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MONÓLOGOS

FANTINE I

Fantine: — Que me soltem! Que me deixem ir em liberdade. Que não vá para a cadeia durante seis
meses?! Quem disse semelhante coisa? Não é possível, fui eu que percebi mal! Não podia ser o demónio
deste maire! Foi o senhor Javert que disse que me pusessem em liberdade? Quando eu lhe contar tudo
deixar-me-á ir embora. É este maldito maire, este monstro, que tem a culpa de tudo. Este homem,
senhor Javert, expulsou-me por causa dum bando de velhacas que na oficina não se ocupam senão das
vidas alheias. Veja se isto não é horroroso! Despedir uma pobre rapariga que vivia honestamente do
seutrabalho e cumpria com o seu dever! Desde então não ganhei o suficiente e foi que me sobrevieram
todas as minhas desgraças. Em primeiro lugar há um mal que estes senhores da polícia deviam tratar de
remediar: é obstar a que os arrematadores das prisões prejudiquem os pobres. Ora escute, que eu vou
explicar-lhe isto. Faça o senhor de conta que ganha doze soldos nas camisas, mas eis que de repente
desce de doze para nove, assim lá se vai o modo de vida, porque com semelhantes ganhos não se chega
anada. É, pois, preciso remar cada um para onde pode. Eu, que minha a minha filha, a minha pobre
Cosette, não tive outro remédio senão tornar-me uma má mulher. Agora já sabe porque eu digo que foi
este maldito maire a causa da minha desgraça. É verdade que pisei o chapéu daquele senhor ao pé do
café dos oficiais, mas ele tinha-me estragado o vestido com a neve. Nós, as mulheres que andamos nesta
vida, só temos um vestido de seda para sairmos à noite. Nunca fiz mal por minha vontade e por toda a
parte vejo mulheres piores do que eu que vivem mais felizes. Mas foi o senhor Javert quem disse que me
pusessem em liberdade, não foi? Tire informações, fale com o meu senhorio, a quem agora pago sempre
a renda, e verá como todos lhe dizem que eu sou uma mulher bem comportada. Ai, meu Deus!
Desculpe-me, senhor Javert, toquei sem querer no fecho do fogão e fiz com que deite fumo.

FANTINE II

— Foi esta manhã para Paris. Nem mesmo tem precisão de passar por lá. Vindo de lá,Montfermeil fica
um pouco à esquerda. Lembra-se como ele me dizia: Não tarda, não tarda? Quando eu ontem lhe falava
de Cosette? É uma surpresa que me quer fazer. Olhe, não sabe? Ontem fez-me assinar uma carta, dando
ordem aos Thenardier para a entregarem. Eles não podem negá-la, entregá-la-ão, não é verdade? Não se
lhes deve nada. As autoridades não consentirão que neguem uma criança, tendo-se-lhes pago tudo.
Minha irmã, não me faça sinais para que não fale! Sinto-me muito satisfeita, estou muito melhor, estou
até já boa, porque vou tornar a ver Cosette; até sinto vontade de comer. Há quase cinco anos que não a
vejo. As religiosas como a minha irmã não imaginam o apego que se tem aos filhos! E depois, como ela
deve estar bonita, verá! Tem uns dedinhos tão rosados Há-de ter umas mãos muito bonitas: quando
tinha um ano eram ridículas. Agora já está muito crescida; tem sete anos, é uma senhora. Eu chamo-lhe
Cosette, mas o seu nome é Eufrásia. Olhe, esta manhã, estava eu olhando para a poeira que está sobre o
fogão, e não sei porque me veio à ideia que veria muito breve a minha Cosette. Meu Deus! Que coisa tão
má que é estar assim anos sem ver os filhos! A gente devia lembrar-se de que a vida não é eterna! Mas
que bondade a do senhor maire, em se ter posto a caminho! É verdade que faz muito frio, não é? Levaria
ele ao menos o seu capote? Amanhã deve estar de volta, não é assim? Há-de ser dia de festa. Amanhã
pela manhã, minha irmã, há-de lembrar-me que ponha a minha touca de rendas. Monƞermeil é uma
terra pequena. Noutro tempo andei aquele caminho a pé; para mim era muito longe, mas as diligências
andam depressa! Amanhã estará aqui com a minha Cosette. Quantas léguas são daqui a Montfermeil?

FANTINE III

— Perdoe-me, senhor doutor, peço-lhe que me perdoe. Noutro tempo não teria falado como o fiz agora,
mas têm-me sucedido tantas desgraças que às vezes nem sei o que digo. Compreendo muito bem, o
senhor receia alguma comoção; esperarei quanto quiser, mas juro-lhe que me não faria mal vê-la. Eu
vejo-a, desde ontem à noite que não tiro os olhos dela. Quer até que lhe diga? Se ma trouxessem agora
falar-lhe-ia muito devagarinho. Aí está. Pois não é natural que eu deseje ver a minha filha, a quem
expressamente foram buscar a Montfermeil? Eu não estou zangada. Tenho acerteza de que vou ser feliz.
Toda a noite esteve vendo coisas brancas e rostos que se sorriam para mim. Quando o senhor doutor
quiser, traga-me Cosette. Já não tenho febre, já estou curada, sei muito bem que não tenho nada, mas
vou estar como se me achasse doente: não me hei-de mexer, para fazer a vontade às senhoras que aqui
estão. Quando virem que estou muito tranquila, hão-de dizer: não há remédio senão entregar-lhe a filha.

— Foi boa a sua jornada, senhor maire? Que bondade a sua em ir buscá-la! Diga-me só como ela está.
Veio bem pelo caminho? Decerto não me conhece? Há tanto tempo, por força se esqueceu de mim,
pobre anjinho! As crianças não têm memória, são como os passarinhos. Hoje vêem uma coisa, amanhã
outra, e não pensam em nada. E ela tem roupa branca? Os Thenardier traziam-na limpa? Alimentavam-
na bem? Se soubesse como eu sofria dirigindo a mim mesma todas estas perguntas no meio da minha
miséria! Agora já não é assim! Estou muito alegre! Como eu desejo vê-la! Achou-a bonita, senhor maire?
Não é bonita a minha filha? O senhor havia de sentir bastante frio na diligência. Não ma podiam trazer
só por um bocadinho? Levavam-na logo outra vez! Diga, senhor maire! Se o senhor quisesse! O senhor é
quem manda aqui!

— Como nós vamos ser felizes! Em primeiro lugar havemos de ter um jardinzinho, o senhor Madelaine
prometeu-me. A minha filha há-de brincar no jardim. Ela já deve conhecer as letras, hei-de fazê-la
soletrar. Como hei-de gostar de a ver correr atrás das borboletas! E depois há-de ir à sua primeira
comunhão. É verdade! Quando irá ela à primeira comunhão? Um... dois... três... quatro... tem sete anos.
Há-de levar um véu branco e meias abertas, há-de parecer uma mulherzinha. Oh, minha boa irmã, então
não sou eu doida?! Pensar já na primeira comunhão da minha filha!

JEAN VALJEAN

Chamo-me Jean Valjean. Sou um forçado das galés, onde estive dezanove anos. Há quatro dias que fui
posto em liberdade e vou a caminho de Pontarlier, que é o meu destino. Ainda não parei desde que saí
de Toulon. Hoje andei doze léguas a pé. Cheguei aqui quase à noite e fui a uma estalagem onde não me
quiseram recolher por causa do meu passaporte amarelo, que tinha apresentado na mairie, por não ter
outro remédio. Fui a outra estalagem e disseram-me: «Põe-te daqui para fora!». Assim tenho andado de
um lado para outro, sem ninguém me querer recolher. Bati à porta da cadeia e o carcereiro não ma quis
abrir. Recolhi-me na casinhota dum cão, mas o cão mordeu-me e expulsou-me como o faria um homem.
Pareceu-me que também sabia quem eu era Parti em direcção ao campo, com intenção de dormir ao
relento. O céu estava encoberto, e eu, lembrando-me que poderia chover e que Deus não estaria para
obstar a que a chuva. caísse, voltei para a cidade a fim de me abrigar no vão de alguma porta. Estava eu
ali no largo, deitado em cima de um banco de pedra, quando uma senhora já idosa que ia a passar me
indicou a sua casa e me disse: «Bata além!» Assim fiz. Agora, diga-me, o que é isto aqui? Se é uma
estalagem, tenho dinheiro para pagar. Cento e nove francos e quinze soldos, que ganhei nas galés em
dezanove anos com o meu trabalho. Que tem lá isso? Para que serve o dinheiro? Andei doze léguas a pé,
estou estafado e tenho fome. Posso ficar?

JAVERT

Aqui está o que sucedeu. Parece que havia para os lados de Ailly-le-Haut-Clacher um pobre homem,
chamado Champmathieu, que vivia em extrema miséria. A gente dessa classe ninguém sabe de que ela
vive. Ultimamente, neste Outono, Champmathieu foi preso por um roubo de umas maçãs, feito a um
tal... pouco importa o nome! Houve roubo, escalamento e ramos de árvores quebrados. O caso é que
prenderam Champmathieu, que ainda tinha na mão um ramo da fruteira, e ferram-me com o maroto na
cadeia. Até aqui a coisa pouco passa de um processo correccional. Mas o que é a Providência! Como o
cárcere estava em mau estado, o senhor juiz julgou acertado mandar transferir Champmathieu para
Arras, onde é a prisão distrital. Ora, encontra-se ali um antigo forçado, chamado Brevet, que está preso
não sei porquê, e a quem, por ter bom comportamento, fizeram porteiro. Ainda bem, senhor maire, o
Champmathieu não tinha posto o pé dentro da prisão, Brevet exclamou: «Olá! Eu conheço este homem!
Também é cá da malta! Olhe cá para mim, você é o Jean Valjean!» Champmathieu, mostrando-se muito
admirado, exclamou também: «Jean Valjean! Quem é Jean Valjean?». «Não te faças pacóvio», tornou
Brevet, «tu és o Jean Valjean, estiveste nas galés de Toulon, há uns vinte anos; estivemos lá ambos».
Champmathieu negou. Depois disto, o senhor maire bem compreende, aprofundou-se o assunto, e eis o
que veio a saber-se.

Há coisa de trinta anos, era este tal Champmathieu podador de árvores em diferentes terras, mas
principalmente em Faverolles, onde se lhe perdeu o rasto. Passado muito tempo tornou a ser visto em
Auvergne, depois em Paris, onde ele diz ter sido carpinteiro de carros e ter estado com uma rapariga
lavadeira, mas isso parece não estar bem provado. Ora, o que era Jean Valjean antes de ter ido para as
galés pelo crime de roubo qualificado? Podador. Aonde? Em Faverolles. Ainda outra prova: o nome de
baptismo desse tal Valjean era Jean e o apelido da mãe, Mathieu. Não há nada mais natural do que
julgar-se que ao sair da prisão tivesse adoptado o nome de sua mãe, para se esquivar a indagações, e
passasse a chamar-se Jean Mathieu. Depois foi para Auvergne, de Jean a pronúncia da terra faz chan, e
começam a tratá-lo por Champmathieu. O homem não se importou com esta mudança, e ei-lo
transformado em Champmathieu. O senhor maire tem seguido o meu raciocínio, não é verdade? Bem.

Fizeram-se indagações em Tiverolles. A família de Jean Valjean tinha desaparecido, sem que ninguém
desse notícias dela. Como o senhor maire bem sabe, nesta classe há frequentes vezes destes
desaparecimentos completos de famílias. Procura por aqui, procura por ali, mas nada. A gente desta
qualidade quando não é lama, é poeira. E depois, como o princípio desta história data de há trinta anos,
já não há ninguém em Faverolles que se lembre de Jean Valjean. Indaga-se em Toulon. Além de Brevet,
há apenas mais dois forçados que conheceram Jean Valjean. São os condenados a prisão perpétua,
Cochepaille e Chenildieu. Mandaram-nos buscar para os confrontar com o suposto Champmathieu. Para
eles, como para Brevet, é Jean Valjean. A mesma idade, cinquenta e quatro anos, a mesma estatura, o
mesmo modo de andar, o mesmo homem, enfim, era ele. Foi nesta ocasião que eu mandei a minha
denúncia à prefeitura de Paris. Responderam-me que tinha perdido o juízo e que Jean Valjean estava em
Arras em poder da justiça. Avalia decerto a admiração que isto me causou, quando julgava ter aqui o
próprio Jean Valjean! Escrevi logo ao senhor juiz, que me mandou ir a Arras, fazendo conduzir
Champmathieu à minha presença.

EPONINE I

— Como querem entrar, não hão-de entrar. Eu não sou filha de cão, porque sou filha de lobo. Vocês são
homens e eu sou mulher, mas não me metem medo. Digo-lhes que não hão-de entrar nesta casa,
porque eu não quero que entrem. Se por desgraça se chegam, ladro Já lhes disse, o cão sou eu. Importo-
me pouco com vocês. Vão ao vosso caminho, que já me estão aborrecendo! Vão lá aonde quiserem, mas
aqui proíbo-lhes que venham! Vocês às facadas e eu às chineladas, vamos a ver quem vence!

E, medonha, deu um passo para os ladrões e pôs-se a rir:

— Já cantei! Não tenho medo. No Verão hei-de ter fome e no Inverno hei-de ter frio. Que estúpidos são
estes homens em acreditarem que metem medo a uma rapariga! Medo! Porquê? Ah, sim! É porque
vocês têm todos empadas de amantes que se escondem debaixo da cama, quando lhes ouvem engrossar
as vozes! Eu cá é que não tenho medo de ninguém! — E, fitando seu pai, acrescentou: — Nem mesmo
de você, meu pai.

— Depois prosseguiu fitando os ladrões com as suas pupilas de espectro: —

Que me importa a mim que amanhã me encontrem estendida no meio da rua Plumet,morta às facadas
por meu pai, ou que dentro de um ano me achem nas redes de Saint-Cloud, ou na ilha dos Cisnes no
meio dos farrapos podres e dos cães afogados!

EPONINE II

— A bala atravessou-me a mão; mas saiu-me pelas costas. É inútil tirar-me daqui. Voudizer-lhe como é
que me pode tratar melhor do que um cirurgião.Sente-se ao pé de mim nesta pedra.

— Como isto-é bom! Como se está bem assim! Até que enfim! Já não sofro.

— Achava-me feia, não é?

— O senhor está perdido! Agora já ninguém sairá da barricada. Vê? E fui eu quem o conduziu aqui!
Tenho toda a certeza de que há-de morrer. Todavia, quando vi que lhe apontavam uma espingarda,
tapei-lhe o cano com a mão. Que tolice! Mas eu queria morrer antes do senhor. Quando recebi esta bala,
arrastei-me até aqui, ninguém me viu nem me levantaram. Estava à sua espera e dizia comigo: Pois ele
não virá? Se soubesse como eu mordia a blusa com a força das dores! Agora sinto-me bem. Lembra-se
daquele dia em que entrei no seu quarto e em que estive a mirar-me no seu espelho? No dia em que o
encontrei no boulevard? Como os passarinhos cantavam! Não há ainda muito tempo. O senhor tinha-me
dado cem soldos e eu disse-lhe: Não quero o seu dinheiro. Apanhou ao menos o dinheiro? O senhor não
é rico. Não me lembrei de lhe dizer que o apanhasse. Estava um sol tão bonito! Lembra-se de tudo isto,
senhor Marius? Oh, que felicidade a minha! Toda a gente vai morrer.

— Não se vá! — disse ela. — Já não levará muito tempo!

— Ouça, não quero pregar-lhe uma peça. Tenho na minha algibeira uma carta para o senhor, desde
ontem. Tinham-me dito que a deitasse no correio, mas eu guardei-a; não queria que lhe fosse parar à
mão. Mas o senhor talvez me quisesse mal, por causa disto, quando daqui a pouco nos víssemos. A
gente torna a ver-se, não é verdade? Tome a sua carta.

— Agora, pelo meu trabalho, prometa-me...

— Prometa que me dará um beijo na testa depois de eu estar morta, porque o hei-de sentir!

— Se quer saber, senhor Marius, eu julgo que estava um tanto apaixonada pelo senhor!

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