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DO RELATÓRIO DE ESTÁGIO
ABSTRACT: The report on professional training at a university setting was analyzed with the purpose of
identifying its main characteristics as a genre. A corpus of fifteen papers identified with the function of reporting
on assisted professional training was formed, analyzed and categorized, according to sociointeractionist
principles, particularly those put forth by Bakhtin. The data, although not exhaustive, provide evidence that
there are several genres which seem to derive from the profissional training report proper: the reflective report,
the portfolio, the monograph report, and even the research report. In spite of sharing factors concerning the
communicative situation, those genres can vary considerably with respect to text composition.
1. Considerações iniciais
O relatório de estágio constitui uma prática social bastante disseminada nos domínios
de transmissão e construção do saber, abrangendo diferentes esferas profissionais, mais
especificamente as voltadas para a formação de docentes ou a formação e qualificação de
profissionais liberais, técnicos e prestadores de serviço. Em geral, o relatório de estágio tem
como propósito principal relatar o levantamento de dados sobre determinada área profissional
através de observação e registro de informações, acrescido das atividades de prática
profissional supervisionada, durante o período de formação, na área em questão. Qualquer
setor de atividade humana pode servir de campo de estágio para a realização dessas
experiências profissionais supervisionadas. Alguns exemplos de campo de estágio bastante
comuns são: o setor de uma empresa ou de instituição pública ou privada, uma escola, uma
loja, um hospital, um escritório, uma galeria de artes, uma agência de publicidade, etc.
Numa visão normativa, o relatório de estágio tem uma estrutura física com as
seguintes partes (FURASTÉ, 2005): (a) elementos pré-textuais: capa, folha de rosto, errata,
listas, sumário, sendo que a errata e as listas são opcionais; (b) elementos textuais: introdução,
desenvolvimento e conclusão, todos obrigatórios; (c) elementos pós-textuais: obras
consultadas/referências, apêndices e anexos, estes dois últimos, opcionais.
Do ponto de vista da composição textual, o texto do relatório de estágio apresenta,
tipicamente, uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão, com apresentação de
resultados e, dependendo do objetivo do relato, de recomendações. Essa organização é
bastante consensual entre os estudiosos do gênero, entre os quais Ribas, Levis e Boschila
(apud FLÔRES, OLÍMPIO e CANCELIER, 1996). O relatório de estágio é descrito,
juntamente com o relatório de visita, como um texto que contém uma apresentação (ou
introdução), na qual são postos os objetivos da atividade; um desenvolvimento que
compreende a descrição do local da atividade, bem como das ações e processos empregados;
uma conclusão que destaca o proveito resultante para o(a) estagiário(a) ou as aprendizagens
realizadas (FLÔRES, OLÍMPIO e CANCELIER, 1996).
Nessa visão, o relatório corresponde a um texto que apresenta uma determinada
estrutura. No entanto, se o relatório for entendido como parte das práticas sociais de grupos de
falantes com propósitos específicos, a análise física do documento e da estrutura do texto
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passa a ser insuficiente para dar conta dos múltiplos aspectos que uma ação por meio da
linguagem implica.
Assim sendo, tornou-se evidente a necessidade de pesquisar sobre relatórios de estágio
em situação de uso concreto, numa perspectiva descritiva. Para possibilitar o estudo, foi
constituído um corpus de trabalhos de estágio em circulação no meio acadêmico, avaliados
como bons pelos(as) supervisores(as) de estágio de diferentes áreas do conhecimento. O
objetivo do estudo foi, principalmente, o de identificar a existência de um gênero prototípico
denominado relatório de estágio em uma instituição de ensino superior e, ainda, em caso
afirmativo, que características o gênero apresentava, do ponto de vista textual-discursivo.
Neste artigo descrevemos, analisamos e categorizamos os textos do corpus quanto aos
aspectos enunciativos, à temática desenvolvida, à organização composicional e aos
mecanismos lingüísticos. A base teórica principal para as análises é a da teoria dos gêneros do
discurso, na vertente sociointeracionista. Uma possível aplicação deste estudo é a
disponibilização de subsídios aos(às) profissionais que orientam a produção de relatórios de
estágio, principalmente no âmbito do ensino superior.
2. Referências teóricas
Para Bakhtin, apud Rojo (2005, p.196), os gêneros do discurso constituem-se pela
íntima e indissociável inter-relação de três dimensões: o conteúdo temático, a forma
composicional e o estilo. Os temas são os conteúdos ideologicamente conformados dos quais
se diz algo; a forma composicional corresponde à regularidade de estruturas comunicativas e
semióticas, verificada entre textos que pertencem ao mesmo gênero; o estilo corresponde aos
mecanismos lingüísticos selecionados para falar sobre o tema de modo a atender a uma
situação comunicativa específica.
Essas dimensões do gênero do discurso são articuladas e concretizadas a partir de uma
situação de comunicação específica, na qual ocorrem as práticas sociais. Na situação de
comunicação assumem grande relevância para a constituição de sentidos fatores como: a
esfera de comunicação, o tempo e o lugar históricos, a finalidade discursiva, o tema do
enunciado, as relações entre os participantes, os juízos de valor expressos pelo enunciador e a
modalidade de linguagem ou mídia na qual o texto se concretiza (BAKHTIN, apud ROJO,
2005, p.196-199). Seguindo essa linha de pensamento, fica claro que a escolha (consciente ou
inconsciente) de um gênero está diretamente condicionada por vários fatores enunciativos que
constituem as condições de produção das trocas verbais. Essas condições determinam não só a
escolha do gênero, mas também as escolhas que repercutem na organização textual e nas
seleções lingüísticas.
Os textos empíricos correspondem a realizações únicas de gêneros textuais, que
“apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica” (MARCUSCHI, 2002, p.23). Nesse sentido,
são exemplos de gêneros textuais: a notícia, a reportagem, o anúncio publicitário, o anúncio
classificado, o romance, o poema, a carta, o e-mail, o curriculum vitae, a entrevista, o verbete
de dicionário, o relato histórico, o artigo científico, o relatório, entre inúmeros outros.
Por sua vez, os tipos de discurso compreendem os segmentos lingüísticos constitutivos
de um texto pertencente a determinado gênero (MARCUSCHI, 2002, p.22-23). Cada uma
dessas seqüências encadeia estruturas lingüísticas peculiares, que explicitam atitudes
enunciativas distintas: a de narrar ou comentar (WEINRICH, apud KOCH, 1987, p.37-44), a
de relatar, de expor, de descrever, de fazer previsões, de interferir nas ações do interlocutor,
de realizar trocas de enunciados com um interlocutor. São conhecidos como tipos de discurso:
a narração, a descrição, a exposição, a argumentação, a injunção (ou seqüência diretiva), o
diálogo, a previsão, entre outras possibilidades.
Mas em que condições os textos empíricos são produzidos? A partir de uma
necessidade comunicativa circunscrita a um contexto de situação, ou contexto de produção,
para Bronckart (2003). O autor explica que esse contexto compreende fatores referentes ao
mundo físico (o lugar e o tempo de produção, o produtor, o receptor) e ao mundo social e
subjetivo (o lugar social da produção do texto, a posição social do emissor, a posição social
do receptor e o objetivo da interação). Para que ocorra uma ação de linguagem, é preciso que
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um agente mobilize certos conteúdos temáticos integrando-os aos fatores contextuais. Mas
isso não basta: é preciso organizar o discurso de forma que ele faça sentido para o
interlocutor. Um dos fatores que promovem essa organização é a escolha do modelo de
gênero no repertório historicamente construído e disponível nas diversas formações sociais. A
materialização dessa complexa ação de linguagem é o texto.
Do ponto de vista pedagógico, ao propor um trabalho com textos, é importante criar
situações que permitam aos aprendizes perceber os gêneros textuais e utilizá-los em suas
práticas, a partir de três propriedades: a de serem produzidos por falantes em determinados
ambientes discursivos, sendo, portanto, produtos coletivos desenvolvidos e reelaborados em
contextos socioculturais, ao longo da história; a de terem uma finalidade ou função,
constituindo “um projeto de dizer”; e a de serem endereçados a determinados interlocutores
(MUSSALIM, 2004, p.23).
4. O estudo
(a) Memorial
O texto é escrito em primeira pessoa, com muitas palavras e expressões adjetivadas.
Relata as experiências e a visão particular do autor durante o estágio, sendo altamente
subjetivo. Apresenta poucas citações, cujo propósito parece ser o de ressaltar aspectos
ideológicos e impressões dos(as) autores(as). O memorial distancia-se do objetivo de relatar
as atividades realizadas e de descrever a metodologia utilizada em favor da visão individual
do(a) autor(a) a respeito desses aspectos. Isso fica evidente tanto pela linguagem mais
distensa como pelo fato de não haver, no corpo do texto, uma parte específica para o relato
das atividades e da metodologia adotada. O fragmento apresentado a seguir serve de
ilustração.
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[...] utilizei elementos referentes ao construtivismo sócio-interacionista de
Piaget para a construção das aulas, também mesclei com o que aprendi com as
leituras de Paulo Freire, no que se refere a (sic) questão da importância da formação
para a cidadania. Sei que o correto é ter uma linha clara e definida pedagógica, mas
eu ainda não consegui me definir, mas não vejo isso como um grande problema,
visto que estou aprendendo a trabalhar com educação.
(Fonte: Pesquisa Genera, Memorial de História)
(b) Dossiê:
É um texto formado por produções independentes, porém relacionadas entre si,
compondo diferentes seções. Como o dossiê reúne todos os trabalhos relevantes
desenvolvidos, há seções que compreendem a revisão teórica e o processo de aprendizagem
do(a) estagiário(a) e outras que correspondem ao relato das atividades de estágio. Por uma
questão de adequação, embora o nível de linguagem em geral seja culto, alguns textos são
mais subjetivos, outros, científicos e outros ainda, didático-pedagógicos, concretizando
diferentes propósitos comunicativos. A seleção lexical inclui terminologia da área. A título de
ilustração, transcrevemos um fragmento do dossiê.
6. Considerações finais
O estudo revelou que uma grande diversidade de gêneros circula no meio acadêmico
investigado, cumprindo a função de realizar um relato sobre os estágios. Além do relatório de
estágio propriamente dito, encontram-se em uso outras modalidades textuais como o dossiê
(portfolio), o memorial e até mesmo a mescla de monografia e relatório, constituindo o que
denominamos relatório monográfico. Além disso, houve a ocorrência de um relatório de
pesquisa desempenhando a função de relatório de estágio. Assim, parece mais adequado
referir-se a trabalhos/relatos ou relatórios de estágio (no plural, para dar conta da diversidade
de gêneros que essa categoria pode recobrir). Aparentemente, a variação genérica que ocorre
na situação de comunicação em foco encontra explicação na dinamicidade inerente ao gênero
do discurso, que permite reelaborações e desdobramentos para atender a necessidades
comunicativas emergentes, em contextos de comunicação que sofrem constantes alterações.
No entanto, é preciso considerar que este estudo refere-se a apenas uma instituição de ensino
superior e que o levantamento não é exaustivo.
Os gêneros analisados têm em comum o macropropósito comunicativo, mas
apresentam grande diversidade quanto à composição do texto, nível de formalidade, objeto e
aprofundamento das análises, inclusão e relevância de fontes teóricas. Algumas modalidades
de texto resultam grandemente subjetivas, ao passo que outras parecem seguir um modelo
pré-determinado, apresentando diferenças apenas quanto ao tema específico.
Um dos dilemas do(a) supervisor(a) de estágio que se revela em situações empíricas é
a busca de um modelo de relatório. O que este estudo revela é que, apesar da diversidade de
gêneros, os trabalhos de estágio atingem, de certo modo, os propósitos estabelecidos. Sendo
assim, os aspectos composicionais e as escolhas lingüísticas, embora variados, não precisam
estar sujeitos a um único modelo. O que parece ser relevante é que o solicitante do relatório
de estágio identifique com clareza o objeto e o objetivo do relato. Ou seja, se o objetivo
pedagógico é verificar os domínios teóricos do(a) estagiário(a), a opção deverá ser por um
gênero que inclua revisão de literatura; se o objetivo for verificar as competências de ensino, a
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escolha de um gênero que inclua planos, observação de aula e avaliação, parece ser mais
adequado; se o objetivo for avaliar a capacidade de resolver problemas detectados na área
profissional, o gênero escolhido deve oportunizar esse relato; já se o objetivo for oportunizar
ao(à) estagiário(a) a expressão de percepções, reflexões e sentimentos subjetivos, o gênero
adequado será o que possibilita que esses conteúdos sejam tematizados.
O objeto do relato, dentro do princípio de coerência, deve apresentar consonância com
os objetivos. Mesmo assim, é preciso considerar que o objeto pode ser abordado sob
perspectivas diversas. Eventos, fenômenos a ações podem ser relatados/descritos de um ponto
de vista técnico-científico, pedagógico, pessoal, impessoal, etc. E cada ponto de vista pode ser
decomposto analiticamente ou ser tratado de forma holística, além da possibilidade de
enfoques quantitativos e qualitativos. Na modalidade de interação suposta pelo relatório de
estágio como prática social, o(a) supervisor(a) de estágio tem a prerrogativa de sinalizar o que
lhe parece mais adequado em termos de gênero, a partir do contexto das competências
desejáveis para o(a) aluno(a) egresso(a) das diversas áreas.
Referências
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