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Segunda postagem na série.

Primeira postagem da série, aqui.

Dave Adams

Pilotos de teclado, discípulos de Dom Toretto e até mesmo preparadores e


projetistas gostam de manter uma certa aura de expert em qualquer assunto
relacionado à performance de carros. Em muitas conversas de posto, bar e
dentro das oficinas é comum ouvir discussões técnicas sobre um carro
preparado, um carro de corrida ou um carro original. Geralmente o assunto é o
quanto de potência o carro pode entregar, de vez em quando entram em formato
de curva de torque, relação peso/potência, mas ainda assim, a maioria das
discussões técnicas se volta para os motores dos carros.

Quando se fala em dinâmica de carros, é muito comum ouvir gente idolatrando


a tração traseira, difamando a tração dianteira, falando em understeer e
oversteer em função do eixo motriz e a discussão vai acabando por aí. Algumas
vezes comentam sobre a rigidez das molas, pneus mais grudentos e freios
maiores, mas é uma discussão mais superficial do que as sobre motores.
Gonçalo Reis Bispo

Com a popularização dos trackdays e eventos de drift, falar sobre suspensão e


pensar na capacidade do seu carro fazer curvas deixou de ser algo tão estranho
e coisa para nerds, geeks ou o pessoal do automobilismo. Ainda assim, trabalhar
a suspensão de um carro é uma arte um pouco desconhecida do senso comum.
Fazer com que seu carro tenha um bom comportamento em curvas não é
necessariamente mais difícil do que fazer seu motor gerar mais potência. O que
acontece é que não há informação tão difundida por aí, e o assunto por si só já
é um pouco mais misterioso.

Hilgram

Como descrevi na primeira postagem, esta série tem como objetivo desmitificar
o assunto introduzindo um pouco mais de conhecimento técnico. O primeiro
tópico a ser abordado serão os pneus. Se os seus interesses automobilísticos são
maiores do que a necessidade unidimensional de acelerar em linha reta, discutir
curvas no dinamômetro, instalar neon e colar adesivo de fixa/choraboy no
vidro, vamos aos negócios.
Peter Bromley

Automóveis, em geral, têm duas funções básicas, duas coisas que devem fazer,
não importa o preço que custem ou a aplicação para a qual foram desenvolvidos.
Eles devem transportar pessoas e coisas, e também devem se comunicar com o
condutor. O condutor pisa no acelerador, o carro acelera. O condutor pisa no
freio, o carro freia. O condutor vira o volante para a direita, o carro inicia uma
curva para a direita. O carro deve sempre se comunicar com o condutor,
respondendo às ações dele atrás do volante.

Lamborghini

Imagino que todos já tenham percebido que um carro acelera, freia, vira pra um
lado e vira pra outro, às vezes faz tudo isso ao mesmo tempo, e que alguns
carros fazem curvas melhores que outros, alguns freiam e aceleram melhor do
que outros. Por quê? Existem inúmeros aspectos a serem considerados nessa
resposta. Muitos mesmo. O que posso adiantar é que a peça mais importante no
quebra-cabeça que é a dinâmica de um carro é o pneu, sem dúvida.
UM POUCO DA QUÍMICA DOS BORRACHUDOS

Um veículo dito de solo se move e se direciona por meio de reações com o solo.
Automóveis, bicicletas, triciclos e veículos similares são considerados únicos
na maneira em que essas reações são geradas e limitadas, pois estas reações
ocorrem através da interação dos pneus com o solo. Grande parte dos assuntos
relacionados à dinâmica veicular lida com características dos pneus, como a
forma construtiva, compostos utilizados na banda de rodagem, entre
outros. Pneus são feitos de diferentes compostos de borracha, que é um
polímero, mais precisamente um elastômero.

O que significa o pneu ser composto de um elastômero? Significa que ele tem
propriedades viscoelásticas. O que significa ele ter propriedades viscoelásticas?
Significa que ele se deforma de um jeito e retorna ao seu formato original de
outro, geralmente com um atraso no retorno à forma original.

UTA

O gráfico da figura acima ilustra um material viscoelástico. O eixo vertical,


Stress, representa a tensão aplicada ao material e o eixo horizontal, Strain,
representa a deformação que o material sofreu. A reta preta (Load) indica a
aplicação da tensão, e quando se para de aplicar a tensão, o material retorna ao
seu formato original pela curva azul (Unload). Um exemplo mais cotidiano
seria aquele travesseiro da NASA vendido por aí. Se alguém tiver um, é só
deformá-lo e ver como ele demora um pouco para retornar ao formato original.
Beleza cidadão, o pneu se deforma de um jeito e volta ao normal de outro, e aí?
Quando isso acontece o pneu dissipa parte dessa energia aplicada nele em forma
de calor, num fenômeno chamado histerese. É daí que vem a maior parte da
temperatura de um pneu, gerada de dentro para fora. Por isso quando se está na
pista é importante checar as temperaturas dentro dos sulcos do pneu, não na
superfície. É possível utilizar um termômetro tipo espeto ou agulha para medir
dentro dos sulcos.

Super Street Online

Hoje em dia se fala bastante dos pneus com baixa resistência à rolagem. O que
é isso? É um pneu que não perde tanta energia por histerese quanto os pneus
projetados mais antigamente. Quando um pneu está parado, ele tem uma
distribuição de pressão simétrica, porém, quando está rolando, devido à
compressão dos sulcos até a linha de centro do pneu e devido à extensão a partir
desta mesma linha, o pneu perde energia por histerese, o que acaba afetando a
distribuição de pressão, causando um momento contrário ao aplicado no pneu,
daí o nome de resistência à rolagem.
Maior força vertical (vertical load) à frente da linha de centro do pneu causando o momento contrário ao
movimento do pneu
Gillespie (adaptado)

Outros dois fatores que afetam as propriedades viscoelásticas são temperatura


e frequência dos ciclos de carregamento (compressão e distensão do pneu).
Quanto maior a temperatura, mais fácil fica para as moléculas dos polímeros se
reajeitarem, até que a temperatura acabe danificando a estrutura dessa cadeia
de moléculas. Para a frequência é o oposto, quanto maior a frequência, mais
rígido fica o material, ele perde elasticidade, não há tempo para as moléculas se
reajeitarem.

OS DESLIZES

Um fator que geralmente causa confusão quando se fala de pneus é a questão


do deslizamento. Sempre ocorre deformação e deslizamento dos pneus, é por
causa dessa deformação e deslizamento que o pneu é capaz de gerar uma reação
às forças impostas a ele. Imagine um elástico, daqueles de ficar jogando nos
outros mesmo, quando você o estica é possível sentir ele se deformando e
criando uma resistência a deformação, em alguns casos é possível sentir que ele
vai se desprendendo conforme a força é aplicada. Com o pneu acontece coisa
semelhante, é necessário que o material viscoelástico se deforme para oferecer
uma reação. O material do pneu se prende à superfície e é estirado, desliza, se
prende de novo e é estirado de novo, é assim que se formam as reações do pneu
no solo, e esse mecanismo de reação é o mesmo para todos os sentidos,
aceleração em linha reta, curvas, frenagem e situações combinadas, como uma
de curva e frenagem/aceleração.

Dave Wong

Mais para o final da área de contato (contact length), a curva de deslizamento


relativo (relative slip) é maior, ou seja, nessa região há um deslizamento maior
do que na região da frente da área de contato do pneu com o solo. Essa diferença
ocorre por causa da compressão da parte dianteira da área de contato e da
distensão da parte traseira. Na parte dianteira, onde há uma compressão, a força
vertical é maior, obviamente, do que na parte traseira, e o material do pneu
consegue se prender mais na superfície quando há uma força vertical maior
sendo aplicada nele, gerando uma reação maior. Entende-se por parte dianteira
da área de contato a parte em que o pneu toca o solo até a linha de centro do
pneu, e traseira a parte da linha de centro até a parte em que o pneu deixa de
tocar o solo. É por isso que as equipes de F1 estão sempre procurando por mais
downforce, para poder utilizar mais esta característica do pneu.
Um contraexemplo neste caso seriam as rodas de um trem, feitas de ferro. Um
trem necessita de trilhos pois o ferro não tem as características que a borracha
tem. No vídeo acima é possível ver como a interação entre a roda do trem e o
trilho se dá. Voltando aos borrachudos, na imagem abaixo podemos observar
um dispositivo para testes de pneus e um pneu sendo testado. Nesta situação a
esteira está puxando o pneu para a esquerda da imagem, e podemos ver
claramente que ele está deformado em relação à sua forma original.
hendonpub

Notem que a roda está apontando para uma direção e o pneu para outra. A
diferença entre a trajetória, o caminho que a roda seguiria é diferente da
trajetória que o pneu seguiria. Ao ângulo formado entre estas duas trajetórias
distintas é dado o nome de ângulo de deriva (slip angle em inglês).
Gillespie (adaptado)

Há também uma diferença de velocidade angular entre a roda e o pneu, o que


causa uma razão ou relação de deslizamento (slip ratio em inglês), a roda gira
mais rápido do que o pneu, podendo chegar até a deslizar dentro dele.

Strange Vehicles

Isso acontecia com o Camaro Z28 da geração passada nos testes de frenagem.
No vídeo abaixo o pessoal da GM explica com mais detalhes e também mostram
como eles resolveram o problema.
ALGUNS NÚMEROS

Bom, pneus precisam se deformar para gerar uma reação, mas qual a
intensidade dessa reação? Quanto ele se deforma para gerá-la? Isso depende de
vários fatores, perfil do pneu, tamanho da área de contato, composto do pneu,
pressão interna, e varia de pneu para pneu, mas todos eles tem características
similares.

Milliken (adaptado)
A imagem acima ilustra uma curva de performance de um pneu, com o ângulo
de deriva em função da força lateral, para uma força vertical aplicada, no caso
1800 lb, e 31 psi de pressão interna. Se mudarmos a força vertical aplicada, a
curva muda, se mudarmos a pressão, a curva também muda. Do mesmo jeito
que pode-se colocar em um gráfico a força lateral, pode-se colocar a força de
frenagem, força de tração e outros parâmetros, como momento de auto-
alinhamento (explicarei o que é isso em outro momento).

Analisando a curva, percebemos que há um ângulo de deriva, uma situação de


deformação do pneu, que produz uma força lateral máxima. Também
percebemos que há uma fase elástica ou linear, uma fase transitória e uma fase
de fricção. Na fase elástica o material do pneu se comporta como um elástico,
é a parte em que ele é estirado, como mencionei no exemplo acima, na fase de
fricção, ou atrito, a área de contato do pneu com o solo está deslizando
completamente, sem a característica de se prender, e a fase transitória é
caracterizada pelas duas coisas acontecendo ao mesmo tempo.

Quando entramos forte em uma curva mas ainda assim conseguimos manter o
controle do veículo é porque estamos na fase transitória, e como pode-se
observar, haverá um momento no qual o pneu se desprenderá, e começará a
deslizar, ainda assim o pneu estará gerando força lateral, como pode-se observar
no gráfico, após 6,5° de ângulo de deriva. É por isso que fazer curvas de lado,
como em um drift, às vezes é possível. No vídeo abaixo é possível ver como os
pneus são abusados em uma situação de pista e o quanto chegam a se deformar.

Outra coisa interessante sobre a deformação dos pneus é que quanto mais
material o pneu tem, menor será o desgaste. Um exemplo, se você tem que
escolher pneus para uma corrida de longa duração e tem duas opções do mesmo
composto, um de seção 205 e um de seção 265, o de 265 vai durar mais voltas,
e, se combinado com a estratégia de combustível, vai fazer o carro parar menos,
ter menos pit stops.

OS COMPONENTES DO PNEU
Como escrevi anteriormente, pode-se plotar (colocar em um gráfico) diferentes
valores em função do ângulo de deriva, como a força lateral, força de frenagem
e força de tração. Também mencionei acima que o mecanismo de reação de um
pneu é o mesmo para todos os sentidos, ele se deforma e gera forças do mesmo
jeito tanto indo pra frente quanto indo pro lado. Pois bem, então todas as curvas
deveriam ter a mesma forma e os mesmo valores, não? Não. Acontece que,
apesar de o material do pneu se deformar e gerar reações por causa disso
independentemente do sentido, o pneu não é feito somente de borracha.

Michelin

O composto polimérico da parede do pneu é geralmente diferente do composto


da banda de rodagem. Além disso, há geralmente pelo menos 3 cintas com
fibras de diferentes materiais abaixo da banda de rodagem, além da cinta que
une a banda de rodagem com a parede. Essas cintas podem ser de vários
materiais, como por exemplo nylon e aço, e o sentido das fibras das cintas
também podem ser variados. Entre as diferentes cintas há material polimérico
também, e todos esses componentes mencionados acima estão colados,
formando uma coisa só.

A cinta que geralmente une a banda de rodagem e a parede é orientada de forma


radial ou diagonal, daí o nome dos pneus radiais e dos pneus diagonais. Cada
pneu tem uma característica construtiva própria, assim, um certo pneu pode ter
5 cintas na banda de rodagem, outro pode ter 3, apesar de manterem as mesmas
características gerais, os pneus são bem diferentes entre si e são bem
complexos.

Os componentes do pneu têm como função primária transmitir esforços. As


cintas são orientadas de forma que possam enrijecer certas áreas do pneu, e a
mesma coisa é válida para os aros metálicos localizados próximos às bordas,
que estarão em contato com as rodas. No caso do pneu da foto, é possível
perceber que a cinta de cor azul tem como função enrijecer a área dos sulcos do
pneu. Já a amarela (a cinta radial) tem como função transmitir esforços das
paredes aos sulcos e vice-versa.
Como em todo material compósito (sim, um pneu é feito de material compósito,
assim com a fibra de carbono), a orientação das fibras têm grande influência em
como o material resiste às tensões aplicadas, ou em palavras menos técnicas,
como o pneu se segura quando o solo e a roda o puxam e deformam, por isso
os valores de força de frenagem não são iguais aos valores de força lateral para
um mesmo ângulo de deriva, o sentido em que a fibra é puxada é diferente.

PST

Reparem que o sentido das fibras deste cardã é diferente do guidão do vídeo
acima. Para tentar clarear um pouco mais essa questão da direção das fibras,
quando um material é tracionado, por exemplo quando estamos puxando um fio
de cobre, ele vai resistir mais do que quando sofre flexão, ou seja, quando esse
mesmo fio for dobrado. Aplicando esse raciocínio no pneu, isso quer dizer que
pneus radiais, por terem as fibras na mesma direção das forças laterais, são
menos sensíveis à mudanças de cambagem, quando comparados com pneus
diagonais (estes últimos com as fibras inclinadas em relação às forças laterais).
Todos esses diferentes componentes requerem um controle de qualidade nos
seus respectivos processos de fabricação e também no processo de fabricação
do conjunto final, o pneu. Como é comum em linhas de produção, as coisas se
parecem, mas não são iguais e saem do controle de vez em quando. Na
fabricação de pneus, se as cintas não estão simétricas, ou se a borracha não está
balanceada o pneu adquire uma conicidade, que é responsável por gerar uma
força lateral quando o pneu rola. O que isso quer dizer? Quer dizer que seu pneu
pode rolar de lado, em vez de rolar em linha reta por causa dessa conicidade,
ou seja, se este pneu for colocado no seu carro, mesmo sem você fazer nada na
direção, seu carro pode ter tendência a ir para um lado por causa dessa
conicidade do pneu.

Euro Stance
Ainda sobre as características construtivas dos pneus, pneus de perfil baixo
tendem a ter paredes e ombros mais reforçados, menos propensos à flexão, o
que resulta em menos deformações, ângulos de deriva menores. Há
desvantagens, pneus de perfil baixo não se conformam bem às ondulações das
ruas, sendo menos confortáveis e mais sensíveis à mudança em amortecedores.
Rodas maiores em conjunto com pneus de perfil baixo podem pesar mais do
que rodas menores e pneus de perfil maior, isso é ruim para a performance pois
o conjunto fica com uma inércia maior, requerendo mais torque para vencer esta
inércia. Pneus de tala menor do que as rodas ficam com as paredes esticadas,
estilo hellaflush, e terão menor deformação também (ocorre um efeito
semelhante a uma pré-carga de mola), mas existe um risco muito maior de
detalonamento (pneu se soltar da roda).

UM POUCO DE ENGENHARIA

Entrando um pouco mais na engenharia, na hora de prever o comportamento de


um pneu é necessário um modelo matemático, uma fórmula para entrar com
alguns parâmetros, ter uma resposta deste modelo (de preferência uma resposta
que tenha uma relação com a realidade) e utilizá-la dentro de outro modelo
matemático para prever o comportamento do veículo. O modelo matemático
mais simples é o de forças de atrito de Coulomb, F=μN, no qual F é a força de
atrito, μ é o coeficiente de atrito e N é a força normal aplicada, levando isso
para o assunto dos pneus, F seria a força lateral ou de frenagem provida pelos
pneus, μ seria uma variável relacionada com construção/composição do pneu e
N seria a força vertical aplicada ao pneu. Esse modelo é linear e pode
corresponder à primeira parte da curva de performance ilustrada nos parágrafos
acima, mas quando se chega na fase transitória e de fricção a curva não é mais
uma reta e se assemelha mais a uma parábola ou uma senoide. Existem alguns
modelos matemáticos para tratar esses dados, sendo o mais famoso o modelo
de Pacejka.

Esse modelo é destrinchado e explicado a fundo em um livro dedicado ao


assunto. A leitura é complicada e um pouco entediante para quem não é da área,
além disso, requer um certo entendimento de cálculo e dinâmica, de materiais,
enfim, quem quiser se aventurar, o nome do livro deste cara é, sugestivamente,
Tyre and Vehicle Dynamics, recomendo a leitura aos que forem persistentes.

OS PRÓXIMOS CAPÍTULOS
Bonny

Agora que os pneus foram apresentados com um pouco mais de profundidade


técnica, podemos passar para os próximos tópicos, começar a discutir aspectos
e conceitos dos carros em si. No entanto, isso vai ficar para a próxima postagem,
na qual vamos discutir aceleração e frenagem, ou, como são chamadas no meio
da engenharia, a dinâmica longitudinal dos automóveis.

Um último recado, se não deu para digerir todas as informações apresentadas,


leiam e releiam quantas vezes acharem necessárias, o assunto é complicado
mesmo. Se chegaram até aqui, agradeço a leitura e até a próxima postagem!

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