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aqa DE QUETROZ I
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m SEGUNDO VERSöES NEVISTAS PELO
AUTOR E PUBLICADAS EM GAZETA DE
ffi FrxAcAo Do rEXTO E NOTAS DE
NOT'CIAS, AT LÄNTICO, NEVISTA ilODEENA,

ffi$ A LM AN AQU E EN C IC LOP ßDICO, ALMANAQU E

M HELENA cIDADE MOURA DO DIÄRIO DE NOTICIAS E FEIXE DE PENAS


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ffi EDI9AO cLIVROS DO ßRAslLr LISBOA
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sem um r<Obrigado>, sem um r<Amo-ter, batendo o lajedo com a
vastidäo das suas solas sonoras. A pobre Fanny admira-o ba-
bosa... E talvez nesse momento, ä outra esquina, o magro
Koriscosso, fazendo no nevoeiro um esguio relevo de poste
telegräfico, soluce com a face magra entre as mäos Eanspa-
rentes,
Pobre Korriscosso! Se ele ao menos a pudesse comover...
Mas qu€! Ela despreza-lhe o corpo de tisico triste; e a alma, näo
lha compreende... Näo que Fanny seja inacessivel a sentimentos
ardentes, expressos em linguagem melodiosa... Mas Korriscosso
vi pode escrever as suas elegias na sua lfngua materna...
No Moinho
E Fanny näo compreende grego... E Korriscosso ö sö um grande
homem * em grego...
Quando desci ao meu quarto, deixei-o soluqando sobre o
catre. Tenhoo visto depois, outras vezes, ao passar em Londres.
Estd mais magro, mais fatal, mais mirrado de zelos, mais cur-
vado quando se move pelo restaurante com a travessa do ros-
bife, mais exaltado no seu lirismo... Sempre que ele me serve
doulhe um xelim de gorieta: e depois, ao sair, apertolhe
sinceramente a mäo.

4 - Contos
Menre oe PrsDeog era considerada em toda a vila
como (uma senhora-modelo>. O velho Nunes, direc-
' tor do Correiq sempre que se falava nela, dizia, aca-
riciando com autoridade os quatro p6los da calva:
- E uma santa! E o que ela 6!
A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante;
era uma loura, de perfil fino, a pele ebrirnea, e os olhos escuros
de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais
o brilho sombrio e doce. Morava ao fim da estrada, numa casa
azul de tr€s sacadas; e erä, para a gente que äs tardes ia fazer
o giro atd ao moinho, um encanto sempre novo v6-la por träs da
vidraga, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura,
vestida de preto, recolhida e sdria. Poucas vezes saia. O marido,
mais velho gue ela, era um invälido, sempre de cama, inutili-
zado por uma doenga de espinha; havia anos que näo descia ä
rüa; avistavam-no äs vezes tambdm ä janela, murcho e tröpego,
agarrado ä bengala, encolhido no robe4e-chambre, com uma
face macilenta, a barba desleixada e com um barretinho de
seda enterrado melancölicamente atd ao cachago. Os filhos,
duas rapariguitas e um rapaz, eram tambdm doentes, crescendo
pouco e com dificuldade, cheios de tumores nas orelhas, choröes
e tristonhos. A casa, interiormente, parecia higubre. Andava-se
Mas se o marido de dentro chamava desesperado, ou um
em pontas dos pes, porque o senhor, na excitagäo nervosa que
dos pequenos choramingava, lä limpava os olhos, lä aparecia
lhe davam as insönias, irritava-se com o menor rumoU havia
j, com a sua bonita face tranguila, com alguma palavra consola-
sobre as c6modas alguma garrafada da botica, alguma malga
lr dora, compondo a almofada a um, indo animar o outrq feliz
com papas de linhaga; as mesmas flores com que ela, no seu
em ser boa. Toda a sua ambigäo era ver o seu pequeno mundo
arranjo e no seu gosto de frescura, ornava as mesas, depressa
bem tratado e bem acarinhado. Nunca tivera desde casada uma
murchavam naquele ar abafado de febre, nunca renovado por
curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na
causa das correntes de ar; e era uma tristeza ver sempre algum
Terra senäc as horas dos remddios e o sono dos seus doentes.
dcis pequenos ou de emplastro sobre a orelha, ou a um canto
Todo o esforEo lhe era fäcil quando era para os contentar:
do canapi, embrulhado em cobertores com uma amarelidäo de
apesar de fraca, passeava horas trazendo ao colo o pequerrucho,
hospital.
que era o mais impertinente, com as feridas que faziam dos
Maria da Piedade vivia assim, desde os vinte anos. Mesmo
seus pobres beicinhos uma crosta escura: durante as insdnias
em solteira, em casa dos pais, a sua exist6ncia fora triste.
do marido näo dormia tambdrn, sentada ao pd da cama, con-
A mäe era uma criatura desagradävel e azedai o pai, que se
versando, lendo-lhe as <Vidas dos Santosr, porque o pobre entre-
empenhara pelas tavernas e pelas batotas, jä velhq sempre
vado ia caindo em devogäo. De manhä estava um pouco mais
b6bedo, os dias que aparecia em casa passava-os ä lareira, num
pälida, mas toda correcta no seu vestido preto, fresca, com os
sil€ncio sombrio, cachimbando e escarrando Para as cinzas.
I

bandös bem lustrosos, fazendo-se bonita para ir dar as sopas


i
Todas as semanas desancava a mulher. E quando Joäo Coutinho
de leite aos peguerruchos. A sua ünica distracgäo era ä tarde
pediu Maria em casamento, apesar de doente jä, ela aceitou,
sentar-se ä janela com a sua costura, e a pequenada em roda,
sem hesitaqäo, quase com reconhecimento, para salvar o case'
aninhada no chäo, brincando tristemente. A mesma paisagem
bre da penhora, näo ouvir mais os gritos da mäe, que a faziam
que ela via da janela era täo mondtona como a sua vida: em
tremer, rezar, em cima no seu quarto, onde a chuva entrava
baixo a estrada, depois uma ondulaqäo de campos, uma terra
pelo telhado. Näo amava o marido decerto; e mesmo na vila
magra plantada aqui e aldm de oliveiras e, erguendo-se ao fundo,
tinha-se Iamentado que aquele lindo rosto de Virgem Maria,
uma colina triste e nua, sem uma casa, uma ärvore, um fumo
aquela figura de fada, fosse pertencer ao Joäozinho Coutinho,
de casal que pusesse naquela solidäo de terreno pobre uma
que desde rapaz fora sempre entrevado. O Coutinho, por morte
nota humana e viva.
do pai, ficara rico; e ela, acostumada por fim äquele marido
Vendoa assim täo resignada e täo sujeita, algumas senhoras
rabugento, que passava o dia arrastando-se sombriamente da
da vila afirmavam que ela era beata: todavia ningudm a avis-
sala para a alcova, ter-se-ia resignado, na sua natureza de enfer-
tava na igreja, a näo ser ao domingo, com o pequerrucho mais
meira e de consoladora, se os filhos ao meno6 tivessem nascido
velho pela mäq todo pälido no seu vestido de veludo azul.
säos e robustos. lr{as aquela famflia que lhe vinha com o
Com efeito, a sua devogäo limitava-se a esta missa todas as
sangue viciado, aquelas exist6ncias hesitantes, que depois pare-
semanas. A sua casa ocupava-a muito para se deixar invadir
ciam apodrecer-lhe nas mäos, apesar dos seus cuidados inquie-
pelas preocupaqöes do C6u; naquele deyer de boa mäe, cum-
tos, acabrunhavam-na. As vezes, s6, picando a sua costura,
prido com amor, encontrava uma satisfagäo suficiente ä sua
corriam-lhe as lägrimas pela face: uma fadiga da vida invadia-a,
sensibilidade; näo necessitava adorar santos ou enternecer-se
como uma ndvoa que ihe escurecia a alma.

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com Jesus. Instintivamente rnesmo pensava que toda a afeigäo alta situagäo no Estado. Mas realmente na vila era sobretudo
excessiva dada ao Pai do Cdu, todo o tempo gasto em se arras- notävel por ser primo do Joäo Coutinho'
tar pelo confessionärio ou aos pds do oratdrio, seria uma dimi- D. Maria da Piedade ficou aterrada com esta visita. Via jä
nuiqäo cruel no seu cuidado de enfermeira: a sua maneira de a sua casa em confusäo com a presenga do hdspede extraordi-
rezar era velar os filhos: e aquele pobre marido pregado numa närio. Depois a necessidade de fazer mais toilette, de alterar
cama, todo dependente dela, tendo-a sd a ela, parecia,lhe ter a hora do jantar, de conversar com um literato, e tantos outros
mais direito ao seu fervor que o outrq pregado numa cruz, esforgos crudis!... E a brusca invasäo daquele mundano, com as
tendo para o amimar toda uma humanidade pronta. Al6m disso suas malas, o fumo do seu charuto, a sua alegria de säo, na
nunca tivera estas sentimentalidades de alma triste que levam paz triste do seu hospital, davalhe a impressäo apavorada de
ä devogäo. O seu longo häbito de dirigir uma casa de doentes, uma profanaEäo. Foi por isso um alivio, quase um reconheci-
de ser ela o centrq a forga, o amparo daqueles invälidos tor- mento, quando Adriäo chegou, e muito simplesmente se insta-
nara-a terna, mas prätica: e assim era ela que administrava agora lou na antiga estalagem do Tio Andrd, ä outra extremidade da
a casa do ,marido, com um bom senso que a afeigäo dirigia, vila. Joäo Coutinho escandalizou-se: tinha jä o quarto do hds-
uma solicitude de mäe prdvida. Tais ocupagöes bastavam para pede preparado, com ldngdis de rendas, uma colcha de damasco,

entreter o seu dia: o maridq de resto, detestava visitas, o pratas sobre a cdmoda, e queria-o todo para -si, o primo, o
aspecto de caras saudäveis, as comiseragöes de cerimdnia; e homem cdlebre, o grande autor... Adriäo pordm recusou:
passavam-se meses sem que em casa de Maria da Piedade se
tenho os meus häbitos, voc€s t6m os seus... Näo nos
-Eu
r:ontrariemos, hem?... O que faqo 6 vir cä jantar. De restq näo
ouvisse outra voz estranha ä famflia, a näo ser a do dr. Abilio
estou mal no Tio Andr6... Vejo da janela um moinho e uma
que a adorava, e que dizia dela com os olhos esSazeadosr
- uma fada! E uma fada!.."
represa que säo um quadrozinho delicioso... E ficamos amigos,
-E näo 6 verdade?
Maria da Piedade olhava-o assombrada: aquele herdi, aquele
fascinador por quem choravam mulheres, aquele poeta que os
Foi por isso grande a excitagäo na casa, quando Joäo Cou- jornais glorificavam, era um sujeito extremamente simples
tinho recebeu uma carta de seu primo Adriäo, que lhe anun- muito menos complicado, menos espectaculoso que o filho
-
ciava que em duas ou trös semanas ia chegar ä vila. Adriäg era do recebedor! Nem formoso era: e com o seu chap€u
um homem cdlebre, e o marido de Maria da Piedade tinha desabado sobre uma face cheia e barbuda, a quinzena
naquele parente um orgulho enfätico. Assinara mesmo um jor- de flanela cainilo ä larga num corpo robusto e pequeno,
nal de Lisboa, sd para ver o seu nome nas locais e na critica. os seus sapatos enormes, parecia-lhe a ela um dos caEadores
Adriäo era um romancista: e o riltimo livro, <Madalena>r, um de aldeia que äs vezes encontrava, quando de m6s a m6s ia
estudo de mulher trabalhado a grande estilo, de uma anälise visitar as fazendas do outro lado do rio. Al€m disso näo fazia
delicada e subtil, consagrara-o como um mestre. A sua fama. frases; e a primeira vez que veio jantar, falou apenas, com
que chegara at6 ä vila, num vago'de legenda, apresentava-o grande bonomia, dos seus negdcios. Viera por eles. Da fortuna
como uma personalidade interessante, um her6i de Lisboa, do pai, a rinica terra que näo estava devorada, ou abominävel-
amado das fidalgas, impetuoso e brilhante, destinado a uma mente hipotecada, era a Curgossa, uma faz-ehda ao pd da vila,

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que andava aldm disso mal arrendada... O que ele desejava era que se lhe falava de ir passar algum tempo ä quinta, afligia-se
vendö-la. Mas isso parecia-lhe a ele täo dificil como lazer a terrivelmente: tinha horror aos grandes ares e aos grandes hori-
<llfadar,!... E lamentava sinceramente ver o primo ali, inritil zontes: a Natureza forte fazia-o quase desmaiar; tornara-se um
sobre uma cama, sem o poder ajudar nesses passos a dar com os ser artificial, encafuado entre os cortinados da cama...
proprietärios da vila. Foi por isso, com grande alegria, que ouviu Ele entäo lamentou-a. Decerto poderia haver alguma satis-
Joäo Coutinho declarar-lhe que a mulher era uma administra- fagäo num dever täo santamente cumprido... Mas enfim, ela
dora de primeira ordem, e häbil nestas questöes como um devia ter momentos em que desejasse alguma outra coisa al6m
antigo räbula!... daquelas quatro paredes, impregnadas do bafo da doenga...
Ela vai contigo ver a fazenda, fala com o Teles, e Que hei-de eu desejar mais? -- disse ela.
- -Adriäo calou-se: pareceuJhe absurdo supor que ela dese-
arranja-te i.sso tudo... E na questäo de prego, deixa-a a ela!.".
Mas que superioridade, prima! exclamou Adriäo m;r- jasse, realmente, o Chiado ou o Teatro da Trindade... No que
-
ravilhado. Um anjo que
-
entende de cifras! ele pensava era noutros apetites, nas ambiEöes do coragäo insa-
-
Pela primeira vez na sua existöncia Maria da Piedade corou tisfeito... Mas isto pareceuJhe täo delicado, täo grave de dizer
com a palavra de um homem. De resto prontificou-se logo a äquela criatura virginal e sdria-que falou da paisagem...
ser a procuradora do primo...
-Jä viu vontade
o moinho?-perguntou-lhe ela.
de o ver, se mo quiser ir mostrar, prima.
No outro dia foram ver a fazenda. Como ficava perto, e
-Tenho
I{oje
era um dia de lvlarEo fresco e claro, partiram a p6. Ao princfpio" 6 tarde.
-Combinaram ir visitar esse recanto de verdura,
acanhada por aquela companhia de um leäo, a pobre senhora logo que
caminhava junto dele com o ar de um pässaro assustado: ape- era o idilio da vila.
sar de ele ser täo simples" havia na sua figura endrgica e mus- Na fazenda, a longa conversa com o Teles criou uma aprG
culosa, no timbre rico da sua voz, nos seus olhos pequenos e ximagäo maior entre Adriäo e Maria da Piedade. Aquela venda,
luzidios alguma coisa de forte, de dominante, que a enleava. que ela discutia com uma astricia de aldeä, punha entre eles
Tinha-se-lhe prendido ä orla do seu vestido um galho de silvado, como que um interesse comum. Ela falou-lhe jä com menos
e como ele se abaixara para o desprender delicadamente, o reserva quando voltaram. Flavia nas maneiras dele de um res-
contacto daquela mäo branca e fina de artista na orla da sua peito tocante, uma atracqäo que a seu pesar a levava ä reve-
saia incomodou-a .singularmente. Apressava o passo para che- lar-se, a darlhe a sua confianga: nunca falara tanto a ningudm:
gar bem depressa ä fazenda, aviar o negöcio com o Teles, e a ningudm jamais deixara ver tanto da'melancolia oculta que
voltar imediatamente a refugiar-se, como no seu elemento errava constantemente na sua alma. De resto as suas queixas
pr6prio, no ar abafado e triste do seu hospital. Mas a estrada eram sobre a mesma dor a tristeza do seu interior, as doen-
-
estendia-se, branca e longa, sob o sol tdpido a conversaEäo Eas, täntos cuidados graves... E vinha-lhe por ele uma sim-
- e
de Adriäo foi-a lentamente acostumando ä sua presenga. patia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente,
Ele parecia desolado daquela tristeza da .casa. DeuJhe desde que ele se tornava assim depositärio das suas tristezas.
alguns bons conselhos: o que os pequenos necessitavam era ar, Adriäo voltou para o seu quarto, na estalagem do Andr6,
.sol, uma outra vida que aquele abafamento de alcova... tmpressionado, interessado por aquela criatura täo triste e täo
Ela tambdm assim o julgava: mas qu6!, o pobre Joäo, sempre doce. Ela destacava sobre o mundo de rnulheres oue atd ali

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conhecera, como um perfil suave de anjo g6tico entre fisiono- pouco curvada, esburacando com a ponteira do guarda-sol as
mias de mesa-redonda. Tudo nele concordava deliciosamente: o ervas bravas que invadiam os degraus: era deliciosa assim, täo
ouro do cabelq a dogura da voz, a moddstia na melancolia, a branca, täo loura, de uma linha täo pura sobre o fundo azul do
Iinha casta, fazendo um ser delicado e tocante, a que mesmo ar: o seu chapdu era de mau gosto, o seu mantelete antiquado,
o seu pequenino espirito burgu€s, certo fundo nistico de aldeä mas ele achava nisso mesmo uma ingenuidade picante. O silön-
e uma leve vulgaridade de häbitos davam um encanto: era um cio dos campos em redor isolava-os e, insensivelmente, ele
-
comeqou a falar-lhe baixo. Era ainda a mesma compaixäo pela
anjo que vivia hä muito tempo numa vilota grosseira e estava
por muitos lados preso äs trivialidades do sitio: mas bastaria um melancolia da sua existöncia naquela triste vila, pelo seu destino
sopro para o fazer remontar ao cdu natural, aos cimos puros de enfermeira... Ela escutava-o de olhos baixos, pasmada de se
da sentimentalidade... achar ali täo sö com aquele homem täo robusto, toda receosa
Achava absurdo e infame fazer a corte ä prima.." Mas e achando um sabor delicioso ao seu receio... Houve um
involuntäriamente pensava no delicioso prazer de fazer bater momento em que ele falou do encanto de ficar ali para sempre
aquele coragäo que näo estava deformado pelo espartilho, e de na vila.
pör enfim os seus läbios numa face onde näo houvesse p6s Ficar aqui? Para qu€? perguntou ela, sorrindo.
- -
qu6? Para isto, para estar sempre ao pd de si...
de arroz... E o que o tentava sobretudo era pensar que poderia
-Para
Ela cobriu-se de um rubor, o guarda-solinho escapou-lhe
percorrer toda a provincia em Portugal, sem encontrar nem
aquela linha de corpo, nem aquela virgindade tocante de alma das mäos. Adriäo receou t6la ofendido, e acrescentou logo
adormecida... Era uma ocasiäo que näo voltava. rindo:
O passeio ao moinho foi encantador. Era um recanto de näo era delicioso?... Eu podia alugar este moinho,
-Pois
fazer-me moleiro... A prima havia de me dar a sua freguesia...
natureza, digno de Corot, sobretudo ä hora do meiodia em que
eles lä foram, com a frescura da verdura, a sombra recolhida Isto f€-la rir; era mais linda quando ria: tudo brilhava nela,
das grandes ärvores, e toda a sorte de murmririos de ägua cor- os dentes, a pele, a cor do cabelo. Ele continuou gracejando,
rente, fugindo, reluzindo entre os musgos e as pedras, levando com o seu plano de se fazer moleiro, e de ir pela estrada tocando
e espalhando no ar o frio da folhagem, da relva, por onde o burro, carregado de sacas de farinha.
corriam cantando. O moinho era de um alto pitoresco, com a E eu venho ajudä-lo, primo! disse ela, animada pelo
- -
seu pröprio riso, pela alegria daquele homem a seu lado.
sua velha edificagäo de pedra secular, a sua roda enorme, quase
podre, coberta de ervas, imdvel sobre a gelada limpidez da Vem? exclamou ele. Jurolhe que me fago moleiro!
-Paraiso, - aqui ambos no- inoinho,
nds ganhando alegremente
ägua escura. Adriäo achou-o digno de uma cena de romance, Que
ou, melhor, da morada de uma fada. Maria da Piedade näo dizia a nossa vida,e ouvindo cantar estes melros!
nada, achando extraordinäria aquela admiraEäo pelo moinho Ela corou outra vez do fervor da sua voz, e recuou como
abandonado do Tio Costa. Como e.la vinha um pouco cansada, se ele fosse jä arrebatä-la para o moinho. Mas Adriäo agora,
sentaram-se numa escada desconjuntada de pedra, que mergu- inflamado äquela ideia, pintava-lhe na sua palawa colorida toda
lhava na ägua da represa os riltimos degraus: e ali ficaram unt uma vida romanesca, de uma felicidade idilica, naquele escon-
rnomento calados, no encanto daquela frescura murmurosa. derijo de verdura: de manhä, a pd cedo, para o trabalho; depois
ouvindo as aves piarem nas ramas. Adriäo via-a de perfil, um o jantar na relva ä beira de ägua; e ä noite as boas palestras ali

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.t
lli
tl
b-
sentados, ä claridade das estrelas ou sob a sombra cälida dos
e pouco compreensfvel: o que a fascinava era aquela- seriedade,
cdus negros de Veräo...
aquele ar honesto e säo, aquela robustez de vida, aquela voz
. E de repente, sem que ela resistisse, prendeu-a nos bragos,
täo grave e täo rica: e antevia, para al6m da sua existöncia
e beijou-a sobre os läbios, de um sd beijo, profundo e ,intermi- ligada a um invälido, outras exist€ncias possiveis, em que se
nävel. Ela tinha ficado contra o seu peitq branca, como morta:
näo v6 sempre diante dos olhos uma face fraca e moribunda,
e duas lägrimas corriam-lhe ao comprido da face. Era assim em que as noites se näo passam a esperar as horas dos rem€-
täo dolorosa e fraca, que ele soltou-a; ela ergueu-se, apanhou o dios... Era como uma rajada de ar impregnado de todas as
guarda-solinho e ficou diante dele, com o beicinho a tremer, forEas vivas da Natureza, que atravessava, sübitamente, a sua
nrurmurando: alcova abafada: e respirava-a deliciosamente.'. Depois, tinha
mal feito...
E mal feito.." ouvido aquelas conversas em que ele se mostrava täo bom,
-F,
Ele mesmo estava täo perturbado que a deixou descer
- täo sdrio, täo delicado: e ä forEa do seu corpo, que admirava,
para o caminho: e daf a um rnomento seguiam ambos calados juntava-se agora um coraEäo ternq de uma ternura varonil e
para a vila. Foi sö na estalagern que ele pensou: <Fui um tololu forte, para a cativar... Este amor latente invadiu-a, apoderou-se
Mas no fundo estava contente da sua generosidade. A noite dela uma noite que lhe apareceu esta ideia, esta visäo: <Se ele
foi a casa dela: encontrou-a com o pequerrucho no colo, lavan' fosse meu maridolr Toda ela estremeceu, apertou desesperada-
do-lhe em ägua de malvas as feridas que ele tinha na perna. mente os braqos contra. o peito, como confundindose com a
E entäo pareceu-lhe odioso distrair aquela mulher dos seus sua imagem evocada, prendendose a ela, refugiandose na sua
doentes. De resto um momento como aquele no rnoinho näo forqa... Depois ele deulhe aquele beijo no moinho.
voltaria. Seria absurdo ficar ali, naquele canto odioso da pro- E partira!
vincia, desmoralizando, a frio, uma boa mäe... A venda da
fazenda estava concluida. Por isso, no dia seguintg apareceu
de tarde, a dizerlhe adeus: partia ä noitinha na diligöncia; encon- Entäo comegou para Maria da Piedade uma exist€ncia de
trou-a na sala, ä janela costumada, com a pequenada doente ani- abandonada. Tudo de repente em volta dela-a doenga do
nhada contra as suas saias... Ouviu que ele partia, sem lhe marido, os achaques dos filhos, as tristezas do seu dia, a sua
mudar a cor, sem lhe arfar o peito. Mas Adriäo achou-lhe a costura lhe pareceu higubre. Os seus deveres, agora que näo
-
punha neles toda a sua alma, eram-lhe pesados como fardm
palma da mäo täo fria como um märmore: e quando ele saiu,
Maria da Piedade ficou voltada para a janela, escondendo a face injustos. A sua vida representava-se-lhe como desgraqa excep-
dos pequenos, olhando abstractamente a paisagem que escurecia, cional: näo se revoltava ainda, mas tinha desses abatimentos,
com as lägrimas, quatro a quatro, caindo-lhe na costura... dessas sribitas fadigas de todo o seu ser, em que cafa sobre a

Amava-o. Desde os primeiros dias, a sua figura resoluta e cadeira, com os bragos pendentes, murmurando:
forte, os seus olhos luzidios, toda a virilidade da sua pessoa, se Quando se acabarä isto?
Refugiava*e entäo naquele amor como uma compensagäo
lhe tinham apossado da imaginaqäo. O que a errcantava nele
deliciosa. Julgando-o todo puro, todo de alma, deixava-se pene-
näo era o seu talento, nem a sua celebridade em Lisboa, nem as
mulheres que o tinham amado: isso para ela aparecia-lhe vago
trar dele e da sua lenta influöncia. Adriäo tornara-se, na sua
imaginagäo, como um ser de proporgöes extraordinärias, tudo

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mdo, eram fraquezas sübitas, sustos de ave que Pousa, um Srlto
o gue 6 forte, e que d belo, e que dä razäo ä vida. Näo quis
ao ouvir bater uma Porta, uma palidez de desmaio se havia na
que nada do que era dele ou vinha dele lhe fosse alheio. Leu
sala flores muito cheirosas'.. A noite abafava; abria a janela;
todos os seus livros, sobretudo aquela <Madalena> que tambdm
mas o cälido ar, o bafo morno da terra aquecida do sol'
amara, e monera de um abandono. Estas leituras calmavam-na,
enchiam-na de um desejo intenso, de uma änsia voluptuosa, cor-
davam-lhe como uma vaga satisfagäo ao desejo. Chorando as
tada de crises de choro...
dorös das heroinas de romance, parecia sentir alivio äs suas,
A santa tornaYa-se Vdnus.
Lentamente, esta necessidade de encher a imaginagäo desses
E o romanticismo mdrbido tinha penetrado tanto naquele
lances de amor, de dramas infelizes, apoderou-se dela. Foi
ser, e desmoralizara-o täo profundamente, que chegou ao
durante meses um devorar constante de romances. Ia-se assim
momento em que bastaria que um homem lhe tocasse, para
criando no seu espirito um mundo artificial e idealizado. A rea-
ela lhe cair nos braqos e foi o que sucedeu enfim, com o
lidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob,aquele aspecto da -
primeiro que a namorou, daf a dois anos. Era o praticante da
sua casa, onile encontrava sempre agarrado äs saias um ser
botica.
enfermo. Vieram as primeiras revoltas. Tornou-se impaciente
Por causa dele escandalizou toda a vila' E agora deixa a
e äspera. Näo suportava ser arrancada aos episddios sentimen-
casa numa desordem, os filhos sujos e ramelosos, em farrapos'
tais do seu livrq para ir ajudar a voltar o marido e sentir-lhe
sem comer at6 altas horas, o marido a gemer abandonado na
o hälito mau. Veiolhe o nojo das garrafadas, dos emplastros, das
sua alcova, toda a trapaSem dos emplastros Por cima das cadei-
feridas dos pequenos a lavar. ComeEou a ler versos. Passava
ras, tudo num desamparo torpe Para andar aträs do homem'
horas s6, num mutismo, ä janela, tendo sob o seu olhar de -
um maganäo odioso e sebento, de cara balofa e gordalhufa,
virgem loura toda a rebeliäo de uma apaixonada. Acreditava
luneta preta com grossa fita passada aträs da orelha e bonö-
nos amantes que escalam os balcöes, entre o canto dos rouxi-
zinho de seda posto ä catita' Vem de noite äs entrevistas de
ndis: e queria ser amada assim, possuida num mistdrio de noite
chinelo de ourelo; cheira a suor; e pedeJhe dinheiro emprestado
romäntica...
para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na
O seu amor desprendeu-se pouco a pouco da imagem de
vila <a Bola de Unto>.
Adriäo e alargou-se, estendeu-se a um ser vago que era feito
de fudo o que a encantara nos herdis de novela; era um ente
meio principe e meio facinora, que tinha, sobretudo, a forga.
Porque era isto que admirava, que queria, por que ansiava nas
noites cälidas em que näo podia dormir dois bragos fortes
-
como ago, que a apertassem num abrago mortal, dois läbios
de fogo que, num beijo, lhe chupassem a alma. Estava uma
histdrica.
As vezes, ao pd do leito do maridq vendo diante de si
aquele corpo de tfsico, numa imobilidade de entrevado, vinha-
-lhe um 6dio torpe, um desejo de lhe apressar a morte...
E no meio desta excitagäo m6rbida do temperamento irri-

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