Você está na página 1de 6

VOCAÇÃO E VIDA PROFISSIONAL1

Por Marcos Bitencourt2

Vocação e vida profissional são temas tão importantes para a reflexão num evento como
este destinado à juventude, que não tenho receio em afirmar que da escolha de uma profissão
casada com uma consciência vocacional adequada depende uma pessoa que quer ter uma vida
de qualidade. Entretanto, devemos levar em consideração a realidade que vivemos no Brasil
atualmente, caracterizada por três problemas: Primeiro, os altos índices de desemprego, fazendo
com que a auto-estima do povo brasileiro esteja tão em baixa que reflexões sobre temas como
vocação e vida profissional fiquem relevados a um segundo plano; partindo dessa primeira
situação vem uma outra, a da dificuldade que os nossos jovens têm de conquistar o seu primeiro
emprego; Advinda dessas duas primeiras barreira aparece a terceira, que é o conflito entre a
vocação e a vida profissional, que eu definiria como o conflito entre o estado de ser e a condição
de efetuar. Muitas pessoas estão em determinadas profissões ou executam determinados
trabalhos por outras motivações que não as vocacionais. Cabe-nos definir de forma simples
quatro termos parecidos, mas não iguais: emprego, trabalho, profissão e vocação, bem como
fazer uma reflexão em torno de aspectos motivacionais da vocação e vida profissional.
Emprego é uma vaga no mercado de trabalho oferecida pelo empregador para o
exercício de atividade com fins produtivos e econômicos, registrada ou não, onde se estabelece
uma relação de subordinação para com a pessoa que preenche a vaga.
Trabalho3 é aquilo que efetivamente se faz visando fins produtivos, econômicos, sociais,
culturais e religiosos, registrado ou não, mas sem necessariamente conter uma relação de
subordinação. Por isso pode-se dizer que achar emprego está difícil, mas não se pode dizer o
mesmo do trabalho. Se eu pego um pedaço de madeira na mata e faço dele uma escultura para
vender na praça; se eu compro 10 quilos de frutas na Ceasa a R$ 50,00 reais e vendo no centro
da cidade a R$ 80,00; se dedico a tarde de Sábado para pintar as paredes do prédio da minha
igreja; tudo isso se constitui em trabalho, ainda que seja ou não para ganhar dinheiro, ainda que
seja ou não parte de uma relação de subordinação. O termo trabalho vem do latim trepalium,
que designa um instrumento de tortura, como pensavam os povos antigos, escravizando os
vencidos numa guerra. Os gregos explicavam o trabalho como o doloroso preço que os deuses
1
Palestra realizada no I Congrego da Juventude da Primeira Igreja Batista em Jaboatão (PE), em 12/07/2003.
2
Mestre em Teologia, Professor do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e Pastor na Igreja Batista em
Afogados (Recife-PE).
3
Não nos cabe aqui fazer uma análise à luz do pensamento de Max Weber sobre o espírito capitalista, uma filosofia
economista sobre o trabalho.
cobravam pelos bens da vida, como pensava Xenofonte (PAULO ROSAS, 1970, p. 97). Na
mitologia da antiga Mesopotâmia, o trabalho era visto de forma depreciativa. Nos famosos textos
do Enuma Elish e Atrahasis, poemas mais antigos que o próprio livro do Gênesis, o trabalho era
em princípio uma tarefa penosa da qual os deuses se encarregavam, quando ainda não existiam
os seres humanos. Essa tarefa penosa foi imposta aos deuses inferiores que, cansados,
rebelaram-se contra os deuses superiores, exigindo providências. Como resultado foi morto um
deus inferior e com o seu sangue, misturado à argila, foram criados 07 pares de seres humanos,
aos quais foi imposta a tarefa dos deuses, ou seja, o trabalho escravo. Na Bíblia a abordagem do
trabalho é ética. Deus trabalha, criando o mundo em seis dias e depois descansa. Mas, no dizer
de Jesus: Meu pai tem trabalhado até agora e eu também . O ser humano não foi criado para o
trabalho escravo, mas recebeu de Deus o exemplo para o trabalho de administrar o jardim do
Éden, regando-o e guardando-o (Gn.2:15), bem como do exercício de certa soberania sobre as
demais criaturas, parte integrante de sua semelhança com Deus, portanto, uma bênção. No
Gênesis, o trabalho escravo e penoso é conseqüência da queda (Gn.3:19), portanto uma situação
de decadência moral e espiritual. Aquilo que os mitos dizem ser a essência do criação, a Bíblia diz
ser a corrupção da criação. Não estaria aqui engastado a idéia popular que vê o trabalho como
um mal necessário?
Profissão é a escolha para uma ocupação na vida, dotada de qualificações,
características, atividades afins, especializações e contra-indicações psicossomáticas ou
ambientais (ACHYLLES CHIAPPIN, 1977, p. 33). Possui um caráter polivalente, ou seja, permite-
se assumir hierarquicamente diversos valores e atividades profissionais. Conheço uma pessoa
que é psicóloga e contadora; um outro é eletricista e pintor; durante 15 anos fui bancário e
professor; Nesse caso, sempre haverá uma ocupação principal e outras secundárias,
suplementares, por razões econômicas, por motivos assistenciais, por hobbie, e também por
motivos existenciais, como o da expansão de personalidade, conforme Achylles Chiappin (1977,
p. 28). A escolha de uma profissão se desenvolve numa certa complexidade. Elizabeth Hurlock,
citada por Merval Rosa (1983, p. 24), aponta sete fatores dessa complexidade: 1) Diferente das
sociedades primitivas, onde a economia se baseava em atividades do setor primário, a sociedade
atual tem uma extensa lista de atividades profissionais, num leque aberto que por vezes
confunde o jovem candidato ao mundo das profissões; 2) O mundo passa por várias mudanças
relativas às habilidades para o trabalho resultantes da crescente automação, a substituição da
pessoa pela máquina; 3) O tempo de preparo e o alto custo financeiro desse preparo em
universidades que a maioria das profissões exige; 4) A dificuldade de encontrar uma profissão na
qual a pessoa não se sinta apenas como peça de uma grande engrenagem, mas na qual adquira
um senso de identidade, na qual se torne uma pessoa com um sentimento de missão; 5)
Dificuldades relativas à falta de conhecimento do indivíduo de suas capacidades devido, ou a
inexperiência profissional, ou à escassez de uma orientação vocacional; 6) Alvos profissionais
irrealistas trazidos da adolescência; 7) Ideais relativos a prestígio social e autonomia financeira;
Dentro da linha de reflexão a que nos propomos neste ensaio, cremos que a dificuldade de
encontrar uma profissão na qual a pessoa não se sinta apenas como peça de uma grande
engrenagem, mas na qual adquira um senso de identidade, na qual se torne uma pessoa com
um sentimento de missão, é a maior delas. Aliar vocação à profissão é o grande desafio para nós
hoje. Entretanto, enquanto não consegue fazer isso devido às razões já descritas, recomendo
que seja seguido o princípio cartesiano: enquanto o indivíduo prossegue metodicamente em sua
dúvida visando chegar à verdade, ele não pode anular os elementos anteriormente adquiridos no
curso de sua vida. Ele só deve deixar um conceito se tiver outro para colocar no lugar dele, isso
porque duvida para crer. Siga-se o mesmo princípio para o conflito vocação versus profissão.
Enquanto não consigo fazê-los convergir numa única linha de vida, seguro o que tenho e busco
com denodo o alvo da vocação. Já que falamos sobre vocação, convém-nos aqui discorrer sobre
o termo.
Vocação é a escolha, não de uma ocupação ou atividade, mas de um estado de vida com
caráter monovalente. O indivíduo pode ter mais de uma atividade profissional, mas poderá viver
um conflito no qual dirá: gostaria muito de me dedicar apenas à essa atividade pois é nela que
eu me realizo. A vocação tem uma ligação intrínseca com a consciência de identidade da pessoa.
Apesar de ser algo interiorizado, a vocação possui aspectos visíveis e frutíferos, ou seja,
reconhece-se na pessoa as marcas vocacionais. Citando um exemplo do ambiente religioso, pode
aparecer aquela pessoa que bastante animada chega para o pastor de sua igreja e diz: Pastor,
sinto que Deus está me chamando para ser missionário na China . Entretanto, sequer gosta ou se
dispõe a falar de Cristo para o seu vizinho. Assim, gostaria aqui de enumerar elementos
constitutivos de uma vocação, não se preocupando aqui necessariamente com o termo vocação
do ponto de vista religioso, mas no âmbito geral, que também fornece elementos para a
compreensão da experiência religiosa. Dentre os elementos constitutivos de uma vocação
genuína, tanto quanto à natureza, quanto à evidência, cito os seguintes:
1) Existe uma profunda conexão entre o “ser” e o “fazer”.
2) Evidencia-se uma forte expressão do “eu” profundo e integral, ou seja, o indivíduo
encontra-se como pessoa.
3) Existe um sentimento de realização e de satisfação, fruição pessoal derivada da
atividade que realiza (experiência do vendedor de autopeças insatisfeito, contada pelo
prof. Luis Almeida Marins Filho, em Motivando para Vencer I).
4) Sentimento de missão. Esse sentimento nos leva de Ter a compreensão de que aquilo
que fazemos vai além do dever.
5) Como decorrência do sentimento de missão vem o de que somos a pessoa certa
ocupando um lugar único.
6) Ainda decorrente do sentimento de missão, advém o sentimento de serviço ao
próximo.
7) Um certo grau de entusiasmo naquilo que faz.
8) A consciência de estar num projeto de construção, edificando estruturas melhores.
9) A capacidade de sonhar e de estar focado em alvos.
10) Conexão entre aptidão e vontade. Esse último elemento é essencial, visto que muitas
vezes diante dos desafios que a vocação impõe à pessoa, surgem barreiras que
podem sugerir à pessoa que ela desista do caminho. A pessoa demonstra Ter as
aptidões necessárias, mas pode ser vencida pela vontade fraca. E, geralmente, nós
somos fracos de vontade(Vide Luis Almeida Marins Filho em Motivando para Vencer
I).4

E agora gostaria de ressaltar um importante aspecto nessa reflexão, o da motivação.


Como ser inteligente e livre o ser humano age determinado por motivos, valores e ideais. Sem
motivação não há ação, nem vida. Motivar é Ter motivos. Motivo e valor são as razões pelas
quais queremos e agimos. Os motivos são os fatores que indicam a direção à atividade finalística
da vida, estimulando-a à ação. A vontade é iluminada pela inteligência que lhe propõe bens e
valores, os quais constituem os motivos do querer, que desencadeando a emotividade, objetivam
a ação. A inteligência me diz para onde devo ir, mas é a vontade quem me arranca do lugar

4
No caso particular da vocação religiosa existe um outro elemento: a consciência de que Deus está chamando a pessoa para
uma atividade especial de âmbito espiritual. Essa consciência pode ser adquirida através de experiências místicas (como em
vários profetas do Antigo Testamento), através da formação do sentimento do ser necessário em função de um apelo (Como
no profeta Isaías, eis-me aqui Senhor, envia-me a mim , Is.6), ou pelo desejo profundo de dedicar-se a uma atividade no
Reino de Deus (como em I Tm.3:1: Se alguém aspira ao episcopado excelente obra deseja ).
onde estou. Por isso, a motivação é o coração da vocação. Muitas pessoas estão buscando
motivações incorretas e escolhendo, dessa forma, ocupações que as deixarão infelizes. Quero
listar aqui algumas delas:
1a) Ocasião  Motivada por valores sentimentais e transitórios. Alguém poderá dizer:
Entendo que Deus me chamou para ser pastor porque numa série de conferências senti uma
forte emoção depois do sermão ; ou ainda: Acho que serei um excelente médico pois certa
ocasião prestei socorro a vítimas de acidente, vendo sangue e sem desmaiar ;
2a) Imposição Familiar  Geralmente, pais frustrados numa carreira que aspiravam
procuram compensar-se no filho, indicando-lhe uma carreira; filhos preteridos na família, tentam
agradar os pais, acorrendo para determinada profissão que eles gostam.
3a) Imposição Econômica  Depois de ouvir uma palestra sobre a personalidade humana
e a realização profissional um grande gerente de um banco estrangeiro disse: Estou rico, mas
sinto-me frustrado vocacionalmente e existencialmente, com um vazio interior .
4a) Imposição Social  Razões de prestígio, de moda, sofisticação.
5a) Agressividade (Achylles Chiappin, 1977, p. 45)  Momento em que para fugir de uma
situação ingrata na família, escola ou sociedade, a pessoa adere a determinada atividade,
permanecendo cronicamente nela, como se fosse a vocação de sua vida. Certa vez um
seminarista que estava na iminência de ser reprovado na mesma matéria pela segunda vez
solicitou-me o seguinte: Professor, me ajude a passar nessa matéria pois a igreja me pressiona;
já tentei muitas coisas na vida e não deu certo; esta agora tem que dar ; Outra experiência veio
de uma jovem que, devido a uma frustração amorosa em sua cidade, veio ao Seminário estudar
par ser uma missionária;
6a) Motivações espirituais incorretas  Advém da dificuldade resultante do dualismo entre
o profano e o sagrado. Comumente pessoas acham que as vocações para atividades de
profissionais liberais ou atividades chamadas de “seculares”, são profanas. Já a atividade do
pastor, do ministro, do sacerdote, são atividades sagradas; Assim, muitos são tentados ou
convencidos a deixar as suas atividades seculares para se tornarem pastores, missionários, por
não terem uma clara visão de sua atividade profissional como um celeiro de oportunidades de
serviço no Reino de Deus. A visão romântica do ministério religioso é apagada com a experiência
e, em seguida, vem a desilusão religiosa.
Uma vocação madura fundamenta-se no autoconhecimento pessoal, através da
percepção das aptidões, interesses, inclinações, características, vontade e da integração entre os
traços de personalidade às profissões correspondentes e firmados em motivações, valores e
ideais da pessoa humana. Deve a pessoa que busca a consciência vocacional, realizar, em
primeiro lugar, a orientação divina. O Senhor pode iluminar a mente da pessoa para que ela
tenha uma clara visão de suas potencialidades. A partir daí deve-se buscar o conhecimento das
aptidões e inclinações pessoais, que pode ser feito através do autodidatismo, resultante do olhar
para si mesmo; mas também pode a pessoa buscar uma orientação vocacional através de
profissionais na área da psicologia disponíveis no mercado. É fundamental que a pessoa defina
seu rumo de vida vocacional, de preferência, antes de tomar outras decisões vitais, tais como
escolher uma esposa ou um marido, os quais também deverão estar casados com a sua escolha
profissional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIAPPIN, Achylles. Realização humana vocacional e profissional. 2 ed. Porto Alegre:


Sulina, 1977.

MARINS FILHO, Luis Almeida. Motivando para vencer I. Fita de Vídeo, 53 minutos [199-]

MOHANA, João. Auto-análise para o êxito profissional. 4 ed. São Paulo: Loyola, 1994.

ROSA, Merval. Psicologia evolutiva: psicologia da idade adulta. V.4. Petrópolis: Vozes, 1983.

ROSAS, Paulo. Vocação e profissão. Petrópolis: Vozes, 1970.

WHITE, Jerry; WHITE, Mary. Seu trabalho: sobrevivência ou satisfação? 2 ed. Rio de
Janeiro: Juerp, 1994.

Você também pode gostar