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SANCHES, M. A. (Org.) Congresso de Teologia da PUCPR, 9., 2009, Curitiba. Anais eletrônicos... Curitiba: Champagnat, 2009.

Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/congressoteologia/2009/

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RELAÇÕES DE AJUDA E CUIDADO:


UM DIÁLOGO ENTRE PSICOLOGIA E TEOLOGIA

Flávia Diniz Roldão1

Diversos profissionais têm se debruçado para estudar o tema das relações de ajuda e
cuidado, dentre os quais, podemos citar Collins, 1996; Boff, 1999; Friesen, 2000, 2007;
Benjamin, 2002; Feldman e Miranda, 2004; Rodrigues, 2004; Silva, 2004(b); Oliveira e
Heimann, 2004; Poujol, 2006; Souza, 2007; Souza e Roldão, 2007. Este trabalho busca fazer
dialogar as disciplinas Teologia e Psicologia sobre essa temática.
Ferreira (s/d), em seu Dicionário da Língua Portuguesa, define ajuda como: dar ajuda,
auxiliar, socorrer, favorecer, facilitar, propiciar, fazer alguma coisa, prestar auxílio, socorrer-
se, prestar auxílio a si mesmo, auxiliar-se reciprocamente. O mesmo autor define cuidado
como: atenção, precaução, cautela, desvelo, encargo, responsabilidade, conta, inquietação de
espírito. Define cuidar, dentre outros significados, como: tratar, aplicar a atenção, o
pensamento, a imaginação.
Ao pensar em relações de ajuda e cuidado não se pode esquecer o aspecto de
reciprocidade e de conexão com um “outro” que o termo expressa. Isso implica, como destaca
o Dicionário 2001 do Homem Moderno (MIRANDA, 1976, p. 930), em algum sentido de
interdependência. Ninguém sai ileso de uma relação. Ninguém sai de uma relação do modo
como entrou nela, pois toda relação é movimento de conexão, onde sempre ocorrem „trocas‟
de idéias, valores, percepções, conhecimentos, energias, emoções.
Em muitos casos [porém nem sempre!], ao mesmo tempo em que o ajudador auxilia o
ajudado, ele também se torna de alguma forma ajudado. Isso não é uma regra, e nem sempre é
possível que seja assim, pois quando se estabelece uma relação de ajuda e cuidado, o ajudado
- aquele que buscou ajuda, deve ser o principal beneficiado. Porém numa relação que ocorre
em um contexto de amizade, ou no contexto familiar, não raramente há uma ajuda e um
cuidado recíprocos. Mesmo quando estas relações se dão num contexto profissional, por vezes
o profissional que cuida e ajuda, além de dar e doar os seus conhecimentos e muito de si
mesmo, também recebe do ajudado alguma ajuda em alguma área da sua vida, embora esse

1
Mestre em Psicologia. Graduada em Teologia. Professora do Curso de Teologia da Faculdade Evangélica do
Paraná.
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não deve ser o objetivo2. Isso ocorre especialmente quando o profissional consegue
estabelecer com o seu ajudado, seja ele um estudante, um paciente, um cliente, um
paroquiano, uma relação do tipo pessoa a pessoa, tal como destacada por Tournier (s/d); ou do
tipo “Eu-Tu”, como fala Buber (1979), ou simplesmente uma relação que envolve
autenticamente dois sujeitos.

RELAÇÕES DE AJUDA E CUIDADO: UM PANORAMA GERAL

Quando um ser humano entra em comunicação com outro através do diálogo, ou das
diversas outras formas de comunicação não-verbal, estabelece uma relação intersubjetiva e se
constrói enquanto pessoa/sujeito ao se relacionar. Ele constrói, sobretudo, a sua identidade3,
pois ela está sempre em movimento. Isso é parte do seu modo de ser e existir. Como diz
Ciampa (1996), identidade é movimento, é metamorfose, é história, é vida. Esse processo de
construção, dentro de uma perspectiva psicológica [conforme a Psicologia Sócio-Histórica ou
Sócio-Cultural] é chamado de internalização. Vygotsky (1989, p. 63), um dos pais da
Psicologia Sócio-Histórica, assim se refere ao processo de internalização: “Chamamos
internalização a reconstrução interna de uma operação externa”.
Conforme a abordagem do psicólogo González Rey – um dos teóricos
contemporâneos que tem trabalhado dentro da abordagem sócio-histórica, mas que substitui o
termo internalização por outros que veremos a seguir - não há uma dicotomia entre externo-
interno, pois, “... a superação da dicotomia intrapsíquico-interativo passa, precisamente, por
uma representação dialética da tensão necessária que existe entre elementos contraditórios em
um mesmo sistema, que é a subjetividade humana” (2001, p. 33). Em sua perspectiva, relação
externo-interno não ocorre de um modo mecânico do âmbito externo para o interno, mas trata-
se de uma “constituição” (2001, p. 52-53), uma “produção” (2003, p. 79), uma “configuração”
(2000, p. 10) que apresenta um novo nível qualitativo. Ele usa estes termos no lugar do termo
internalização.
O fato é que nesta abordagem, diferenciações compreensivas e terminológicas
deixadas a parte, destaca-se o processo de integração/constituição do externo [o social] no
interno [a subjetividade]. Assim, as experiências sociais vivenciadas pelos seres humanos são
integradas em sua própria constituição subjetiva. Daí que teóricos desta abordagem tal como

2
Todas as pessoas sempre necessitam receber algo, e por sua vez, todas têm algo que podem compartilhar.
3
Para aprofundar o assunto remeto o leitor a minha dissertação de mestrado: BALMANT, F. D. R. B. Vivências
em atividades artístico-expressivas e a construção da identidade: um estudo com jovens e adultos-idosos.
Dissertação de Mestrado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2004.
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Vygotsky (1989, 1991) destacam o papel fundamental do social e da linguagem, da narrativa


(BRUNER, 1992, 1997, 2001), da intersubjetividade (SMOLKA; GOES; PINO), do outro
(GONZÁLEZ REY, 2004), e da comunicação (GONZÁLEZ REY, 1999), na constituição
humana.
Dentro da abordagem da Psicologia Sócio-Cultural ou Sócio-Histórica os teóricos não
têm discorrido de modo especifico sobre relações de ajuda e cuidado. Contudo, como grande
parte destes teóricos tem trabalhado questões dentro da área da educação e da psicologia,
entende-se que seus escritos podem oferecer contribuições ainda que de um modo indireto,
mas que podem iluminar nossa compreensão na temática aqui desenvolvida, pois trabalham
categorias que podem ser importantes de serem consideradas nas relações de ajuda e cuidado,
como será destacado no último ponto deste artigo.
No que tange as produções teóricas específicas sobre o tema das relações de ajuda e
cuidado na área da Psicologia, cabe destacar a produção de Feldman e Miranda (2004) que
escreveram um livro que é referência na temática das relações de ajuda. Eles centram-se na
contribuição do modelo desenvolvido por Robert R. Carkhuff. Ao descrever tal modelo
escrevem:

“(...) Desenvolvendo o Modelo de Ajuda, Robert R. Carkhuff buscou


incessantemente uma operacionalização, cada vez maior, das habilidades
interpessoais. Não se tratava então de sonegar informações e conhecimentos aos
interessados em ajudar, mas, ao contrário, de compartilhar as habilidades de ajuda
com o maior número possível de pessoas. Essas incluíam também os chamados
leigos, uma vez que essas dimensões não eram privilégio ou exclusividade dos
profissionais de ajuda. Não só eram encontradas em qualquer segmento da
população, como havia também enorme necessidade de serem aprendidas pelas
pessoas significativas: pais, educadores, patrões, profissionais da saúde, assistentes
sociais, religiosos, empresários, etc. São pessoas que normalmente exercem
influencia marcante na vida dos outros – além, naturalmente, dos próprios
profissionais da área de saúde mental – psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas,
orientadores, conselheiros.”

A este grupo de pessoas acima mencionado, Carkuff chamou ajudadores, e ao grupo


que sofre influências destes, chamou ajudados. No seu entender, “o ajudado é, antes de mais
nada, uma pessoa a quem faltam algumas habilidades de vida” (FELDMAN; MIRANDA,
2004, p. 31).
Este modelo é, a nosso ver, fundamentalmente técnico e linear. Ele é centrado em um
grupo de quatro habilidades interpessoais que deve apresentar o ajudador, e outras quatro
habilidades que o ajudado deve apresentar, tal como explicitam Feldman e Miranda (ibibem,
in passin). O ajudador deve sintonizar com o ajudado, responder a ele comunicando
compreensão, personalizar mostrando ao ajudado sua responsabilidade no problema, e
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orientá-lo nas ações rumo a solução de suas questões. O ajudador: sintoniza, responde,
personaliza e orienta. O ajudado deve: envolver-se com o problema, explorá-lo,
compreender as diversas relações entre a sua vida, o problema e a sua responsabilidade
diante dele, e agir em direção a resolução do mesmo. O ajudado envolve-se, explora,
compreende e age.
Percebe-se que tal modelo é bastante pré-determinado e linear. Assim, indaga-se:
Consegue ele dar conta da complexa dinâmica de uma relação de ajuda, considerando que
toda relação humana abriga sempre em seu constante vir-a-ser o inesperado, tanto da parte do
ajudado, quanto da parte do ajudador? Considera-se interessante as diretrizes por ele
oferecidas, entendendo que elas têm um valor didático e não linear. Destaca-se que o
elemento inesperado e a complexidade, sempre fazem parte das relações humanas e precisam
ser considerados. Também se entende que as influências nas relações humanas, são sempre
intersubjetivas e de mão dupla, e nunca de mão única. Embora necessitem ser lidas e filtradas
pelo profissional que faz o papel de ajudador, no caso das relações de ajuda prestadas no
âmbito profissional.
Buscando assumir um caminho mais flexível nas relações de ajuda, considera-se
importante o profissional buscar criar caminhos próprios nas relações únicas que se estabelece
com cada ajudado. Criatividade, imaginação e espontaneidade, são categorias fundamentais
ao se pensar em relações de ajuda e cuidado.
Quanto ao contexto, há diferentes contextos nos quais podem ocorrer as relações de
ajuda e cuidado. Elas podem acontecer dentro de um contexto profissional, educacional,
familiar, eclesiástico, de lazer, ou de amizade. Oliveira e Heimann (2004, p. 80) ao abordar a
questão “Quem são os cuidadores?” delimitam estes contextos em três, e destacam três
grandes grupos de cuidadores. O primeiro contexto destacado é o das relações de afeto, cujos
cuidadores são os familiares em geral. O segundo contexto é o das relações solidárias, o qual
engloba cuidadores voluntários que ajudam sem receber remuneração pelo serviço ou auxilio
prestado. Por fim, destacam o contexto das relações profissionais, comerciais e burocráticas, o
qual é chamado “terceirização do cuidado”, e do qual fazem parte os diversos profissionais.
Parece importante destacar, entretanto, a idéia de Codo (apud MENEZES, 2004, p.
36), de que “todo trabalho envolve algum investimento afetivo”. É justamente este
envolvimento, que no caso dos ajudadores e cuidadores, implica entre outras coisas, em
estabelecimento de vínculo, que por sua vez implica sempre para ambas as partes [o ajudado e
o ajudador] em um investimento afetivo, e em um risco. Mas para que se estabeleça uma
relação de ajuda ou cuidado, esse risco precisa sempre ser enfrentado.
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Da parte do ajudado, há sempre um risco de sofrer iatrogenia. Iatrogenia é um termo


comum à medicina. A Dra. Márcia R. Lima (2003, p. 1) define-o como “palavra composta que
vem do grego: iatrós (médico) + genos (geração) + ia. Trata-se da expressão usada para
indicar o que é causado [gerado] pelo médico, não só [refere-se] ao que ocorreu pelo que o
médico fez, como também pelo que [este] deixou de fazer e deveria ter feito.”4 Guardadas as
devidas diferenças disciplinares entre a medicina e as outras áreas do conhecimento, nas quais
os profissionais também envolvem-se em diferentes tipos de relações de ajuda e cuidado, bem
como, percebendo a amplitude das formas possíveis de estabelecimento de relações de ajuda,
indagamos sobre a possibilidade e mesmo, a necessidade, de se ampliar as possibilidades de
uso do termo, e falar em iatrogenia, e efeitos iatrogênicos, também no que tange a outras
formas de relação de ajuda estabelecidas em práticas de atenção e cuidado cristão.
Em revisão de literatura, percebemos que já há alguns profissionais de outras áreas do
conhecimento, além da área da medicina, que têm se utilizado deste termo em suas reflexões
teóricas, e se detido a estudar o assunto de um modo mais detalhado. Dentre estes citamos
Madalosso (2000) na área da Enfermagem; e Vechi (2004) na área da Saúde Mental.
Conforme Feldman e Miranda (2004, p. 25-26) pesquisas na área da psicoterapia,
desenvolvidas pelo psicólogo americano Carl Rogers entre os anos de 1962 e 1967,
demonstram que em muitos casos a psicoterapia pode ter efeitos nocivos sobre a pessoa. Na
área da enfermagem, Madalosso (2000, p. 11) alerta ao falar sobre o cuidado:

“Este cuidado é mais que um fazer, é buscar na ecologia interna do ser humano, a
arte de viver em equilíbrio consigo próprio, com os que o rodeiam e com a natureza
que lhe ambienta. Mas o cotidiano de cuidar, apesar desse envolvimento e da
sustentação científico-técnica que o ampara, muitas vezes estabelece situações que
nem sempre são almejadas. Ao invés de resolvermos os problemas do nosso cliente,
somos capazes sim é de gerá-los, e o tão esperado resultado deste cuidado torna-se
indesejável.”

Do lado do ajudador, considerando que toda relação implica em uma mútua conexão e
influência, muitos estudos em relação a profissionais de diversas áreas de ajuda (MELEIRO,
1998; SEBASTINI, 2002; OLIVEIRA, 2004, VASQUEZ-MENEZES, 2004) tem alertado,
para a sobrecarga à qual estes estão expostos continuamente. Tal sobrecarga gera um risco de
esgotamento constante ao próprio profissional. Se este não atentar para o fato de que antes de
cuidar do outro, precisa cuidar de si próprio, pode sofrer muitas complicações e sofrimentos
advindos deste esgotamento, dentre as quais, chamamos a atenção para a Síndrome de
Burnout, sobre a qual falaremos mais a seguir.

4
As expressões entre colchetes são nossas.
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Destacamos como de fundamental importância, que independente do contexto no qual


um ajudador/cuidador atua, bem como, das pessoas as quais ele ajuda ou das quais ele cuida,
deve ser ANTES DE TUDO um ajudador/cuidador de si mesmo. É de fundamental
importância, reconhecer que trabalhar com pessoas, implica em desgaste. O processo de
interação que se estabelece nas relações interpessoais nem sempre é fácil, e implica em
despender energias e esforços em dedicação. Todos precisam repor as energias gastas, e
entender, que têm limitações. Oliveira (2003, p. 29) chama a atenção para isso nas seguintes
palavras: “Trabalhar nossas próprias questões como cuidadores, é fundamental. O cuidar-se é,
num sentido amplo, uma vida com sentido. O cuidado de si mesmo envolve a parte orgânica,
física, bem como a emocional e a espiritual.” A partir de uma visão cristã a respeito, Oliveira
e Heimann (2004, p. 86) escrevem: “O cristianismo, portanto, é um modo de ser e de viver
que se ocupa do outro, mas que não descuida de si mesmo.” O próprio Jesus ordena que os
seus seguidores amem ao seu próximo COMO A SI MESMOS (Mt 22,39). Todo cuidador,
precisa ser antes de mais nada, um auto-cuidador.
Cuidar de si, antes de cuidar do outro, não se trata apenas de uma recomendação ou
um postulado ético, filosófico, ou religioso, trata-se de uma necessidade premente. Vásquez-
Menezes (2004) chama a atenção para o fato de ser o trabalho, uma atividade social
complexa, que apresenta uma dupla possibilidade: prazer e sofrimento; saúde e doença.
Muitos profissionais da área da saúde e educação são acometidos de uma doença
desencadeada pelo trabalho, cujas implicações para a vida e o projeto de vida daqueles que
por ela são acometidos [e muitas vezes sobre a vida e o projeto de vida de suas famílias], não
são nada desprezíveis, muito pelo contrário, trazem muito sofrimento. Trata-se da Síndrome
de Burnout, também chamada de “A Síndrome do Cuidador Descuidado” (PORTERO &
RUIZ apud BENEVIDES-PEREIRA, 2002, p. 33) ou ainda “A Síndrome do Assistente
Desastido” (GONZALEZ apud BENEVIDES-PEREIRA, 2002, p. 33). Esta síndrome advém
da influência direta do mundo do trabalho sobre a pessoa, e compromete profundamente a sua
vida em diversos sentidos. Ao buscar definir o Burnot, Benevides-Pereira destaca a influência
direta do mundo do trabalho como condição para a determinação desta síndrome, e a
perspectiva relacional desta doença (GONZALEZ apud BENEVIDES-PEREIRA, 2002, p.
33). Menezes (2004, p. 37-38) a este respeito alerta:

“Em última instância, o Burnout é uma síndrome de caráter relacional estabelecida


por uma trilogia trabalhador-objeto do trabalho – condições de trabalho. Um
trabalhador que entra em Burnout sofre ansiedade, melancolia, baixa auto-estima,
sentimento de exaustão física e emocional. Compromete suas relações afetivas e
sociais. Compromete sua vida.”
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Se o trabalhador é casado, e chefe de família, quando o problema lhe atinge,


compromete de modo sistêmico toda a sua família, bem como os seus projetos de vida
pessoais e os projetos de vida familiar. Conforme Cray & Cray citados por Benevides-
Pereira (2002, p. 71), não raro são os casos de divórcio que ocorrem diante desta
situação.

RELAÇÕES DE AJUDA E CUIDADO COMO ATO DIACONAL

Neste segundo tópico, discute-se a questão das relações de ajuda e cuidado no


contexto das práticas cristãs atuais. Elas são entendidas aqui como ação diaconal.
Souza, Josgrilberg, e Cunha (2004, p. 10) ao discorrer sobre o diaconato, salientam a
diaconia como algo inerente a toda a Igreja. Josgrilberg (2004, p. 30) escreve: “Diakonia,
no NT, é parte da natureza essencial da ação da Igreja em relação ao mundo. Todos os
ministérios são diaconia. (...) Diakonéw = servir. Diákonos = servo.”
Em Lucas 10, vemos uma das muitas parábolas contadas por Jesus, e cujo ensino
retrata qual a verdadeira postura prática que deve ter um cristão: uma atitude de serviço,
compaixão e cuidado, para com o seu próximo. Cada pessoa tem ao longo de sua vida,
algumas oportunidades de tomar atitudes tais como a do samaritano citado no texto de Lucas,
que exerceu compaixão e cuidado, servindo ao homem que havia sofrido as violências e os
abusos5 de um assalto seguido por omissão de socorro (ROLDÃO, 2006).
Rodrigues (2004, p. 151), entende a prática do cuidado “enquanto compaixão exercida
pelo ato diaconal”. Ele destaca que o fato de sermos filhas e filhos de Deus, nos coloca a
responsabilidade para acolher e socorrer o outro, nosso semelhante.
Quando se fala em ajuda e cuidado, outro termo que vêm à mente é terapia 6, e no
ambiente cristão, fala-se em Igrejas como Comunidades Terapêuticas. NOÉ (2003, p. 11) ao

5
Segundo o Dicionário 2001 do Homem Moderno (MIRANDA, 1978), o termo abuso significa: mal uso, uso
errado, excessivo ou injusto de alguma coisa. Considera-se que o sacerdote e o levita, ao verem o samaritano
caído no chão quase morto, e não lhe prestarem socorro, tem uma atitude abusiva diante dele, pois percebem sua
necessidade, têm a possibilidade de ajudar, mas não o fazem, omitindo-lhe socorro.
6
Terapia é um termo que vem do grego therapéia. Conforme GINGER (1995, p. 144) “therapéia, em grego,
significa cuidado religioso, culto aos deuses. Therapêutris é uma religiosa (...), ou seja, uma mediadora
encarregada de manter uma boa relação entre os homens e os deuses, (...) entre a matéria e o espírito.
Therapeuticos, é aquele que presta cuidados aos deuses ou a um mestre, ou seja, o servidor devoto, serviçal (...)”.
NOÉ (2003, p.10) ao desenvolver o conceito de terapêutica escreve: “O termo „terapêutico‟ deriva-se do verbete
grego therapeuo, que é traduzido no Novo Testamento como sarar ou curar, trazendo a idéia de levar a efeito a
recuperação da doença física ou mental. No grego profano, porém, therapeuo tem o significado de servir ou
„estar a serviço a‟ (...)”.
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discorrer sobre o conceito de Comunidade Terapêutica desde a perspectiva das comunidades


cristãs, levanta dentre outras, a seguinte tese: “a comunidade é terapêutica, na medida em que
possui um caráter diaconal, ou seja, de serviço. Este caráter é vivido dentro do contexto da
própria comunidade, onde um auxilia e cuida do outro. Ele também é vivido para além dos
contornos da comunidade, em relação a pessoas e grupos a sua margem.”
Entende-se que a diaconia é parte da missão, e assim deveria tornar-se um modo de ser
de todo cristão. Esse modo de ser, se aproxima muito do modo-de-ser-cuidado colocado por
BOFF (1999). Por “um modo de ser” ele entende “a forma como a pessoa humana se estrutura
e se realiza no mundo com os outros” (BOFF, 1999, p. 92). Quanto ao modo-de-ser-cuidado,
ele o entende como um modo de ser que permite “ a experiência fundamental do valor,
daquilo que tem importância e definitivamente conta.” (BOFF, 1999, p. 96). “Nesse modo de
ser, no lugar da agressividade, há a convivência amorosa; em vez da dominação, há a
companhia afetuosa, ao lado e junto com o outro” (BOFF, 1999, p. 96). O referencial é a
“inter-ação e a comunhão” (BOFF, 1999, p. 95), a centralidade é ocupada pelo sentimento
(BOFF, 1999, p. 95).
A partir destas idéias concluí-se que, numa perspectiva teológica, cuidar e servir são
atitudes7 muito próximas.
Considerando que o primeiro mandamento é amar a Deus, e o segundo, considerado
de igual importância é amar ao próximo (Mt 22,37-39), e que todo amor se manifesta em atos
de cuidado e ajuda, e isso é servir, entende-se as relações de ajuda e cuidado que se
estabelecem no contexto cristão, como ação diaconal. Tal como Jesus que afirma que não veio
para ser servido, mas para servir (Mc 10,45), também o modo de ser cristão fundado na
diaconia, desafia a um modo de ser serviço, que estabelece a realidade cristã.
As relações de ajuda e cuidado entendidas como ação diaconal, são práticas/serviço
exercidas por pessoas, ou comunidades, e dirigidas a pessoas e/ou comunidades. Funda-se em
princípios cristãos advindos do exemplo e dos ensinos de Jesus. Direcionam-se a partir destes
ensinos, e por isso são fundamentadas nos Evangelhos e na Bíblia como um todo.
Por serem dirigidas a beneficiar a pessoas ou grupos de pessoas 8, e considerando a
elevada complexidade do mundo contemporâneo, as relações de ajuda e cuidado entendidas
como ato diaconal são enriquecidas pelo diálogo entre o saber religioso/espiritual, com as
diversas ciências humanas e da saúde. Por isso esse diálogo não deve ser relegado como algo
sem importância, antes pelo contrário, considera-se importante que ele possa ser estabelecido,

7
BOFF entende que “a atitude é uma fonte, gera muitos atos que expressam a atitude de fundo” (1000 , p. 33).
8
Considera-se aqui a importância de entendermos a pessoa como um ser integral: bio-psico-socio-espiritual.
118

e junto com ele, há a necessidade de que se percebam as potencialidades, peculiaridades, e os


limites de cada forma de saber [cada qual com sua linguagem própria]: o saber
religioso/espiritual [que trata do mistério, da revelação e do sobrenatural], e o científico [que
se funda na materialidade, parte desta, e a esta retorna e nela se finaliza].
Também se considera relevante o saber peculiar que é adquirido mediante a fruição
das artes, sejam eles advindos da poesia, da música, do cinema, ou de outras linguagens. O
próprio Deus foi quem dotou o ser humano de uma dimensão estética, e o fez um ser criativo
e imaginativo. Esse saber sensível, estético, possibilita-nos um conhecimento advindo de uma
dimensão humana especifica: a dimensão estética, e se complementa com os demais tipos de
saberes na totalidade do ser do ajudador/cuidador. Apelando aos sentidos e a emoção, o saber
advindo da dimensão estética do ser, é um saber que possibilita ao ajudador/cuidador o
desenvolvimento do seu lado sensível, e o exercício de aguçamento do uso dos cinco sentidos,
tão fundamental na prática das relações de ajuda e cuidado9.

CATEGORIAS IMPORTANTES DE SEREM CONSIDERADAS NAS PRÁTICAS DAS


RELAÇÕES DE AJUDA E CUIDADO NO ÂMBITO DAS PRÁTICAS CRISTÃS

(...) Pelo olhar passam as grandezas todas e todas as vilezas do ser humano,
pois os olhos sempre revelarão algum estado de nosso mundo interior
Sergio Farina10

Optou-se por iniciar essa subdivisão com a epígrafe acima, pelo fato dela falar sobre a
revelação que é trazida a tona por um olhar. O olhar como instrumento de revelação 11 é algo
que se pretende utilizar aqui.
As práticas de ajuda e cuidado cristão admitem muitas possibilidades de abordagens.
Aqui, intenta-se direcionar o olhar, elencando abaixo algumas categorias teóricas importantes
de serem colocadas em destaque ao se falar em relações de ajuda e cuidado, considerando que
há muitos outros olhares possíveis:
1) A questão da identidade;
2) A centralidade da comunicação e narrativa;

9
A esse respeito indica-se também a leitura do texto de ROLDÃO, F. D.; MÉIER, M. J. Percepção e
Comunicação na Oficina dos sentidos com acadêmicos de um curso de teologia: um relato de experiências.
(texto encaminhado para publicação). E _____. Vivências em Atividades Artístico-Expressivas como estratégia
para uma reflexão grupal sobre os conceitos saúde e doença. Trabalho apresentado no VII Congresso Nacional
de Psicologia Escolar e Educacional. Curitiba, 2005.
10
FARINA, Sérgio. O olhar. In: Novo Olhar. Ano 2. n. 2. mar. 2004.
11
Conforme o dicionário 2001 do homem moderno revelar significa: tirar o véu, descobrir, denunciar, fazer
conhecer, indicar, mostrar, declarar, manifestar, fazer conhecer o sobrenatural.
119

3) O destaque para a figura do “outro”;


4) O papel da linguagem nas relações interpessoais;
5) O ser humano como um ser multidimensional e multiconstruido;
6) A sensibilidade como categoria fundamental nestas relações;
7) A realidade, como uma realidade construída em processos de relação e em
constante movimento;
8) A importância dos processos grupais em processos de ajuda e cuidado;
9) As relações entre educação, modo de vida e os processos de saúde e adoecimento;
10) O lugar da ternura, do carinho e do confronto nestas relações;
11) A importância fundamental da comunicação não-verbal;
12) O “não-fazer-nada” e o papel da oração;
13) O papel do louvor no cuidado da espiritualidade e da saúde mental;
14) O lugar do silêncio na ajuda e no cuidado com o outro;
15) Espontaneidade, criatividade e imaginação como categorias muito importantes
nestas relações;
16) Formação e rompimento de vínculos;
17) Educação x des-cuido/cuidado;
18) Percepção x des-cuido/cuidado;
19) A relação entre o kairós, o Cronos, e o tempo pessoal/subjetivo;
20) O lugar da cultura: contribuições e entraves nestas relações;
21) O papel da família na ajuda e no cuidado;
22) O papel da comunidade eclesiástica: diferentes possibilidades;
23) A função pedagógica do sofrimento para a pessoa do ajudado e do ajudador;
24) Descuido e adoecimento: as várias facetas;
25) Repertório cultural e interação ajudado-ajudador;
26) O exercício da espiritualidade pelo ajudador, como o fundamento da ajuda e
cuidado espiritual;
27) O papel central do emprego de instrumentos ou recursos espirituais específicos da
fé cristã nestas relações de ajuda (oração, meditação, intercessão, etc.);
As categorias anteriormente elencadas têm por objetivo atrair leitor para atentar a elas
no que tange aos fundamentos que podem embasar suas ações de ajuda e cuidado cristão.
Assim, com imaginação e criatividade se pode refletir, organizar e reorganizar as idéias, e
construir com estes elementos [todos, ou alguns deles apenas] e outros a serem acrescidos a
eles, uma possibilidade de ajuda e cuidado cristão teoricamente fundamentada a fim de prestar
120

um auxílio de boa qualidade e ajudar outras pessoas a viverem melhor.

REFERÊNCIAS

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trabalhador. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

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