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OS MÚLTIPLOS DESDOBRAMENTOS GENÉRICOS

DO RELATÓRIO DE ESTÁGIO

Niura Maria FONTANA


Neires Maria Soldatelli PAVIANI
(Universidade de Caxias do Sul)

ABSTRACT: The report on professional training at a university setting was analyzed with the purpose of
identifying its main characteristics as a genre. A corpus of fifteen papers identified with the function of reporting
on assisted professional training was formed, analyzed and categorized, according to sociointeractionist
principles, particularly those put forth by Bakhtin. The data, although not exhaustive, provide evidence that
there are several genres which seem to derive from the profissional training report proper: the reflective report,
the portfolio, the monograph report, and even the research report. In spite of sharing factors concerning the
communicative situation, those genres can vary considerably with respect to text composition.

KEYWORDS: Report on professional training; social practice; related genres

1. Considerações iniciais

O relatório de estágio constitui uma prática social bastante disseminada nos domínios
de transmissão e construção do saber, abrangendo diferentes esferas profissionais, mais
especificamente as voltadas para a formação de docentes ou a formação e qualificação de
profissionais liberais, técnicos e prestadores de serviço. Em geral, o relatório de estágio tem
como propósito principal relatar o levantamento de dados sobre determinada área profissional
através de observação e registro de informações, acrescido das atividades de prática
profissional supervisionada, durante o período de formação, na área em questão. Qualquer
setor de atividade humana pode servir de campo de estágio para a realização dessas
experiências profissionais supervisionadas. Alguns exemplos de campo de estágio bastante
comuns são: o setor de uma empresa ou de instituição pública ou privada, uma escola, uma
loja, um hospital, um escritório, uma galeria de artes, uma agência de publicidade, etc.
Numa visão normativa, o relatório de estágio tem uma estrutura física com as
seguintes partes (FURASTÉ, 2005): (a) elementos pré-textuais: capa, folha de rosto, errata,
listas, sumário, sendo que a errata e as listas são opcionais; (b) elementos textuais: introdução,
desenvolvimento e conclusão, todos obrigatórios; (c) elementos pós-textuais: obras
consultadas/referências, apêndices e anexos, estes dois últimos, opcionais.
Do ponto de vista da composição textual, o texto do relatório de estágio apresenta,
tipicamente, uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão, com apresentação de
resultados e, dependendo do objetivo do relato, de recomendações. Essa organização é
bastante consensual entre os estudiosos do gênero, entre os quais Ribas, Levis e Boschila
(apud FLÔRES, OLÍMPIO e CANCELIER, 1996). O relatório de estágio é descrito,
juntamente com o relatório de visita, como um texto que contém uma apresentação (ou
introdução), na qual são postos os objetivos da atividade; um desenvolvimento que
compreende a descrição do local da atividade, bem como das ações e processos empregados;
uma conclusão que destaca o proveito resultante para o(a) estagiário(a) ou as aprendizagens
realizadas (FLÔRES, OLÍMPIO e CANCELIER, 1996).
Nessa visão, o relatório corresponde a um texto que apresenta uma determinada
estrutura. No entanto, se o relatório for entendido como parte das práticas sociais de grupos de
falantes com propósitos específicos, a análise física do documento e da estrutura do texto

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passa a ser insuficiente para dar conta dos múltiplos aspectos que uma ação por meio da
linguagem implica.
Assim sendo, tornou-se evidente a necessidade de pesquisar sobre relatórios de estágio
em situação de uso concreto, numa perspectiva descritiva. Para possibilitar o estudo, foi
constituído um corpus de trabalhos de estágio em circulação no meio acadêmico, avaliados
como bons pelos(as) supervisores(as) de estágio de diferentes áreas do conhecimento. O
objetivo do estudo foi, principalmente, o de identificar a existência de um gênero prototípico
denominado relatório de estágio em uma instituição de ensino superior e, ainda, em caso
afirmativo, que características o gênero apresentava, do ponto de vista textual-discursivo.
Neste artigo descrevemos, analisamos e categorizamos os textos do corpus quanto aos
aspectos enunciativos, à temática desenvolvida, à organização composicional e aos
mecanismos lingüísticos. A base teórica principal para as análises é a da teoria dos gêneros do
discurso, na vertente sociointeracionista. Uma possível aplicação deste estudo é a
disponibilização de subsídios aos(às) profissionais que orientam a produção de relatórios de
estágio, principalmente no âmbito do ensino superior.

2. Referências teóricas

Ao analisar o corpus de trabalhos de estágio, partimos da noção de gênero


como mecanismo estruturador das produções verbais orais e escritas, no sentido bakhtiniano
do termo. Ou seja, o de que todas as interações verbais ocorrem em forma de textos, e que
todos os textos se inscrevem num ou noutro gênero. Nesse caso, gênero é visto como uma
espécie de forma-padrão socioistoricamente constituída, reconhecida e produzida por
determinada comunidade de falantes.
Como “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da
linguagem” (BAKHTIN, 2003, p. 261), todos os falantes nas mais diversas áreas do
conhecimento e da atividade humanos interagem por meio de produções verbais que se
caracterizam como gêneros do discurso. Todos os campos da atividade humana produzem
enunciados “concretos e únicos” que atendem aos propósitos comunicativos dos interagentes.
Os enunciados, embora particulares, guardam certos traços em comum que são “relativamente
estáveis”, constituindo formas típicas de enunciados, ou gêneros do discurso. (BAKHTIN,
2003, p. 265).
De modo semelhante, Bronckart (2003) define o gênero como um “modelo abstrato”
para a realização de produções verbais que se assemelham do ponto de vista enunciativo e
organizacional, a partir de um repertório disponível para todos os falantes da língua. Sob esse
ângulo, os gêneros estabelecem a forma de organizar a produção verbal adequada a cada
contexto, tendo, pois, para o falante, um caráter até certo ponto normativo (BAKHTIN, 2003,
p.285). De fato, concordamos com Bakhtin (apud MUSSALIM, 2004, p.28) a esse respeito:
se cada falante tivesse que criar um gênero no momento da fala, a comunicação seria quase
impossível, tanto pela dificuldade de organização momentânea do discurso, quanto pela
ausência de conhecimento compartilhado sobre esse gênero com o interlocutor.
No entanto, apesar de terem esse caráter normativo, os gêneros são dinâmicos e estão
em constante transformação, uma vez que refletem as vivências, as percepções e os valores
dos falantes inseridos em diferentes ambientes discursivos. Bakhtin (2003, p. 262) explica a
razão pela qual os gêneros estão continuamente se reestruturando e multiplicando:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são


inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada
campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se
diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica determinado campo.
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Por serem produtos da cultura, constituídos historicamente, os gêneros tendem a
diversificar-se e a consolidar-se de acordo com necessidades comunicativas específicas nas
esferas de atividade em que circulam. O caráter histórico dos gêneros é acentuado nesta
passagem de Bakhtin (2003, p. 268):

Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de


transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Nenhum
fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem
ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e elaboração de
gêneros e estilos.

Para Bakhtin, apud Rojo (2005, p.196), os gêneros do discurso constituem-se pela
íntima e indissociável inter-relação de três dimensões: o conteúdo temático, a forma
composicional e o estilo. Os temas são os conteúdos ideologicamente conformados dos quais
se diz algo; a forma composicional corresponde à regularidade de estruturas comunicativas e
semióticas, verificada entre textos que pertencem ao mesmo gênero; o estilo corresponde aos
mecanismos lingüísticos selecionados para falar sobre o tema de modo a atender a uma
situação comunicativa específica.
Essas dimensões do gênero do discurso são articuladas e concretizadas a partir de uma
situação de comunicação específica, na qual ocorrem as práticas sociais. Na situação de
comunicação assumem grande relevância para a constituição de sentidos fatores como: a
esfera de comunicação, o tempo e o lugar históricos, a finalidade discursiva, o tema do
enunciado, as relações entre os participantes, os juízos de valor expressos pelo enunciador e a
modalidade de linguagem ou mídia na qual o texto se concretiza (BAKHTIN, apud ROJO,
2005, p.196-199). Seguindo essa linha de pensamento, fica claro que a escolha (consciente ou
inconsciente) de um gênero está diretamente condicionada por vários fatores enunciativos que
constituem as condições de produção das trocas verbais. Essas condições determinam não só a
escolha do gênero, mas também as escolhas que repercutem na organização textual e nas
seleções lingüísticas.
Os textos empíricos correspondem a realizações únicas de gêneros textuais, que
“apresentam características sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica” (MARCUSCHI, 2002, p.23). Nesse sentido,
são exemplos de gêneros textuais: a notícia, a reportagem, o anúncio publicitário, o anúncio
classificado, o romance, o poema, a carta, o e-mail, o curriculum vitae, a entrevista, o verbete
de dicionário, o relato histórico, o artigo científico, o relatório, entre inúmeros outros.
Por sua vez, os tipos de discurso compreendem os segmentos lingüísticos constitutivos
de um texto pertencente a determinado gênero (MARCUSCHI, 2002, p.22-23). Cada uma
dessas seqüências encadeia estruturas lingüísticas peculiares, que explicitam atitudes
enunciativas distintas: a de narrar ou comentar (WEINRICH, apud KOCH, 1987, p.37-44), a
de relatar, de expor, de descrever, de fazer previsões, de interferir nas ações do interlocutor,
de realizar trocas de enunciados com um interlocutor. São conhecidos como tipos de discurso:
a narração, a descrição, a exposição, a argumentação, a injunção (ou seqüência diretiva), o
diálogo, a previsão, entre outras possibilidades.
Mas em que condições os textos empíricos são produzidos? A partir de uma
necessidade comunicativa circunscrita a um contexto de situação, ou contexto de produção,
para Bronckart (2003). O autor explica que esse contexto compreende fatores referentes ao
mundo físico (o lugar e o tempo de produção, o produtor, o receptor) e ao mundo social e
subjetivo (o lugar social da produção do texto, a posição social do emissor, a posição social
do receptor e o objetivo da interação). Para que ocorra uma ação de linguagem, é preciso que
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um agente mobilize certos conteúdos temáticos integrando-os aos fatores contextuais. Mas
isso não basta: é preciso organizar o discurso de forma que ele faça sentido para o
interlocutor. Um dos fatores que promovem essa organização é a escolha do modelo de
gênero no repertório historicamente construído e disponível nas diversas formações sociais. A
materialização dessa complexa ação de linguagem é o texto.
Do ponto de vista pedagógico, ao propor um trabalho com textos, é importante criar
situações que permitam aos aprendizes perceber os gêneros textuais e utilizá-los em suas
práticas, a partir de três propriedades: a de serem produzidos por falantes em determinados
ambientes discursivos, sendo, portanto, produtos coletivos desenvolvidos e reelaborados em
contextos socioculturais, ao longo da história; a de terem uma finalidade ou função,
constituindo “um projeto de dizer”; e a de serem endereçados a determinados interlocutores
(MUSSALIM, 2004, p.23).

3. O gênero relatório de estágio no meio acadêmico

Inserido no ambiente discursivo universitário, o relatório de estágio integra um


conjunto de gêneros acadêmicos de ampla circulação no ensino superior, entre os quais a
resenha, o artigo científico, a monografia, o projeto de pesquisa e a comunicação oral. Do
ponto de vista textual-discursivo, enquanto gênero textual, o relatório de estágio inscreve-se
na categoria relato e situa-se dentro da esfera do relatório técnico-científico, podendo ser
considerado uma subdivisão deste. O propósito do relatório de estágio é o de relatar as
atividades desenvolvidas por aluno(a) estagiário(a) ao(à) supervisor(a) ou coordenador(a) de
estágio, que pode, ou não, pertencer à esfera acadêmica. As condições de produção desse
relatório são bastante restritivas, uma vez que os papéis sociais de supervisores(as) e
estagiários(as) são acentuadamente assimétricos, além da função pedagógica atribuída à tarefa
de produção desse gênero, que é a de ser um instrumento de avaliação. Em decorrência disso,
uma vez que o relatório é solicitado pelo(a) supervisor(a), os objetivos, o conteúdo e o
formato do texto produzido ficam atrelados ao que o solicitante estabelece. Como se percebe,
nesse nível predomina a apreciação valorativa do enunciatário e não do enunciador.
O tipo de interação verbal que se concretiza pelo gênero na modalidade escrita é, pois,
caracteristicamente formal e técnico, não oferecendo ao autor do texto muito espaço para
expressar suas intenções e valorações, a não ser em algumas seções que têm esse propósito,
como a conclusão. Vale lembrar, ainda, que no momento sócio-histórico atual verifica-se uma
tendência a flexibilizar o modelo prototípico dos gêneros mais formais, seja por falta de
convívio com eles (e, por decorrência, desconhecimento da situação de comunicação em que
funcionam e do formato-padrão que se constituiu ao longo do tempo), ou por terem sido
detectadas necessidades e interesses não contemplados pelo modelo consagrado, ou mesmo
pela intenção deliberada de romper com padrões culturais estratificados.
Globalmente, quanto à composição, podem ser identificados nos relatórios de estágio
propósitos comunicativos (ou intuitos discursivos) que se concretizam nas diferentes partes.
Na introdução são estabelecidos os objetivos do relatório, assim como o contexto da área de
atividade específica (caracterização física e funcional, na maioria das vezes apontando
carências ou dificuldades). O macropropósito comunicativo dessa seção é estabelecer um
propósito orientador ao texto e descrever uma determinada realidade, que serve de contexto
para a atividade realizada.
O desenvolvimento ou núcleo do relatório geralmente corresponde à descrição de
aspectos físicos, atividades, eventos, recursos humanos, técnicas, abordagens, estratégias, ou
outros aspectos referentes a ações desenvolvidas pelo(a) estagiário(a). Nesse sentido, verifica-
se uma certa semelhança com a seção metodologia do relatório de pesquisa, já que também
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menciona procedimentos e instrumentos, sem, no entanto, apresentar o rigor exigido da
pesquisa e do texto científico. Seu macropropósito é relatar a realização de uma prática
profissional supervisionada, abrangendo a descrição e/ou o relato das ações desenvolvidas.
Na conclusão, usualmente, estão presentes um resumo das observações/ações, análise
e discussão dos dados globais, avaliação e/ou recomendação, muitas vezes seguidas de um
agradecimento. Além disso, observa-se no corpus uma certa tendência à inclusão de reflexões
pessoais e auto-avaliação da experiência vivenciada. O macropropósito da conclusão
identifica-se com o de realizar um fechamento do tópico desenvolvido, sintetizando os
aspectos principais e assegurando organicidade ao texto.

4. O estudo

Para a realização do estudo sobre o relatório de estágio, foi constituído um corpus


compreendendo quinze trabalhos de estágio, provenientes de diversas áreas do conhecimento,
usualmente denominados “relatórios de estágio” no âmbito acadêmico por onde circulam. A
coleta foi feita de modo seletivo, a partir de dois critérios: emprego do gênero pelos(as)
estagiários(as) e qualidade do trabalho avalizada pelos(as) supervisores(as). Feita a coleta, os
instrumentos foram analisados e categorizados, a partir da noção de gênero discursivo e de
situação de comunicação.

5. Discussão e análise dos dados

As primeiras análises revelaram que os relatórios de estágio apresentam-se de formas


muito variadas, dependendo da área do conhecimento/atividade e de como os estágios estão
estruturados. Posteriormente, uma análise comparativa entre os trabalhos permitiu identificar
neles diferenças consideráveis, principalmente quanto à forma composicional, sugerindo a
necessidade de uma categorização mais minuciosa e mais fiel ao uso.
Em muitos casos, o estágio I corresponde apenas à observação do campo de estágio e o
II à prática profissional. Em determinadas áreas, os estágios estão subdivididos em mais
módulos e estes contemplam recortes específicos dentro da área do saber. Nesses casos, o
relatório atém-se ao objetivo e tópico delimitado, respeitando a estrutura geral de
introdução/contextualização, desenvolvimento/núcleo e conclusão. A apresentação dos dados
também pode variar muito: alguns relatórios são grandemente descritivos, outros apresentam
informações objetivamente, sob a forma de tabelas, quadros e gráficos. A conclusão também
varia de acordo com os objetivos de cada estágio, abrangendo desde a simples síntese da
coleta e discussão de dados, passando pela proposta de solução para eventuais deficiências
detectadas, até a expressão do sentimento experimentado pelo(a) estagiário(a) ao passar por
essa vivência e a avaliação do estágio e do próprio desempenho.
Numa rápida análise desses gêneros, alguns aspectos distintivos emergiram,
possibilitando uma categorização, apoiada também na denominação do gênero explicitada
pelos(as) autores(as). Verificou-se que o trabalho denominado relatório de estágio apresenta
foco no produto e consiste no relato das atividades realizadas pelo(a) estagiário(a). Observou-
se, no entanto, que esse relatório permite também a inclusão de outros gêneros no corpo do
trabalho, como programa da disciplina, planos de aula e artigo acadêmico. Outro gênero
identificado no corpus, o memorial apresenta reflexões, impressões e avaliações, consistindo
em relato subjetivo da experiência de estágio, sem enfatizar as ações desenvolvidas e os fatos
em si. Outra modalidade apontada pelo estudo é o dossiê (ou portfolio), que apresenta foco no
processo, consistindo numa coletânea de textos que correspondem às atividades realizadas no
estágio, tanto as referentes à formação do(a) estagiário(a) quanto as voltadas ao exercício da
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atividade profissional. Houve também a ocorrência de um relatório mesclado, com
características, em seu desenvolvimento, de monografia e de relatório. Embora este cumpra
com o macropropósito de relatar uma observação de dados e, dentro dessa realidade, uma
experiência do profissional em formação, há uma grande ênfase na fundamentação teórica,
característica mais associada à monografia. Para distingui-lo do relatório de estágio no sentido
estrito, optamos por denominá-lo relatório monográfico. O relatório de pesquisa relata a
realização de uma investigação científica, incluindo o problema e objetivos, a metodologia, os
resultados e a conclusão. Nesse caso, esse gênero assumiu a função de relatório de estágio,
não constituindo uma outra variedade.
Uma decorrência óbvia da análise desse quadro foi a tentativa de classificar os
trabalhos estudados como sub-gêneros do relatório de estágio, aqui entendidos como
diferentes variedades, autônomas e suficientemente distintas do gênero mais abrangente com
o qual compartilham alguns aspectos, e do qual, de certa forma, se originam. No caso, foram
encontradas semelhanças entre os sub-gêneros no que concerne aos fatores enunciativos da
situação de comunicação: a finalidade, a relação entre os interlocutores, o momento e o lugar
da enunciação, a modalidade de linguagem escrita e, em parte, os conteúdos temáticos, já que
todos os textos referem-se a atividades de estágio realizadas, mas variam quanto à esfera em
que tais atividades se inserem.
No que diz respeito à composição, há bastante diferença, apesar de quase todos os
textos apresentarem capa, sumário, contextualização, desenvolvimento (apesar de bastante
diferenciado), conclusão, bibliografia e anexos/ apêndices. Eles se constituem como formas
textuais diferentes. Enquanto o memorial apresenta um texto quase sem divisão em seções e
aborda o tema pelo viés dos sentimentos, emoções e reflexões provocados pela experiência do
estágio, o dossiê tem muitas seções independentes, compreendendo gêneros como resenha,
comentário, esquema, diário, plano de aula, ficha de observação e auto-observação, relatório
de aula e artigo acadêmico, (alguns dos quais são objetivos e outros, subjetivos), cuja
organicidade é construída pela introdução e pela conclusão. Já o relatório de estágio
apresenta um texto linear constituído de introdução, desenvolvimento e conclusão, mas
permitindo a inserção de outros gêneros como artigo, plano de aula e programa, revelando
neste particular semelhança com o dossiê. Quanto ao relatório monográfico, apresenta muitas
características semelhantes às da monografia, enfocando em profundidade uma questão, com
ampla revisão bibliográfica, mas incluindo também algumas seções com relatos de atividades
desenvolvidas. Embora o relatório de pesquisa tenha sido usado para relatar atividades de
estágio, sua composição permanece fiel à do texto de pesquisa convencional, razão pela qual
não o consideramos um desdobramento do relatório de estágio.
Na seqüência, os diferentes sub-gêneros identificados neste estudo são caracterizados
do ponto de vista da temática, da forma composicional e do estilo. Servem de ilustração
alguns fragmentos retirados da introdução dos relatórios do corpus.

(a) Memorial
O texto é escrito em primeira pessoa, com muitas palavras e expressões adjetivadas.
Relata as experiências e a visão particular do autor durante o estágio, sendo altamente
subjetivo. Apresenta poucas citações, cujo propósito parece ser o de ressaltar aspectos
ideológicos e impressões dos(as) autores(as). O memorial distancia-se do objetivo de relatar
as atividades realizadas e de descrever a metodologia utilizada em favor da visão individual
do(a) autor(a) a respeito desses aspectos. Isso fica evidente tanto pela linguagem mais
distensa como pelo fato de não haver, no corpo do texto, uma parte específica para o relato
das atividades e da metodologia adotada. O fragmento apresentado a seguir serve de
ilustração.
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[...] utilizei elementos referentes ao construtivismo sócio-interacionista de
Piaget para a construção das aulas, também mesclei com o que aprendi com as
leituras de Paulo Freire, no que se refere a (sic) questão da importância da formação
para a cidadania. Sei que o correto é ter uma linha clara e definida pedagógica, mas
eu ainda não consegui me definir, mas não vejo isso como um grande problema,
visto que estou aprendendo a trabalhar com educação.
(Fonte: Pesquisa Genera, Memorial de História)

(b) Dossiê:
É um texto formado por produções independentes, porém relacionadas entre si,
compondo diferentes seções. Como o dossiê reúne todos os trabalhos relevantes
desenvolvidos, há seções que compreendem a revisão teórica e o processo de aprendizagem
do(a) estagiário(a) e outras que correspondem ao relato das atividades de estágio. Por uma
questão de adequação, embora o nível de linguagem em geral seja culto, alguns textos são
mais subjetivos, outros, científicos e outros ainda, didático-pedagógicos, concretizando
diferentes propósitos comunicativos. A seleção lexical inclui terminologia da área. A título de
ilustração, transcrevemos um fragmento do dossiê.

Entendendo a língua inglesa como instrumento de interação social, adotou-se uma


postura sociointeracionista no planejamento e na execução das práticas de ensino em
que a língua é vista e estudada do ponto de vista funcional e estrutural, com o
objetivo de tornar os alunos hábeis a comunicarem-se na língua, em diversas
situações discursivas.
(Fonte: Pesquisa Genera, Dossiê de Letras/Inglês)

(c) Relatório de estágio


O texto é impessoal, escrito em linguagem cuidada, apresentando uso de termos e de
conceitos técnicos, específicos da área. O estilo é objetivo, direto e conciso, desde a
fundamentação teórica que é breve, passando para o planejamento dos ambientes de
aprendizagem e das experiências de ensino. A conclusão apresenta um discurso mais
subjetivo. Os relatórios de estágio analisados incluem outros gêneros, como programa e plano
de aula, textos técnicos, com terminologia especializada. Alguns desses relatórios incluem o
artigo acadêmico, cuja organização e linguagem são compatíveis com o conteúdo científico, o
propósito e o público do gênero. O fragmento que segue dá uma idéia do estilo adotado.

Utilizando-se dos conhecimentos construídos ao longo do curso abordando


pensadores como Vygotsky, Piaget, Gardener, entre outros, pode-se [sic] construir
ambientes de aprendizagem que possibilitassem ao educando meios de construir o
seu próprio conhecimento ou alicerçar os já existentes.
(Fonte: Pesquisa Genera, Relatório de Estágio de Química)

(d) Relatório monográfico


O estilo desse texto é impessoal, com linguagem cuidada e uso de terminologia
específica da área, pressupondo do leitor conhecimento especializado. As partes de revisão
de literatura têm muitas citações e são construídas de modo bastante formal, estabelecendo os
marcos teóricos que apóiam as ações desenvolvidas. As partes descritivas do campo de
estágio têm um cunho mais técnico, assim como as do relato das atividades desenvolvidas no
estágio. A conclusão assume um tom mais pessoal. A seguir, um fragmento dessa
modalidade de relatório.

Na segunda parte [deste trabalho], apresentarei a fundamentação teórica (tendo em


vista o enfoque sistêmico, cognitivo e psicanálitico), a apresentação do caso, a
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síntese da triagem, a descrição das sessões com posterior entendimento, a
apresentação do genograma do paciente (e sua leitura estrutural e relacional), a
análise das funções de ego, o entendimento dinâmico geral, o diagnóstico e o
prognóstico do caso.
(Fonte: Pesquisa Genera, Relatório Monográfico de Psicologia)

(e) Relatório de pesquisa


Este texto corresponde ao típico relatório de pesquisa, escrito em linguagem cuidada e
formal, com muitas marcas de impessoalização. Do ponto de vista lexical destaca-se o
emprego da terminologia da área, direcionando o texto aos iniciados. O fragmento seguinte
revela essas características.

O Laboratório de Biologia Molecular desenvolve estudos moleculares e


epidemiológicos na área do 'Papilomavírus humano', associados ao Laboratório de
Patologia do CCBS, sendo as amostras coletadas das pacientes atendidas no
Ambulatório de Patologia Cervical LAB 149 [...].
(Fonte: Pesquisa Genera, Relatório de pesquisa de Biologia)

Em resumo, observa-se no relatório de estágio e nos gêneros afins o uso de linguagem


cuidada e terminologia específica de cada área do conhecimento ou esfera de atividade, com
alguma flexibilidade nos textos mais subjetivos. O tema geral atividades de estágio recebe
especificações diversas, dentro das diferentes áreas.

6. Considerações finais

O estudo revelou que uma grande diversidade de gêneros circula no meio acadêmico
investigado, cumprindo a função de realizar um relato sobre os estágios. Além do relatório de
estágio propriamente dito, encontram-se em uso outras modalidades textuais como o dossiê
(portfolio), o memorial e até mesmo a mescla de monografia e relatório, constituindo o que
denominamos relatório monográfico. Além disso, houve a ocorrência de um relatório de
pesquisa desempenhando a função de relatório de estágio. Assim, parece mais adequado
referir-se a trabalhos/relatos ou relatórios de estágio (no plural, para dar conta da diversidade
de gêneros que essa categoria pode recobrir). Aparentemente, a variação genérica que ocorre
na situação de comunicação em foco encontra explicação na dinamicidade inerente ao gênero
do discurso, que permite reelaborações e desdobramentos para atender a necessidades
comunicativas emergentes, em contextos de comunicação que sofrem constantes alterações.
No entanto, é preciso considerar que este estudo refere-se a apenas uma instituição de ensino
superior e que o levantamento não é exaustivo.
Os gêneros analisados têm em comum o macropropósito comunicativo, mas
apresentam grande diversidade quanto à composição do texto, nível de formalidade, objeto e
aprofundamento das análises, inclusão e relevância de fontes teóricas. Algumas modalidades
de texto resultam grandemente subjetivas, ao passo que outras parecem seguir um modelo
pré-determinado, apresentando diferenças apenas quanto ao tema específico.
Um dos dilemas do(a) supervisor(a) de estágio que se revela em situações empíricas é
a busca de um modelo de relatório. O que este estudo revela é que, apesar da diversidade de
gêneros, os trabalhos de estágio atingem, de certo modo, os propósitos estabelecidos. Sendo
assim, os aspectos composicionais e as escolhas lingüísticas, embora variados, não precisam
estar sujeitos a um único modelo. O que parece ser relevante é que o solicitante do relatório
de estágio identifique com clareza o objeto e o objetivo do relato. Ou seja, se o objetivo
pedagógico é verificar os domínios teóricos do(a) estagiário(a), a opção deverá ser por um
gênero que inclua revisão de literatura; se o objetivo for verificar as competências de ensino, a
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escolha de um gênero que inclua planos, observação de aula e avaliação, parece ser mais
adequado; se o objetivo for avaliar a capacidade de resolver problemas detectados na área
profissional, o gênero escolhido deve oportunizar esse relato; já se o objetivo for oportunizar
ao(à) estagiário(a) a expressão de percepções, reflexões e sentimentos subjetivos, o gênero
adequado será o que possibilita que esses conteúdos sejam tematizados.
O objeto do relato, dentro do princípio de coerência, deve apresentar consonância com
os objetivos. Mesmo assim, é preciso considerar que o objeto pode ser abordado sob
perspectivas diversas. Eventos, fenômenos a ações podem ser relatados/descritos de um ponto
de vista técnico-científico, pedagógico, pessoal, impessoal, etc. E cada ponto de vista pode ser
decomposto analiticamente ou ser tratado de forma holística, além da possibilidade de
enfoques quantitativos e qualitativos. Na modalidade de interação suposta pelo relatório de
estágio como prática social, o(a) supervisor(a) de estágio tem a prerrogativa de sinalizar o que
lhe parece mais adequado em termos de gênero, a partir do contexto das competências
desejáveis para o(a) aluno(a) egresso(a) das diversas áreas.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. Tradução


Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, [1979] 2003.
BRONCKART, J.-P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo
sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2003.
FLÔRES, L. L.; OLÍMPIO, L. M. N.; CANCELIER, N. L. Redação: o texto
técnico/científico e o texto literário. Dissertação, descrição, narração, resumo, relatório.
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KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1987.
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MUSSALIM, F. Linguagem: práticas de leitura e escrita. v. 1. Livro de professores. São
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MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. Gêneros: teorias, métodos, debates. São
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