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O direito canónico

Um outro factor de unificação dos direitos europeus é constituído pela influência


homogeneizadora do direito canónico, ao qual dedicaremos os parágrafos seguintes.

A tradição canonística

O direito canónico é o direito da Igreja cristã.


Como instituição, a Igreja sempre teve um direito que, inicialmente, decorreu
quase inteiramente da vontade de Deus, revelada nos livros sagrados (Antigo e Novo
Testamentos). Nos tempos apostólicos, os cristãos alimentaram a esperança de poder
resolver, quer os problemas de disciplina interna da Igreja, quer as relações entre os
crentes, apenas com base na palavra de Deus, nos ensinamentos de Cristo e nas
exigências do amor fraternal. O carácter clandestino do cristianismo nos seus três
primeiros séculos tornavam, de resto, praticamente inevitável a inexistência de
aparelhos jurídicos e judiciários.
Tudo se modificou, porém, com a outorga da liberdade de culto pelo imperador
Constantino, em 313 d.C. A jurisdição do Papa e dos bispos sobre os fiéis pode, agora,
ser abertamente exercida, sendo mesmo fomentada pelo poder imperial, que atribui
força de julgamento às decisões episcopais sobre litígios que lhes tivessem sido
voluntariamente sujeitos e reserva para a jurisdição eclesiástica o julgamento das
infracções puramente religiosas. A partir do século V, o Império - e, depois, os restantes
poderes temporais - reconhece à Igreja o privilégio de foro, atribuindo-lhe uma
jurisdição privativa sobre os clérigos. No século X, a Igreja arroga-se a jurisdição sobre
todas as matérias relativas aos sacramentos, nomeadamente, sobre o casamento.
Esta progressiva extensão do domínio jurídico-jurisdicional da Igreja foi ainda
facilitada pela derrocada das estruturas políticas, jurídicas e jurisdicionais no Ocidente
europeu consequente à queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.) e às invasões
germânicas. Cada vez mais prestigiada culturalmente - pelo seu domínio quase
exclusivo da cultura escrita - e cada vez mais forte e organizada no plano institucional, a
Igreja tende a hegemonizar os mecanismos políticos e jurídicos, impondo-se aos reis e
tutelando as organizações políticas periféricas (cidades e comunidades locais).
Esta expansão institucional da Igreja obriga-a a constituir um corpo normativo
muito mais complexo do que o dos primeiros tempos, pois o conteúdo dos Livros
Sagrados já não pode regular uma sociedade com problemas e cultura diferentes dos da
sociedade hebraica dos tempos bíblicos ou mesmo da comunidade judaico-romana dos
tempos de Cristo.
Uma das fontes desta nova regulação são os decretos dos concílios, ecuménicos,
regionais, provinciais ou diocesanos, assembleias dos bispos de toda a cristandade ou de
uma região, província ou diocese particulares, respectivamente. Em cada diocese,
podem ainda ser promulgados constituições ou estatutos diocesanos, aprovados pelos
sínodos (assembleias de eclesiásticos) locais.
Outra fonte do direito canónico é constituída pelas determinações papais. De
facto, embora inicialmente o poder normativo da Igreja estivesse atribuído aos órgãos
colectivos que eram os concílios e o Papa apenas interviesse para esclarecer ou aplicar
concretamente as normas conciliares, o papado - socorrendo-se frequentemente da
imagem, paralela, do Imperador e das prerrogativas deste segundo o direito romano -
foi, progressivamente, aumentando a sua capacidade de edição do direito, emitindo
decretais ou constituições pontifícias. De acordo com uma tipologia, que tem tanto a ver
com as temáticas como com as suas finalidades, as constituições podem designar-se por
encíclicas, bulas ou breves. Este crescente poder legislativo dos Papas - e a inerente
capacidade para derrogar o direito tradicional - constitui, por sua vez, um modelo para
os monarcas medievais e uma fonte de legitimação da sua reivindicação de inovar, por
via legislativa, os ordenamentos jurídicos dos reinos.
A partir de certa altura, este novo direito escrito da Igreja passa a constituir uma
mole normativa apreciável, a necessitar de compilação e de concatenação. Isso é feito,
por iniciativa privada, durante os séculos VI a VIII, destacando-se delas uma colecção
feita no reino visigótico da Hispania . No século XII, um monge professor de teologia
em Bolonha, Graciano, elabora uma compilação que se iria impor a todas as anteriores e
permanecer como um grande repositório de direito canónico praticamente até à
actualidade - a Concordantia discordantium canonum [concórdia dos cânones
discordantes, c. 1140], mais conhecida por Decretum Gratiani [Decreto de Graciano].
Aí reúne cerca de 4000 textos de relevância jurídica, desde passos de Padres da Igreja
até cânones conciliares, organizados por matérias e brevemente comentados ou apenas
sintetizados (num dictum) 1.

1
Graciano é contemporâneo dos primeiros glosadors (v. infra, Error: Reference source not found); os seus dicta correspondem às
glosas ao Corpus iuris civilis.
Com o contínuo desenvolvimento do direito da Igreja, o Decreto foi-se
desactualizando, tornando necessárias compilações complementares. Em 1234,
Gregório IX encarrega o dominicano espanhol Raimundo de Penhaforte, também
professor em Bolonha, de completar a compilação de Graciano. O resultado foram as
Decretales extra Decretum Gratiani vacantes [Decretais que extravasam o Decreto de
Graciano], divididas em cinco livros 2 . Em 1298, Bonifácio VIII completa-as com mais
um livro, o chamado Liber sextum (ou simplesmente Sextum). Clemente V acrescenta-
lhes as Clementinas (1314). João XXII, as Extravagantes de João XXII (1324). E, nos
finais do século XV, aparecem ainda uma outra colecção oficial, as Extravagantes
comuns. Ao conjunto destas colecções passou a chamar-se Corpus iuris canonici, à
semelhança do nome dado à compilação justinianeia de direito civil 3.

O lugar do direito canónico no seio do direito comum

O direito comum foi basicamente um direito romano-canónico, apesar de nele


estarem também inseridos institutos dos direitos tradicionais dos povos europeus. No
seu seio, o direito canónico desempenhou um papel menos importante do que o direito
romano. Em todo o caso, a sua influência foi determinante em alguns pontos, que nem
sempre se relacionavam com a religião ou a fé. Na verdade, o direito canónico
representava, não apenas o direito da Igreja e das coisas sagradas, mas ainda um direito
mais recente do que o direito romano, uma espécie de direito romano reformado.
Assim, é notória a influência canonística: (i) em matéria de relações pessoais
entre os cônjuges; (ii) na valorização da vontade (em vez da forma) no direito dos
contratos; (iii) na desformalização do direito sobre as coisas (valorização da posse em
relação à propriedade); (iv) na valorização da sucessão testamentária e na
desformalização do testamento; (v) na exigência de boa fé para a prescrição 4; (vi) na
valorização das soluções de equidade (aequitas) contra as decisões de direito estrito
(stricti iuris, rigor iuris, apices iuris); (vii) em matéria processual, na promoção da
composição amigável e da arbitragem; (viii) em matéria processual penal, no

2
Esta sistematização tornou-se num modelo para compilações jurídicas seguintes. É, por exemplo, a utilizada nas Ordenações
portuguesas.
3
O Corpus iuris canonici manteve-se em vigor até 1917, data de publicação do Codex iuris canonici [Código de direito canónico].
4
A fonte são duas decretais, uma de Alexandre III, outra de Inocêncio III.
estabelecimento do processo inquisitório, com uma maior preocupação da averiguação
da verdade material 5.

O direito canónico como limite de validade dos direitos


temporais

A teoria canónica das fontes de direito proclamava a subordinação dos direitos


humanos (secular e eclesiástico) ao direito divino, revelado pelas Escrituras ou pela
Tradição 6. Estes direitos humanos eram considerados como dois modos
complementares de realizar uma ordem querida por Deus.
Todavia, este precário equilíbrio entre os dois direitos terrenos rompeu-se com
as grandes lutas que opuseram o Imperador e o Papa (séculos X a XII) 7, o primeiro
tentando estabelecer uma tutela sobre a Igreja (reclamando, nomeadamente, a
investidura e a deposição dos bispos), o segundo procurando salvaguardar o
autogoverno eclesiástico. Na teoria canónica das fontes de direito, esta ruptura não
podia deixar de ser no sentido de estabelecer a supremacia do direito canónico que, pela
sua própria origem e destino, estaria mais próximo do direito divino. E, assim, o Papa
Gregório VII estabelece, num conjunto de proposições normativas (Dictatus Papae,
1075), o primado do Papa (da Igreja de Roma) sobre os bispos 8; a autonomia da Igreja
e dos clérigos face aos poderes temporais; bem como, por último, a sujeição destes à
tutela de Roma. Estes dois últimos pontos eram, do ponto de vista das relações entre os
direitos canónico e civil, os mais importantes. A autonomia da Igreja e do clero em face
dos poderes temporais, se excluía a nomeação e deposição dos bispos e padres pelos
leigos (reis, senhores ou simples particulares), fundava a isenção dos clérigos em
relação ao foro temporal e a consequente reclamação de um “foro especial” ou
“privilégio de foro” para os eclesiásticos. A sujeição dos poderes temporais ao poder
eclesiástico atribuía ao Papa o poder de depor os reis ou de libertar os súbditos do dever
de lhes obedeceram 9.
5
Fundam-se na aequitas: a interpretação não literal da lei (v.g., a partir da ratio legis), a exigência da culpa nos delitos, a
valorização da boa fé e da intenção das partes no direito negocial, a admissão do carácter verdadeiramente jurídico e accionável dos
nuda pacta (i.e., dos contratos informais).
6
A “tradição” é constituída pelo conjunto de costumes ou de escritos dos Padres da Igreja que vão interpretando a verdade revelada
nas Sagradas Escrituras.
7
O auge desta luta é constituído pela contenda entre o Imperador Henrique IV (1056-1106) e o Papa Gregório VII (1073-1085), a
propósito das investiduras, que termina pela submissão, embora apenas temporária, do Imperador.
8
Dictatus Pape: “Só o Pontífice Romano se diz, por direito, universal” (c. 2); “Só ele pode depor bispos e readmiti-los” (c. 3); “O
legado do Papa preside a todos os bispos nos concílios”; “As causas mais importantes de qualquer igreja devem ser trazidas à Sede
Apostólica” (c. 21); “A Igreja Romana nunca errou” (c. 22); “Não é católico aquele que não estiver de acordo com a Igreja
Romana” (c. 23).
9
Dictatus Pape: ”Os príncipes só devem beijar os pés ao Papa” (c. 9); “É lícito ao Papa depor os imperadores” (c. 12); “O Papa
pode libertar os súbditos dos injustos de lhes obedecerem” (c. 27).
Em todo o caso, esta supremacia do direito canónico - típica da doutrina jurídica
de Santo Agostinho (século VII) e retomada, agora, pelos papas Nicolau II, Gregório
VII e Urbano II e pelos primeiros canonistas, nos séculos XI e XII - é posta em causa no
século XIII, quando a teologia começa a insistir na ideia de que, na esfera temporal, se
prosseguem fins próprios, que não têm a ver a salvação post-mortem, mas apenas com a
boa ordem terrena. Começa então a ser claro que a intervenção correctiva do direito
canónico apenas deveria verificar-se quando a regulamentação temporal pusesse em
causa aspectos decisivos da ordem sobrenatural, tal como a intervenção de Deus (pelo
milagre) apenas tinha lugar quando, de todo em todo, o funcionamento da ordem da
natureza comprometia o plano da salvação 10.
Na sequência disto, canonistas e civilistas procedem a uma elaboração mais
cuidada da questão e - embora afirmando a independência mútua dos ordenamentos
civil e canónico ("nec papa in temporalibus, nec imperator in spiritualibus se debeant
immiscere" [nem o Papa se deve imiscuir nas matérias temporais, nem o Imperador nas
espirituais], afirma o jurista Acúrsio, cf. infra, Error: Reference source not found) -
reconhecem que, nos casos em que entre eles surgisse um conflito grave, a última
palavra pertencia ao ordenamento da Igreja. Assim, o direito canónico apenas vigoraria,
como padrão superior, nos casos em que da aplicação das fontes jurídicas terrenas
resultasse pecado ("critério do pecado", inicialmente formulado por Bártolo 11, um
destacado jurista do século XIV [cf. infra, Error: Reference source not found]; cf., em
Portugal, Ord. fil., III, 64).
Tudo isto, e ainda a ideia muitas vezes afirmada de que entre o direito dos reis e
o direito da Igreja deve existir uma "specialis coniunctio" (especial parentesco) - pois,
aos olhos dos teólogos e dos juristas cristãos da Idade Média, o Império e a Igreja
"dicuntur fraternizare" (diz-se que são irmãos, Bártolo) - constituíam factores muito
poderosos no sentido da uniformização dos direitos locais, à sombra de um modelo
único que, sob este aspecto ultimamente focado, era mais o direito canónico do que o
romano (ou, dado que o direito romano fornecia a ossatura do canónico, continuava a
ser o direito romano através do modelo do canónico).

10
Sobre isto, v. Villey, 1968, 109 ss.
11
Bártolo: "aut loquimur in spiritualibus et pertinentibus ad fidem et stamus canoni...; aut loquimur in temporalibus, et tunc in terris
subiectis Ecclesiae, et sine dubio stamus decretalibus; aut in terra subiectis Imperio, et tunc, aut servare legem est inducere
peccatum... et tune stamus canonibus...; aut non inducit peccatum...et tunc stamus legi..." [ou nos referimos a coisas espirituais e
pertencentes à fé e observamos os cânones ...; ou falamos de coisas temporais e estamos em terras sujeitas ao poder temporal da
Igreja, e então observamos sem dúvida as decretais, ou estamos em terras sujeitas ao Império e então, se observar as suas leis induzir
em pecado, observamos os cânones; ou, se não induzir, observamos a lei] (Super Cod., I, 2 de sacr. eccles., 1 priv.). Sobre isto, bem
como sobre a restante matéria desta alínea, Calasso, 1954, 177-9 e 487-90.

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