem como abismos aos flancos do estreito
caminho, igual a tivesse podido atirá-la ao mar ou deixá-la morrer na cabine do
Lúcifer. Vive da misericórdia daquele bárbaro que jurou não ter misericórdia, não
sentir mais piedade. Que protetor e quente é o fôlego que a envolve que estranha e
ardente doçura destila gota a gota sobre sua alma, sem que ela se atreva a saboreá-
lo! Entretanto, lá encima, ele se detém para depositá-la de pé no chão com absoluta
suavidade.
— Aí a tem: Botton. A cidade mais importante de Saiba. Há um pouco
parecido a um hotel nesta rua. Podemos comer algo distinto e dar logo uma volta
pelas lojas. Esse traje fica muito bem. Precisa comprar alguns mais.
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— OH, não, não, de maneira nenhuma! Está louco? Não necessito nada, não
quero nada, e se você tivesse piedade, deixaria-me em liberdade de voltar. Me
confie às autoridades em qualquer parte. Deixe retornar a meu convento, Juan!
— Seu convento? O que pode haver nele que tanto te agrade?
— Há paz, Juan, há silêncio, solidão e paz.
— Também há paz no sepulcro! E por que morrer se inclusive nem viveste?
É que não te dá conta de que tudo em ti é absurdo? Veem para cá, te olha.
Tornou a levá-la, como se a arrastasse, até o bocal de pedra de uma fonte
próxima. É um quadrado e pequeno tanque, sobre o que gota a gota se vai
derramando um manancial, e nele, como em um espelho, as duas imagens se
retratam: fera e robusta a do Juan; frágil, trêmula e deliciosa a de Mônica do
Molnar.
— Te olha, Mônica, te olha bem. Te olha cara a cara, sem toucas, sem
hábitos, sem trapos negros que lhe cubram até não deixar aparecer de ti nem o corpo
nem a alma. Te tire esse xale!
Ele mesmo o arrancou, obrigando-a a inclinar-se sobre a água, cuja tersa
superfície devolve sua imagem. Ali vê Mônica seus lábios entreabertos, seus olhos
brilhantes; seus loiros cabelos levemente despenteados, sobre o fundo impoluto do
céu azul. Vê seu pescoço nu, seu peito, seus braços, suas mãos frágeis e brancas
como dois lírios, que se unem trêmulas para ficar depois imóveis, enquanto os olhos
extasiados se olham, vendo-se distintos.
— Quantos anos faz que não olhava a um espelho?
— Não. Não sei. — duvida Mônica turvada. — Em realidade, olhei-me
muito recentemente, no navio. Vi-me com este traje absurdo, impróprio de mim.
— Com este traje de mulher do povo, de mulher simples, saudável, que vive
que ama que sabe olhar ao sol e sentir seu beijo na carne. Te olha, não é formosa?
Não é bela? Não é tão linda como sua irmã? Entende que não é uma ofensa
reconhecer que é formosa, apetecível e desejável para qualquer homem cabal. Não é
uma ofensa; ao contrário.
— OH, cale! Me deixe Juan!
— Não vou deixar-te; mas não tenha medo, porque de ti não quero nada,
mas sim ache a ti mesma. Por que quer morrer? Que razão há? Pensa que não pode
viver sem o Renato? Eu não acredito. Não acredito que possa amá-lo tanto. Sempre
viveu sem ele, nunca foi teu jamais esteve em seus braços.
— Tinha uma esperança. — confessa Mônica debatendo-se entre o pudor e a
angústia.
— O que pouca coisa é uma esperança! Sua paixão não existe, é falsa. Só se
ama com loucura, com desespero, com ânsia, o que já tivemos o que já foi nosso, o
que nos tiraram das mãos. Isso se doer, isso sim sentimos que ao arrancar-se,
arrancam-nos a alma. Uma esperança! Uma esperança, um sonho! Falso, Mônica,
falso. Não é mais que uma atadura que te cobre os olhos, que lhe sufoca os
sentidos. Ao principio te odiei, acreditei que de verdade foi isso: uma imagem de
seda, algo bom para adornar os altares, fria, sem coração, sem alma, sem sangue.
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Acreditava-te uma espécie da Santa. Não era brincadeira meu apelido. Santa
Mônica. Agora vejo que debaixo de seus hábitos e, debaixo de suas roupas negras e
de seus sentimentos falsos, há um coração que é capaz de sofrer e de amar.
Ficaram imóveis ao bordo da fonte. Mônica entrecerra as pálpebras. Logo
que vê a escura silhueta das duas imagens, e move com gesto doloroso a loira
cabeça:
— Por que me atormenta com essas coisas, Juan? Para que?
— Para te curar. Antes que seu corpo adoecesse, estava já doente sua alma.
Doente de ideias velhas, de prejuízos estúpidos. Não foi a não ser uma múmia
envolta em faixas, e eu quero que vivas, que olha ao sol uma vez cara a cara, e se
depois de haver sentido como mulher de verdade, segue pensando que o mundo
inteiro se chama Renato, acreditarei que tem razão e que mais te vale morrer ou te
matar.
Os grandes olhos claros da Mônica se elevam até ele em algo que parece
uma súplica, uma súplica branda e dolorosa de menina doente e desgraçada:
— Juan! Juan!
— Por que não lhe esquece? — rebela-se Juan. — O que fez para que lhe
amasse assim?
— Nada. O que faz em realidade ninguém para que lhe amem? Juan fechou
os punhos, evocando. O que fez Aimée para que ele a amasse com aquela paixão
violenta e furiosa? O que fez para acender sua carne e sua alma, lhe levando até o
bordo daquela espécie de loucura se desesperada? Recorda seu perfume, o calor de
sua carne e o nó morno, brando e suave daqueles braços, aceso de seu pescoço como
uma nogueira que escravizasse sua vontade. Recorda sua boca úmida e sensual,
doce e amarga, e, apesar dele, estremece-se, mas aparta a imagem como de um tapa,
e reagindo, convida:
— Vamos conhecer a ilha de Saiba. Ah, olha, aí estão os moços! — E
elevando a voz, chama: — Para cá. Para cá!
— Chama-os? — surpreende-se Mônica — Claro. Pareceu-me entender que
Segundo Duelos te resulta simpático. Talvez com ele, o passeio te pareça mais
agradável. É bom moço e simpático. Salvo a roupa e certos detalhes, pode resultar
tão fino tão distinto como o próprio Renato D'Autremont, flor e nata de nossa
aristocracia, e é até melhor parecido que o senhor de Campo Real.
— O que lhe passa? A que vem essa brincadeira?
— Não é brincadeira, a não ser o afã de ir ensinando um pouco a verdade.
Os homens se parecem entre si muito para que valha a pena de morrer por nenhum.
Tudo o troca a ver detalhes sem importância. Ou o que, ao menos, assim o parece.
Um papel, uma assinatura, um anel, umas quantas palavras legais em latim ou em
outro idioma qualquer, e o mesmo pai pode engendrar um anjo como Renato
D'Autremont, ou um escorpião envenenado como Juan do Diabo.
Vivamente vai responder Mônica, mas não chega a escapar palavra alguma
de seus lábios. Frente a ela, na mão o sombreiro de palma, está o segundo do
Lúcifer, olhando-a com olhos extasiados. E é Juan o que propõe:
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CAPITULO 9
— Sofia com quanto prazer volto a vê-la, e em que momento tão oportuno
chega.
Sua Excelência, o Governador Geral da Martinica, foi ao encontro da
senhora D'Autremont e se inclina cerimoniosamente para beijar a mão que ela
estende. É uma das amplas salas da casa de Governo do Saint-Pierre, e pelos
balcões que dominam parte da cidade, e do porto, veem-se o mar e o céu. Depois de
responder com sorriso forçado ao personagem, Sofia olha inquieta a porta que
comunica com a sala de espera, e o cavalheiro que a observa parece adivinhar seu
pensamento:
— Vem alguém com você?
— Catalina do Molnar. Mas quisesse antes, se for possível, falar eu a sós
com você.
— Como gosto. Mas repito que as casualidades se encadernam. Dispunha-
me a enviar um correio especial a Campo Real encomendando a você uma carta
para a senhora Molnar, de um doutor Faber, a quem acredito recordar ter conhecido
na Guadalupe. Mas tome assento e me diga primeiro a causa de seu visita.
Acredito que levava você vinte anos sem vir ao Saint-Pierre.
— Alguns menos. Vim para ver embarcar a meu Renato para a França.
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"Com toda classe de reservas cumpro este encarrego na carta que lhe anexo.
Tranquilizo, ou trato de tranquilizar, à senhora Do Molnar na forma que ela me
pediu que o fizesse. A você quero lhe dizer que um pouco muito estranho ocorre
entre esse desigual casal. Decidido a não abandonar a uma compatriota em situação
tão crítica, quis abusar de minha influência pedindo a sua Excelência o Governador
do Guadalupe, casualmente de passagem na Maria Galante, que usasse de toda sua
autoridade para lhes fazer desembarcar e passar uns dias em terra, mas alguém
deveu dar aviso ao patrão do Lúcifer.”
— E se foram, verdade? — interrompe Catalina em um arranque de
ansiedade. — Foram-se, ou esse médico, a quem Deus Bendiga, obteve?
— Um momento, escute. "Não sei se por causa de uma conversação com
ele, em que acaso fui indiscreto, ou pelo aviso que suponho, o veleiro levantou
âncoras imediatamente empreendendo repentina fuga. Em vão tratamos de detê-la,
comunicando-nos por cabo com as ilhas vizinhas. Só soubemos que tinham posto
proa ao Noroeste, aproveitando o bom vento para desaparecer.
"Acreditei um dever pôr isto em conhecimento de você e dos familiares
dessa jovem, criatura deliciosa a que me uniu muito vivo simpatia do primeiro
momento. Não tenho autoridade nem meios de fazer nada mais que o que tenho
feito. Se algo quiserem ou podem fazer por ela, estou incondicionalmente à
disposição de vocês. Doutor Emílio Faber, Diretor Geral do Hospital do Grand
Bourg, na Maria Galante, Antilhas Francesas".
— É preciso ir atrás deles! — salta Catalina com desespero. — É preciso
deter esse navio. É preciso salvar a minha Filha. Você pode fazê-lo. Governador.
Você pode dar ordens contra ele, fazer que os detenham no primeiro porto.
— Não sei até que ponto, senhora Molnar. Em nada do que diz esta carta há
motivo para deter ninguém. Todos sabemos que sua filha aceitou livremente a esse
homem por marido. Digo, é o que tenho entendido, as bodas foi em Campo Real e
você mesma consentiu nela. Compreendo que para uma mãe deve ser um vivo
sofrimento uma união desigual, mas não existindo um delito.
— Não poderia você achá-lo revolvendo os arquivos do porto? — aponta
Sofia, abandonando a janela e aproximando-se do Governador. — Não acredito que
faltem delitos ao Juan do Diabo! Se pode lhe fazer deter sem mencionar para nada o
assunto destas bodas.
— Ou mencionando-o, se for preciso. É a vida de minha filha a que está em
jogo. Farei algo para salvar a Mônica!
— Por que não pensa também em salvar ao Aimée? Você cale, Catalina. Que
a pena não a faça desvairar.
Dubitativamente olhou o Governador às duas damas; logo, oprime o botão
de um timbre e vai para a porta franqueando a entrada a um regulamento, ao que
recomenda:
— Faça procurar cuidadosamente todos os dados referentes ao veleiro
Lúcifer e ao patrão o que a manda, e volte no ato para me trazer isso
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— Sim. Já sabe inteira, ou, quando menos, em sua maior parte. E agora que
sua curiosidade está satisfeita, joga-a a um lado como eu a jogo.
Soltou bruscamente sua mão esquerda das da Mônica que a aprisionavam, e
afirma as duas sobre a roda do leme, variando com rapidez o rumo da nave. O
tombo violento faz vacilar a Mônica em seus pés, e ele a sujeita obrigando a voltar-
se.
— Olha lá. É São Eustáquio. Passaremos de comprimento frente a ele, e
amanhã jogaremos a âncora no Basseterre. Já verá, é uma formosa terra. Prometo-te
um bom passeio nela.
— Juan, queria lhe dizer uma só coisa: Que começo a entendê-lo. Acredito
que deveria dizer melhor: que lhe compreendo plenamente…
Sobre o céu de um azul escuro profundo, coberto de estrelas, veem já os
olhos da Mônica a silhueta gigante do Monte Misery. O ar é morno e suave, o mar
sereno, como se fosse uma lacuna suas inquietas águas, uma lacuna sobre a que
borda encaixes de prata a lua nova. Mônica deixou cair sobre os ombros o xale de
seda que um instante cobrisse sua cabeça, e se estremece ao sentir fixa nela o olhar
do Juan, que lhe diz:
— Que branca te vê sob a lua! Branca e brilhante, como se você também
fosse uma estrela. E algo disso tem. É como uma estrela refletida em um atoleiro.
Parece que está perto, mas só se vê o reflexo. Em realidade, está muito longínqua, a
milhões de milhas.
— Que ocorre! — ruboriza-se Mônica sentindo-se puxada. — por que diz
você isso? Não acredito que seja uma afirmação justa. Quando esta tarde lhe
assegurei que lhe compreendia.
— Quis dizer que me compadecia. Entendi-o muito bem.
— Não. Disse compreender, porque compreendi de repente muitas coisas.
Compadecer é distinto. Compadece-se, às vezes, até o que não entendemos bem;
compadece-se a todos os que sofrem pena. E quem não sofre nesse mundo? Todos
sofrem, todos sofremos. Geralmente, cada um se vê e sente em seus próprios
sofrimentos, mas é formoso esse momento em que o coração nos rompe, nos
transborda para outro coração que sofreu mais, que por torturado tem direito a mais
ternura, a mais amor do nosso.
Tomou a mão esquerda do Juan com rápido movimento, tornou para cima a
palma dura e larga, e como empurrada por um impulso irresistível beijou, com beijo
tremulo, a larga cicatriz que o cruzamento.
— Mônica. — comove-se Juan profundamente — o que faz?
— Para sua dor de menino, Juan, para essa pena que ninguém pode
compadecer, e que a você ainda lhe fere.
Olhou aos olhos, com um anseia nova, repentina, de aparecer a seu coração,
e ele empalidece, fugindo aquele olhar. Sob sua branca pele como de raso, corre
com novo ardor o vermelho sangue tropical. Por um instante, tudo se apagou: o
passado, os sonhos, a lembrança lhe queimem de outros olhos e de outros lábios.
Em meio de seu navio, Juan do Diabo se eleva como se todo o enchesse, como se o
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mundo inteirou fosse seus cabelos encrespados, seus braços robustos, seus lábios
sensual, seus grandes olhos italianos.
Treme Mônica quando aquela mão larga aprisiona as suas, em uma pressão
de carícia, quando o braço rodeia seu frágil cintura, levando-a devagar até a porta só
entreaberta da única cabine do Lúcifer. Sente-se como penetrada de uma força
desconhecida, e, ao mesmo tempo, débil, entregue. Não seria capaz de resistir, de
protestar. É como a espuma daquelas ondas que o mar leva e traz, como algo que
pertence ao Juan do Diabo.
— Boa noite, Mônica, que descanse. Dorme bem, pois amanhã teremos um
dia muito agitado. Há muito que ver em São Cristóbal. Você gostará.
Afastou-se sem ruído, com o passo silencioso e firme de seus pés descalços,
e ela fica imóvel e estremecida, com o nome do Juan atado na garganta e o calor
daquelas mãos largas lhe ardendo na pele de raso. Por que a deixa neste instante?
Por que não se aproxima dela, como sem dúvida se aproximasse a primeira noite?
Sem ele, é como se de repente o mundo se esvaziou; sem ele, sente-se sozinha, e
tem frio. E não pode chamá-lo. Uma quebra de onda de rubor lhe acende as
bochechas e se transborda por seus olhos em estranhas lágrimas. Pensa em tantas
mulheres que sem dúvida estiveram em seus braços. Nas perdidas do porto, nas
prostitutas de botequim que certamente o disputaram. Pensa em Aimée, e uma
quebra de onda candente, de indefiníveis sentimentos, embarga-a: ira, rancor,
vergonha, acaso ciúmes. Bruscamente entra na cabina, fechando atrás de si as
portas, com raiva.
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— Um xale? Vai sair daqui? A senhora Sofia lhe disse bem claro que não se
movesse destes quartos. Vai se colocar você mesma na boca do lobo. Lembre-se
dê como voltou a outra tarde, depois que a mandou chamar e você foi para lá.
— Me traga o xale e te tire do meio idiota. Sim, ali está Renato de pé junto
ao corrimão, cruzados os braços, os olhos acesos de álcool e de febre. Mudou o
bastante para parecer outro homem: revoltos os cabelos, enchente a barba, aberta a
camisa que mostra o peito branco, o olhar sombrio, amargo a dobra dos lábios. Dir-
se-ia envelhecido em dez anos, e agora, com esse gesto e esse traçado que lhe fazem
trágica sombra de si mesmo, estranhamente parecido ao Francisco D'Autremont,
indubitável irmão do Juan do Diabo.
— Renato, meu Renato. Quer me ouvir? Quer que falemos? — roga Aimée
em tom suplicante.
— Falar? Falar? — duvida Renato com grande amargura. — Agora quer
falar?
— Sim, Renato, agora quero falar, porque agora me parece que não está
bêbado. Perdoe-me, mas é a palavra exata. Leva muitos dias bebendo como um
louco e te comportando como um selvagem. Agora me parece que está em seu
julgamento, e tenho a esperança de que possamos falar como dois seres Civilizados.
— Pois não a tenha! Os D'Autremont não somos civilizados! Nem foi meu
pai, nem o é meu irmão, nem eu tampouco o era em realidade, embora chegasse a
aparentá-lo. Temos no sangue o fogo desta terra bárbara, os sentimentos cru, as
paixões selvagens. Somos primitivos no rancor, no amor e no ódio! Não quero que
ignore isto. Quero te dar a última oportunidade de te salvar. — Foge se for culpada,
Aimée, foge antes que eu tenha a absoluta segurança de que é culpada, te salve
agora, aproveita este momento em que um resto do homem que fui sobe aos lábios.
Depois será muito tarde!
Aimée tremeu um calafrio lhe percorre as costas, mas há também uma
explosão de raiva, de amor próprio, de ânsia infinita de jogar e ganhar, e, apoiando-
se nela, crava os dedos trêmulos no braço do Renato:
— Não tenho por que fugir, nem do que me salvar! Ouça-me se quer saber a
verdade. Toda a verdade! Não tenho nada que me reprovar! Ser sua esposa era meu
único e verdadeiro sonho.
— Olha bem as palavras que está pronunciando! Como juramento sagrado
vou tomar-te cada uma delas, e se voltares a mentir seria de verdade sua última
mentira, porque seriam suas últimas palavras. Fala!
— Tenho que tomar as coisas desde muito longe. Esse homem me cortejava.
— Juan do Diabo? Onde? Quando? Como? Foi já minha noiva! Foi já minha
noiva quando chegou da França. E se foi já minha noiva, e me pertencia
espiritualmente, como foi possível que. Fala de uma vez!
— Antes, Renato. Antes.
— Antes, do que? Antes de voltar para as Antilhas não podia conhecer o
Juan!
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— Para que possa me compreender, tenho que começar desde antes. Eu era
ainda uma menina; Mônica e você adolescentes já.
— Só dois anos Mônica é mais velha que você. Dois escassos anos.
— Sim, já sei. Mas por sua forma de ser, por seu caráter, você estava sempre
com ela, apenas me fazia conta, e eu começava já te querer. Você não compreende
o que sofre o coração de uma menina que começa a ser mulher. Eu queria a ti, e
você parecia querer a Mônica. Eu sofria muito de ciúmes e de raiva, e Mônica
estava segura de que você casaria com ela. Para ti se penteava, para ti se arrumava,
para ti punha flores na mesa, por ti passava as noites e os dias estudando, para poder
falar contigo de tudo o que você queria falar, enquanto que eu era uma pobre
ignorante.
— O que está dizendo? — sobressalta-se Renato, surpreso e interessado a
pesar dele.
— Mônica estava loucamente apaixonada por ti, Renato, não pensava mais
que em ti, não falava mais que de ti. Tinha a absoluta segurança de que um dia teria
que te casar com ela. As mãos do Renato se afrouxaram, seu rosto reflete — agora
perplexidade, desconcerto, surpresa profunda, e algo assim como a dor de ter
causado involuntariamente um mal. E reagindo, inquire:
— Mônica, Mônica me amava? Uma vez me disse algo parecido. Não
reparei nisso, não quis me fixar, foram desculpas tuas, mentiras, enganos.
— Não, Renato, Mônica te amava, estava louca por ti, e por ti, ao ver que ao
fim me preferia , tomou os hábitos, quis professar, foi ao Convento da Marselha.
Não recorda sua estranha atitude, sua mudança radical, suas meias palavras? Parecia
te odiar. Você chegou a pensar que te aborrecia, e era porque te amava. Estava
loucamente apaixonada por ti, e eu tinha ciúmes, ciúmes selvagens que me
acendiam o sangue.
— OH, não. . Impossível.
— Juro-te que é verdade! Juro-lhe isso pelo mais santo, pelo mais sagrado.
Pela própria vida de minha mãe! Mônica te adorava, e me considerava muita
amalucada, muito infantil, muito ignorante, muito pouca coisa para te fazer feliz.
Ela sempre foi mais inteligente que eu, sempre teve mais força de caráter.
Aproveitando-se de todo isso, me obrigou a lhe jurar.
— O que? — apressa Renato ao ver que Aimée se detém duvidando.
— Que minha vida a seu lado seria só de abnegação e sacrifício, que te
adoraria como a um deus, que te obedeceria como uma escrava. Exigia-me que,
para te agradar, renunciasse a tudo: a meus menores caprichos, às mais irrefreáveis
manifestações de meu caráter. Reprovava-me como um crime a menor paquera, a
menor vaidade. Era um guardião de todos meus atos, fiscalizava até meus sorrisos e
meus suspiros, criava a meu redor uma atmosfera densa de repressão, de vigilância,
que me asfixiava, e eu era um menina, uma menina, Renato. Às vezes, por fazê-la
irritar-se, só por fazê-la irritar-se, paquerava.
— Como?
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falsidades, com a violenta audácia de quem vai a uma brutal luta de vida ou morte.
E ao mesmo tempo chorando com lágrimas de espanto, assustada do novo abismo
em que acaba de lançar-se, espiando com ânsia infinita a expressão daquele rosto
mudado, também como o seu pálido de espanto.
— Não pode ser! É impossível! Se for verdade o que diz, condenaste a sua
irmã inocente! A entregaste indefesa a um homem brutal!
— É horrível, verdade? Você te empenhou.
— Mas, por que não me disse a verdade? — exaspera-se Renato. — Por que
não falou então, como falas agora? Por que calou ela, suportando uma coisa
semelhante?
— Por me salvar. Jurou que me mataria. E também por salvar a ti. Não
esqueça que te amava. Você a obrigou ameaçando matar ao Juan. E o teria feito!
— Talvez. Mas não tivesse cometido uma horrenda injustiça. Se você me
houvesse dito a verdade.
— Houve um momento em que lhe fui dizer isso a lhe confessar isso me
jogando o tudo pelo tudo, mas me disse que esse homem era seu irmão. Como
podia eu pô-los frente a frente? Te converter em seu assassino ou em sua vítima?
Não, Renato, não, porque você é meu amor e minha vida, e porque vou te dar um
filho!
Renato retrocedeu sentindo que enlouquece, mas Aimée respira, afirma-se,
afiança-se. Sabe que ele acreditou. Está livre da única mancha que sabe
irremediável. Jogou redobrando a audácia, corre a seus braços:
— Meu Renato, é o único homem a quem amei! Por ti sou e fui capaz de
tudo. Sacrifiquei a meu irmã, afundei no desespero a minha mãe, menti, caluniei,
fui egoísta, cruel, desumana: mas foi só por conservar seu amor, por defender sua
vida, porque não te manchasse de sangue quis te salvar embora se acabasse o
mundo!
— Me salvar. Me salvar. — despreza Renato com infinita amargura.
— Você não o permitiu. Seguiste duvidando, acreditaste no meu pior,
converteste nossa vida em um inferno. Renegas e amaldiçoa até o filho teu que levo
nas vísceras, e por dura que seja a verdade tive que lhe dizer isso por nas mãos...
Mereço-o tudo, já sei: o ódio de minha irmã, a maldição de minha mãe, o desprezo
das gente honradas. Mereço tudo, menos que você me rechace, porque todo o fiz
por ti, por defender seu amor.
Tem cansado de joelhos, juntas as mãos nas que afunda a frente, e fica
imóvel, aguardando, pendente das palavras que ao brotar dos lábios de Renato
assinalarão seu caminho para sempre. Mas Renato não vai para ela, não a levanta do
chão, não a estreita em seus braços, mas sim olha a todas as partes com os olhos de
demente, e ao fim grita a uma sombra que passa:
— Esteban. Logo, me sele um cavalo!
— Renato, aonde vai? — sobressalta-se Aimée.
— Onde tenho que ir a não ser a procurar a nossas mães? Sei que estão no
Saint-Pierre, que foram a ver o Governador para lhe rogar que detenha esse navio. .
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Estou seguro que estão lutando com todas suas forças para salvar a Mônica, que o
fazem a minhas costas porque, como eu até faz um momento, acreditam culpado,
acaso porque acreditam que têm que pôr em uma balança sua vida contra a tua,
acaso porque têm escrúpulo, porque temem ao escândalo, possivelmente porque
temem a minha violência. Mas tudo vai trocar. Agora sou eu, eu, quem vai fazer
deter esse navio. Eu, quem resgatarei a Mônica, aconteça o que acontecer.
Capitulo 10
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até o Charles Tow em busca de vinhos, doces e outras guloseimas. Ficarão muito
felizes aceitando seus obséquios.
— Eles me fazem muito feliz me demonstrando um afeto que não fiz nada
por ganhar.
— Talvez não fizesse mais do que pensa. Nossa vida mudou para fazer-se
imensamente melhor.
— Também a de você, Juan?
— A minha a primeira, certamente. Mas não fale se for para recordá-lo.
Hoje não quero voltar atrás à cabeça, não quero pensar no passado, nem no mais
próximo nem no mais longínquo. Vinte e quatro horas em São Cristóbal é o único
ato de nosso programa. Agrada-te?
Sorriu olhando-a ao fundo das pupilas claras, e ela não acha resposta, porque
a voz não soa em sua garganta. É muito profundo o que sente, é muito cálida a
emoção que a embarga, acreditai viver um sonho ou sonhar outra vida. Como se
não pudesse retê-la mais tempo, a pergunta do Juan sobe tímida e ofegante a seus
lábios:
— Não se sente mal, Mônica, verdade?
— Não sei como se chama o que sinto, Juan, Acaso. Acaso estou perto da
felicidade.
Juan se ergueu jogando para trás a cabeça. Logo que pode acreditar o que
escutou. É realmente essa estranha palavra, que logo que tem sentido em suas vidas
turbulentas e atormentadas? Felicidade. Mônica há dito felicidade. Como se
acreditasse sonhar olha para todas as partes. Mas se. É ela a que fala, e ele quem
está frente a ela, baixo aquele céu, ante aquele mar, que agora parecem diferentes,
como se uma luz distinta e radiante os banhasse. Ela tornou a ruborizar-se, a sentir
que suas bochechas se acendem como uma flor, e que não há palavras em seus
lábios. Timidamente estende a mão que ele toma entre as suas, e, sem uma palavra,
baixam juntos pela estreita escada enquanto seus corações pulsam com ritmo igual.
102
Pégasus Lançamentos
de sua filha. Mas, por outra parte, acredito que sua mamãe, zelosamente, teme muito
ao escândalo, Renato.
— Pois eu não temo ao escândalo nem a ninguém!
— É uma atitude que não sei se lhe elogiar. Vivemos uns dos outros, o bom
julgamento de outros pode ser definitivo, e um nome como o de vocês.
Calou, observando o rosto do Renato, duro, tenso, contraído, em luta feroz
consegue mesmo. Que extraordinariamente trocado lhe acha desde aquela manhã de
seus bodas! Parece envelhecido em dez anos. Sua expressão é, de uma vez, dolorosa
e feral, e há algo em suas palavras, áspero, impaciente, quase cortante:
— Eu devo pedir algo que é de justiça, Governador.
— Devo começar por lhe dizer algo que já disse à senhora do Molnar. Há
justiça legal e justiça moral. Não sempre pode fazê-la segunda em nome da
primeira. Legalmente, eu não tenho nenhum motivo para deter o Juan do Diabo. Por
isso, com toda a dor de minha alma, recusei à petição da senhora do Molnar. Não
devo, não posso deter esse Juan por haver-se casado legalmente e levar-se a sua
esposa em um navio de sua propriedade.
— Mas sim pode você fazer voltar para o Saint-Pierre a um navio que
ilegalmente deixou o porto. Sim pode deter um homem cuja pessoa e propriedades
estão embargadas por uma dívida denunciada e comprovada. Há uma montanha de
papéis legais nos que lhe acusa por rixa tumultuaria, desacato à autoridade e feridas
a um homem que incluso no está completamente curado.
— Esse homem recebeu uma indenização. Em metálico. Alguém pagou pelo
Juan do Diabo, saindo depois fiador para que ficasse em liberdade. Fiz trazer os
arquivos do porto e esse alguém.
— Esse alguém sou eu. Governador, diga-o claro, não dê mais voltas. Vim
para pôr as coisas em seu lugar. Eu fui seu fiador, devo retirar a fiança, e exijo que o
processo detido siga em marcha.
— Para lhe condenar em ausência, em rebeldia? É extraordinário, e me
atrevo a dizer mais: é desumano. Teria você que apresentar uma denúncia assinada,
que fazer-se totalmente responsável.
— Assinarei essa denúncia aceitando toda a responsabilidade. Pode você
pedir informe caligráficos às ilhas. Corre de minha conta toda a investigação que
seja necessária.
— Se estiver você decidido a fazer as coisas dessa maneira, direi-lhe que,
por acaso, informe dessa classe não me faltam. O Lúcifer ancorou na ilha de Saiba.
Ancorou também no Basseterre. São Cristóbal. Passou pela Antiga e seguiu via ao
sul, ontem pela tarde. Por razões óbvias, não é fácil que se detenham no Guadalupe
nem na Maria Galante, mas podemos pôr sobre aviso às autoridades da Dominica,
Granada, São Vicente e Tobago. Não acredito que possam ir mais à frente sem repor
as provisões. E se você insistir.
— Faça-o, Governador, faça-o!
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— Segundo, foi você quem lhe deu o aviso — que nos fez fugir da Maria
Galante?
— Sim, patroa, fui eu. Sinto-o se fiz mal, mas como segundo do Lúcifer.
— Cumpriu com seu dever, já sei. Mas tanto você como ele se equivocaram.
O doutor Faber não ia fazer nada mau contra o Lúcifer. Eu só lhe pedi que
escrevesse uma carta a minha mãe para lhe dar tranquilidade sobre o estado de
minha saúde. Compreende?
— Só isso? E o patrão sabe?
— É difícil para eu falar com o Juan de certas coisas. Não quero desgostá-
lo.
— Ele mudou! É outro homem desde que está você no navio, patroa. Mas
sem desgostá-lo, se você ainda quer lhe mandar uma carta a sua senhora mãe, conte
com Segundo Duelos para pô-la no correio.
— Seria capaz?
— Pois, claro. E não é por me elogiar, pois qualquer dos moços fariam o
mesmo. Damos a vida pelo Juan, mas tratando-se de você. — interrompeu-se para
ficar olhand o-a, como breve luta com sua consciência. Ao fim, inclina-se para lhe
falar muito baixo: — O amo é desconfiado. O traíram todos desde que era menino,
e vê traições até onde não as há. Eu sei que você é muito boa, patrã, que não vai
fazer lhe nenhum dano. E se esta noite escreve uma carta para sua senhora mãe,
amanhã a ponho eu no correio do Portsmouth. Quer escrevê-la? Quer-me dar isso
— Não sei ainda — duvida Mônica; mas ao fim parece reagir bruscamente:
— Está bem. Segundo, confiarei em sua promessa. Escreverei essa carta a minha
mãe.
E deixando a Segundo com as mãos sobre o leme, dirige-se para a cabine do
navio, onde, apenas transposto à soleira, divisa a Colibri e lhe interpela
carinhosamente:
— Como estava aqui? O que nasce?
— Esperá-la, minha ama.
O menino negro, a flor de lábios o sorriso branco, responde à pergunta da
Mônica inclinando levemente a frisada cabeça. Leva muito momento aguardando
no centro daquela cabine, como se aguardasse, qual um milagre, a doce aparição
daquela a quem a devoção de todos envolve como em uma atmosfera brilhante e
cálida sem que ela nem sequer tenha chegado a adverti-lo.
— Vai ficar aqui dentro, patroa?
— Sim, Colibri, vou ficar-me, mas preciso ficar sozinha, entende? Devo
estar sozinha, preciso fazer algo íntimo, pessoal. — olhou a todas as partes como
procurando. Não pensou antes na dificuldade material. Não dispõe de nada do
necessário para escrever. Entretanto, recorda ter visto escrever alguma vez ao Juan,
e rapidamente toma em suas mãos o livro de registros — Conhece este livro.
Colibri?
— Como não, minha ama! É o livro no que o patrão escreve tudo o que
acontece o navio.
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pensamentos; contra ela vão à estelar se, depois da busca inútil de suas almas
perdidas. Bastariam uns passos, uma palavra, um despir o coração sem rubor. Mas
nenhum dos dois dá aqueles passos, nenhum deles pronuncia aquela palavra, e,
como Juan, ela tornou as costas, há apoiado a frente atormentada no redondo cerco
dos estreitos guichês blusas de marinheiro, — olhou o tremor das estrelas sobre o
mar. Se ele a olhasse de outro modo, se chegasse até ela tenro ou apaixonado, se
pudesse pronunciar em seu ouvido aquele nome que inutilmente repetem seus
lábios:
— Juan, Juan. Se você me amasse.
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anel de noiva? Alcançarão vinte libras para comprar um anel de ouro fino, com uma
pedra branca que brilhe como o sol?" E eu vou e lhe digo: "Claro que alcança.
Conheço um joalheiro que vende brilhantes bem baratos. Como que os trazem do
Transvaal, de contrabando!" E vai e me pede os gestos desse joalheiro. Eu as dou
como é natural, e então me pergunta me ensinando seu dedo pequeno: "Será assim o
dedo da Mônica?"
— O que é o que está dizendo. Segundo? — ruboriza-se Mônica gratamente
emocionada.
— Palavra por palavra o que me disse o patrão esta madrugada. Acredito que
estou falando de mais. Mas já sabe qual é a surpresa. Diz que se casaram vocês
muito depressa, e que não pôde comprar o anel, mas que mais vale Fazê-lo tarde que
não Fazê-lo nunca. E eu penso igual.
Mônica cala. É muito grande sua emoção para que possa pronunciar uma só
palavra. É muito íntimo o sentimento que a embarga para mostrá-lo assim, frente a
um estranho. Mas suas mãos se aterram a tosco corrimão e seus olhos percebem,
sobre a azul superfície das águas, o rastro daquele bote que se afasta veloz ao golpe
dos remos que impulsionam as mãos do Juan, aquele bote que arrima já no
embarcadoiro do Roseau.
— Olha, Colibri, gosta deste anel? Vale vinte e dois libras, mas não me
importa. Deixarei-o afastado e passaremos a recolhê-lo quando tomar a carga.
— Que lindo é. E que pedra tão grande! É para a ama?
— Claro que é para a ama! Como brilha, verdade? É igual a uma estrela. E
como uma estrela tremerá em sua mão.
Brilhando os olhos de entusiasmo, contempla Juan aquele anel de brilhantes
através do minguado cristal da pequena cristaleira que se abre sobre uma das
estreitas ruelas do Roseau. Quis acontecer por ali antes de chegar à Capitania do
Porto, desejando quanto antes ver convertido em realidade o desejo daquele desejo.
— Note bem onde é. Colibri, porque temos que voltar aqui mais tarde.
— A procurar o anel? Você sempre lhe anda comprando coisas à ama,
patrão. Mas a ama não fica contente, a não ser triste. Algumas vezes até chora
olhando as coisas que você lhe traz.
— O que chora? Não tem por que chorar. Uma vez me disse que era feliz,
que sentia algo que podia chamar-se felicidade. Disse-me isso a mim mesmo, disse-
me isso bem claro, e não faz muitos dias. .
— Sim, eu sei quando o disse; mas depois disso, anteontem mesmo, esteve
chorando. Eu a vi com estes olhos. E lhe corriam as lágrimas. Primeiro com o
vestido negro, esse tudo quebrado que você tem guardado no armário. Encontrou-o,
e esteve olhando-o e chorando.
— Chorou? Chorou olhando esse horrível hábito, esse trapo negro que
parece a roupa de um justiçado? Sinto muito não havê-lo arrojado ao mar! Por que
chorava? Não lhe disse isso, Colibri?
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— Falou alguma coisa. Mas eu não lhe entendi muito bem. Disse algo assim
como que chorava pela Mônica Molnar. E atirou outra vez o vestido quebrado ao
fundo do armário, e ficou a escrever. E enquanto escrevia, chora que te chora.
— Escrevia? Escreveu Mônica?
— Sim, meu amo, e é o que ia dizer lhe. Se você for lhe dar de presente algo,
ela seguro que quer papel e sobre. Essa noite esteve procurando e rebuscando, e ao
fim, para escrever a carta, arrancou-lhe duas folhas de atrás ao livro de registros.
— Uma carta? Há dito uma carta?
— Bom, digo eu que seria uma carta, porque, o que outra coisa ia fazer meu
amo? Escreveu as duas folhas pelos dois lados, dobrou-as em quatro e logo as deu a
Segundo e lhe pediu que lhe comprasse sobre e selo para poder jogá-la no correio.
Por isso digo eu que seria uma carta. Ai, meu amo!
Colibri esquivou a mão do Juan que se aperta sobre seu braço com brutal
movimento instintivo. Logo, olha com espanto o rosto sombrio cujas sobrancelhas
se juntam com raiva, e suplica sobressaltado:
."Não fique bravo, patrão, ao melhor fiz uma confusão e não é verdade nada
do que estou contando.
Tudo é verdade! — afirma Juan com ira concentrada. — É incapaz de mentir
nem de inventar nada. Além disso, é perfeitamente lógico. Mônica escreveu uma
carta e Segundo Duelos se encarregou de pô-la no correio. Em que ilha? Em que
porto?
— Não me lembro. Não sei nada. Não fique bravo com a ama, patrão, nem
vá dizer lhe que eu lhe vim contando. Eu não sabia que ia dar raiva. Eu...
— Te cale! No Portsmouth, Segundo jogou uma carta. Disse-me que era
para sua irmã
Olhou a todas as partes, transfigurado o rosto de raiva, amarga a boca de
desconfiança, e acaba de salvar a estreita ruela partindo; com passo incerto de
sonâmbulo.
— Meu amo. Meu amo, não fique bravo! Eu não sei nada. Seriamente que
eu não sei nada. Pergunte-lhe a ela, patrão. Seguro que lhe diz a verdade. A ama é
melhor que o pão.
Bruscamente se deteve Juan. Outra vez aquele chispaste de vida e de
esperança se acende em sua imaginação exaltada. Sim. Ela é boa, é sincera, é
generosa, é leal. E acaso lhe ama. Recorda seu olhar, seu sorriso, as palavras nas
que sua voz tremeu sua muda emoção ante a beleza da paisagem, o lento renascer à
vida. Pouco a pouco sua amargura repentina se calma.
— Talvez tenha razão. Não posso julgar sem lhe haver perguntado. Falarei-
lhe mais tarde. Temos que ir à Capitania Geral. Tenho que me ocupar da carga, de
vinte coisas mais, que não são caprichos nem cartas de mulheres. Anda, vamos!
Juan e Colibri chegaram à Capitania e um oficial lhes aproxima,
perguntando:
— É você o capitão do Lúcifer!
— Para lhe servir, oficial.
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Capitulo 11
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— Patrão. Patrão. Como se sente? Como vai? Pouco a pouco, voltando com
esforço do profundo e doloroso letargia, abre Juan os olhos tratando de olhar na
obscuridade que lhe rodeia. É quase completa naquela espécie de cova, logo que
ventilada por um pequeno olho de boi, redondo e alto. O estou acostumado a é
úmido e viscoso, das paredes penduram cadeias ferrugentas, maços de cordas, e se
amontoam nos rincões os refugos da carga. O ar é fétido e espesso, carregado de
salitre e de mofo.
— Segundo, é você?
— Sim, patrão. Pescaram a todos. A você na Capitania Geral. A nós, ali
mesmo, no botequim do Gascão, jogaram-nos a luva.
— E agora, onde estamos?
— Na baía do Galión.
— O Galión! Mas, por que estamos no Galión!
— Parece que o mandaram para nos buscar desde o Saint-Pierre, e bem
carregado de policiais.
— Onde estão outros?
— Em outra adega, digo eu que estarão. A você e a mim, como resistimos.
— Não me deram tempo de nada: nem de resistir! Mas se estiverem todos
aqui, o que é do Lúcifer! Que é da Mônica? Ah, canalhas!
A ela não vai passar lhe nada.
— Como? O que sabe imbecil? Bons são estes! Tenho que gritar, que
protestar, tenho que saber aonde levaram a Mônica Se acreditarem que vão poder
tratá-la como a uma mulher qualquer.
— No Galión chegou um que já lhes dirá como têm que tratá-la: dom Renato
D'Autremont e Valois. Enquanto nos traziam, ouvi dizer que esse senhor era seu
cunhado.
Juan se pôs que pé com esforço gigante, apesar de suas ligaduras. A corda
que atava seus pés saltou, deixando nos tornozelos seu rastro carmim. Agitando a
cabeça como um tigre, ergue-se e balbuciai fora de si:
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— Quer acabar de me explicar, Renato, por que tem feito isto? O que
significa? Onde está Juan?
— Mônica querida, um momento. Explicarei-lhe isso tudo, mas te acalme.
— Não posso mais! Leva horas sem acabar de me falar claro. Cem vezes te
pedi que me explicasse. Disse que foi você quem tinha feito isto. Por quê? Quero
saber por que o tem feito! Quero saber por que me trouxeste aqui! E sobre tudo,
quero saber onde está Juan! Quer acabar de me explicar isso
— Explicarei-lhe isso tudo, mas me deixe falar. Não posso responder-te a
dez perguntas ao mesmo tempo. Quer te sentar e me escutar?
Mônica se mordeu os lábios, sussurra, e um instante cala. Estão em uma
ampla habitação de paredes caiadas, reja; de lavrada madeira e brilhantes pisos de
tijolo vermelho. É uma casa isolada entre jardins, nos subúrbios do Rosean, maciça
construção que se levanta como tantas outras, nas estribasses da montanha, e desde
cujas janelas abertas se divisa o magnífico espetáculo do porto, a baía e o mar.
— Tem-te proposto me enlouquecer, Renato?
— Tenho-me proposto, enlouquecido, remediar as consequências de meu
pecado dê incompreensão, de egoísmo, de ira, de crueldade. É curioso e lamentável.
Eu, que não me acreditava capaz de ser cruel, fui desumano, e o fui contigo, minha
pobre Mônica.
— Se não me falar mais claro. — impacienta-se Mônica.
— O que te estou dizendo é diáfano. Já sei que pretenderás não me entender,
que mentirá e fingirá heroicamente, como até agora o fez. Já sei que sustentará a
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farsa e que tomarás, a conta dela, a defesa se desesperada para o Juan do Diabo. Já
sei que tem madeira da Santa ou de mártir.
— Equivoca-te totalmente, Renato. Eu. Eu.
— Você foste à vítima inocente. Eu cometi o crime de te jogar nos braços do
Juan; mas eu, eu sozinho, contra ti mesma se for preciso, liberarei— te desse
canalha.
Renato falou, tremendo a paixão em sua voz, mesmo que seu olhar azul seja
limpo e suave. Quis em um momento arrancar a daquele ambiente para ele horrível,
começar a obra de reparação de seu mau; mas Mônica lhe rechaça, relampagueantes
de ira os olhos:
— Juan não é um canalha! Nem você nem ninguém dirá dele uma coisa
semelhante diante de mim. Onde está e o que lhe têm feito?
— Não corre nenhum risco nem lhe tem feito ainda nenhum mal. Por outra
parte, quero começar por te dizer que te desculpo do esforço de representar o papel
de esposa preocupada.
— Não estou representando nenhum papel! Não tenho nenhuma queixa do
Juan!
— Se pudesse acreditar que diz a verdade, acredito que lhe daria as graças a
Deus por me haver escutado. Não sabe como hei rogado do fundo de minha alma,
que horas de angústia vivi desde que soube a verdade! Sim, Mônica. Aimée me
disse ao fim toda a verdade
— Jesus! Mas você. Você. Tiveste calma? — se surpreende Mônica,
desabando-se aniquilada na próxima poltrona.
— Minha dor e minha desilusão acharam a serenidade necessária. E não é
mérito. Tinha sofrido tanto, tinha chegado a imaginar o pior com tanta força, com
tão vivas cores acreditava ter entre as mãos o horror de um engano. De um engano
de outra índole, me compreenda. Sim, Mônica, estive louco, cego, desesperado. Só
demente pude acreditar que você, tão pura, tão altiva, tinha sido capaz de te entregar
assim. Perdoe-me, Mônica, fui um insensato. Se te acossei, se me revolvi contra ti
sem piedade, se me converti em uma fera, foi porque acreditei que Aimée era a
culpado. A única culpado. .
— Mas, Renato. — tenta protestar Mônica totalmente confusa.
— E não culpado como é, em realidade, de um pecado de egoísmo, de
ligeireza imperdoável. Não culpado como o foi. Como uma menina muito mimada,
capaz de jogar sobre ti o fardo de todas as responsabilidades, a não ser culpado de
outro, como uma verdadeira mulher adúltera e leviana. Sofria tanto eu mesmo, que
me era impossível medir o sofrimento de outros. Por isso te precipitei ao abismo,
por isso te joguei em braços desse selvagem.
— Me ouça, Renato! — trata de deter Mônica aquela corrente de explicações
que ainda não alcança a compreender em seu verdadeiro sentido.
— Ouvirei-te em seguida, mas me deixe acabar. Fui mais que injusto,
cheguei a ser desumano. E contigo. Contigo, que é o que me dói mais fundo, que é
o que me reprovo mais. Contigo, para quem só devesse eu ter gratidão, reverência.
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Pégasus Lançamentos
OH, não direi nenhuma palavra que não deva escutar; mas sei tudo e não quero nem
lhe devo ocultar isso Sei tudo, e me poria de joelhos para te pedir que não te
envergonhasse, porque o amor não pode envergonhar a ninguém, e não houve sobre
minha vida nada mais formoso que esse amor que você soube me dar.
— Cala Renato, cala.
Levantou-se, acesas as bochechas, trêmulos os lábios, sentindo que a terra
vacila sob seus pés, que giram as paredes enquanto golpeia em suas têmporas o
sangue. É uma indescritível mescla de horror, de vergonha, de angústia. Um anseia
de morrer para logo ressuscitar sem aquele passado, enquanto ele sorri como se
recolhesse uma flor:
— Obrigado, Mônica. Obrigado e perdão. São as duas únicas palavras que
frente a ti devo pronunciar.
— Aimée. Aimée. Aimée te há dito. — gagueja Mônica como obcecada.
— Há-me dito toda a verdade, já lhe disse isso antes.
— Ela não é capaz de dizer a verdade! — estala Mônica sem poder se
conter. — É uma hipócrita, uma embusteira, uma infame! É a mais vil e mais
covarde.
— É possivelmente todo isso, mas me há dito a verdade. A verdade que te
limpa e te salva, enquanto a obriga a baixar a cabeça frente a ti e frente a mim
mesmo. Porque compreenderá que não posso vê-la igual, que não posso apreciá-la
igual, e ela sabe. Minha ilusão por ela morreu, minha fé na diafaneidade de sua alma
se quebrou em pedaços embora vá me dar um. Filho.
Mônica se mordeu a língua, mordeu-se os lábios, calou destroçando-se,
como se para calar tivesse o que cravá-las unhas na consciência e nas vísceras. Mas
calou. Calou detida pelo impacto daquela palavra. Calou trêmula ante aquela outra
vida que se anuncia, e tornou a cair cobrindo o rosto com as mãos. Quer ouvir até o
final o que sabe Renato, pois esteja bem segura de que Aimée só falou pela metade.
À força de sofrer, já quase não pode pensar, e ouça, como através de muitos véus,
aquelas palavras do Renato, que lhe soam estúpidas, ingênuas, tragicamente
RIDÍCULAS, na emoção daquela alma outra vez enganada. E ao fim, apressa:
— Fala Renato, fala! O que te há dito Aimée?
— Não repetirei coisas que sabe coisas que eu havia esquecido. Fui torpe e
cego, mas quero que saiba que durante as horas desta viagem, com o olhar fixo nas
estrelas, não pensei a não ser em ti, com a alma rasgada pela dor do mal que te tinha
feito. Que me perdoe seu pudor de mulher honesta, de mulher muito digno de
mulher imaculada. Sua irmã me contou isso tudo: seu ciúmes, seu medo, a forma
infantil, mas infame, inconsciente, mas baixa, com que urdiu ao redor teu os
supostos amores do Juan do Diabo. Como iludiu a essa pobre besta.
— Não fale assim do Juan! — aviva-se Mônica ante o insulto. — Não sabe o
que diz! Cale-te!
— Tem direito a te enfurecer, a me insultar. Tem ate o dever de defendê-lo,
já que por minha culpa, por meu enorme culpa, e pela culpa lamentável do Aimée,
esse homem é seu marido, é seu marido ante Deus e ante os homens, é seu dono e
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Pégasus Lançamentos
companheiro da alma. Para romper o laço que ata ao Juan seria necessário que o
matrimônio não houvesse se realizado.
— Cala! Cala! — desespera-se Mônica.
— Me perdoe, mas é indispensável que eu saiba. Como resistir? Para poder
te liberar dele.
— Não tem que me liberar! Não tem que te colocar em minha vida! Não tem
que fazer nada! Devolva-me ao Juan, Renato, me devolva ao Juan!
Grito do coração, estalo da alma, corrente selvagem de um sentimento real,
oculto até para ela mesma, são aquelas palavras que brotaram que os lábios da
Mônica, e um instante, Renato D'Autremont retrocede desconcertado, para serenar-
se quase em seguida acreditando compreender.
— Talvez não tenha já direito a te pedir que confie em mim, mas de todos os
modos, por seu próprio bem, peço-te que o faça. Tudo que tenho feito é por ti, para
ti, para te liberar, para te liberar, para te resgatar. Que não te cegue o rancor neste
momento.
— Não é rancor, está completamente equivocado. Mas Juan não é o
homem que imagina. Além disso, é meu marido e não há nada mais que averiguar.
— Está tratando de me dizer que tem por ele o sentimento normal de uma
esposa?
— Não estou tratando de te dizer a não ser o que nos deixe em paz!
— Teria graça se fosse verdade — apostila Renato com certa amargura; mas
reagindo imediatamente, rechaça: — Não, Mônica, não pode me enganar. Aimée
me disse a verdade a verdade que você não negaste: Juan do Diabo não era para ti
mais que um estranho. Agora, sua ferida é muito profunda, sei, e você é de madeira
heroica. De outro modo, não tivesse resistido nem por amor a sua irmã nem por
amor a mim.
— Não fale mais disso! — repudia Mônica com ira.
— Também compreendo que seu amor tenha adquirido tinturas de ódio.
Fomos desumanos, mas, por que acessou a essas bodas? Nenhuma mulher no
mundo tivesse suportado tanto! Como é possível que chegasse.
— Foste matar ao Juan, a minha irmã. Suas razões eram a fio de faca.
— Eu não queria a não ser arrancar a verdade a quem soubesse! Por que não
falou? Procedi como um louco, mas foi porque as circunstâncias me enlouqueceram.
Quando te vi aceitar ao Juan, tive que pensar que a amava que o tinha amado ou que
tinha cometido um pecado de amor, e, nesse caso, talvez não fosse eu o que podia te
impor o castigo desse matrimônio desigual, mas era justo. Ao menos, compreende
minha boa intenção, não te revolva contra mim dessa maneira.
— Bom, mas, em realidade, não responde jamais a minha pergunta: onde
está Juan?
— Veem aqui, a esta janela. Olha lá, no porto, no mar, perto do Forte. O
que vê?
— Um guarda costeira. Um guarda costeira com a bandeira da França.
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— Mônica, até onde vais chegar? Entendo que deve estar louca,
transtornada. É outra, sim. É outra, de pés a cabeça mudaste. Tudo mudou em ti, até
esse traje de coloridos, absurdo, impróprio em uma mulher de você, linhagem,
mesmo que com ele te veja formosa, como se com seu desdém e sua beleza queria
me castigar. Faz-o, pode Fazê-lo. MEREÇO-O por não ter compreendido seu amor,
por não te haver sabido, amar!
Renato D'Autremont se aproximou da Mônica com gesto apaixonado, mas
ela retrocede, e a luz que um instante ardesse nos olhos dele, dilui-se, como se
apaga uma ilusão fugaz. E depois de olhá-la, move a cabeça, como frente a uma
verdade que lhe desconcertasse: "Mônica, posso te perguntar se amas ao Juan?”
— Lhe amar. Não sei. Mas é igual. Ele não me quer não me quererá
jamais.
— O que está dizendo? — indaga Renato surpreso e confuso — Então,
quanto fez. Por que o fez? Por que o fez?
Mônica tornou a apertar os lábios, entreabriu que novo as pálpebras, e um
instante seu rosto recorda ao daquela outra Mônica sofrida, resignada, encadeada a
sua obrigação de calar. Mas é só um instante. A mulher nova volta a aparecer e há
uma careta ambígua em seus frescos lábios, ao comentar:
— O que pode te importar o que ele e eu sintamos? A verdade é que não
tenho nenhuma queixa contra Juan. Bem ou mau, deu-me isso, impor-me isso como
marido. Por uma ou outra razão, jurei-lhe lealdade ao pé do altar, e eu ainda
concedo valor a meus juramentos.
— Está bem. Tudo o que tenho feito foi por reparar uma falta, por te tirar do
inferno em que acreditei te haver sepultado, e agora resulta que seu inferno te
agrada.
— Quando me jogou nele, tivesse preferido a morte cem vezes a aquele me
sentir arrebatada pelos braços do Juan recorda Mônica apaixonada. — O pior dos
supridos, a mais terrível das agonias eram para mim mais desejáveis que aquele
homem que me arrastava, através dos caminhos e através dos mares, como pode
arrastar sua conquista um vândalo. Entre as quatro paredes da cabine do Lúcifer,
chorei e supliquei me rasgando o corpo e a alma, lhe pedindo a Deus que me
enviasse a morte repentina. Se então tivesse deslocado atrás de mim, se um
verdadeiro sentimento de justiça e de piedade humana te tivesse feito seguimos nos
deter, teria beijado os rastros de seus passos. Mas tudo tem neste mundo seu
momento, sua hora, sua oportunidade.
— O que quer dizer? — lamenta-se Renato.
— Devemos pensar no mal que fazemos, antes de fazê-lo. As reparações
revistam chegar, como esta tua, muito tarde e fazendo ainda mais danifico de que
fez o próprio mal. Compreende agora?
— Tenho que compreender. Falaste muito claro — aceita Renato doído. E
em tom de fina ironia, observa: — Suponho que não te servirá de nada que lhe
presente minhas desculpas, que te diga que sinto com toda minha alma ter
interrompido seu idílio primitivo com o Juan nessa imundície de barquinho.
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— Muitas vezes a imundície está nos palácios, e há luz de sol até nas
humildes pranchas do Lúcifer — reprova Mônica com altivez. — Graças a Deus,
sou outra, Renato. Sou a mulher do Juan do Diabo, ou do Juan de Deus como eu o
chamo. E como sou sua esposa e sei que lhe acusaste com crueldade, de pecados
veniais, quando ele poderia acusar a outros de pecados mais graves, e não o faz.
Como lhe suponho açoitado e maltratado injustamente uma vez mais, não tenho
mais que um desejo: estar junto a ele, voar a seu lado, lhe defender das acusações
que lhe façam lutar a seu lado por sua vida e por sua liberdade. Se seriamente quer
fazer algo por mim, contrata tripulantes e deixe ir. Imediatamente onde ele está.
— Será agradada! — acessa Renato com ofendida dignidade. — vou realizar
essas diligências que reclama. Nos iremos ao mar em seu maravilhoso navio, e
procurarei que seja quanto antes.
— É o único que te agradecerei com toda minha alma! Da porta, tornou-se
Renato, olhou de novo a Mônica, — sentindo que sua repentina raiva se derrete em
dor, em angústia, na sutil amargura do fracasso, e transborda em uma breve flor de
ironia:
— Obrigado, por me recordar uma vez mais que fui inoportuno e torpe. A
seus pés, Mônica!
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enjaulado como um rato! Se formos afundamos, que nos soltem ao menos! Abram!
Abram! Nos tire desta ratoeira! Não nos deixem morrer aqui! Abram!
Enlouquecido por um pânico que é também desespero e raiva, acudiu
Segundo a porta da adega empurrando-a, golpeando-a com os pés, enquanto, verde
de espanto, Colibri se abraça ao Juan que, mudo e imóvel, contempla a seu
companheiro com amargo gesto.
Dois homens apareceram na porta. O marinheiro que faz às vezes de
guardião e um jovem oficial que olha duramente aos capturados, e interpela:
— Quem grita aqui
— Eu! Não queremos morrer esmagados, encerrados em uma ratoeira!
— Perfeitamente. Desata-o, leva-o acima e ponha a trabalhar. E você? — O
oficial se encarou com o Juan, e no ar se cruzam como dois aços, os dois duros
olhares. — Você não grita? Não protesta? Não tem medo de morrer aqui como um
rato?
— Não tenho medo de nada. Me deixe, se quiser!
— Posso te cruzar a cara como insolente! Mas não, desata-o. É uma lástima
que se percam esses braços, quando fazem tanta falta acima. Faz-o trabalhar até que
arrebente, e se revira contra ti, lhe dispare e cuida você mesmo de vigiá-lo, porque
me responde com sua vida do que ele faça.
Têm cansado ao fim as cordas que sujeitam ao Juan. Um insistente esfrega
isso os braços intumescidos, os pulsos arroxeadas. De repente, um violento golpe de
mar entra pelas escotilhas, banhando as adegas. O Galión tremeu como se fosse
partir se em dois, correm todos enlouquecidos, escorregando pelas estreitas escadas
de ferro, alagadas a cada golpe de mar. Levando a Colibri como um fardo, sobe
Juan o último. Respirou a pleno pulmão; a água enfurecida lhe açoita o rosto,
envolve-lhe, banha-lhe. Agarrado a uma escotilha, pode olhar ao fim sobre a
coberta varrida pelas ondas. O mar se torcedor em marejadas como montanhas,
sopra o vento com fúria de furacão, negro está o céu, e apenas se vê a luz dos faróis
furiosamente bamboleados.
— Outro homem à água! — grita a voz patética de um marinheiro. —
Capitão... Capitão!
— O capitão está ferido! — adverte o oficial. E elevando a voz, chama: —
Timoneiro. Timoneiro!
— Timoneiro à água! — avisa uma voz longínqua.
Juan avançou arrastando-se entre a fúria dos lamentos, agarrando-se aos
salientes, aos cabos, às pranchas, protegendo ao moço que treme abraçado a ele,
resistindo o açoite das ondas que a cada instante ameaçam lhe arrastando. Guiado
por um instinto mais forte que sua vontade, chegou até a ponte de mando. .Um
homem, com a cabeça rota, jaz ao pé do leme cuja roda gira ao garete. O oficial se
inclina sobre o ferido, e logo se eleva olhando ao homem que acaba de chegar, para
lhe perguntar:
— O que faz aqui?
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— Tirou-você do cárcere?
— Sim. Por que estranhas tanto? Eu tive um formoso sentimento para o
Juan. Qui-lo desde menino, contra toda a vontade de minha mãe, contra todas as
circunstâncias adversas, e naquela famosa viagem que fizemos juntos a França,
enquanto apoiado no corrimão da amurada contemplava a terra que me viu nascer,
afastando-se até perder-se na distância, não tinha mais que um pensamento: Juan.
Não tinha mais que um desejo: voltar para procurar o Juan. Não tinha mais que uma
determinação inquebrável: achar ao Juan à volta para compartilhar com ele quanto
tinha, para Fazê-lo realmente meu irmão.
— Isso queria Renato?
— Queria-o e o procurei com toda minha alma. Se recordar um pouco os
primeiros dias que passou ele em Campo Real, achará a corroboração de minhas
palavras. Com que alegria, com que ilusão, com que puro sentimento de justiça e de
fraternidade quis então estreitá-lo em meus braços e lhe dar quanto à vida lhe tinha
negado! Mas foi como lhe dar calor a uma serpente, como acariciar com a mão nua
a um escorpião, porque nele não havia mais que ódio, rancor, veneno, e tive que
reconhecer que tinha razão minha mãe quando tantas vezes me disse temendo por
mim: "te guarde do Juan, Renato, dele têm que te vir todos os males”.
— Todos os males?
A palavra tremeu nos lábios da Mônica. Acaso, por um instante, compreende
ao Renato, aproxima-se de seu coração atormentado, e possivelmente também
procurar surpreendida, no fundo de sua própria alma, aquele sentimento que durante
anos inteiros a enchesse, aquele sentimento estranhamente desvanecido que é agora
um sorvete montão de cinzas: seu amor, seu louco amor pelo Renato D'Autremont,
em cujos lábios soam agora as palavras destilando fel de uma amargura antes
desconhecida:
— Pensa que Juan não me tem feito bastante mal?
— Não acredito que te tenha feito nenhum mal voluntário. Não acredito que
te odeie. Você, em troca.
— Odiou-me sempre, Mônica — corta cortante Renato. — Odiou-me
sempre, embora eu não quisesse compreendê-lo, embora fechasse os olhos para não
ver em suas pupilas o rancor, por um dano que em realidade eu não lhe tinha
causado. Odeia-me por rico, por ditoso, por mimado, por ter uma mãe amorosa e
um lar feliz! Odeia-me por bem nascido, e sempre me odiará, eu faça o que faça.
Essa é a amarga verdade da que eu não queria me inteirar.
— Que injusto é com o Juan! Que injusto e que cego! Com ele, todos
estávamos equivocados, Renato. É bom, é nobre, é generoso.
— Cala! Você sim que está cega. O que pôde fazer para te deslumbrar, ou
por que finge e memore como o faz? Com que sortilégio, com que beberagem, com
que filtro pôde te roubar ele alma?
— Por que não pensa que foi só com sua bondade?
— Bondade, Juan? Não diga disparates. Se tivesse visto o que eu vi. Como
pensa que fiz para acusá-lo? Eu não inventei os cargos, achei-os com apenas
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lei, e a lei está em marcha. Mas não se preocupe, pois se Juan for como você diz,
sairá bem sacado. Por fortuna, não sou eu quem tem o que julgá-lo, mas pode estar
segura de que estamos em paz. Danifico por dano! Agora vou agradar-te, Mônica,
vou tratar de ultimar nossa viajem.
Capitulo 12
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noite odiava ao Juan do Diabo; a outra, a que voltou para a vida entre estas paredes,
a que se olhou pela primeira vez a si mesmo como mulher na água clara de uma
fonte, quando as mãos do Juan me inclinaram sobre aquela água, a que aprendeu de
seus lábios o sorriso e de seus olhos a olhar ao sol, essa mulher. Essa mulher ama ao
Juan, e lhe pertence. É a verdade, Renato, toda a verdade!
Mônica terminou chorando, inclinou a frente, há-se coberto o rosto com as
mãos, e permanece imóvel, deixando escorregar aquele pranto que produz no
Renato inquietação e tortura.
— Por que chora Mônica? Por quem chora? Diga-me por quem são essas
lágrimas!
— Que mais te dá? Não estamos preparados para partir já? Pois partamos!
— Como manda. Somente estava esperando o parte da Capitania do Porto.
Mandou-se fazer uma investigação sobre a sorte do guarda costeira.
— O que quer dizer? O navio em que levaram ao Juan não chegou ainda a
Martinica?
— Faz uma hora não tinha chegado. Mas não há motivo major para alarmar-
se. Esse, e todos os navios que estavam na rota do Sul, desviaram-se pelo temporal.
Já irão aparecendo, já aparecerá o Gallón.
— Se é que não naufragou! — augura Mônica com exaltação e angústia. —
Se algo ocorreu ao Juan nesse maldito guarda costeira, se tiver perdido aí a vida,
não poderia perdoar jamais aos culpados!
— Confio em que não tenha sido a coisa tão grave, ao menos para me liberar
da ameaça de que não me perdoe jamais — comenta Renato com forçada calma. E
trocando de repente, exclama: — OH! Acredito que está aí a lancha com os pães.
Foi para a amurada, e Mônica atrás dele, tensa e se desesperada. Mas o
rápido passo do Renato se adianta. Um momento fala marinheiro que acaba de subir
a escala do Lúcifer, da uma olhada lê o papel que este pôs em sua mão, e se volta
para a Mônica, que chega ofegante.
— Seu Juan do Diabo está a salvo. Este é um escritório caligráfico do
Tenente Britton, que foi o encarregado de capturar ao Juan e de levá-lo custodiado
até entregá-lo às autoridades da Martinica.
— O que diz? O que diz esse escritório?
— "Galión chegou ao Saint-Pierre atrás capear temporário no Granadinas.
Capitão ferido e cinco baixas tripulantes. Salvou situação, perícia Juan do Diabo.
Pedido pedir sejam tidos em conta serviços especiais". E assina Charles Britton,
Tenente de Regulares Coloniais Britânicos na Ilha da Dominica.
— Renato tem lido o escrito e logo, com suave ironia, comenta: — Um
comprido cabograma e uma boa notícia para ti, verdade?
— Não o é para ti? Acaso desejava que Juan?
— Não, Mônica — assegura Renato nobremente. — Contra tudo que
desejei, Juan é meu inimigo, mais inimigo a cada instante, mas não desejo para ele
uma desgraça. Não posso desejá-la, porque o mais amargo de tudo isto é que nunca
se aborrece por completo a um irmão. Não podemos abominar de nosso próprio
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sangue, sem nos abominar nós mesmos um pouco, e sem sentir também a dor que
causamos. — Faz uma pausa, e repondo-se oferece: — E agora sim, vou cumprir
seu desejo e a dar as ordens para zarpar.
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— Essas coisas, por muito que queiram ocultar-se. Uma mulher como você
não passa inadvertida.
— Posso trocar de roupa com minha donzela, aproveitar a escuridão da
noite, me tampar totalmente a cara com este xale. Eu me encarrego de fazer as
coisas com uma discrição absoluta. Se você me der o salvo conduto, corre de minha
conta todo o resto. Ninguém saberá nada. Ficará entre você e eu, e os dois sabemos
calar — aproximou-se dele sorridente, insinuante, lhe envolvendo na baforada de
perfumes que sua pessoa exala, e sorri vendo tremer as mãos enrugadas. — O
agradecerei toda a vida. Governador. Estou absolutamente segura de conseguir que
as coisas mudem. Um salvo-conduto, quatro linhas suas assinaturas com seu selo.
— Está bem. Aguarde.
O governador assinou. Ainda vacilante olha ao Aimée, que sorri triunfadora,
lhe arrebatando quase o papel de sua mão.
— Saint-Pierre. Saint-Pierre?
— Sim, Mônica, estamos chegando. Mas se ainda tenho direito a te dar um
bom conselho, se até posso te suplicar algo, peço-te, peço-te que siga caminho para
Campo Real. Sua mãe te aguarda lá. Sua irmã ficou muito angustiada. Minha
própria mãe...
Tomando as mãos da Mônica, como em um repentino arranque, falou
Renato, e treme a súplica em sua voz que se quebra de angústia. Mas Mônica
retrocede, esquivando daquelas mãos e rechaçando com decisão:
— Não me moverei do Saint-Pierre; não me afastarei do Juan. E se houver
algo que seriamente queira fazer por mim, se for eu a que ainda posso te rogar, te
suplicar, te implorar algo, é justamente que me ajude a me aproximar dele esta
mesma noite. É preciso que eu lhe veja que eu lhe fale que saiba o que pensa e o que
fará. Você pode Fazê-lo, para mim é indispensável. Acredito que me voltaria louca
se me negasse isso!
— Está bem, Mônica, te acalme. Não precisa me suplicar dessa maneira.
Farei o possível. Acredito que, como esposa legal do Juan do Diabo, tem direito a
chegar até ele. E se for preciso, eu mesmo tenho que te levar.
Arrastando a sua donzela, envolvendo-se no amplo xale de seda para ocultar
o mais possível seu rosto e seu talhe, baixa Aimée a toda pressa as largas escadas da
casa de Governo até sair por aquela porta lateral, um pouco dissimulada, que
esquiva os grupos de curiosos e a vigilância oficial da entrada do frente. Ali está
parado o carro que a trouxesse; rapidamente, ama e faxineira sobem a ele, e Aimée
ordena ao chofer:
— Me ouça, Cirilo. Vai dar a volta muito devagar. Vais levar-nos a passo
por atrás do Hospital e te aproximar do Forte de São Pedro pelo flanco. Quando
estivermos ali, direi-te o que faz. Anda arranca.
— Ai, minha ama! — lamenta-se a assustada Ana. — Você como que vai
meter se em uma confusão muito grande.
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altura da cabeça do moço, vê-se o piso de granito do largo pátio, o arco da entrada
interior, o farol, e, a sua luz vacilante, a silhueta de uma mulher que parece discutir
com o sentinela, mostrar uma vez mais o papel que traz rodear logo com mais força,
ao corpo fechando, o xale de seda, e seguir, a um gesto do sentinela, os passados do
guardião carregado de chaves. .
— É a ama. — assinala Colibri.
— Mônica? Mônica aqui?
— Seguro que vem a tiramos, patrão. Ela não queria que os soldados me
levassem. Ela é muito boa.
— Cala!
O coração do Juan tremeu. Com um esforço de sua vista de águia pôde
perceber as coisas mais claras apesar da escuridão. A mulher que se aproxima alta,
magra, flexível, de andar sensual, tem algo no ar que não concorda com a saia
colorida, com o típico traje das mulheres mais humildes que parece levar como um
disfarce. Um raio de insensata esperança banhou sua alma. Cada um daqueles
passos que sente aproximar-se é como um golpe de seu coração, estremecendo-o,
despertando-o, fazendo-o pulsar de novo ao influxo quente do sangue. Como um
lanzazo de ouro, com ferida luminosa, sente que ama a aquela mulher, que treme
por ela, que por ela aguarda, que a si mesmo se apresenta já cem explicações, cem
desculpas. Contendo o fôlego vê abrir as grades, elevar-se a mão do carcereiro para
pôr um tocha aceso no gancho de ferro da entrada, e retroceder, dando passo à
mulher que se aproxima da luz avermelhada e fumegante daquela iluminação
primitiva.
— Juan. Meu Juan.
Aimée se arrojou nos braços, que não a rechaçam que a sustentam sem
estreitá-la, que a oprimem tensos de uma emoção sem nome, enquanto a alma
inteira do Juan, um instante aparecida na luz do dia, treme antes de sepultar-se,
caindo até o fundo do mais profundo abismo de sua vida, enquanto murmura
surpreso:
— Você. Você. Foi você.
— Quem a não ser eu podia vir a te buscar onde esteja como está por cima
de tudo? Quem a não ser eu te quer com toda a alma, Juan? Com toda a alma!
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das chaves. Durante quase quinze minutos está este pátio sem guarda de soldados, e
é o tempo em, que Mônica pode entrar na galera do Juan e lhe falar sem
testemunhas, enquanto você e eu a esperamos.
— Sim, se, o agradecerei toda minha vida! — assegura Mõnica.
— Espere — adverte Noel. — Acredito que nosso detento tem um visitante.
Através do muito largo pátio viram a luz avermelhada do tocha que ilumina
a galera. Estão no ângulo que formam dois grossos muros, e sobre suas cabeças,
pelos estreitos passadiços dos muros, cruzam os sentinelas montando guarda.
Assim que deixem de cruzar esses bisbilhoteiros, aproximamo-nos, e entra
você na cela, Mônica — indica o notário. — Tenho entendido que o encerraram
sozinho com o moço que era grumete de seu navio. Outros estão no outro pátio.
— Por favor, cala
Mônica acreditou ouvir uma voz, uma palavra, uma frase que o ar leva até
seus ouvidos, e contém a respiração para escutar, mas só chega o passo monótono
dos sentinelas, só veem seus olhos ofegantes aquela grade iluminada depois da que
se movem formas confusas.
Bruscamente, Juan retrocedeu, cortando de um puxão o nó daqueles braços
rodeados a seu pescoço, como se ao arrancá-los queria arrancar-se também a
angústia que lhe afoga que lhe atende a garganta, como se toda esta angústia
estalasse em um impulso brutal contra aquela que empalidece frente a sua rudeza. .
— Para que vieste? O que deves busca aqui? Quem te mandou para mim?
Sua irmã? Seu marido?
— Basta, Juan! Nunca fui a ti mandada, vim por minha própria conta,
porque estou de sua parte, porque não quero fazer-me cúmplice da infâmia tramada
contra ti. Vim já lhe disse isso, já o gritei ao entrar: vim porque te quero. Quero-te,
embora cem vezes me tenha desprezado, embora rechace minhas carícias, embora
responda com insultos às palavras com as que te entrego a alma. Vim me expondo a
tudo, e essa é a gratidão que me demonstra? Se você soubesse o que sofri, o que
chorei por não ter tido o valor de ir contigo! Fiz mal. Sei o que fiz mal. Mereço seus
insultos, mas não seu ódio; mereço seu rancor, mas não seu desconfiança. Por que
estou aqui, mas sim porque te quero, porque não posso viver sem ti?
—E sua irmã? Onde está sua irmã?
Juan deteve o gesto com que Aimée vai jogar se em seus braços, acreditando
no fim vencida sua resistência. E mais que seu gesto, é terminante cerca daquela
ferro pergunta que escapou que seus lábios com força brutal, e que outra vez estala
imperiosamente:
— Onde está sua irmã? O que faz? Está de acordo com o Renato, verdade?
Foi coisa sua tudo isto? Foi coisa dela?
— É tudo que te ocorre me responder? — reclama Aimée ofendida.
— Não estou respondendo, a não ser perguntando! O que sabe da Mônica?
Foi você com o Renato a a Dominica? Foi ele sozinho a procurá-la? O que moveu
tudo isto? Uma carta da Mônica, verdade? Por Deus vivo, fala!
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Capitulo 13
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— A sua casa? A sua casa de perto da praia? Mas é absurdo! Ali nem sequer
tem serviçal.
— Quero estar sozinha, quero proceder livremente como o que sou: a
legítima esposa do Juan. E sua adversária no julgamento contra ele. É o lugar que
me corresponde, e saberei enchê-lo apesar de tudo.
— Apesar de tudo? É uma forma de confessar que deve ofensas ao Juan!
Entretanto
— Entretanto, cumprirei com meu dever, Renato. Me leve a minha casa, ou
me descerei do carro e irei eu sozinha por meus passos.
— Não pode ficar reveste em um lugar como esse.
— Só tenho que estar a partir de agora em adiante. Entende o de uma vez por
todas, Renato. Devo estar sozinha, quero estar sozinho, preciso estar sozinha.
Tremeu em seus olhos o fulgor de uma lágrima, e Renato D'Autremont se
remói os lábios para conter a frase raivosa a ponto de escapar, e acata:
— Está bem. Como quer. — E elevando a voz, ordena ao chofer: —
Esteban toma o caminho da praia. Vamos à casa dos Molnar.
Como uma sombra cruzou Mônica as largas habitações fechadas. Não se
deteve nem sequer para abrir as janelas; como se uma rajada de desespero a
impulsionasse corre para o largo pátio, chega até o arvoredo do fundo, afunda-se
entre a folhagem, abre a porta da grade que dá sobre os escarpados, e um instante
fica imóvel sobre a negra rocha, frente ao mar agora banhado por uma lua cheia de
prata. Uma fina chuva salobre a banha a cada golpe de mar, mas ela avança sobre
as rochas escorregadias até o mesmo bordo no que bruscamente a terra se acaba. Lá
está o Lúcifer. Vê balançar-se seus nus mastros, e uma dor queimante, que tem
amargura de ciúmes, transborda-se em lágrimas que chegam a seus lábios mais
amargas que a espuma salobre que arroja o mar:
— Juan. Juan. Até é dela, até lhe pertence. Para sempre lhe pertencerá. É
mendigo de seus beijos, escravo de sua carne. Não é certo que te queira com toda
sua alma. Acaso tem alma? Não, não a tem nem vale a pena de te-la! Que feliz será
com ela nessas ilhas selvagens! Com quanta ânsia a amará sobre as praias desertas.
E eu serei só uma sombra de quem um dia teve piedade.
— Mônica. Mônica. Mas, está louca? Vai escorregar, vai cair ao abismo!
Por favor, venha. Venha. Pedro Noel se aproximou da Mônica e a arrastou, quase à
força, do bordo do escarpado, e clava nela sua angustiada olhar interrogadora: —
Mônica, que fazia você ali? Não iria você A?
— Não, Noel, sou cristã.
— Mas, por que mudou que esse modo? O que pôde fazer que você trocasse
assim? Quem estava com o Juan?
— O que importa um nome? — evade Mônica com profunda desilusão. —
Eu cumprirei com meu dever amanhã. Nada mais. E agora. Noel.
Sobrepondo-se ao soluço que sufoca sua garganta, Mônica estendeu o braço
com significativo gesto que assinala ao Noel o caminho da deserta cale.
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— Não, Noel, já não. Isso foi antes, quando meus olhos estavam
deslumbrados. Foi um momento de luz muito vivo, foi à única hora de sol de minha
vida, mas o sol se apagou e agora parto outra vez a provas pelo túnel de sombras.
Mas não se preocupe, conheço muito os caminhos da dor e do abandono. Conheço-
os tanto, e me são tão familiares, que não tenho, mas sim me deixar levar por eles.
No caminho de minha vida, a única intrusa é a esperança. E agora, me deixe. Noel, e
vá-se tranqüilo. . Veremo-nos amanhã nos tribunais
— Aceita minha companhia? Posso vir a procurá-la?
— Não ficaria bem. Noel. Você é o notário dos D'Autremont, e eu a esposa
do acusado.
— Tenho que confessar que não lhe falta razão, Mas, prescindindo de certas
formalidades. Bom, não há nada que possa fazer por você?
— Acredito que sim. Junto ao Juan está encerrado o menino, contra o que
não pode haver nenhum cargo. Faça que o ponham em liberdade.
— Ocuparei-me disso com todo meu empenho. E, cumprindo seus desejos,
devo lhe dizer: até manhã.
— Até manhã. Noel.
Com a cabeça baixa se afastou o ancião, mas Mônica não contempla sua
figura imprecisa. A lua se escondeu entre as nuvens, e o vento traz aquele
longínquo chamado de sinos que é para a Mônica como a ressurreição de seu
passado. Acredita viver meses atrás; as brancas mãos procuram inutilmente, por
instinto, o rosário que outro tempo pendurou em sua cintura; logo, caem com gesto
de supremo cansaço, e outra vez passa aquele pensamento golpeando sua frente
como uma asa ao passar:
— Tudo foi um sonho. Um sonho, e nada mais.
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vez ao nu a cruel ferida de seu amor próprio. — Responde! Acredita que possa lhe
gostar? Você é mulher, e.
— Por Deus, Renato, está-me machucando! E, além disso, pensando outra
vez essa coisa horrível. Não volte a te pôr como um louco! Dá-me medo.
— Às vezes penso que é como uma menina: inconsciente, amalucada. Então
te perdoo de todo coração. Mas outras. Isto é pior que um pesadelo!
— Espanta a ideia má! Acaso não te confessei já toda a verdade?
— Me jure que não há mais do que me confessaste! Jura-o!
— Bom. Por. Por. Juro-lhe isso por nosso filho! Por esse filho que não
nasceu Que morra sem ver a luz do sol. Que não nasça se mentir, Renato! Que não
te dê o filho que vou te dar se não estiver te dizendo a verdade!
A mão do Renato escorregou por sobre a cabeça do Aimée, sujeitando-a
pelos cabelos; obrigou-a a olhá-lo, afundando-lhe no fundo de suas pupilas
inescrutáveis, mas só vê uns frescos lábios que tremem uns grandes olhos úmidos de
lágrimas, sente ao redor de seu pescoço o morno corda de uns braços suaves e
perfumados. Então, vacila, rechaçando um pouco:
— Acabaria por me voltar louco. Em realidade, mais vale não pensar.
— Isso. Isso. Não pense querido. Além disso, por que tens que te
atormentar tanto? Ao fim, a batalha está ganha, pois Juan está em suas mãos, tem-no
totalmente em seu poder; verdade? Depende de ti perdê-lo ou salvá-lo?
— Já não, Aimée. Fui eu quem lhe acusei quem movi minhas influências
para que fosse processado, mas o processo será imparcial, os juízes obrarão com
absoluta liberdade de critério. Não podia fazê-lo de outro modo, Aimée, sem me
desprezar a mim mesmo. Quis trazê-lo para liberar a Mônica de seu poder, para
arrancá-la de suas garras. Uma vez aqui, julgarão-lhe com estrita justiça, e o castigo
que receba será o que realmente mereçam suas faltas. Serei cruel, mas não covarde.
Poderá me odiar mais do que me odeia já, mas não terá o direito de me desprezar,
porque não vou feri-lo pelas costas. Tudo está no critério verdadeiro da justiça. E
agora, por favor, me deixe sozinho. Vete a descansar.
— E você não vem? — suplica Aimée insinuante. — Lhe peço isso, amor
meu, não demore muito.
Aimée há desemparelhado depois da velha cortina de damasco, e ainda
flutua no ar seu perfume, ainda sente Renato no pescoço e nas mãos a cálida
sensação de seu roce, até tem gravada em suas pupilas o doce sorriso com que lhe
há dito adeus, a maneira insinuante com que lhe convidou a segui-la, desdobrando
frente a ele toda a força sutil de seus encantos. Foi-se e, ao voltar à cabeça, Renato
D'Autremont vê cravados nele outros olhos, escuros e profundos, que lhe olham
como lhe brocando. Primeiro é surpresa; depois, o vago desagrado que aquela
presença lhe produz sempre.
— O que acontece, Aninha?
— Nada, senhor Renato, saí para lhe advertir que a senhora se há sentido
mau toda à tarde. Que desde meio-dia está na cama.
— Lamento-o muitíssimo. Suponho que já chamaram ao médico.
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baixo estremecendo-se de espanto. Logo sorri, fazendo uma arma de sua sabida
estupidez.
— O que aconteceu? Acaba. Qual foi essa coisa que te fez tanta graça?
— Pois. Porque a senhora quis passear. Com tanta pena, com tanta cai a rir,
com tanto susto, e a senhora Aimée mandou ao Cirilo que desse voltas e voltas por
todas as ruas, e esteve do mais contente. À senhora não gosta do campo.
— E depois do passeio.
— Depois do passeio viemos para casa.
— Sem ver ninguém? Sem falar com ninguém? Não tente dizer-me uma
coisa por outra, não procure uma mentira, porque te vai custar muito caro. Não
fizeram a não ser passear?
— Toda à tarde, meu amo. Pelas ruas, pelos moles, pelo Forte. Depois
viemos para cá, e a senhora me mandou que lhe preparasse o banho porque queria
que você a encontrasse bem linda quando chegasse.
Renato moveu a cabeça como se espantasse uma ideia amarga. Logo, volta-
se para a voz que soa a suas costas:
— Até quando acredita que vou esperar-te. Ana? OH. Renato! Meu Renato,
que logo agradou minha súplica. Terminaste já seu trabalho?
Sem responder a Aimée olha Renato às duas mulheres. O rosto da Ana só
tem sua eterna expressão de tolice satisfeita; o do Aimée se mascara com seu
melhor sorriso.
— Por que não me falou de sua visita ao governador?
— OH! Sabe? Quem te disse?
— Quero saber por que me ocultou isso.
Aimée suspirou com gesto de resignação. Esteve escutando o diálogo da Ana
e do Renato, tendo estudadas as atitudes, todas as palavras, até aquele gesto de
contrição, até aquele ingênuo balbuciar que outra vez a fazem aparecer como uma
adolescente:
— Renato de minha alma, sou uma estúpida, não faço mais que te desgostar.
Mas me dá tanta pena que por causa de minha irmã brigue com sua mãe. E prometi
a dona Sofia
— O que prometeu?
— Já estou faltando a minha promessa. Prometi me calar. Dona Sofia quer
evitar a todo custo o escândalo, para isso me trouxe para o Saint-Pierre, para que
entre as duas suplicássemos, procurássemos. O velho governador foi amigo de
minha mãe. Dona Sofia pretende que suspendam o julgamento, mas não lhe diga
que eu lhe disse isso, pois me aborrecerá. Jure-me que não me denunciara Renato.
Sua pobre mãe, por amor a ti, e não leve a mal, não quer que seu nome se veja
envolto no escândalo, e quer lhe jogar terra ao assunto. Eu prometi ajudá-la, mas
sou muito torpe, não obtive nada.
— Falou-lhe com governador?
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— Sim, mas não te alarme. Assegurei-lhe que tinha ido por conta própria,
que você não sabia nada, que dona Sofia não sabia nada tampouco, que era minha
conta. Deu-me sua palavra de calar. Convimos em calar todo mundo.
— Então, arriscou-te a receber um desprezo, para nada?
— Para nada, Renato. Mas, de todo modos, mais vale que tenha sido eu, e
não dona Sofia. Asseguro-te que não sei a que lado me inclinar, e estava tão causar
pena com o fracasso, que não me atrevi a voltar para a casa e me pus a passear, a dar
voltas. Tinha tantas vontades de estar em uma cidade! Odeio o campo, Renato. Por
não te desgostar, não te insisti mais sobre esse ponto. Foi um passeio inocente.
Pergunte-lhe a Ana.
Logo que volta a cabeça Renato para olhar a Ana. Com gesto satisfeito, as
mãos sob o branco avental, sorri a aludida, como quem recebe já os parabéns e os
presentes que sabe lhe aguardam confirmar:
— O senhor me perguntou, e eu o disse tudo, todinho, minha ama. Como
você me tem mandado que não diga nunca mentiras ao amo, por isso eu.
— Sim. É o moço que encerraram com o patrão do veleiro. Indevidamente,
sabe? E esta é a ordem que trago para me levar isso Mas antes vou falar com ele, de
modo que abre a grade e nos deixe em paz. Anda.
Obedecendo a triste ao papel selado que o notário Noel pôs sob seus olhos, o
carcereiro franqueia e o leva daquela galeria semi-subterrânea, aonde logo que
chegam as primeiras luzes do alvorada. No patamar que faz às vezes de leito e de
banco, com a jaqueta de marinheiro do Juan como travesseiro, dorme Colibri com
aquele sonho feliz e descuidado, típico nele quando se sente ao amparo daquele
homem, e sacode Juan a formosa cabeça de frisados cabelos, olhando para a grade
que se abre, avançando um passo para reconhecer com esforço a figurinha familiar
que, antes de baixar os escuros degraus, alta a mão em gesto entre cordial e
zombador:
— Bom dia, Juan do Diabo. Lamento na alma voltar a te encontrar em
semelhante lugar.
— Suponho que não terão faltado seus bons ofícios para obtê-lo — augura
Juan com seu habitual sarcasmo.
— Pois vai muito longe a suas hipóteses — replica o notário algo molesto.
— Nada fiz para que lhe apanhassem, e não tivessem podido te apanhar se desde
tempo atrás tivesse feito um pouco mais de caso a meus conselhos, em vez de
desprezá-los.
— Não estou para sermões. Senta-se se quiser, e fale do que venha a me
falar. Suponho que o enviam com alguma proposição. Quem é agora? Dona Sofia?
Renato?
— Mônica do Molnar.
— Ah! — impressiona-se Juan. — E o que solicita minha ilustre esposa? Os
dados para pedir a Roma à anulação do matrimonio? Minha anuência para divorciar-
se? Ou simplesmente a segurar-se de que estou bem encerrado, com dobro reja, e no
lugar mais imundo que pôde achar-se em todo o Castelo de São Pedro? Se for isso,
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pode dar a cumprida. Dele a segurança absoluta de que até o último tripulante do
Lúcifer, todos estamos bem encerrados, e sobre todos cairá o castigo que os
corresponde pelo crime de havê-la cuidadoso com os olhos limpos e o coração
alegre, pelo delito de amá-la e respeitá-la. Que todos, até o pequeno Colibri,
estamos pagando em boa moeda aquela sua estadia no Lúcifer, em que não
pensamos haver incomodado tanto nem ter chegado a ofender até o último extremo
a tão ilustre dama.
— Juan, quer não dizer mais disparates? — Repreende Noel — Quer trocar
esse tom tão injusto e tão desagradável?
— Desagradável? Pode. Injusto? Injusto, sim, é verdade! Não é esse o tom
que devo usar para falar dela. Devo dizer que é a comediante mais refinada, a mais
cruel e vingativa das simuladoras, a mais malvada das pérfidas. Todo isso é minha
muito ilustre esposa! Mas, o que quer por mim? Que mais pretende? Acabe de falar.
Noel!
— Estou esperando que me dê à oportunidade, filho de minha alma —
replica Noel um pouco te sufocado disse que vinha por um encargo, mas não se
refere a ti precisamente. Olha este papel, e vete inteirando.
— Uma ordem de liberdade para Colibri? Aí Ainda lhe subtrai um pouco de
compaixão? A consciência lhe deu um golpe, ou despertou uma parte do espírito de
justiça? Ao menos, salva de todo este a Colibri. Podia havê-lo feito antes.
— Tratou de fazê-lo, e não a deixaram. Nem é ela quem lhes encarcerou,
nem acredito responsável pelo que te passa. Pelo contrário. Está muito desgostada,
terrivelmente desgostada com o Renato pela forma em que ele levou as coisas.
— Já. — despreza Juan, sarcástico — Santa Mônica! OH, tenro coração de
mulher cristã! Ao reprovo terá que queimá-lo com lenha verde para que a fogueira
não goste muito tão depressa e que o tortura dure mais.
Raivosamente há dito Juan às últimas palavras encarando ao Noel, que
retrocede para tomar fôlego, afligido pela violência com que a cólera do Juan estala,
tratando de encontrar em vão a palavra que tem que acalmá-lo:
— Juan. Juan, sempre o mesmo rebelde, sempre o mesmo lobo furioso! Se
por acaso não sabe, quero te dizer uma coisa: vai a um julgamento legal; vão julgar-
te, segundo as leis, juízes imparciais, e não te vai acusar de mais delitos que os que
cometeste em realidade.
— O sequestro da Mônica.
— Não está entre os cargos. Claro que não sei o que dirá ela ante os
tribunais.
— Ante os tribunais? Pensa ir pessoalmente? Essa sim que é uma notícia
extraordinária! Pensei que delegaria em seu ilustre defensor e cunhado, que
procuraria o amável refúgio dos jardins de Campo Real. É ali onde está não é certo?
É ali onde a levou Renato!
— Mônica está em sua casa, e não acredito que se empreste a nada que não
lhe aprove sua consciência. Também faz mal ao saber que Renato é capaz de
comprar um tribunal para que te condene. Embora você não o cries, vão tratar-te
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Pégasus Lançamentos
com justiça, porque Renato é um inimigo leal; ou melhor, dizendo, acredito que
nem sequer é seu inimigo.
— Pois faz mal, porque, depois disto, eu o serei dele com toda minha alma!
Diga-lhe que se cuide que se defenda que ao fim estamos na única forma que
podemos estar: como inimigos claros e francos. E agora.
— Não irei sem o menino.
Ambos tornaram a cabeça. A luz do dia que nasce penetra já pela larga grade
da galera, dando totalmente sobre o moço negro que se levanta do banco de pedra,
enquanto seus grandes olhos assustados vão de um a outro daqueles dois homens.
Mas a voz do Juan ressona imperiosa:
— Te levante Colibri! Recorda ao notário Noel? Vem a te buscar. Esse papel
que tem na mão é a ordem de liberdade. De sua liberdade!
— Para mim? Para mim sozinho.
— Para ti sozinho. E suponho que Santa Mônica pensará que com isso já tem
feito muito.
— Não envenene ao menino. Você o que sabe? — reprova Noel. — Venho a
te buscar em nome de sua ama, filhinho: a senhora Mônica obteve que ponham em
liberdade e quer que te leve a seu lado.
— Sem o patrão? EU não quero deixá-lo, patrão! Deixe-me com você! Eu
não quero ir com ninguém!
— Nem com sua ama que tanto se preocupou com ti? Pois é bem ingrato.
— Não o cria. Noel, simplesmente aprendeu a desconfiar, encarregaram-se
de acostumar-lhe explica Juan. E dirigindo-se ao menino, aconselha-lhe: — Mas
agora não há razão, ao menos para ti. Anda, vê com a Santa Mônica e serve-a como
quando estava no navio. Eu não te necessito aqui, e ela, certamente, cuidará-te bem.
Sempre será um descarrego para sua alma.
— Lamento muito que não queira entender que Mônica não é culpada de
nada — queixa-se Noel.
— De nada? Está você muito seguro. Noel. Poderia assegurar com a mesma
firmeza que rio foram as cartas da Mônica as que moveram ao Renato? Agora quer
amparar a Colibri, seguramente como uma expiação pela imprudente sinceridade de
uma carta que me tem feito parar no Castelo de São Pedro.
— Não conheço bastante a Mônica para poder assegurar o contrário, mas até
sendo assim, não haveria nada que reprovar-se.
— Você não, claro. Mas eu sonhei muito.
— Juan, que tratas de me dizer? — surpreende-se Noel, emocionado.
— Nada! — O toque de uma cometa chega até eles, e Juan adverte: —
Trocam o guarda. Creio que deve você marchar. Se sua permissão não era para me
visitar.
— Era só para recolher a Colibri e, em efeito, devo partir. Dentro de duas
horas estará frente ao tribunal que tem que te julgar, e suponho que não te faltará um
bom advogado.
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Pégasus Lançamentos
Uma onda gigante se apaga na praia, quase sob os pés da Mônica, e logo o
mar parece aquietar-se. A luz do dia que nasce aquela mesma luz que os olhos do
Juan contemplam através das grades de sua galera banha de pés a cabeça o corpo
grácil da mulher que se deteve um instante, cravando as azuis pupilas no largo mar.
Quase lhe parece mentira ter retornado. Está em sua ilha convulsa, na terra que lhe
visse nascer, entre os negros escarpados e a pequena praia que foi tálamo do amor
tormentoso do Aimée e Juan. Por que tornou com anseia a aquele lugar? Que desejo
desesperado, de revolver a adaga em sua própria ferida, a impulso? Que desejo
insensato de matar, à força de martírio, um sentimento que já a afronta, empurra-a
para aquele lugar? Ela mesma não sabe. “Como se com suas mãos santas
empunhasse as cordas do cilício para ferir suas carnes, assim toma aquele
pensamento que a rasga, açoitando nele seus sentimentos, seus sonhos» seu louco
amor pelo Juan. chegou à entrada da gruta e, como antigamente Aimée, é agora ela
quem pronuncia aquele nome, como se o beijasse ao pronunciá-lo:
— Juan. Meu Juan. — Mas reagindo com amargura, repele: — Mas não.
Nunca foi meu. Jamais. Jamais. É dela, da que soube afogá-lo com seu perfume,
da que soube sepultá-lo em sua lama! Só por ela vivia, só por ela esperava.
Tem cansado de joelhos, com o mesmo tremor convulso que um dia
sacudisse ao Aimée naquele mesmo lugar. E, como ela então, deixa correr as
lágrimas amargas.
"Devo esquecer, devo me arrancar do coração sua imagem. OH.
Repentinamente pensou no Renato, — recordou seu antigo amor, que
envenenasse sua adolescência, que lhe fizesse vestir os hábitos, que só é já como
uma sombra sobre sua alma. Não. Não quer ao Renato, quase lhe surpreende pensar
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Pégasus Lançamentos
que algumas vez lhe amou, e sua imagem se apaga, enquanto se faz mais forte a do
Juan, como se levantasse, riscada com caracteres de fogo, do fundo de sua alma.
"Juan, o pirata. Juan, o selvagem. Juan do Diabo.
Mas seus olhos choram sem que ela possa deter essas lágrimas. Por cima de
suas palavras há algo que se crava em seu coração e em sua carne: aqueles braços
estreitando-a, aqueles lábios muito perto dos seus, aquele olhar de ódio ou de amor
que ardia como uma fogueira nos olhos do Juan.
"Amor. Sim. amor pelo Aimée. Seu amor de sempre! Seu amor, que não se
acaba!
Com passo leve, com gesto ondulante, com tenro sorriso, com cálida olhar,
toda ela carne de tentação e de desejo, Aimée do Molnar se aproximou do Renato,
cruzando aquela estadia anexa a quarto, em cujo rincão, sobre uma velha mesa,
amontoou Renato nota e papéis, desdenhando os delicados frios, a garrafa de
champanha entre o cubo de gelo derretido, perfumada-las frutas e as saborosas
geleias às que não parece ter emprestado a menor atenção.
— Meu Renato, até quando?
— Por favor, me deixe acabar.
— Mas acabar, do que? Passaste a noite sentado frente a esses papéis sem
fazer mais que relê-los e olhá-los.
— À noite? — murmura Renato desconcertado. — Sim. Claro. É incrível.
Passou a noite já, e hoje é de dia.
— Dá-te conta de que passei a noite te esperando? — insinua Aimée com
uma queixa mimosa.
— Me desculpe. Já te adverti que tinha muitas coisas do que me ocupar.
Suponho que você sim te terá deitado e haverá adormecido algo, não? Perdoe-me.
Não me dei conta de que passava o tempo.
— Renato, aonde vai?
— Onde tenho que ir a não ser a me banhar, a me barbear, a me trocar de
roupa? Como estou não posso me apresentar nos tribunais.
— Vai aos tribunais? Podia fazer que te representasses. Se for
pessoalmente, farão-lhe acontecer um momento horrível. Você tem direito de
enviar um advogado em seu lugar. Por que não manda ao Noel, por exemplo?
— Noel não sabe nada deste assunto. Nem interveio, nem eu desejo que
intervenha, sem contar com que, provavelmente, não aceitaria a comissão. Sente
muita simpatia pelo Juan.
— O que pode importar isso? Não é você quem lhe paga?
— Não pago sua consciência, Aimée. Seu coração e seus afetos lhe
pertencem totalmente.
— Já. Tem medo de que não aperte bem os grades. Está muito empenhado
em fazer condenar ao Juan. Pobre Juan!
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Capitulo 14
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pessoal que tem comigo Juan do Diabo o que me tem feito acusá-lo, denunciá-lo,
promover sua extradição e pô-lo, ao fim, ante este tribunal. É meu dever
indeclinável, é minha situação de cidadão da Martinica, e de chefe de minha família,
co-sanguínea e derivada, o que me há obrigado a assumir a atitude que hoje
apresento. O homem a quem acuso pertence a ela por razões de enlace matrimonial.
Isso, todos sabem. Antecipando-me às insinuações maliciosas, às alusões veladas, às
meias palavras, proclamo também ante este tribunal que não ignoro, e ele sabe que
outros laços de sangue nos atam. Minha declaração é insólita, e muitos julgaram
que improcedente e até indecorosa. Muitos julgarão que deveria eu calar o que a
meu passo todos murmuram, o que a minhas costas todos comentam, o que não é
um segredo para ninguém, o que, a pesar dele, enche desde os primeiros momentos
o pensamento dos senhores magistrados e de quantos se acham presentes neste
tribunal. Já que todos o pensam, prefiro eu dizê-lo sem hesitações: Juan do Diabo é
meu irmão.
— Silêncio! Silêncio. — ordena o presidente agitando furiosamente a
campainha em um vão intento de sossegar os murmúrios, as exclamações e o
alvoroço que as palavras do Renato levantaram na sala.
— Mas esqueçamos este detalhe, trincada a arma que alguns pensavam
esgrimir contra mim — prossegue Renato dominando a situação. — Considero o
Juan um sujeito indesejável em nossa ambiente e comunidade: rebelde e violento,
briguento e audaz, desrespeitoso das leis, gozador dos regulamentos, e,
lamentavelmente, de baixa qualidade moral. Não sou eu quem vai afirmar o, a não
ser as testemunhas que um a um vão apresentar se ante este tribunal. Testemunhas
das tristes façanhas do Juan do Diabo. Da tripulação desse navio que só serve para
transportar contrabando e carga roubada, até o pequeno Colibri, arrancado de mãos
de seus parentes com o pretexto sentimental de não ser bem tratado. Antes de
prosseguir minha acusação, peço a presença da primeira testemunha ante este
tribunal.
— Me valha Deus! O que é isso Ana? — pergunta Aimée assustada.
— Pois o que vai ser minha ama? A gente. — explica Ana calmosa. —
Quando estávamos abaixo e você andava perguntando, eu apareci pela janela, e ali
estavam todos: o juiz, os guardas, Juan do Diabo e o senhor Renato, fala que te fala.
Pálida, ofegante, toda nervos e excitação, cruza Aimée com seu rápido
passado uma daquelas galerias que servem de ante sala ao salão dos tribunais.
Apesar de sua audácia, treme; por cima de sua determinação, há em suas frescas
bochechas uma palidez estranha; os olhos, assustados, olham a todas as partes, e só
é um sedativo para sua excitação terrível a plácida calma com que Ana sorri dando
voltas e voltas a seu comprido colar, entre seus dedos cor tabaco.
— Se tiver começado já o julgamento, não haverá tempo de nada.
— Pois claro que há tempo, minha ama. Não se mortifique tanto. Você deixe
que vá ao julgamento e que digam e digam até que se cansem. O governador o
arruma a você tudo, tudo, tudo.
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Do resto, não sei absolutamente nada, pois ignoro até os motivos do processo.
Responderei quando me perguntarem, e nada mais.
— Juan do Diabo é inocente; tem cansado em uma armadilha, em uma
cilada! Todos estão contra ele! O governador me tinha prometido me ajudar, mas
não quis inimizar-se com as gente poderosas que querem perder ao Juan por
motivos particulares. É um assunto pessoal, absolutamente alheio à justiça, o que
tem feito ao Renato D'Autremont acusá-lo. É preciso que me você ajude a salvá-lo!
— Mas, como? Em que forma?
— Às vezes, uma palavra salva.
— Não será a minha, por desgraça. A sorte do julgamento depende outras
testemunhas, não de mim, senhorita. Há, por — exemplo, um homem com o braço
ainda entalado. Acredito que foi vitima de uma agressão. Certamente o que ele diga
terá peso, como o terá a declaração do moço que, conforme dizem sequestrou.
Também há alguns pequenos comerciantes, acredito que prejudicados por ele. Já
lhe digo, sou o menos indicado.
— Eu preciso falar com todos esses! Escute-me. Você não vai negar-me um
favor insignificante.
Apoiou sua mão suave e cálida no braço do oficial, e o perfume sutil que
impregna sua pessoa chega até o jovem envolvendo-o com uma morna sensação que
debilita sua vontade. Com angústia, olha a todos os lados, fixando logo os olhos
naquelas muito belos pupilas de mulher cravadas nas suas como lhe hipnotizando.
Charles Britton sente desmoronar-se seu fortaleza. E compreendendo-o assim,
Aimée insiste lisonjeadora:
— Confio em você. O coração me diz que devo confiando. É minha boa
estrela a que o tem feito aparecer. Você pode fazer chegar alguns recados de minha
parte às testemunhas dessa sala.
— Não, não, impossível! — protesto o oficial confundido.
— Não diga essa palavra tão dura, não mate assim minhas últimas
esperanças. Só duas coisas. Embora não sejam a não ser duas coisas. Você ponha
este dinheiro em mãos do homem do braço entalhado e diga em seu ouvido a ordem;
Terá que salvar ao Juan do Diabo! Também pode fazer chegar às mãos do Juan um
papel de minha parte.
— Não é possível! Está estritamente proibido, tenha em conta que eu, menos
que ninguém, por minha qualidade de oficial, e de oficial estrangeiro.
— O que lhe importam as leis da França? — refuta Aimeé com tenra
insinuação. — Além disso, não lhe estou pedindo que faça nada, absolutamente
nada público, a não ser particular. O papel que quero que faça chegar a suas mãos,
em privado. São sozinhos umas linhas. Umas linhas para sustentar seu ânimo.
Justamente aqui trago um troto de papel. Se tiver você um lápis.
— Sim, aqui o tenho. Mas. — vacila o oficial.
— Empreste-me isso um instante. São umas linhas. Alguém delineia nada
mais, mas essas delineia vão lhe dar forças, trocarão seu ânimo. Estou plenamente
segura que depois das ler. — Há arrebatado o lápis da mão vacilante do oficial, tem
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Pégasus Lançamentos
escrito umas breves delineia a toda pressa, dobrou logo o papel em quatro, dobras,
fechando ela mesma, com a doçura de seus medos vê, a mão que se nega a tomá-lo,
ao tempo que suplica: — Sei que achará você à forma de que Juan leia isto antes
que comece a declarar. E sei também que fará você o que lhe digo.
— Se seu empenho for tão grande. Mas o certo é que eu. Eu. — gagueja
confuso o oficial.
— Você terá minha gratidão, para sempre — insinua Aimée provocadora. —
para sempre e em todo lugar, terá você em mim uma amiga. Uma amiga para tudo.
Acredita-me isso oficial. Seus nome é?
— Charles. Charles Britton, para servi-la. Mas. — detém-se um momento
e, com vivo interesse, pergunta. — E você, senhorita? Posso saber com que nome
devo recordá-la?
— Saberá muito logo. Confio em seu cavalheirismo. Confio até o extremo
de lhe dizer algo com o que me jogo até a vida. Me recorde como à mulher que dá
seu sangue pelo Juan do Diabo!
Capitulo 15
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Bourg, Goyavé e Capesterre. Esses produtos foram subtraídos dos próprios imóveis
que esses homens tinham regado com seu suor, faziam frutificar com seu sangue.
— Pretende justificar o roubo?— quase tábua delgada o presidente ao tempo
que agita nervosamente a campainha para sossegar os fortes murmúrios que as
palavras do Juan despertam na sala.
— De maneira nenhuma. Excelência. Só para os cargos deste tribunal, foram
ladrões os pequenos colonos que tiraram sua mercadoria depois do embargo que
totalmente lhes arruinava. Para mim, o roubo foi dos que compraram colheitas à
quarta parte de seu valor, dos que fizeram assinar notas promissórias com cifras três
vezes mais altas do dinheiro emprestado. Vocês acusam a meu navio de levar
mercadoria roubada. Eu acredito que a verdadeiro roubo, foi adquirida pelos ricos
traficantes do Petit-Bourg, Goyave e Capesterre a preços irrisórios e com usura
desumana. E quanto ao último cargo que me faz. Qual é esse último cargo? O
sequestro de Colibri?
— Incluso no chegou o momento de ouvir seus descargas sobre o sequestro
do moço. Agora é preciso fazer constar em ata que reconhece ter transladado e
vendido mercadoria da Guadalupe ao Martinica, a costas das autoridades portuárias.
Sua declaração o admite plenamente, e o descarrego moral podem tomá-lo em
conta, se quiserem, os senhores do jurado. Está, pois, provado o segundo cargo.
— Ficam provados todos os cargos, se todos forem como esse. Sim, sim,
senhores magistrados, sim, senhores jurados, ajudei a liberar a pequena parte que
arrancavam das garras de seus opressores os desventurados lavradores do
Guadalupe, defraudando aos ricaços cujas panças engordam a costa da miséria e da
dor de outros. Ajudei a roubar ricos carregamentos arrancados à miséria, à
ignorância e ao desamparo de muitos desventurados. Sem permissão, transladei
passageiros, facilitando a fuga dos trabalhadores escravizados por contratos
desumanos. Em mais de uma ocasião aliviei de sua bota de cano longo aos fartos de
tudo, acaso confiando em que tinham roubado bastante para que não fosse pecado
lhes roubar a eles algo. Passei mercadoria de contrabando me adiantando às
Alfândegas, nas que conheço implicados o bastante venais para que, um
contrabandista que expõe sua vida nos mares, não faça nada mais que tomar à
dianteira.
— Basta. Basta! Está louco? — tenta calar o presidente hasteando
furiosamente a campainha, pois os murmúrios vão subindo de tom cada vez mais.
— Estou dizendo a verdade — prossegue Juan. — E quanto ao sequestro de
Colibri. Onde está ele? Por que não o trazem? Não quero ser eu o que fale. Deixo a
palavra a ele mesmo, e deixo a Deus a missão de julgar a esses que se chamam
parentes, a esses de cujas garras pude liberá-lo. Peço, exijo a presença de Colibri.
— Hei dito que basta acusado! As testemunhas serão chamadas na ordem
que se indica. Meirinho, faça comparecer ao próxima testemunha!
— A próxima testemunha! — ouve-se gritar uma voz longínqua. — o
tenente Charles Britton, das Reais Força Britânicas.
— Exijo a primeiro Colibri — insiste Juan.
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— Bem. Senhor acusador privado, peço-lhe que ocupe seu lugar — ordena o
presidente. — Esse menino, à sala de testemunhas. Sentem-se no estrado, ou farei
limpar a sala! Que passe a terceira testemunha da acusação!
Mônica retrocedeu olhando ao Juan. Desde que entrou, teve o desejo quase
irresistível de correr para ele, de jogar-se em seus braços esquecendo-o tudo, menos
a enorme verdade que enche sua alma. E ele também a olha, cruzados os braços; a
olha como se também a desafiasse, empalidecendo um pouco mais quando Renato
D'Autremont a tira do braço, quando a faz retroceder, obrigando-a a tomar assento
muito perto dele, quando se inclina para lhe falar quase ao ouvido, em voz baixa,
como em um cochicho:
— Mônica, não pensei que chegasse a este extremo.
— Não vais deter-me, faça o que faça Renato. Meu dever é estar junto ao
Juan.
— Tenho-me proposto te resgatar, até contra ti mesma, e tenho que obtê-lo.
Quando for absolutamente livre, fará o que queira, e bem sei que não voltará com o
Juan
— É meu marido, e enquanto exista esse laço, pertenço-lhe. Os sentimentos
não me importam.
— Por isso quero romper esse laço! Mas agora, cala Mônica. .
Mônica eleva a cabeça com angústia. Frente ao presidente, o jovem oficial
levanta a mão para jurar e, entre os guardas que o custodiam, a olha desde longe
Juan com uma máscara de rancor sobre o semblante, com um tremor de raiva nas
largas mãos.
— Limitarei-me ao relato dos fatos, senhor presidente — expõe o Tenente
Britton. — Encarregado de fazer cumprir a ordem de extradição, prendendo ao
acusado Juan do Diabo e levando-o a bordo do guarda costeira Gallón até entregá-lo
às autoridades que representa este tribunal, pus todo meu empenho no cumprimento
desse dever. Acaso o acusado tenha razão para qualificar de duros os meios
empregados para detê-lo, mas a única advertência dos parte oficiais era que se
tratava de um criminoso extremamente perigoso, e meu primeiro dever era proteger
a segurança dos soldados a meu cargo. Outros dois tripulantes do veleiro Lúcifer
fizeram resistência, e foram encerrados com seu patrão. Estou-me referindo ao
segundo, renomado Segundo Duelos, e ao grumete chamado Colibri. Por elementar
dever de humanidade baixei pessoalmente a abrir a adega em que estavam
encerrados quando, decompostas as máquinas, arrastados pelo temporal até mares
perigosos, perdido o timoneiro e ferido o capitão, o Gallón chegava ao maior perigo
de naufragar.
— Então, pôs você em liberdade aos prisioneiros?
— Dentro daquele navio, a ponto de afundar-se, foi preciso assumir a
absoluta autoridade e, sob responsabilidade própria, deixei-lhes livres.
— Você sabia que se tratava de marinheiros acostumados. Não lhes
prometeu nada em troca de que se fizessem cargo de tripular o guarda costeira?
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— Que quis pagar, e cujo pago você não aceitou! — refuta Juan sem poder
dominar um acesso de ira. — por quê? Para que? A que veio tanta hipocrisia?
— Guarde silêncio, acusado! — impõe o presidente — Silencio. Continue o
senhor acusador privado.
— E um a um provarei todos os cargos que contra ele se lançaram —
prossegue Renato com mais calma e amargura — pedindo no ato, a este tribunal,
que compareça a quinta testemunha e que seja lida, ante ele, a ata em que lhe
acusam de sequestro, para que seja corroborada pelas declarações do moço.
— Quinta testemunha da acusação! O menino conhecido por Colibri —
chama o secretário. Diga seu nome, sobrenome, idade e profissão.
— Prescindamos de formalismos por esta vez, senhor secretário — terça o
presidente. — O moço, conforme parece, não tem sobrenome, e o mais provável é
que não recorde seu idade. Sendo certamente menor dos dezoito anos, não pode
emprestar juramento. Faça constar na ata que sua declaração é a todo risco. Promete
dizer a verdade, moço? Não tem outro nome mais que o de Colibri?
— Colibri me chamou o patrão, senhor presidente, e Colibri me chamam
todos no Lúcifer.
— Quer dizer que antes não lhe chamavam isso? Qual é seu nome? Antes
que te levasse Juan do Diabo, como lhe chamavam?
— Chamavam-me ocioso, negro sujo e cão sarnento.
— Esses não são nomes! — rebate o presidente.
— Pois assim me chamavam senhor presidente. Cada um como lhe dava a
vontade, e com cada grito, um pau ou uma patada por que não andava ligeiro. Era
muita a lenha que terei que carregar para o forno do alambique.
— Silêncio! — insiste o presidente tocando a campainha para aplacar os
murmúrios que sobem de tom. — Secretario, dê leitura à ata.
E o secretário, obedientemente, lê:
— "Na cidade do Port Morant, ante o notário William Godman, os abaixo
assinantes declaram: Primeiro: Ser absolutos proprietários de um imóvel de cem
cordas que se estende da margem esquerda do rio Morant até o monte chamado
Yallhs Hill, todos eles terrenos cultivados com plátano, tabaco e cano. Segundo:
Que contam, para a ajuda de certos trabalhos no alambique que possuem e exploram
em dita propriedade, com vários moços, um deles parente próximo, recolhido e
criado na casa, por ser órfão de pai e mãe. Terceiro: Que este moço, a cargo total de
seus tutores, da raça negra, estatura regular, aproximadamente de doze anos de
idade, desapareceu uma manhã, embarcando pelo porto do White Horses no veleiro
chamada Lúcifer, levado até ela com enganos, ou acaso pela violência, pelo patrão
da mesma, apelidado Juan do Diabo. Também asseguram que o chamado moço,
dando provas de sem igual ingratidão para os que lhe tinham amparado, cooperou
ao sucedidos sequestro obedecendo à voz do Juan do Diabo, em lugar da de seus
parentes, quando estes foram para buscá-lo. Quarto: Que o chamado Juan derrubou
a murros aos que quiseram entrar no acréscimo em busca do moço, fazendo levantar
as âncoras e partindo do porto do White Horses, sendo inúteis até a data seus
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denuncias e demandas. Que, além disso, e por pura maldade, Juan do Diabo
disparou contra as barricadas de rum propriedade dos assinantes, que aguardavam
no mole do White Horses para ser embarcadas, fazendo que o líquido se derramasse,
com uma perda de mais de cem libras esterlinas, e lhes gritando as piores injuria,
com as que provocou uma insubordinação entre os outros moços, com grave
prejuízo da ordem e a disciplina no imóvel de sua propriedade. E assinam Burke,
George e Jacobo Lancaster, com quatro testemunhas que dão fé, vizinhos
proprietários da duvidem do Port Mprant, e a assina do notário autentificando o
documento, William Godman. Hei dito.
— Ouviste moço? — adverte o presidente. — recorda se reconhece ter sido
sequestrado pelo chamado Juan do Diabo?
— Eu fui com o patrão. Eu lhe pedi que me levasse. Por culpa minha se
danificou uma barrica de rum, e me foram matar a pauladas. Escapei-me morto de
medo. Não sei nem como pude chegar, e me caí na praia quando vi que ainda
estava ali o Lúcifer. Então, o patrão me levou dentro, e não sei que mais passou.
— O cargo de sequestro fica totalmente provado — assinala Renato.
— Eu fui com ele! — insiste Colibri. — Eu lhe pedi que me levasse. Iam-
me matar. O patrão era bom comigo. Diga-lhes como foi. Diga-lhes você, patrão,
lhes diga por que me escapei de lá.
— Silêncio! — clama o presidente por enésima vez. — Tem algo que dizer
em sua defesa, acusado?
— Nada, senhor presidente — responde Juan destilando ironia. —
Tampouco acredito que seja necessário dizer nada em defesa do moço. Ia pagar com
sua vida a perda de uma barrica de rum. Eu derramei o conteúdo de dez barricas, e
não permiti a entrada de intrusos em meu navio. Não há nada que acrescentar em
minha defesa. Que procurem o que acrescentar às suas as autoridades do Port
Morant, que toleram coisas como as que acabam de escutar às mesmas portas de
uma cidade civilizada.
— Tem algo que responder a essas palavras o senhor acusador privado? —
indaga o velho presidente voltando-se fada Renato.
— Não acredito que se trate senhor presidente, de discutir injustiças sociais
com o acusado, mas sim de provar sua responsabilidade nos fatos de que lhe acusa.
O fato, nem ele mesmo o nega:
Destruiu voluntariamente uma propriedade alheia, levou-se a um moço de
doze anos sem autorização de ninguém, contra a vontade dos únicos que se
declararam seus parentes, dos que lhe tinham devotado amparo de uma infância tão
tenra, que nem o próprio interessado recorda outro lar que a casa dos Lancaster.
— Na casa dos Lancaster, Colibri não era mais que um escravo — rebate
Juan. — Sim, um escravo, mesmo que as leis do país tenham abolido já o infame
tráfico. Não acredito na existência desse laço de sangue que dizem une a seus
verdugos. Eram perto de uma dúzia de moços, órfãos ou abandonados por seus pais,
os que dormiam amontoados no fundo de uma barranco imunda, os que se
alimentavam com sobras que os cães podem desprezar os que eram obrigados a
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Pégasus Lançamentos
trabalhar até além de suas forças de meninos, os que só recebiam golpes, injúrias e
maus entendimentos em troca de seu trabalho. Mas, naturalmente, eu não era mais
que um intrometido, isso não me importava nada.
— Pôde te importar e proceder de outro modo — observa Renato. — Com
uma denúncia às autoridades.
— Evidentemente o senhor acusador privado tem razão apoia o presidente.
— Quão feitos você refere são lamentáveis, mas não lhe autorizavam a converter-se
em juiz e executor de uma justiça pessoal sem ter acudido antes a essa justiça legal
que tão duramente criticou.
— Tivesse sido inútil, senhor, presidente — despreza Juan com seu habitual
sarcasmo. — Os Lancaster são pessoas muito bem olhadas no Port Morant, pagam
altas contribuições e possuem luxuosas carruagens. Não, não imaginem como
bárbaros, golpeando a este menino com suas próprias mãos. Eles são incapazes de
uma ação repugnante. Para isso têm seus capatazes, seus capatazes, seus cães a
salário. Para isso dão absoluta autoridade a rede aos que governam a seus
trabalhadores. E se um desgraçado destes morre, importa pouco, porque ninguém
vai reclamar para saber se foi o paludismo ou a fome, os golpes ou uma indigestão,
o que o mataram. Eles são cavalheiros e vivem como tais. Não podem chegar até
eles à denúncia de um patrão de veleiro, pontuado de briguento, de contrabandista e
de pirata. Estão tão altos na bela a Jamaica, como Renato D'Autremont na
Martinica! Só um imbecil perderia o tempo denunciando-os!
Juan cravou no Renato seu olhar de fogo, como aguardando uma resposta
que não chega que não pode chegar. E Renato respira contendo-se, sentindo que é
menos firme o chão que pisa, que dos bancos do povo baixo chega até ele uma
comentei hostil, violenta, a ponto de estalar, até que a mão do presidente se eleva!
— O que você diz não tem sentido, acusado! Bem claro diz essa denúncia
que o moço em questão é parente dos Lancaster.
— Parentes de empregados dos Lancaster. É a fórmula usual para empregar
meninos nos piores trabalhos. Estão com seus parentes, segundos tio ou terceiros
primos. Acaso simplesmente lhes reconhecem como adotados. Que mais dá? A
fórmula é perfeita: paga-se a um desalmado qualquer que ofereça uma equipe de
moços. Pouco lhe custa dizer a este que são de sua família, e os amos não têm nada
que perder. Muito cômodo para os Lancaster.
— Peço a palavra, senhor presidente, para uma questão de ordem —
intervém Renato. — Não acredito que interesse a este tribunal a forma de
administração que têm os senhores Lancaster na ilha da Jamaica, nem outros
senhores nas ilhas vizinhas, nem mesmo na própria o Martinica. Cada um governa
sua casa como lhe agrada, e lá todos os quem, Estamos aqui para provar os cargos
que lancei contra Juan do Diabo, e um a um vão provando-se. Senhor presidente,
peço você faça constar em ata, que o cargo de seqüestro e destruição de propriedade
alheia está plenamente provado!
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Pégasus Lançamentos
respaldo das leis da metrópole, com a justiça, o direito e o apoio das instituições,
não segundo o capricho, mais ou menos sentimental, do primeiro ressentido que se
eleva em rebeldia, só porque a sociedade o teve sempre à margem.
"Peço, senhores do jurado, piedade para o Juan do Diabo, mas maior piedade
ainda para a sociedade cujos alicerces escava. Seus pecados podem absolvê-los o
coração, mas suas faltas devem ser castigadas, devem ser sancionadas, devem ser
perseguidas e evitadas, nele e em quantos pretendam seguir seu exemplo, como
parecem querer segui-lo todos os homens de seu navio e até esse menino de doze
anos a quem bem pudéssemos chamar o adotado do Diabo.
"É absolutamente preciso lhes fazer compreender, ao acusado e a todos, que
nenhum homem é mais forte que as leis, que nenhum cidadão, se por acaso sozinho,
pode destruir o que há estabelecido a vontade de milhões de cidadãos, que não é a
violência privada o caminho de reparar a injustiça, que ele não pode impor uma
sanção caprichosa como no caso da destruição das barricas de rum dos senhores
Lancaster, porque isso não se chama justiça, chama-se vingança, e este tribunal não
pode respirar esses procedimentos, a não ser, pelo contrário, lhes pôr reserva,
terminar com eles, cortar toda possibilidade de que coisas assim voltem a repetir-se,
por meio de um castigo justo, enérgico e adequado para o quebrantador de todas as
normas, para o acusado, Juan do Diabo. portanto, peço a este tribunal, para o
acusado.
— Não! Não, Renato! — interrompe-lhe Mônica aproximando-se dele,
completamente fora de si. — Que não seja você. Que não seja sua boca. Que não
sejam seus lábios os que peçam o castigo do Juan!
— Silêncio. Silêncio! — enfurece-se o presidente. — Basta! Vou fazer
limpar a sala! Senhora Molnar, em sua qualidade de testemunha, você permaneceu
indevidamente nesta sala. Passe em seguida ao departamento de testemunhas, ou
será detida por desacato à autoridade.
— Isso não! — protesto Renato.
— Nem ela nem ninguém pode interromper desse modo a ordem de um
julgamento. Falará com seu tempo, quando for interrogada. E se tiver que dizer algo
em favor do acusado.
— É o homem mais generoso da terra! Se vocês representarem à justiça, não
podem condená-lo!
Um grito unânime escapou que as tribunas do povo. Magistrados e jurados
se puseram de pé; os guardas cruzam os fuzis detendo o público que pretende saltar
ao estrado. Incapaz de conter-se por mais tempo, Mônica está frente ao tribunal,
aproxima-se do Juan, volta-se para o Renato. A um enérgico gesto do presidente,
uma mulher vai aproximar-se o, mas não se atreve a tocá-la. Detém-se frente a ela,
imóvel como todos, e se apagam os murmúrios e as vozes com o repentino e
violento interesse de escutar suas palavras:
“Senhores magistrados, senhores jurados, vocês não podem condenar ao
Juan! É preciso que os que vão julgar lhe não cometam contra ele uma nova
crueldade. Pelo amor de Deus, me escutem. ides castigar o por ser generoso? Por
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Pégasus Lançamentos
sentir piedade? Por defender aos que nada têm? Por ser o apoio dos desamparados?
Não! A justiça não pode lhe castigar por lutar, defendendo sua própria vida e a de
outros desgraçados, por ajudar a burlar consciências desumanas, por dar amparo a
um menino fugitivo, por ferir um malvado em legítima defesa, que esse é o caso de
Benjamim Duval.
— Senhora Molnar, basta. Basta! — desaprova o presidente. — tomou você
o papel do advogado defensor, e em nenhum caso podemos ouvi-la nesse tom. Não
é para escutar argumentos, a não ser feitos, para o que este tribunal lhe concede o
direito de falar.
— Em seguida chegarei aos fatos, senhor presidente. Só queria suplicar aos
senhores do jurado que fossem menos cruéis com o Juan do que o destino foi com
ele desde menino. Pelo resto, suas faltas, seus delitos, os cargos de que lhe acusa
ocorreram em sua major parte em outros países e sob outras leis.
— A testemunha esquece que os principais cargos são: além de sua rixa com
Benjamim Duval, o descumprimento de sua promessa de lhe seguir pagando uma
indenização mediante a qual retirou ele sua demanda — recorda o presidente. — O
abuso de confiança que significa tirar do porto um navio embargado antes de
satisfazer a dívida que o detinha a disposição do que hoje o acusa: o senhor Renato
D'Autremont e Valois. —
— Justamente ia chegar a esse assunto, senhor presidente — interrompe
Mônica. — A forma em que Juan foi detido, a severo incomunicação em que até
agora esteve, me impediram de cruzar com ele uma só palavra, lhe participar algo
que seu desinteresse, seu verdadeiro desprezo ao dinheiro lhe fez ignorar: a mulher
com quem se casou em Campo Real conta ainda com alguns bens de fortuna. Um
dote modesta. Com ela garanto a este tribunal o pagamento dessa dívida. Faço
promessa solene, aos credores aqui pressente, de abonar até o último centavo, e
espero que com isso seja bastante para deixar sem lugar o cargo de abuso de
confiança.
— Posso fazer uma pergunta à testemunha? — inquire Renato.
— Só queria perguntar à testemunha, lhe recordando antes que declara sob
juramento, se foi também por causa da bondade do Juan do Diabo que pediu ao
doutor Faber escrevesse a sua mãe pedindo ajuda, apoio, auxílio para escapar do
veleiro Lúcifer, aonde era retida contra prescrição facultativa, apesar de estar
gravemente doente.
— Jamais pedi ao doutor Faber que escrevesse nessa forma, nem a minha
mãe nem a ninguém — rebate Mônica com energia. — Só quis lhe fazer saber que
ainda vivia. Juro que essa, e só essa, foi minha súplica para o doutor Faber.
— Admitamos que o médico obrasse por iniciativa própria, que a dor e o
abandono de uma compatriota, levada a seu pesar naquele barquinho miserável,
comoveu-lhe ao extremo de ir além do que lhe rogasse. Não são acaso feitos o
bastante claros para desmentir a pretendida bondade do Juan do Diabo?
— Só guardo gratidão para ele durante essa viagem. A sabendo aceitei sua
pobreza. E nenhum tribunal pode acusá-lo se eu não o acuso ninguém pode
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Pégasus Lançamentos
sustentar contra ele uma demanda que eu rechaço. Considero-me devedora de uma
profunda gratidão para o acusado, e em nome dessa profunda gratidão.
Calou, sentindo que as forças lhe faltam, mas uma firme emano varonil a
sustenta. Junto a ela está Renato que, aproveitando o instante, volta-se para tribunal:
— É profundamente doloroso para eu obrigar à testemunha a tocar assuntos
íntimos; é lamentável ventilar ante um tribunal público o que só corresponde à
honra e à dignidade dos que são já membros de minha família; mas quando se chega
a um extremo tal, terá que apurar até a última gota do gole mais amargo.
Publicamente, e assumindo de novo o cargo de fiscal no que fui interrompido, peço
aos senhores do jurado um veredicto de culpabilidade para que o presidente deste
tribunal aplique a sanção mais severa que marque a lei para os cargos provados e
confessados pelo próprio acusado, e comprovados pelas testemunhas que acabam de
declarar. Peço a maior pena que o código acautele, para amparo desta sociedade a
quem ele amaldiçoa e ataca, para exemplo dos que queiram seguir seus rastros, e em
proveito da mulher a quem, por desgraça, eu mesmo pus legalmente em suas mãos.
Se ela, em sua infinita nobreza, insiste em ser uma esposa leal, eu peço aos senhores
jurados e aos senhores magistrados que me ajudem a reparar meu grande falta, para
poder seguir me sentindo um homem honrado.
Um silêncio solene seguiu às palavras do Renato. Sem forças para lhe deter
pela segunda vez, Mônica se afastou uns passos. Agora está muito perto do Juan,
mas logo que pode olhá-lo; há um torvelinho que parece girar ante seus olhos, um
golpear de martelos que atormentam sua cabeça. Outra vez, como naquela terrível
viagem até a costa, acredita viver um pesadelo infernal, e para ela, as vozes, mais
que soar, estalam, penetrando-a com cem dardos dá angústia estalando como
chicotadas.
— O acusado pode falar em sua defesa ou aceitar a defesa de ofício que este
tribunal lhe proporcionou — manifesta o presidente.
— Dou as graças ao defensor e ao tribunal — despreza irônico Juan. —
Minha única defesa seria negar a verdade, e não tenho que negá-la. Pouco valem as
razões que pude ter para fazer o que fiz, conforme afirmou a eloquência do senhor
acusador privado. Eu desprezo o dinheiro, desprezo-o e o odeio com toda minha
alma, ou ao menos o desprezei até agora. Talvez por asco de ver que é o preço de
tudo, talvez por causa da repugnância de olhar aferrar-se a ele aos que o têm, e
voltar mais insaciáveis quanto mais ouro se amontoa em suas arcas. Não perguntei
por seu dote ao que me deu por esposa a Mônica do Molnar. Os homens de minha
classe não nos casamos com os dotes, a não ser com as mulheres. E se todo este
processo, tal como acaba de declarar Renato D'Autremont, não tem mais objeto nem
finalidade que me arrebatar à mulher que legalmente me pertence, eu lhe respondo
que não o obterá jamais, a menos que pague a um assassino para me matar!
— Silêncio. Silêncio! — grita o presidente por cima do vozerio que se
desencadeou ante as palavras do Juan. — Suspende-se a vista. Vinte minutos de
recesso antes de ouvir as testemunhas de descarrego. Limpem a sala!
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Pégasus Lançamentos
Juan se tornou em vão para a Mônica. Dois guardas lhe fecharam o passo,
outros dois lhe empurram pelo comprido corredor. Em suas mãos está ainda o
dobrado papel que Charles Britton lhe desse ao declarar. Enquanto parte entre
quatro fuzis, abre-o e o lê com ânsia. São só umas palavras, loucas e apaixonadas
palavras de amor, que lhe estremecem lhe fazendo duvidar. É uma letra de mulher,
de comprimentos e nervosos caracteres desiguais. Não há um signo, não há uma
assinatura, não pode recordar se tiver visto antes essa letra, mas o sutil aroma de
nados que exala o papel é como um relâmpago repentino em sua memória, e o
amassa com raiva, deixa-o cair e, como um sonâmbulo, deixa-se levar.
Mônica seguiu os passos do Juan. Escapou às mãos do Renato, esquivou ao
meirinho o que tenta detê-la. Corre ansiosa, com o desejo de alcançá-lo, de cruzar
com ele embora seja uma palavra, uma só palavra. Mas chegou tarde. A porta
cravejada se fechou depois do último guarda, e ela se volta vacilante, como se
despertasse, afogada pelo tumulto de sentimentos que a envolvem. Muito perto da
porta espremeu uma pequena parte de papel, que recolhe com ânsia. Sim, agora
recorda, agora está segura: viu cair esse papel das mãos do Juan, enquanto corria em
vão por alcançá-lo, e treme pensando que possa ser uma mensagem, uma palavra.
Para ela acaso?
Tem-no lido, uma e outra vez. E quase não compreende, Ao fim, sua mente
se esclarece. Recorda aquela letra, conhece demasiado bem aquele perfume de
nados que, lhe crava na garganta, e murmura em um gemido de infinita desolação:
— Do Aimée para o Juan. Para o Juan. .
Pouco a pouco, todos vão retornando. Mais grave e carrancudo o presidente
do tribunal, mais aborrecido e despreocupado o velho secretário, mais nervosos e
inquietos os doze homens, escolhidos entre todas as classes sociais, que formam o
jurado.
— O tribunal. Reata-se a audiência — anuncia o secretario.
Mônica chegou também, trêmula e pálida, e cravando nela um olhar de
profunda e dolorosa recriminação, cruza Renato até chegar ao centro do estrado. Há
uma fera determinação em toda sua atitude, como uma brusca reação exterior à
desolação de sua alma, e é como um incentivo, que se cravasse lhe torturando,
aquele velho orgulho dos D'Autremont e dos Valois que corre misturado em seu
sangue.
Em silêncio, chega Juan. Também, como Renato, parece mais sereno e mais
pálido; há nele um gesto de determinação desesperada. Gesto que, nos rostos
distintos, marca, como um selo indestrutível, seu inegável parecido de irmãos.
— Antes de dar passo às testemunhas de descarrego — adverte o presidente
— pergunto por segunda e última vez ao acusado Juan do Diabo: Deseja ser
assistida pelo defensor de ofício que lhe outorga este tribunal?
— Não, senhor presidente.
— Bem. Que passem as testemunhas de defesa.
— Testemunhas de defesa: Segundo Duclós Panart. — chama o secretário.
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marinheiro, podem mandar repreender e castigar. Não tirei colibri da Jamaica para
que seguisse sendo um escravo. Era-o em casa dos Lancaster. Cem vezes posso
assegurá-lo, e Segundo Duelos, que jurou dizer verdade, pode afirmá-lo. Quando
viu pela primeira vez a Colibri, Segundo? Responde a verdade. A verdade!
— Arrastava uma carga de lenha maior que ele mesmo. Um capataz lhe
atirava pedras de longe, e lhe gritava estimulado.
— Terminei com minhas perguntas — atalha Renato com a intenção de
cortar os crescentes murmúrios. — Considero inútil, senhor presidente, a repetição
de um relato tão profundamente desagradável, e repito o que já disse ante este
tribunal: por que Juan do Diabo, ou qualquer de seus homens, não denunciou o fato
às autoridades? Por que ele, os que com ele andam, consideram-se autorizados para
fazer a justiça por sua própria mão? Nesta desventurada história de Colibri.
— Estão de mais todas as palavras, senhor presidente!
Outra vez Mônica se levantou como impulsionada por uma força
incontrolável; outra vez se enfrenta ao tribunal, esquivando o gesto do Renato, que
tenta detê-la, devolvendo toda voz que não seja aquela que em sua consciência
parece gritar.
"Estão de mais todas as palavras. Veem aqui. Colibri te aproxime! Senhores
magistrados, senhores jurados, não são palavras, a não ser feitos os que quero
mostrar. Na carne deste menino estão impressas os rastros da barbárie dos
Lancaster, e nenhuma palavra diz mais que estas cicatrizes — Bruscamente
despojou a Colibri de sua camisa branca, mostrando a todos aquelas horríveis pisa
de crueldade que um dia lhe fizeram estremece-se levando a seus olhos as lágrimas.
— Esta é a prova mais clara! Este é o cargo mais grave contra Juan, e desafio a
qualquer homem honrado a que siga sustentando-o depois olhar o que todos
olharam.
Mônica fez a um lado ao assustado moço, percorreu com o olhar lhe
relampejem a aquele tribunal que cala surpreso e emocionado, e sem olhar ao Juan,
volta-se para o Renato: "Já disse antes ante este tribunal, que Juan ignorava a
existência de meu dote, um dote modesta, mas intacta. Com ela garanto o
pagamento dessa dívida pela que se acusa ao Juan de abuso de confiança. Faço
promessa solene, aos credores aqui pressente, de abonar até o último centavo, e
confio em que a justiça não seja para vocês, senhores jurados, a letra morta que
castiga às cegas, a não ser a compreensão humana que aplica essa lei a cada homem,
a cada coração, a cada caso. Ele não se defende, não quer defender-se; mas eu peço
justiça. Justiça humana para o acusado!”
— Silêncio! Basta! — clama o presidente. — Meirinho, obrigue ao público a
guardar ordem e silêncio, ou terei que fazer esvaziar a sala. E quanto a você,
senhora Molnar, me faça o favor de abandonar a sala. O julgamento deve continuar
sem mais interrupções.
Como uma sonâmbula, abandonou Mônica a larga sala do tribunal, não sem
voltar-se da porta para olhar ao Juan um instante. Mas aparta os olhos estremecida,
queimada pelo fogo luminoso que aparece nas pupilas daquele homem estranho.
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Pégasus Lançamentos
Aqueles olhos que ela nunca visse a não ser frios e desdenhosos amargos ou
zombadores, aqueles olhos que parecem ter cuidadoso todos os dores e toda a
tristeza do mundo, e que agora brilham com um fulgor quente de gratidão, acaso de
admiração.
— Você. Aqui.
Movendo a cabeça, Mônica deu um passo atrás. Nada no mundo tivesse
podido dar a sua alma um golpe tão brutal como a presença do Aimée ali, junto às
janelas que dão à sala dos tribunais.
— Já te ouvi defendendo ao Juan. Fez-o às mil maravilhas. E já vi também
como ele te olhava. Sabe-lhe arrumar isso perfeitamente. Mudaste que um modo
extraordinário, e já não poderá te chamar Santa Mônica.
— Cala! Basta! Se for que vou suportar. — revela-se Mônica a impulsos da
ira.
— Suponho que terá tido que suportá-lo tudo. Conheço o Juan. Não é
nenhum cavalheiro da Tabela Redonda. Ao contrario. Não nasceu a mulher que se
dele zombe.
— Quer te calar de uma vez? Maldita. Malvada.
— Basta! Não é você quem possa me insultar!
— Nem há insulto que te chegue Aimée. Tem cansado muito baixo. O que
faz no tribunal? O que é o que vieste a fazer aqui, esquecendo-o tudo: seus deveres,
seu nome, seus juramentos. Esses juramentos que pisoteou por completo, os que fez
ao pé do altar, os que me fez pela vida de nossa mãe?
— Mas com que direito.
— Olha este papel. Reconhece-o, verdade? Escreveu você. Tem sua letra,
seu perfume, seu modo vergonhoso de te expressar.
— Quem te deu esse papel? De onde o tiraste? Não duvido que deseje com
toda a alma algo para perder-me — expõe Aimée com fera burla.
— Perdida está por suas próprias obras, por seus próprios atos. O que vieste
a fazer a este tribunal? Por que escreve deste modo ao Juan, quando o preço de meu
sacrifício foi justamente que apagaria até a lembrança do passado?
— O preço de seu sacrifício? Ai, irmã, parece-me que o sacrifício não foi tão
grande! Se não, por que defende ao Juan?
— Defendo-o porquê foi nobre e sincero, porque teve pena de minha
desgraça, porque, de qualquer modo, sou sua esposa. . Porque, para te salvar então,
não vacilou em me afundar no que pôde ter sido minha morte. E agora me joga em
cara não ter morrido, agora lamenta que o homem em cujos braços me arroje, como
se arroja uma vítima à jaula das feras, tenha tido sentimentos humanos.
— Só sentimentos humanos?
— Pois o que pensou?
Aimée respirou, há sentido que bruscamente se o encanta a alma,
estremeceu-se presa de uma alegria egoísta, instintiva e carnal. Há sentido afrouxar-
se em sua garganta o nó amargo do ciúmes, que a afogava, e quase sorri vendo
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— Meu Renato, não vás preocupar-se muito. Estas coisas passam todos os
dias, e ninguém lhes dá verdadeira importância.
— Silêncio! — solicita o presidente. — Em virtude do anterior veredicto,
este tribunal absolve ao chamado Juan do Diabo, reservando o direito de lhe
admoestar lhe aconselhando mais prudência de agora em diante. Mas em
cumprimento da vontade popular, expressa pelo veredicto do jurado, ordena que
seja posto em liberdade imediatamente, a não estar detido por outro motivo. Ah.
Os custas do julgamento ficam a cargo do senhor acusador privado.
Todo mundo se pôs em movimento. Segundo Duplos, Colibri, os outros
tripulantes do Lúcifer, o tenente Britton e alguns marinheiros do Galión, correram
fada Juan, lhe rodeando com entusiasmo. Descendem os magistrados de suas
tribunas, apartam-se os guardas, o presidente do tribunal se aproxima de estreitar a
mão do Renato, e lhe diz:
— Sinto-o na alma, senhor D'Autremont, mas era de esperar-se. Também
lamento ter tido que lhe condenar ao pagamento de costas, mas a lei é a lei, e nós
não podemos resolver as coisas a nosso gosto, como os senhores do jurado.
— Estou-lhe altamente agradecido, senhor presidente, e não me surpreendem
os resultados. Empreendi o assunto a todo risco.
— E com o inimigo dentro da própria casa. O presidente lançou um olhar
significativo ao notário Noel, que desaparece entre a multidão. Logo se volta para a
Mônica, mas ela não parece ver nem escutar quanto a seu redor passa. Aguarda
imóvel, tensa, pálida, as mãos crispada obstinadas ao respaldo daquela poltrona, e
ao fim põe-se a andar como uma sonâmbula.
— Mônica.
As largas galerias se esvaziaram, e à voz do Juan, Mônica se detém
cambaleando-se, como se não pudesse mais, como se fosse desabar. O se livrou que
as mãos tendidas, dos abraços que lhe detiveram, e correu atrás dela, mas algo se
paralisa em sua alma ao olhá-la, e as palavras tremem ao sair de seus lábios:
__"Mônica. Acreditei que te partia. Acredito que tenho que te dar as obrigado e,
entretanto, não encontro as palavras que queria empregar. Foi muito nobre e muito
generosa. Desde sua louca proposição de sacrificar seu dote, até sua forma de falar
em meu favor.
— Acredito que todos, ou quase todos, falaram com teu favor, Juan. Não tem
nada que me agradecer, pois não disse nada que não fora verdade.
— Mas o solo feito de que essa verdade esteja em seu coração, já significa
muito para mim. O solo feito de que recordasse tão claramente aquela tarde, quando
te falei do martírio de Colibri, e você.
— Não esqueci nenhuma das horas que passei a seu lado, Juan — confessa
Mônica. E trocando de repente, exclama quase violenta: — Não acredito que deva
perder o tempo em inúteis cortesias. Sabe, melhor que eu, que há alguém a quem
tem muito mais que agradecer. Guarda para ela sua gratidão e lhe dê as obrigado
como se merece. Ela o está esperando.
— Não sei a quem pode te referir Mônica. Juro-te que não entendo.
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— Entende muito. Claro que o menos que pode fazer é dissimular, mas
comigo a dissimulação é vã, absolutamente desnecessário. Tenho a obrigação de ser
discreta. Soube calar e seguirei discretamente.
— Calar? No que vais calar?
— Não me pergunte muito, pois até minha vontade e minha paciência podem
ter um limite, porque eu também posso enlouquecer e gritar como se grita de dor,
sem que nos seja humanamente possível suportar mais.
— Juro-te que. .
Bruscamente calou Juan. Muito perto da Mônica, a suas costas, ergue-se a
figura altiva do Renato, pálido de ira, apertadas as mandíbulas, relampagueantes as
pupilas. Ao gesto do Juan, Mônica se volta, para retroceder espantada. Como duas
espadas chocaram no ar os olhares daqueles dois homens, mas não brota de nenhum
dos lábios o insulto que parece tremer nas pupilas de ambos. É como se dois
mundos distintos estivessem frente a frente, multiplicando seu veneno ao calor
daquele sangue traiçoeiramente fraternal, até que ao fim Renato parece achar a arma
mais cruel com que possa ferir o irmão sem nome: o desprezo. E volta a cabeça, lhe
ignorando, para lhe falar com a Mônica:
— Suponho que é inútil te pedir que volte conosco a casa.
— Totalmente inútil! — salta Juan sem poder conter a ira que o embarga. —
Me perdoe que responda por ti, Mônica, mas ainda estamos casados e não há pena
infamante, não há falta em mim, que te autorize a pedir esse divórcio que tanto
deseja Renato. É o que mais avaliação desta liberdade que você mesma tem feito
que eu alcance, e pela que te estou dando as obrigado.
— Hoje todos têm razão contra mim, mas não por isso vou desalentar-me —
confessa Renato com amargura incontrolável. — Já vejo Mônica, que quer cumprir
até o fim seu papel de esposa exemplar. Por desgraça, não tenho o poder de impedi-
lo. Sempre a seus pés, Mônica. Se por acaso não sabe, quero-te dizer que sua mãe
segue te aguardando em sua velha casa, e que na minha, aconteça o que acontecer,
estão totalmente aberto as portas para quando quiser retornar. Boa tarde. — e com
passo rápido e gesto altivo, Renato se afasta deixando sozinhos aos maridos.
— Me deixe agora, Juan — roga Mônica com desalento. — Já me deu as
obrigado. Obrigado que não merecesse, posto que não fizesse a não ser cumprir
com meu dever.
— Que te deixe? — surpreende-se dolorosamente Juan — Então, quanto
disse no tribunal foi só porque considerou seu dever reparar uma injustiça? Então,
sua atitude pondo-se de minha parte e contra Renato, era sua consciência, não seu
coração quem a ditava?
— Suponho que para ti é igual.
— Não é igual, posto que lhe pergunte isso deste modo. Não é igual, quando
te exijo. Sim, exijo-te que me diga a verdade de sua alma.
— Não acredito que tenha direito a lhe exigir nada a minha alma. Nossa
dívida está paga. Suponho que hoje, seu orgulho e seu amor próprio estão bem
satisfeitos. Hoje não pode duvidar do que sente por ti a mulher que um dia te traiu.
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Por ti enganou, mentiu, comprou vontades. Por ti se exposto a tudo, baixando até
seu calabouço para que a tivesse nos braços.
— Quem te há dito Mônica. Quem? Acaso?
— Acaso eu mesma lhe vi, mas isso não tem já nenhuma importância,
porque isso é minha coisa, e o que importo eu? O que posso eu te importar?
— E se me importasse mais que ninguém, mais que nada no mundo?
— Como o que? Como bota de cano longo? Como arma contra Renato?
— Por que não se esquece do Renato? É que não pode dizer duas palavras
sem lhe nomear?
— Foi a ele a quem desafiou. Por ódio, não por amor, falaste de me reter a
seu lado. Mas, o que sabe você o que é amor?
— E por que tenho que sabê-lo menos que Renato? Seu Renato!
— Não é meu Renato nem o será nunca!
—Talvez o seja já, talvez agora tenha aprendido a te amar, e talvez você
suspire por ele ainda. Mas você não vais ser dele! Não vais ser nunca! Jamais!
Furiosamente, cego de ira, como nos dias tormentosos em que atrás de suas
forçada bodas a levasse através dos campos até o Lúcifer, fala Juan, oprimindo entre
suas largas mãos as frágeis mãos da Mônica, e esta joga para trás a cabeça,
entreabrindo as pálpebras. Sente as ilusões mortas, a alma transbordante de
amargura, mas ao contato daquelas mãos, de uma vez imperativo e tenro, rude e
quente, invade-a um prazer que não sentiu jamais, um como desmoronamento de
sua vontade, um desejo de não pensar nada, de não decidir nada, de ser como fora
naquelas horas terríveis do passado: um bota de cano longo em suas mãos. De lhe
pertencer, mesmo que fora a triste maneira de uma amante, mesmo que sangre em
seu coração o desengano por pensar que outra é a proprietária do coração do Juan.
Antes de permiti-lo, Mônica, acredito que sou capaz do matar-te!
— Estão de mais suas ameaças. Respeito o juramento que fiz ao pé do altar,
e acabo de demonstrá-lo. Também, embora para ela nada valha respeito o
sacramento que o faz marido de minha irmã.
— Até por cima de seus sentimentos, que ainda são de amor por ele,
verdade? As mulheres como você não trocam.
— E para que vamos trocar? Não pode sentir saudades, posto que você
tampouco troca. A traição mais terminante, a brincadeira mais sangrenta, foi às
bodas do Aimeé com outro, enquanto você lutava contra a terra e contra o mar para
conquistar algo que lhe oferecer. A perfídia mais negra foi ser de uma vez seu
amante e noiva do Renato. E, entretanto, tudo o há perdoado seu coração.
— Tenho que perdoar-lhe tudo já que ela, ao menos, segue me amando!
— E está muito satisfeito desse amor?
— Importa-te como eu me sinta? Importa-te de verdade?
— Em realidade, acredito que não me importa nada. Com o que suponho te
correspondo amplamente. Em realidade, o que podem te interessar meus
sentimentos? Quando lhe importaram?
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Pégasus Lançamentos
Capitulo 16
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Pégasus Lançamentos
depois dela, a pequena porta de barrotes lavrados, símbolo frágil do muro que entre
os dois se eleva.
— Juan. Juan acabará de me explicar?
— Não acredito que haja nada que explicar, Noel. É hora de nos retirar.
— Sem ela? Deixando a sua esposa no convento?
— Posto que ela assim o deseje, assim será.
— Bom. Entendamo-nos. Ao terminar o julgamento, quando me aproximei
de te felicitar, disse-me que todo o devia a Mônica. Talvez falasse com um
pouquinho de ingratidão, mas ao amor todo lhe perdoa, e não pode negar-se que
esteve soberba no tribunal.
— Cumpriu com seu dever, pagou sua dívida, considera que estamos em
paz. E como estamos em paz, não tem obrigação nem desejo de permanecer a meu
lado. Essa é a verdade, a verdade que provavelmente você também sabe.
— Eu só sei que essa pobre menina sofria como uma condenada. Eu só sei
que foi seu nome o primeiro que seus lábios pronunciaram ao pisar na terra da
Martinica; que correu para mim enlouquecida, cheios os olhos de lágrimas, para me
pedir que lhe ajudasse a conseguir seu único desejo: verte essa mesma noite, te
falar, Juan. Não lhe assustaram as dificuldades. Contra toda lógica, e contra toda a
vontade do Renato, obtive que pudéssemos nos escorrer através da vigilância do
Forte. Usando do dinheiro e das boas amizades, arrumei-lhe a forma de chegar até
sua cela à véspera do primeiro dia do julgamento.
— Mas não chegou. Não foi — refuta Juan, vivamente interessado. — Tudo
ficou em uma boa intenção, em um propósito vão.
— Não chegou até sua cela, porque seu lugar estava ocupado. Havia outra
mulher. Por seus próprios olhos a viu Mônica.
— Não pode ser! — exclama Juan, desconcertado.
— Foi. Eu estava perto e a vi chegar à grade, olhar para dentro e afastar-se
tremendo. Ao Renato disse que se tratava de um advogado, mas depois, a sós
comigo. Não nomeou a ninguém, a ninguém, nem tampouco fez falta. Conheço
bem o mundo, e sei até onde são capazes de chegar às mulheres da massa do Aimée.
— Não pode ser.
— Pois sim é. De um só golpe se destroçaram suas ilusões, suas lembranças.
E muito nobre foi declarando a seu favor e ficando de sua parte enquanto levava a
morte na alma.
— Temo-me que você seja muito cândido. Noel — augura Juan, incrédulo.
— Mônica é uma mulher admirável. Não sou eu quem vai lhe regatear os méritos,
nem o valor, nem a integridade, nem a lealdade. Mas não quer, nem me quererá
alguma vez. Ou lhe disse ela que me amava?
— Bom, dizer-me isso dizer-me isso assim de claro, com palavras, não me
disse isso. Mas terá que ter em conta sua humilhação e seu despeito. Ela, como
esposa.
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Pégasus Lançamentos
— Como esposa? Não, Noel, Mônica não foi minha esposa jamais. A mulher
que legalmente me entregaram em Campo Real, a que levei a força sobre a sela de
meu cavalo, como conquista de vândalo, continua sendo a senhorita do Molnar.
Um gesta amargo pregou os lábios do Juan. O velho notário o olha confuso,
desorientado, mas Juan reage bruscamente, cravando em seu ombro a mão larga e
dura como uma garra, ao ameaçar:
— Mas pense que o hei dito a você, a você somente, e que repeti-lo poderia
lhe custar muito caro, porque sou capaz.
— Me tire à mão do ombro, que me está desancando, e te deixe já de dizer
sandices — interrompe-lhe Noel com falso mau humor. — Nem eu vou repetir a
ninguém o que não lhe importa, nem me dão medo suas tolas ameaças. De modo
que essa foi sua conduta com ela?
— Estava doente, quase moribunda. A febre a aturdiu durante dias inteiros.
Durante várias semanas não soube de si mesma. Quando voltou para a vida, já
minha bebedeira de odeia tinha passado, e ela não era mais que uma pobre mulher
doce e frágil como uma flor. Como uma andorinha com as asas rotas, que tivesse
cansado sobre a coberta de meu navio.
E o velho notário baixou a cabeça. Há um estranho nó de emoção em sua
garganta, que não lhe deixa falar, e algo como um véu de pranto em seus olhos
cansados, ao comentar:
— Resulta um tipo bastante estranho, Juan.
— Por quê? — refuta Juan com simulada indiferença. — Não é mérito de
nenhuma classe. O que importa uma mulher mais? E uma mulher que quer a outro.
— Que quer a outro? Muito seguro parece estar.
— Ouvi-o de seus lábios muitas vezes. Lutei por ajudá-la a sair desse amor
insalubre. Faz uma hora, pude comprovar que ainda continuava. É um amor que lhe
causa horror, que lhe espanta, que a humilha, mas do que não se pode liberar.
— Eu teria jurado que era a ti a quem amava que era por ti quem chorava
quando a achei chorando sozinha em quão escarpados estão junto a sua velha casa.
Claro que ela me disse que não, mas… — Dúvida um momento, e logo lentamente,
murmura: — Quer dizer que Mônica ama ao Renato?
— Sim, Noel, isso hei dito sem querer o dizer; mas já está dito e é inútil
voltar atrás às palavras. Não é pelo pobre diabo do Juan, é pelo cavalheiro
D'Autremont por quem Mônica do Molnar quer enterrar sua juventude entre estas
paredes e ocultar sua beleza nas sombras do claustro.
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Pégasus Lançamentos
aonde diz que vai hospedar-se: os botequins do porto. Mas, para isso, tivesse sido
necessário que realmente me considerasse sua mulher, que me amasse. Acredito
que lhe importo muito pouco. Essa é a verdade. Acredito que não é capaz de me
fazer nenhum dano, porque não é mau. Acredito que é capaz de sentir compaixão
por mim, porque seu coração se compadece de todos os que sofrem, mesmo que não
ele queira mesmo confessá-lo. Acredito que cortesmente me trouxe até esta porta,
porque há em sua alma um instinto de nobreza e de dignidade. Mas nada mais,
Mãe, absolutamente nada mais.
Mônica se há talher o rosto com as mãos, tem cansado, como se desabasse,
no largo tamborete monacal posto junto ao limpo escritório da mãe abadessa, e esta,
depois de olhá-la com surpresa dolorida, passa em uma carícia sua pálida mão sobre
os loiros e sedosos cabelos da afligida, e tenta consolá-la:
— Filha. Filha te acalme. Está fora de si, como se houvesse enlouquecido.
— Sou a criatura mais desgraçada da terra. Mãe!
— Não diga isso. É pecado exagerar nossas dores. Milhares, milhões de
criaturas, sofrem imensamente mais do que você possa sofrer nestes momentos.
— Talvez, mas eu não posso mais. Se você soubesse.
— Sei filha, sei. Contaram-me. Até o fundo deste retiro chegou à ressaca, e,
desde que me falaram de suas estranhas bodas, cada dia estive esperando verte
chegar e saber a verdade de seus lábios. Acaba de dizer que seu marido não é mau.
— Não o é, Mãe. Ele, que parecia meu inimigo, é possivelmente o único
amigo que tive sobre a terra!
— Pois, então, filha, quais são seus maus?
— Ele é um homem bom, generoso. Por mim sentiu primeiro odeio e
desprezo; compaixão mais tarde, a me ver doente. Agora. Agora não sente nada. Se
acaso, um pouco de gratidão. Nada mais que um pouco, e possivelmente a
compaixão depreciativa a que nos movem os dores que não compreendemos.
— Bom. Mas esses sentimentos não podem te ferir nem te danificar.
— Ferem-me e me danificam, destroçam-me a alma, porque ele quer a outra!
Quê-la loucamente, com uma paixão sem freio, com uma loucura de pecado; quê-la
sem lhe importar nada nem ninguém; quê-la por cima de suas traições e de suas
infâmias; quê-la sabendo que nunca lhe pertencerá por inteiro; quê-la sabendo que
não tem coração, e busca seus lábios embora bebê veneno em cada beijo.
— Mas. Mas isso é horrível — desconcerta-se a abadessa. — Isso. Isso não
é amor, filha de minha alma. Isso não é mais que uma armadilha do inferno.
Passará. Passará.
— Não, Mãe, não passará. É mais forte que ele, e lhe enche a vida. Quer a
mais falsa, a mais hipócrita, a mais covarde e traidora das mulheres, e a quer para
sempre. Quê-la com toda sua alma.
— E você.
— Eu o quero a ele do mesmo modo. Mãe! Quero-o louca, cegamente, com
esse mesmo amor de loucura e pecado. Mas morrerei mil vezes antes de confessar-
te
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Pégasus Lançamentos
Cobrindo o rosto com as mãos, soluça Mônica, quebrado por fim o dique de
seu pranto tão longamente conteúdo. Chora, enquanto a abadessa cala um momento
permitindo o desafogo das lágrimas, antes de replicar:
— E por que tem que ser amor de loucura, minha filha? Acaso não se trata
de seu marido? Acaso não o aceitou ante o altar, não jurou segui-lo, amá-lo e
respeitá-lo? Não cumpre um juramento sagrado ao lhe oferecer esse sentimento?
— Mas ele não me ama. Mãe. Você não sabe em que horrível circunstância
se celebrou nossas bodas. Arrastou-nos um torrente de paixões transbordadas, e não
foi ele o mais culpado. Eu também lhe aceitei, eu também permiti que o sacramento
se profanasse tomando-o por marido quando não sentia por ele a não ser horror,
medo, quase odeio. Sim, acredito que era ódio o sentimento que me inspirava.
Depois, tudo mudou.
— Que chá fez trocar?
— Eu mesma não poderia dizer-lhe Mãe. Acaso a bondade e a piedade do
Juan. Não sei por que lhe amei, não sei como nem quando. Acaso porque há nele
todas as coisas que podem cativar o coração de uma mulher: porque é forte,
formoso, varonil e são; porque sua alma está cheia de nobreza; porque sua vida está
cheia de dor; porque as qualidades de sua alma me fizeram olhá-lo como a uma
pedra preciosa queda na lama da rua; porque, embora jamais lhe ouvisse rezar, sua
bondade para com os desgraçados lhe aproxima de Deus.
— Então, em seu amor não há mais que um pecado: sua soberba. Essa
soberba com que prefere morrer mil vezes antes de confessá-lo.
— O riria de meu amor.
— Se for como você diz que é não acredito que o faça. E em último caso,
oferece a humilhação a Deus no fundo de sua alma.
— Isso não é possível. Mãe. No mundo não é possível. Você, sob o escudo
de seus hábitos, na sombra do claustro, olha as coisas de outro modo.
— Em todas as partes se pode servir a Deus, minha filha, e oferecer o
sacrifício de nossos pecados. E seu pecado de orgulho…
— Não é só orgulho. Mãe é pudor, dignidade. Não sei Mãe, é algo superior
a meus força, como se minha sorte estivesse decidida de antemão, como se meu
destino o marcasse. Em meu coração, os amores não nascem a não ser para secar-se
a sós, para crescer com a rega amarga de minhas lágrimas. Ele não me quer Mãe.
Quando me falou de lhe acompanhar, fez-o em términos de que eu não aceitasse;
quando lhe falei de me trazer aqui, nem sequer me perguntou se era por uns dias ou
por toda a vida que pensava me olhar aos muros desta Santa casa. Não queria a não
ser desfazer-se de mim; parecia impaciente, irritado, ansiosa por recuperar a pouca
liberdade que minha presença pode lhe subtrair.
— De todos os modos, é sua esposa, e seu dever é estar a seu lado. Deve lhe
esperar em um lugar onde possa retornar a ti, não no claustro, a não ser em sua casa.
— Não é só minha. Antes que a ninguém, pertence a minha mãe, e também a
minha irmã. Nela entram e saem gente às que não quero voltar a ver, às que não
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Pégasus Lançamentos
posso voltar a ver, Mãe. Naquela casa me volto louca, acabaria até por duvidar que
seja cristã.
— Calma, te acalme. Esta é sempre sua casa, mas já não como antes. Está
casada, tem um dever iniludível no mundo.
— Não posso voltar junto a meus. Minha mãe odeia ao Juan. Foi à primeira
aliada do Renato, a que mais lhe animou a que, com lágrimas nos olhos, pediu-lhe
que faça todo o humanamente possível para me liberar desse matrimonio que lhe
causa horror. E minha irmã. Minha irmã. Não, Mãe, não posso voltar a ver minha
irmã!
— Escuta minha filha. Prescindindo de sua gente e de sua casa, tem modo de
viver sozinha e honestamente. Seu dote foi depositada neste convento por seu
próprio pai. Quando me disseram que chegava com seu marido e um notário, pensei
que vinha a retirá-la. É perfeitamente legal, esse dinheiro te pertence.
— Em efeito, terei que Fazê-lo retirar; mas, em realidade, já não é meu.
Serve de garantia a uma dívida, uma dívida que quero pagar aconteça o que
acontecer. Mãe tenho sua promessa, sua promessa e a do Pai Vivier. Estendo faz
algum tempo saí desta casa para provar minha vocação, vocês me disseram que se
algum dia voltava ferida, destroçada, sem forças para lutar nem para sofrer mais,
abririam-se as portas desta casa. Se vocês não me acolherem, se vocês me
rechaçarem.
— Não lhe rechaçaremos. Se for realmente assim como se sente, fique e que
a paz de Deus chegue a sua alma.
— Juan, antes de te beber esse copo de veneno, quero que me diga o que te
ocorre para estar nesse lamentável estado de ânimo.
A mão decidida do velho notário deteve o largo copo cheio de rum até os
borde, impedindo que Juan o leve a seus lábios, e os olhos vivazes piscam muito
depressa, como se queria penetrar até o fundo os pensamentos que se ocultam atrás
daquela cabeleira encrespada, através r os grandes olhos italianos, desdenhosos e
magníficos, carregados de dor e de sombra.
— Ainda quer você que lhe diga o que me ocorre? O que me ocorreu
sempre?
— Pelo que te ocorreu sempre não vamos falar, mas sim do que te ocorre
agora. Não saíste com bem desse processo, desse processo de todos os diabos? Não
lhe hão dito no Tribunal que o veleiro está a sua disposição desde manhã, sem que
tenha por isso que pagar um solo centavo, porque os senhores jurados, ao te declarar
"não culpado", desviam de ti toda ação da justiça, anulam o embargo de sua
propriedade e lhe deixam limpo de toda mancha?
— Sim. E o que?
— Quando chegou de uma misteriosa viagem, que certamente já não é tão
misterioso, não me disse que trazia dinheiro bastante para trocar de vida? Não me
falou de uma empresa de pesca? Não me confiou seu projeto de levantar uma casa
no penhasco do Diabo?
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Pégasus Lançamentos
— Ora! Mais vale não falar destas coisas. Já o que sinto não é rancor, não é
ódio, a não ser asco.
— Calma, o asco, deixa o rum e me escute. Foste casar-te; agora já está
casado. Não te parece que seu projeto vem de pérolas a seu novo estado civil?
— Sou casado com uma mulher que não me quer que nunca me queira. Por
favor, basta já! Entrei aqui para livrar-me dar de todo isso, para afogar em rum até o
último rastro do que passou.
— Por que não te aproxima da alma da Mônica? Ou, se o preferes, ao
coração.
— Está ocupado. Enche-o totalmente a imagem de outro homem, e o
remorso de amá-lo, que para ela é um pecado mortal. Sofre como uma condenada
retorce-se como entre as chamas de um inferno, e eu não sou o bastante abnegado
para suportar esse sofrimento pelo amor de outro.
— Quer-me dizer que reconhece que Mônica te interessa de um modo
extraordinário?
— Não reconheço nada! Deixe-me em paz! Convidei a tomar uma taça, não
a me colocar sermões que nem me fazem falta nem quero escutá-los — rechaça Juan
com violência; mas em seguida se reprime e em tom de suave amargura, desculpa se
agradeço sua boa vontade. Noel, mas não insista não me faça remover o fundo deste
poça amargo que é minha alma, não insista em tirar flor de lábios à verdade.
— E por que não, meu filho?
— Pensa você que eu não quis me aproximar da alma da Mônica? Pensa que
não tive lástima de sua tortura, que não cheguei a sentir a ilusão de que por fim se
rompiam as cadeias de seu amor maldito, e de que eram minhas mãos, minhas
palavras, minha devoção silenciosa as que falam feito o milagre?
— Fez todo isso?
— Sim, Noel, fiz todo isso, e fracassei. E sabe você por quê? Porque Mônica
do Molnar não pode amar ao Juan do Diabo. Pode casar-se com ele, em um
torvelinho de loucura; pode até morrer por ele, se fizer falta, pagando uma dívida
que seu orgulho não lhe permite conservar. Mas amá-lo para a vida, compartilhar
com ele a vida senti-lo a seu lado como a igual. Não. Noel.
— Acredito que está totalmente equivocado com respeito a essa moça. Ela
não tem prejuízos. E se os tem, rompe você, que força tem para isso e para muito
mais. Rompe seu amor impossível, tira-a do inferno em que se agita, levanta-a em
seus braços, e salva-a. Salva-a contra ela mesma. Você pode fazê-lo, Juan, é sua
esposa e.
— Não, Noel, ela pode gritá-lo frente a um tribunal, mas não senti-lo dentro
de si. Não sou mais que um proscrito, um excluído de todas as partes. Não tenho
direito a usar nem sequer o nome de minha mãe. Com quem se casou Mônica do
Molnar? Com ninguém. Noel, com ninguém.
Repentinamente exaltado, faiscantes as pupilas, há falado Juan como se por
fim deixasse aparecer em flor de seus lábios amarga verdade. Mas o olhar do
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Capitulo 17
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vença o desamor do Renato, que rompa o muro de gelo em que se envolve que
reconquiste sua paixão embora só seja por uma hora. Uma hora de senti-lo outra
vez escravo entre seus braços. Mas Renato, suave e frio, a rechaça:
— Minha pobre Aimée, por favor. Acalme-te.
— Não me quer já. Esquece-me, abandona-me, só pensa nesse assunto
desventurado — Nesse assunto desventurado estão minha honra e meu prestígio. E
a vida inteira da Mônica.
— Por que te empenha em te fazer responsável? Bastante lutaste e expiaste
já essa culpa, caso de que a houvesse.
— Não foi o bastante, posto que não obtivesse nada. Necessito não dar paz à
mente, me torturar o pensamento, atormentar a imaginação até que dela surja o novo
plano de combate, a conduta que devemos seguir os recursos de que podemos
valemos. Deixe-me, Aimée, peço-lhe isso! Preciso pensar, e para pensar. Perdoe-
me, mas me estorva.
— OH! Isso é tanto como me chamar. — faz-se a ofendida Aimée
— Não é te chamar nada. Simplesmente, é te falar claro. Acredito que, por
uma vez na vida, pode me compreender. E neste momento, pensa que se trata de
sua própria irmã.
— Se trata de uma odiosa rival, da que te ocupa mais do que devesse! — se
irrita Aimée com autêntica ira. — Fará que a aborreça!
— Cala! Se alguém te ouvisse te expressar desse modo.
— Não precisam me ouvir mim para dizê-lo e pensá-lo. Se realmente não
quer dar um escândalo, não siga por esse caminho. Sua própria mãe opina que vai
muito mal. Já vejo que contigo não se chega a nenhuma parte! É iníqua a forma em
que me tratam todos nesta casa. Todos, sim, todos. Porque não é você sozinho. E já
não posso mais, entende? Não posso mais! Estou cansada de sua injustiça, de seu
abandono, de sua frieza. As dever ter mais cuidado. Não se abandona assim a uma
mulher de meus anos!
— Não te abandonei. Peço-te que me deixe pensar. Não estou para suportar
suas criancices e seu ciúmes! Não é a não ser uma consentida, uma malcriada, uma
criatura a quem sua mãe estragou a força de mimos. Se pensasse como uma mulher
feita e direita, que não é já.
— Se pensasse como uma mulher cobraria-te muito caro este desprezo! —
ameaça veladamente Aimée.
— Que desprezo? Supliquei-te uns dias, umas horas de tranquilidade. Onde
está a ofensa e o desprezo? Por que não sai a dar um passeio? As lojas estão cheias
de adornos, de perfume, de trapos. Entretém com isso, já que suponho que é o que
sente falta de no campo.
— Perfeitamente. Você o quis. Quer que te deixe em paz? Pois vou deixar-
te! Mas não te queixe se, de agora em diante, não acudo quando você me chame! —
E afastando-se rapidamente, sai Aimée, dando uma forte portada.
— Aimée! Aimée! — chama Renato, abrindo a porta — Não me ouve?
Veem aqui! Aimée!
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Pégasus Lançamentos
— Não é a senhora, meu amo. Ela cruzou o pátio e já vai pela escada,
jogando faíscas, quão mesmo um raio. Como foguete aceso vai.
Renato D'Autremont vacilou. Através do corrimão da escada, sob os arcos de
pedra daquele velho pálio, divisa um farrapo do luxuoso traje claro que viu Aimée,
mas o primeiro impulso de correr atrás dela se esfriou. Parece-lhe pueril, caprichosa,
estúpida, e a lembrança da Mônica volta a apoderar-se de sua alma, enquanto Ana se
aproxima lisonjeadora e servente a seu encontro:
— Quer que chame à senhora, senhor Renato? Quer que lhe diga que você a
manda chamar? Quer que venha?
— Não, Ana, não te fará conta. Mais vale aproveitar a trégua de quietude
que me dá seu raiva. Diga-lhe ao Cirilo que me traga conhaque à biblioteca. Ou
melhor, traga você mesma. Traz você sem dizer-lhe a ninguém, e depois olha a ver
como lhe acertas para distrair a sua ama. Anda.
— Vá! Até que apareceu! Levo uma hora te chamando, Ana.
— É que primeiro o senhor, e logo, quando fui à sala de jantar, ao passar
pela porta de atrás.
— Não quero ouvir contos! Tem algum vestido novo? Uma blusa, uma saia,
um lenço, um xale me Traz isso no ato! Vou vestir-me com sua roupa. Traga-me
isso logo, e te prepare a me acompanhar.
— No carro?
— Não iremos ao carro. Sairemos sem, que nos veja ninguém, nem ninguém
possa contar logo por onde estivemos. Traga-me a roupa. Apure-te. Anda.
— Mas, senhora, me deixe lhe dizer primeiro o que acontece. É que.
— Anda estúpida!
Com uma fúria cega e incontrolável despediu Aimée à mestiça faxineira, e
agora espera impaciente sua volta, que não se faz esperar quando adverte, chegando
sufocada:
— Aqui está senhora Aimée. Mas o homem segue esperando.
— O homem? Que homem? Logo, me dê à saia!
— Aqui está. Traga-lhe também minha blusa nova, mas se me sua isso muito
me vai danificar isso.
— Comprarei-te cem blusas, estúpida! Ajude-me a vestir! Grampeie-me.
Dê-me o lenço enquanto vou trocando de penteado.
— Está bem. E o homem na rua, volta e volta. E como bom moço, é bom
moço. Mais que o senhor Renato.
— Que idiotices estão dizendo?
— Nada. Você não quer me ouvir. Digo que o homem volta e volta para
acima e para abaixo, passeia e passeia, e com tanto momento esperando vai a
desimpedira a rua. Terá que ver como lhe alegraram os olhos a ver aparecer. E vai e
me diz: "Eu a vi junto a ela. Certamente, você é sua criada de confiança". Até por
cima da roupa me conhece, minha ama, que sou sua criada de confiança. O homem
é mais preparado.
— De quem está falando?
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— De quem vai ser? De que está volta e volta, para acima e para abaixo, na
rua, de esquina a esquina, e olhando para cá. Come-se com os olhos a porta e a
janela. E ao fim foi e me disse: "Se quisesse você ter a bondade de lhe avisar a sua
ama que eu seria o mais feliz dos mortais se pudesse lhe falar a sós duas palavras”.
— Mas. Mas, de onde tira todo isso?
— Disse-me isso ele. De repente, assim de repente, não o conheci, porque
não vem de uniforme, mas sim de patrício. Mas, assim e tudo, está da melhor moço.
Acredito que se chama o tenente Botton.
— O tenente Britton? — retifica e pergunta Aimée. — Viu-lhe?
— Pois não lhe estou contando? Se aparecer à janela, verá-o daqui acima.
Não sei desde quando está rondando a casa, e com uns olhos de apaixonado. Terá
que ver que fino. Esta o chapéu se tirou para me falar.
— O tenente Britton ronda minha casa? Então, sabe quem sou, posto que
viesse até esta casa.
— Seguro que sabe. — Não vai você a falar com ele, senhora? Está
esperando que eu lhe diga algo. Para isso me deu vinte francos.
— E você tomou? Deveria te jogar a chutes! Este tenentinho é um afresco!
Terá que ver. Tratar dê te subornar.
— Está bem, não fique brava. Direi-lhe que se vá.
— Aguarda. Deixe-me pensar. O tenente Britton. O tenente Britton.
— Se lhe faço dar á volta e o coloco pela portinha do curral, e vão se falar lá
com fundo, onde estão às matas de manga, não os vê ninguém — assegura Ana com
entusiasmo. — Lhe vai falar senhora?
— Não, não e não! Espere-te. Está-me ocorrendo algo. Está-me ocorrendo
uma coisa que. Sim; Sai pela porta do curral faz-o passar. Que me espere
justamente nesse lugar onde não vai ver-nos ninguém, e você volta a me ajudar para
que me troque de roupa.
— Outra vez?
— Posto que saiba que sou a senhora D'Autremont, não vou apresentar-me
com o traje de uma criada, a não ser justamente o contrário, precisamente
justamente o contrário. O tenente Britton, né? Acredito que chegou a tempo. Este é
o homem que eu necessitava. Dê-me o traje branco. Não. O vermelho, o de seda.
O pega antes de ir. Quero lhe parecer muito formosa, quero lhe agradar de ainda
mais do que lhe agradei. Anda. Anda. Ai, Renato, que logo me vais pagar isso!
— Como? Por aqui?
— Pois claro. Pensou que ia poder entrar pela porta grande? Por este lado, e
caladinho. Caladinho para que não o ouçam da cozinha ou da garagem e comecem
a falar esses fofoqueiros. Caladinho, e depressa. Vamos. Vamos.
Ainda mais surpreso que adulado, olhando a todas as partes com a
inquietação de um soldado acanhado e a audácia ingênua de seus vinte anos, o
oficial inglês cruza pela portinha do pomar, atrás da Ana, e se interna com passo
rápido e silencioso através do enorme pátio que, com todas as honras de pomar,
remata sobre uma ruela solitária a vetusta mansão dos D'Autremont, no Saint-Pierre.
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aproveitando a fragata que se acha em porto, e que garra nas primeiras horas da
madrugada.
— Tão logo se vai? Que lástima!
— Parece-lhe com você muito logo? Sente-o de verdade?
— Franqueza por franqueza, não vou negar se o Foi você
extraordinariamente simpático, e me alegro muitíssimo de que a casualidade me
tenha posto em condições de lhe fazer uma pergunta. Como foi que havendo você
posto o papel o que lhe confie, nas mãos do Juan, outra pessoa tivesse esse papel em
seu poder uma hora mais tarde? Por desgraça, foi parar às mãos de alguém que tem
muito interesse em me prejudicar.
— Como? É possível? Então. Mas como pôde ser? Dou-lhe minha palavra
de honra, juro-lhe que o pus nas próprias mãos do Juan.
— Sim. Quase lhe vi pô-lo em suas mãos. Mas, para que veja que não minto,
aqui o tem você, aqui está. Reconhece-o?
— OH, sim! É incrível Estou realmente desolado, senhora. Diz você que este
papel a prejudicou?
— OH, não! Disse que pôde me haver prejudicado, lido por uma pessoa que
certamente o teria interpretado mal.
— Não acredito que ninguém possa interpretá-lo de outro modo. Juan do
Diabo é o homem mais afortunado que conheço, já que você o ama. Recordo suas
palavras: "lhe diga que este papel o envia uma mulher que dá a vida para salvar ao
Juan do Diabo”.
— A vida pode dar-se também por gratidão, por dever ou por lástima. Se
você soubesse. Quando uma mulher se sente sozinha, triste, desamparada. Quando
o homem que é seu marido lhe volta às costas; quando se sente uma intrusa, uma
estranha em seu próprio lar. Mas não falemos de mim, mas sim de você. Queria me
ver para me dizer adeus, nada mais?
— Queria vê-la para lhe dizer que do momento em que a vi não pude
esquecê-la, como tampouco poderei esquecer ao Juan do Diabo enquanto viva.
Considero que lhe devo a vida a esse homem. Entretanto, logo que pude fazer nada
para lhe corresponder, e pensei que a admirável mulher que lhe ama de um modo
tão apaixonado poderia me indicar a forma de ajudá-lo.
— Seriamente? É você muito nobre oficial. Eu pensei que vinha você para
me buscar, pensando que o serviço que me fez declarando a favor do Juan e
entregando minha carta, merecia um prêmio. E estava bem disposta a outorgar-lhe
Você dirá que sou uma mulher muito estranha, mas eu gosto de pagar minhas
dívidas.
— Ofende-me você, senhora.
— Não acredito que possa lhe ofender — observa Aimée jogando mão de
sua estudada paquera. — Meu prêmio era simbólico. Pensei que se sentia você
muito solo no Saint-Pierre, que acaso gostaria de passear um pouco, conhecer os
pitorescos arredores da cidade. Por desgraça, eu só poderia acompanhá-lo dentro do
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— Não, filha, não é ele. Mas seu gesto e seu olhar foram o bastante
eloquentes para me indicar até que ponto está em seu esse coração esposo a quem
pretende abandonar.
— Não. Não. Não é ele, não podia ser ele! — queixa-se Mônica com
infinita amargura. — Não sei como pensei semelhante disparate. O estará em seu
Lúcifer, ou nos botequins do porto, ou nos rincões da praia, onde lhe brinda fácil o
único amor que lhe interessa. De mim não se lembra, em mim não pensa para nada.
Deixou-me em meu convento, e em paz. Não vai opor-se a nada, porque nada do
que eu faça lhe importa.
— Pois muito temem que ele seja o obstáculo, os que impeçam de professar.
— Quais são esses?
— No momento, sua própria mãe. Ela é a que te aguarda no locutório, em
companhia da senhora D'Autremont. Esperam te convencer de que firmes certo
poder, que não quis assinar, para administrar com isso; a anulação de seu
matrimônio. Querem fazê-lo tudo rapidamente e em segredo, antes que o estado de
ânimo que tem feito a seu marido te deixar voltar para convento troque. Entretanto,
eu queria te pedir que não lhe precipitaras que não deixasse assim, em mãos de
outros, um assunto tão intimo, tão pessoal. E mais ainda, depois de te haver visto
tremer de alegria só imaginando que era ele quem te aguardava; Esse homem, a
quem Deus trouxe para sua vida por caminhos estranhos, interessa-te muito.
— Não, Pai, está você equivocado totalmente. Por uma vez estou de acordo
com a senhora D'Autremont, que é sem dúvida a que traz para minha mãe Assinarei
o que seja com tal de devolver ao Juan sua liberdade. Já sei que para ele é igual, que
em nada pode estorvar a sua vida aventureira o insignificante detalhe de ter uma
esposa. Eu sou para ele menos que uma sombra, menos que um fantasma, mas até
esse fantasma quero apagá-lo. Com sua permissão, Pai, vou ao locutório onde me
aguardam. Vou a terminar quanto antes.
Com passos leves se afasta Mônica em direção ao locutório, de repente,
alguém a chama:
— Oi, minha ama.
Paralisada de surpresa; deteve-se Mônica ao cruzar muito perto das taipas
que separam o horta do convento, do mundo exterior. Logo que pode dar crédito a
seus olhos, porque a miúda figura moreia, que descendeu com surpreendente
agilidade para aproximar-se dela com seu passo silencioso e furtivo, é alguém cuja
só presença remove até ele fundo as fibras de sua angústia.
— Colibri! Mas, como pode ser isto? Como está aqui? Por onde entraste?
Saltaste as taipas da rua?
— Sim, minha ama, tinha que vê-la, tinha que lhe falar. Pela porta grande
fui três vezes, e não me deixaram entrar. Subi-me por acima de um carro que está aí
parado, agarrei aos ramos dessa árvore, e logo me agachei me tampando com as
folhas, porque havia aqui umas senhoritas vestidas de branco que passeavam de dois
em dois. Estive-me esperando, esperando, até que de repente vi que vinha, e então
me baixei correndo. Fiz mal, minha ama? Eu queria ver a você.
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Tornou com inquietação a cabeça, escutando o leve ruído de uns passos sob
os largos arcos da galeria que limita o fechado horta conventual. Ao longe, como
duas sombras brancas, cruzam duas noviças. Respira mais tranquila as vendo
afastar-se, mas Colibri até está junto a ela.
— Esperam-na para assinar esse papel contra o amo?
— Não é contra ele, Colibri. "Ao contrário. estou segura de que no fundo de
sua alma me agradecerá que eu seja a que rompa este laço que nos ata, e que o
rompa como vou Fazê-lo: dando-lhe a absoluta segurança de que minha vida se
acabará entre estas paredes..
— Mas ao amo não gosta que esteja aqui encerrada.
— Disse-te ele que não gostava? Não minta nunca. Colibri, não minta nem
sequer por piedade. E agora, vete. Que eu te veja sair. Quero ter a segurança de que
ninguém te vê nem lhe ocorre nenhum contratempo. Vete que venham!
Empurrou ao pequeno negro a tempo que chega a voz do pai Vivier que, ao
descobri-la, assinala aproximando-se:
— Mas se estiver aqui. Mônica, filha, estas damas estavam muito inquietas.
— O Pai nos disse que fazia um bom momento tinha saído para o locutório
— comenta Catalina do Molnar. — Tem cara de te sentir mal, minha Mônica.
— Talvez Mônica não desejasse vemos — atravessa Sofia D'Autremont. —
Nos estava você esquivando, verdade?
— Não, senhora — nega Mônica fazendo esforços por serenar-se. — Ao
contrário. Tomei por este lado para chegar quanto antes ao locutório. Ia assinar esse
papel que vocês pretende? Ia agradá-las imediatamente.
— Desejo fazer constar que é contra minha opinião e meu conselho —
adverte o pai Vivier. — É meu dever lhe emprestar a Mônica o apoio necessário
para que veja claro no fundo de seu consciência. .
— Que mais claro quer que veja Pai? Minha pobre filha está unida a um
canalha, a um malvado.
— Não sabe nada, mamãe! — protestou Mônica.
— Estamos em família, não diante do tribunal que lhe julgou filha.
Compreendo que lhe defendesse ali por sua própria dignidade. Aqui pode ser
franco, não te empenhar em que criamos — o que não pomos acreditar.
— Não acredito que devamos perder o tempo em discussões que não vão a
nenhuma parte — intervém Sofia. — E perdoe-me, Mônica, que tome a liberdade de
me misturar em seus assuntos privados. Fiz-o sozinho em respaldo e ajuda de sua
pobre mãe, que sofre muito, que sofre pelas duas, embora nem você nem sua irmã
pareçam compreendê-lo assim.
— Lhe pedido que tratemos meus assuntos separadamente dos de minha
irmã, dona Sofia! — encrespa-se Mônica com visível irritação. — Se Renato
entendesse que é indispensável que esqueça meus assuntos.
— Neste caso, não é Renato. Justamente disso queríamos lhe falar a sós, e
para isso a esperávamos.
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— Não era necessário mencionar esse detalhe, essa lenda que bem pode ser
uma patranha! — revolve-se irada Sofia.
— Para mim, sim era necessário recordá-lo. Assinarei dona Sofia me dê esse
papel. Assinarei-o no ato!
(Esta obra continua, e finaliza, na novela intitulada: “Juan del Diablo ")
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