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HISTÓRIA DO

DIREITO PORTUGUÊS
SOFIA ALVES CUNHA

FDUL

2019/2020
Primeiro Período Segundo Período

Fontes Direito Fontes Direito

1) Justiça 14) Lei

2) Direito Divino e Natural 15) Ordenações Afonsinas

Direito Positivo Supra Regna 16) Ordenações Manuelinas

3) Direito Canónico 17) Ordenações Filipinas

Ius Regni 18) Leis Extravagantes

4) Direito Legislado 19) Assentos

5) Direito Outorgado e pactuado 20) Estilo das Cortes

6) Costume e Direito Judicial 21) Costume

7) Direito Prudencial 22) Forais

23) Direito Canónico

Institutos Jurídicos 24) Direito Prudencial

8) Família 25) Humanismo Jurídico

9) Esponsais 26) Racionalismo jurídico

10) Casamento Lei da Boa razão e Reforma Universidade

11) Poder paternal e Adoção 27) Questão do Novo Código

12) Direito Sucessório 28) Movimento Codificações

13) Sistema Penal 29) Direito Comercial

30) Direito Administrativo

31) Direito Penal

32) Direito Civil

33) Direito Processual


DIREITO SUPRAPOSITIVO (DIVINO) E DIREITO HUMANO (NATURAL)1

Direito Divino

O direito situa-se não apenas no plano Humano, mas decorre mesmo, em última análise, da realidade que
ultrapassa o homem, Deus. Daí, que se possa falar, e se tenha falado, de direito divino.
Contudo, na Idade Média aludiu-se indiferentemente, por vezes, a direito divino e direito natural. Todavia, a
distinção entre os dois direitos torna-se absolutamente precisa: Santo Tomás de Aquino e Santo Agostinho
distinguem-nos, contudo sem grande rigor.

Da Lei Eterna ao Direito Natural

Para Santo Agostinho, a lei eterna é a razão e vontade de Deus que manda conservar a ordem natural e proíbe
que ela seja perturbada. E a lei natural foi inscrita por Deus no coração do homem, ensinamento de Santo
António.

De acordo com o pensamento de S. Tomás de Aquino, tendo sido retomado por teólogos- juristas peninsulares
dos séculos XVI e XVII com certas alterações terminológicas, existem quatro espécies de leis: a lei eterna, a
lei natural, a lei divina e a lei humana.
A lei eterna é a própria razão de Deus, governadora e ordenadora de todas as coisas. Não era escrita e tinha a
ver com algo transcendente.
Dela procedem a lei natural e a lei divina.
A lei natural foi definida como uma participação da lei eterna na criatura racional que lhe permite distinguir
o bom e o mau.
A lei divina é constituída pelo Velho e Novo Testamento, que foi por Deus expressamente revelada para que
o homem pudesse sem vacilações nem dúvidas ordenar-se em relação ao seu fim sobrenatural, que é a bem-
aventurança eterna.
Relativamente à lei humana, o rei quando aponta a lei não está liberto da lei divina, assim esta resulta da
confluência harmoniosa das anteriores leis.

Pluralidade de entendimentos do Direito Natural

Como veremos o direito natural não se apresenta, assim, como um conceito unívoco.
A grande discussão nas conceções do direito natural do período pluralista, começou com a interpretação das
versões de Gaio e Ulpiano, defendendo o primeiro que o direito natural era racional, e o segundo que era
irracional.
o Gaio, houve quem concebesse o direito natural como eminentemente racional.
o Ulpiano, o direito natural, teria como base o instinto, comum a seres racionais e irracionais.
Entre nós (Portugal), a grande orientação parece ter sido a da racionalidade, uma vez que a vemos subscrita
por Vicente Hispano e Estevão Martins. Reportam-se ao direito natural como derivação da lei eterna e à
conceção desta como razão e vontade de Deus.

Apesar de se tender para a versão de Gaio, isto é, que o direito natural era racional, a par dessa discussão
surgiu uma nova corrente, com uma dupla conceção:
o Profana
Defendia que o direito natural era a razão que se encontrava no próprio homem, que é fruto da natureza de
Deus.
Para Alain de Lille deriva-se da natureza, conceito vago e fluído, que acaba ligado a Deus.
o Sacral
Defendia que era no direito natural que se encontrava a resposta para alguém que se revia em Deus.
Para Santo Agostinho o direito natural, síntese entre a consciência e a graça, foi dado por Deus desde a criação
do homem.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 121 a 133

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Num caso, porém, o direito natural vem de Deus para o homem; noutro caso, provém da realidade das coisas
do mundo físico, para adquirir, depois, conotação moral, na medida em que a natureza é força agente de Deus.
Ou seja, na conceção sacral o direito natural tem como agente e causa eficiente Deus; na profana, a natureza
é o agente primário e Deus apenas causa remota.

De um ou outro modo, o direito natural medievo aparece hoje denominado de direito natural teleológico, por
contraposição ao direito natural da idade Moderna, a que se dá o nome de profano, visto que não é preciso
recorrer a Deus para fundamentar a sua validez.
Nesta linha, o direito natural permanece completamente à margem e é exterior a Deus.

Importância da lei divina e da lei natural no quadro Medievo

Durante o período Medieval, pode-se discutir o que fosse o direito ou a lei divina, mas não a existência dessa
ordem jurídica. A necessidade de ela ser respeitada pelos governantes representava mesmo um dado
axiomático e indiscutível. Os governantes não estavam, alias, apenas subordinados à lei divina, mas também
à lei natural. Este configura-se como algo de transcendente em relação aos titulares do poder como verdadeira
ordem normativa, obrigatória ou vinculatória.
Tratava-se de um setor jurídico que se sobrepunha à vontade dos governantes e aos súbditos, de todo e
qualquer membro da comunidade. Era, aliás, da necessidade de sujeição da ordem jurídica ao direito anterior
ao governante que resultava a inviolabilidade do direito subjetivo para quantos entendiam o príncipe como
fonte única e exclusiva da ordem positiva.
De tudo decorre como requisito e pressuposto fundamental do direito humano a imprescindibilidade da sua
adequação ou conformação com as ordens jurídicas superiores e com a Justiça.

O que é facto é que o Direito Natural é para os homens deste período um corpo normativo absolutamente
essencial.
Sem prejuízo de uma pluralidade de entendimentos, sem prejuízo de haver nuances a cerca da forma como
o Direito Natural foi conceptualizado, o que mostra a enorme riqueza de pensamento em torno desta
pluralidade normativa complexa que marcou o pensamento na Idade Média também em Portugal, o que é
facto é que há um pensamento unânime de todos os autores em torno desta ideia de que o Direito Natural é
absolutamente essencial, é um corpo normativo que se impõe com particular vigor, é um conjunto limitado
de preceitos que devem ser observados por todos, nomeadamente, aqueles que criam Direito, quer seja a
comunidade quando cria as suas regras através do costume, quer sejam os decisores quando criam Direito
através das suas sentenças, quer seja o Rei.

Crítica | Princípio Imutabilidade e Inderrogabilidade

Quando se criticou o Direito Natural, considerou-se que ele apontava para a rigidez. Os doutrinadores deste
período quando falaram nesta lei justa por natureza, que se impunha à observância dos homens,
nomeadamente, quando criavam as suas próprias regras através de uma pluralidade de fontes, entendia-se que
este Direito era um Direito fixo, imóvel, universal, intemporal.

De facto, nós encontramos algumas ideias defendidas por grandes nomes do pensamento desta altura, como
por exemplo Graciano, que no seu decreto, em 1140, entende que o Direito Natural seria universal e
intemporal.
Porém, esta conceção rapidamente surgiu aos homens da época como uma perspetiva que traduziria uma
rigidez excessiva do Direito Natural.

Portanto, não é justa a crítica que foi feita ao Direito Natural de que ele seria um Direito imóvel no tempo e
no espaço. Muito pelo contrário, teólogos que meditaram sobre o Direito Natural, vão afirmar que nele
podemos encontrar preceitos que impõem, preceitos que proíbem e preceitos que meramente aconselham ou
persuadem. Estes últimos, não seriam universais nem intemporais.

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Solução | Evolução do Direito Natural e do Direito Divino

É necessário que a razão humana descubra preceitos que são particularmente valiosos. Como é que nós
conseguimos concretizar esta ideia de que há uma participação da lei eterna na criatura racional que lhe
permite distinguir o bem do mal, que é, no fundo, a visão tomista do Direito Natural?

Diz-nos São Tomás de Aquino, para concretizar esta construção define:

o Preceitos Primários
Deus inscreve no coração do homem três tendências:
1)Tendência para viver em sociedade
O homem é um animal gregário, tem esse apetite social, mais do que os animais irracionais que vivem nesse
estado, como as formigas ou as abelhas
2)Tendência para a conservação do ser
3)Tendência para conhecer a verdade

São Tomás de Aquino não invalida a hipótese de outros pensadores puderem identificar outras tendências
inatas em nós. Contudo, estes preceitos, porque são imediatamente derivados das tendências que Deus
inscreveu no homem, que decorrem de forma evidente e irracionalmente para todos, em todas as épocas, em
todos os locais, diz-nos São Tomás de Aquino que são universais e intemporais.

o Preceitos Secundários
Aqui, operando a nossa razão, São Tomás de Aquino já admite a dúvida, admite que nalguns sistemas de
direito complexos, se possa entender que a regra é que o bem, mesmo assim, deve ser entregue ao seu
depositário, ou, então, a regra exatamente oposta, em que essa obrigação de entregar o bem cessa.
Admite, portanto, a variação dos preceitos secundários do Direito Natural.

Assim, falece a crítica ao Direito Natural medievo de que este seria um direito cristalizado no tempo e no
espaço, pois só os preceitos primários, aqueles que são evidentes para todos, é que se impõem universal e
intemporalmente. Os preceitos secundários do Direito Natural, que decorrem dos primários e estão mais longe
das tendências inatas em nós, admitem variação no tempo e no espaço.

o Preceitos Terciários
O Direito Natural é um corpo limitado e valioso de princípios, de regras, não serve para disciplinar da forma
mais concreta e mais precisa os comportamentos, pois esse é o papel do Direito positivo.

O Direito Natural funciona como padrão de validade, funciona, no fundo, como critério de aferição da justeza
do Direito que é criado positivamente. Isto é evidente para todos os homens deste período histórico.

O direito natural assenta em preceitos primários (auto evidentes, de fácil perceção que não
comportam, em momento algum, qualquer possibilidade de alteração: direito à vida), preceitos
secundários (exigem um esforço de raciocínio, por parte do homem comum, para os perceber, e,
como tal, admitem a possibilidade de alteração: usucapião) e preceitos terciários (exigem um
esforço adicional de raciocínio para os perceber, o que só esta ao alcance dos sábios. Admitem
também a possibilidade de alteração)

No direito divino, só́ os preceitos móveis (que correspondiam aos secundários e terciários do
direito. natural) admitiam a mudança, pelo que os preceitos imoveis (correspondentes aos
primários do direito natural) não admitiam alterações, pois tratavam-se de princípios de Deus
que impunham proibições ou comportamentos.

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Atos contra a lei divina e natural

Quando o Rei cria a sua lei, ela não pode estar em desconformidade quer com a lei divina, quer com a lei
natural, uma lei que foi inscrita nos homens e que nos permite descobrir preceitos particularmente valiosos.
Como disse Álvaro Pais, nesse caso, não estamos perante lei, estamos perante corrupção de lei, que não deve
ser acatada, deve ser repudiada.

Tal como a violação de uma norma de Direito positivo só questiona a eficácia dessa norma, e não a sua
validade nem a sua vigência, da mesma forma acontece no Direito Natural, uma vez que também ele é Direito,
também ele se dirige a homens livres, que se podem conformar com as suas regras ou violá-las.

Confunde-se, portanto, o terreno da eficácia com o terreno da validade, que é próprio do Direito Natural.
Ora, se o Direito Natural é portanto este conjunto de regras que são Direito, que se impõem como observância
às normas criadas pelos homens através do pluralismo jurídico, o que é facto é que, neste período, não há
dúvida que se o Direito Natural não é observado pelas regras criadas pelos homens, nomeadamente, pela lei
criada pelo poder do Rei, então não seria direito, seria corrupção de lei.

Se o Direito Natural é, portanto, esta possibilidade que o homem tem de, partindo de tendências inatas,
descobrir preceitos que se impõem com particular vigor porque preenchem o conteúdo valioso do Direito,
assumindo-se como padrão de validade ao Direito positivo, como vimos à pouco, há uma pluralidade de
entendimentos que se cifra, desde logo, na questão de saber se o Direito Natural é algo próprio da razão ou do
instinto. O que é facto é que não se questionou a ideia de que o Direito Natural se funda em Deus.

No entanto, há pensadores deste período que vão recuperar a ideia de natureza, considerando que o Direito
Natural se fundava em natureza. Porém, também se entendia, em contradita, que a natureza era criada por
Deus. Portanto, para alguns autores a natureza seria a causa imediata do Direito Natural, enquanto que Deus
seria a sua causa mediata do mesmo. Esta nuance não é indiferente quando falamos do instituto da dispensa.

Dispensa dos Direitos

Será que alguém, designadamente, o Papa, como sendo representante de Deus na Terra, pode isentar alguém
da observância dos preceitos do Direito Natural, como depois questionaremos se o Rei pode isentar alguém
da observância dos preceitos da sua própria lei?
A resposta depende da conceção que se assumir a cerca da intervenção ou não do conceito de natureza na
origem do Direito Natural.

Aqueles que entendem que o Direito Natural se funda imediatamente na lei eterna, terão muito maior
facilidade em admitir o instituto da dispensa pelo Papa. Com efeito, só o Papa, perante um determinado caso
concreto que lhe fosse apresentado, poderia dispensar alguém da observância duma norma de direito natural
ou direito divino, e fazer aplicar outra. Porém, esse alguém não era qualquer cidadão, pois, apenas o monarca,
em certas situações que não pusessem em causa o bem comum, poderia pedir a dispensa das leis de direito
natural ou direito divino. A dispensa da lei poderia revestir duas formas: através da magna causa ou justa
causa, ou através da causa probabilis.

Direito Suprapositivo e Supralegal

O estudo histórico do direito implica, assim, a consideração de uma ordem jurídica que ultrapassa os
governantes, de uma ordem superpositiva que se estende a todos. Por isso mesmo, não faltou quem, a propósito
do direito natural, o qualificasse como lei ou direito comum, o que se designará brevemente por direito supra
regna (primeira parte – Direito Canónico + Direito Romano), servindo as considerações registadas sobre a
Justiça, o direito divino e o direito natural como pano de fundo ou substrato comum. Referência ao direito das
gentes, sendo que este se situa entre dois planos, na medida em que é já direito humano, mas universal. Sendo
que constitui norma comum a todos os povos. O ius gentium era concebido como direito cos-tumeiro (o
costume da humanidade), posterior ao direito natural e anterior a toda e qualquer lei escrita. Se o dto natural
existe desde os primórdios do género humano, o direito das gentes aparece depois do pecado original e em
consequência dele.

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DIREITO POSITIVO SUPRA REGNA | DIREITO CANÓNICO E ROMANO1

O Direito Positivo Supra Regna, é um direito que podemos designar de supra-estatal, tomando a expressão
apenas com vista a comodidade expositiva e no sentido de algo que se encontra num plano superior e no
sentido de algo que se encontra num plano superior ao dos reinos ou áreas políticas diferenciadas então
existentes.

Assim, existem duas razões para se dizer que um direito é supra-estatal: a primeira tem a
ver com a ideia de ser superior ao Estado, ou seja, ao Rei, e a segunda tem a ver com a
ideia de não se aplicar a uma só nação.

Importa, antes de mais, fazer uma breve abordagem ao Direito das Gentes, defendido por alguns autores
como sendo também um direito supra-estatal, isto é, que estava acima da lei do reino.
O Direito das Gentes (Ius Gentium) regulava as relações entre os Estados, o que na idade média correspondia
às várias comunidades, sendo um direito de base costumeira.
Há quem defenda que este direito foi o embrião do direito internacional público e só começou a ter eficácia
no renascimento.

Porém, o estudo do direito positivo «supra regna» do período pluralista, na generalidade dos autores, incide
sobre o Direito Romano e o Direito Canónico.
Com efeito, normalmente o monarca enaltecia o Direito Romano, por ser anterior a ele, porém, controlava o
Direito Canónico, pelo facto deste ser elaborado pelo Papa, que era alguém vivo e atual.

De entre os ordenamentos jurídicos «supra regna» que se conhecem, o Direito canónico é o que merece maior
destaque.

O Direito Canónico pode ser genericamente apresentado como um conjunto de normas jurídicas relativas à
Igreja, que regulavam as relações da comunidade dos crentes com Deus e também a orgânica de
funcionamento da Igreja. Cânone significa regra ou norma, sendo que se opõe às normas que são leis civis ou
seculares, podiam ser decretos dos pontífices ou estatutos dos concílios (assembleias eclesiásticas).

É então um corpo normativo, um conjunto de regras estabelecido pela autoridade


eclesiástica para reta instituição da comunidade eclesiástica. É o conjunto de normas
ditadas pela Igreja para, no fundo, conformar o pensamento dos fiéis.

Fontes do Direito Canónico

Nós definimos fonte de Direito como sendo o modo de formação e de revelação de regras jurídicas. Esta
locução pode se fracionar em duas ideias, “formação” e “revelação” de regras jurídicas.

Quando pensamos nas fontes de Direito Canónico, elas têm um conteúdo formativo e criador, mas se
pensarmos nas compilações destas fontes, elas têm uma vertente de conhecimento e divulgação.

o Fontes Essendi: modos de formação, origem e a autoria das normas


Sagrada Escritura, a Tradição, o Costume, os Cânones, os Decretos, os Decretais, as Concórdias, as
Concordatas e a Doutrina

o Fontes Cognoscendi: modos de revelação, os conhecimentos dos momentos jurídicos de que consta o
direito
Conjunto de obras, que adiante se descreverão, que formam o Corpus Iuris Canonici.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 135 a 193

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Uma outra classificação das fontes canónicas atende a territorialidade:

o Direito universal, geral ou comum: aplicável em todo o mundo/orbe


Compreende além das estatuições do direito divino, os atos pontifícios de caráter ecuménico, as estatuições
dos concílios ecuménicos, a tradição e o costume universal as regas de institutos regulares com essa vocação

o Direito particular, vigente apenas numa ou mais circunstâncias determinadas


Incluem-se as constituições papais de âmbito não universal, os cânones dos concílios nacionais, provinciais,
diocesanos, os sínodos arciprestais e arcediagais, as determinações fundadas em poderes jurisdicionais
circunscritos seja a um território, seja a categorias delimitadas de fiéis, os costumes eclesiais locais, os
estatutos capitulares não gerais, as concórdias e as concordatas.

Fontes Essendi

Sagradas Escrituras
Aqui existem preceitos que são expressamente revelados por Deus, portanto, há uma conceção sagrada que
transcende a vontade dos homens.

o Antigo Testamento
Contém 3 tipos de normas/preceitos:
• Cerimoniais: dizem respeito ao culto
• Judiciais: dizem respeito à aplicação da justiça
• Morais: referem-se aos aspetos éticos

o Novo Testamento
Contém 3 tipos de normas/preceitos:
• Direito Divino: expressões diretas da vontade de Deus
• Direito Divino Apostólico: são normas de direito divino que advém da ação dos apóstolos
• Direito Apostólico: ditado pelos apóstolos na sua atividade evangelizadora e em virtude do seu poder
legislativo).

As Sagradas Escrituras correspondem os livros seguintes, de acordo com a fixação do Concílio de Trento: os
quatro Evangelhos; Atos do Apóstolos; catorze Epístolas de S. Paulo; duas Epístolas de S. Pedro; três Epístolas
de S. João; uma de S. Tiago; uma de S. Judas; o Apocalipse.
As disposições de Cristo valem para sempre, por isso já se tem dito que os Evangelhos constituem a lei
fundamental da Igreja.

A mensagem expressa nas Sagradas Escrituras não passa aos homens, à comunidade dos fiéis e à Igreja através
do contacto e da leitura direta com os textos sagrados. A iliteracia e o analfabetismo eram esmagadores.
Portanto, existem outras duas fontes de Direito que permitem transmitir a sua mensagem, a tradição e o
costume.

Tradição
Conhecimento translatício, escrito ou oral, de ato de autoridade, classifica-se de várias formas.
A tradição pode ser classificada de três formas:

• Inhesiva
A mensagem que se está a passar por tradição, o conhecimento que passa de geração em geração, escrito, oral,
é exatamente a mensagem que podemos encontrar nas Sagradas Escrituras, ou seja, está-se a transmitir
exatamente a mesma regra. É imediato encontrar a sua base essencial, o seu fundamento imediato, que são as
Sagradas Escrituras, e a tradição expressa exatamente a mensagem das mesmas.

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• Declarativa/interpretativa
Transmite a matéria, a mensagem e a regra que está implícita nos textos sagrados, mas não a que está expressa.

• Constitutiva
O saber tradicional criou uma regra, que se assume como fonte de Direito Canónico, mas que não está nem
expressa nem implícita nas Sagradas Escrituras, porque apareceu depois.

Inhesiva: está escrita explicitamente nas sagradas escrituras


Declarativa/interpretativa: está escrita implicitamente nas sagradas escrituras
Constitutiva: não está referida nas sagradas escrituras porque apareceu depois

Uma outra classificação separa a tradição:


• Divino-apostólica: constituída pelos preceitos de origem divina, que os Apóstolos se limitaram a
promulgar
• Apostólica: cujos preceitos têm por autores os próprios Apóstolos
• Puramente apostólica ou eclesiástica: correspondente às regras jurídicas introduzidas nos primeiros
tempos da Igreja, após “idade apostólica”.

Numa outra perspetiva reconduz-se a tradição às doutrinas que, estabelecidas primitivamente de viva voz,
foram conservadas e transmitidas por meios diversos dos Evangelhos.
Esta formulação assenta em duas considerações:
1) De sete Apóstolos não possuímos qualquer escrito, sendo certo terem fundado Igrejas, que se
mantiveram para além deles, conservando com a fé os respetivos ensinamentos
2) Haver o cristianismo sido estabelecido e divulgado pela prédica e de viva voz, transmitindo-se os seus
ensinamentos oralmente e de acordo com a prática respetiva – o que obriga a atender à maneira como
foram tradicionalmente observados.

Na pena de alguns autores um outro fator leva ainda ao respeito da tradição pela Igreja: só com recurso a ela
se pode estabelecer a integridade e autenticidade dos livros santos. Os livros dos padres são a fonte principal
da tradição, ou seja, cujas obras tenham sido por elas tidas como expressão de comunidade com a fé, pois só
assim tais autores poderão dar o testemunho.

Costume
Norma resultante dos usos da própria comunidade e acompanhada pela convicção de obrigatoriedade, vemo-
la a ocupar lugar importante desde os tempos da Igreja primitiva, em que assumiu o papel de modo de
suprimento de lacunas da legislação.
Pode ser dividido em 2 elementos: a prática reiterada e a convicção de que é juridicamente vinculativa ou
obrigatório atuar daquela forma.

Os grandes problemas do costume vão aparecer, sobretudo, depois do Renascimento do direito romano, nos
séculos XII e seguintes. É então que se porá a questão da articulação do costume com a lei, principalmente o
costume contra legem.

Segundo alguns pontífices, o costume estava subordinado à razão, à fé e à verdade, pois não prevalecia contra
elas. Não só a antiguidade e a racionalidade eram consideradas requisitos do costume, mas também a
consensualidade, isto é, a aceitação da comunidade.

Os canonistas vão exigir determinados requisitos para que o costume possa ser fonte de Direito Canónico.
• O costume tem de ser conforme à fé;
• O costume tem de impor a verdade;
• O costume tem de ser racional, conforme à razão;
• O costume tem de ser observado há tempo, tem de ter antiguidade. O prazo geralmente
apontado serão 10 ou 20 anos.

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Também existem como fontes de Direito Canónico humano, por serem produzidas por homens,
designadamente, pelo Papa e pelos Concílios, que são os decretos e as decretais e os cânones. Mais tarde,
associaremos novas fontes, como a doutrina, as concórdias e as concordatas.

Decretos e Decretais
A necessidade de completar a Revelação com normas adaptadas aos tempos e às circunstâncias da Igreja,
levou naturalmente ao recurso à autoridade do sucessor, a quem Cristo confiou a Igreja, o Papa, para prover
conforme os casos.

Na Idade Média designaram-se correntemente “decretos” os textos normativos pontifícios, nome esse que
corresponde à terminologia latina epistola decretales, expressão bem evidenciadora da ideia de comunicação
retora e que, sendo utilizada para designar uma ordem ou decisão obrigatória, serviu também para referir o
texto respetivo.

Correntemente, separam-se as epistolai decretales em:


• Sentido estrito
Índole dos rescritos: resposta à consulta de alguém, fosse a estatuição determinada pelo papa sozinho ou com
cardeais. Ensinou-o, nomeadamente, a glosa ao Decreto de Graciano.

• Decretos pontifícios.
Designavam um ditame pontifício por conselho dos cardeais, independentemente de qualquer consulta.

A terminologia decreta foi aplicada para designar os atos do papa por oposição aos estatutos conciliares.
A distinção entre decretal e decreto (Papa decidia por si só – criava decretos) terá́ entrado em ocaso por volta
do séc. XIII. O termo decretal passou então a designar genericamente a norma ou comando pontifício (Papa-
sequência de um pedido de resolução).
Conforme o âmbito, qualificou-se em: decretal geral ou especial. A primeira era dirigida à generalidade dos
fiéis, a segunda a um círculo delimitado ou mesmo a uma pessoa individual.

Segundo Graciano, como nem sempre os concílios estavam de acordo com o Papa, os decretos (decreta) eram atos
do Papa para formalizar a oposição aos estatutos conciliares, quando estes não eram coincidentes com as suas
ideias.
Graciano na obra “Glosa ao Decretum Gratiani” distingue decretos de decretais, alegando que os primeiros são
normas que o Papa determina por conselho dos cardeais sem que qualquer questão lhe tenha sido colocada, para
se opor aos estatutos conciliares discordantes, enquanto que os segundos (decretais) são normas que o Papa
determina sozinho ou com os cardeais para uma questão que lhe tenha sido colocada, destinada à generalidade dos
fieis (Decretal Geral), ou a um circulo limitado de fieis (Decretal Especial).

Temos aqui a única fonte cognoescendi de Direito Canónico, o Corpus Iuris Canonicis, que integra várias
obras, das quais se destaca As Cinco Compilações Antigas, que atestam, designadamente, a penetração do
Direito Canónico em Portugal. Conjunto de obras que integra o Corpus Iuris Canonicis:
• O “Decreto de Graciano”, de 1140, da autoria do monge Graciano.
• As “Decretais devidas ao Papa Gregório IX”, de 1234, compostas por cinco livros.
• O sexto livro das “Decretais”, que, no fundo, congrega decretais posteriores a 1234 e que foram
promulgadas pelo Papa Bonifácio VIII.
• O sétimo livro das Decretais, de 1313, também chamadas “Clementinas”, porque são devidas ao Papa
Clemente XV. Recolhem decretais subsequentes à publicação do sexto livro.
• As “Extravagantes de João XXII” e as “Extravagantes Comuns”.
A legislação pontifícia, a legislação concilia e as obras compilatórias que elas integram, vão ser objeto de
trabalho e de estudo pela doutrina canonista. Portanto, a doutrina, neste período, também será fonte imediata
de Direito, integrando o grupo das fontes essendi de Direito Canónico.

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Cânones
Por estes termos designaram-se as determinações conciliares, que também eram denominados de decretos.
Em sentido amplo, pode ser identificado como qualquer norma da Igreja.

Pode-se considerar os Cânones:


• Sentido amplo, como qualquer regra ou norma jurídica
• Sentido restrito, como qualquer norma jurídica ou canónica
• Sentido ainda mais restrito, como normas que resultam dos concílios

Para se precisar a noção, é necessário reportar à ideia de Concílio.


Num primeiro sentido, concílio designa toda e qualquer assembleia, deliberativa ou consultiva, política,
eclesiástica ou mista.
Num sentido restrito, a palavra reporta-se à Igreja, tendo aqui designado a própria Igreja universal e ou uma
agremiação de fiéis.

Existem Concílios ecuménicos, realizados à escala mundial, como foi o caso do Concílio de Trento, que
firma a reação da Igreja face à propagação das ideias protestantes, e existem também Concílios à escala
nacional ou local. As regras que emanam de um Concílio, chamam-se cânones.

Uma das separações possíveis entre os doutrinadores do Direito Canónico é entre aqueles que afirmam a
superioridade do Concílio face ao poder do Papa, os conciliaristas, e aqueles que, pelo contrário, entendem
que o Papa, como representante de Deus, tem um poder superior Concílio, serão estes os curialistas.

Foi-se fixando, pouco a pouco, como conteúdo do significante o de assembleia eclesiástica regularmente
convocada e presidida para deliberar sobre assuntos religiosos. Estes eram de convocatória pontifícia, embora
na Antiguidade Clássica os imperadores se tivessem arrogado tal direito, convocando essas assembleias, assim
como aconteceu no Oriente.
Todavia, foi através do Concilio de Constança que se colocou termo ao cisma do Ocidente, que tinha divido
a Igreja entre dois papas (o de Roma e o de Avinhão), primeiro e depois em três.
Membros dos concílios são os bispos, os cardeais, os gerais das ordens religiosas e os abades isentos. A
ecumenicidade do concílio derivava do facto do papa ter convocado todos quantos têm assento no concílio

Doutrina
As opiniões dos jurisconsultos canonisticos podiam resolver casos da vida. Portanto, a doutrina e as suas
opiniões, também preenche o pluralismo medievo e a pluralidade de fontes do Direito Canónico, como fonte
de Direito medieval.
A doutrina vai estudar e criar o Direito Canónico e as opiniões dos canonistas também vão permitir resolver
casos da vida. O Direito Canónico precisa, no entanto, de um Direito tecnicamente aperfeiçoado para criar as
suas próprias soluções, como o Direito Romano.
A doutrina canonista era particularmente conhecedora do Direito Romano, um jurista canonista era também
um civilista, portanto, criava o Direito Canónico com base no Direito Romano. Assim, a partir do século XII,
é possível separarmos a doutrina canonista em Escola dos Glosadores e Escola dos Comentadores.

Corresponde à opinião e atividade dos juristas, foi através desta que se fez a ponte entre o direito laico e o
direito canónico. O “Utrumque Ius” é um ordenamento criado pelos juristas e é o resultado da resolução
das contradições e da própria rivalidade entre a lei civil e a canónica por via da formação dos próprios
juristas que eram simultaneamente doutores nos dois direitos (in utroque)

Concórdias e Concordatas
As concórdias distinguem-se das concordatas porque as primeiras são acordos celebrados entre o Rei e o Clero
nacionais, enquanto que as segundas são acordos entre o Rei e a Santa Sé, representada pelo Papa, ou seja,
acordos de carácter internacional, que tinham como objetivo principal, o de estabelecer os direitos e as
obrigações de cada uma das partes envolvidas.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Fontes Cognoscendi

Um largo passo em direção à certeza do direito foi dado, no segundo quartel do século XII, com a elaboração
de um dos mais significativos monumentos jurídicos da história do direito: conhecido por
Decretum/Concordia Discordantium Canonum, tendo sido elaborado por Graciano.

A data do trabalho é incerta, sendo que se aponta o ano de 1140.

O Decreto corresponde a um longo texto, sendo que formalmente corresponde a uma sistemática tripartida:
1) Ministeria: versa as fontes de direito, a doutrina das pessoas eclesiásticas.
2) Negotia: abrange a disciplina das ações e o processo judicial, o regime dos bens eclesiásticos, a
regulamentação do matrimónio.
3) A terceira trata dos sacramentos e da liturgia.
Naquilo que veio a ser chamado de Corpus iuris Canonici, a primeira coletânea de textos é constituída pela
obra de Graciano.

Na elaboração do Decreto, que segundo os seus estudos eram discordantes, Graciano recorreu a quatro
critérios ou processos de realizar a concordância:
• Ratione Significations: a concórdia realizava-se com o recurso ao espírito das normas em presença
• Ratione Temporis: determinando-se o tempo de cada norma em presença, com aplicação do princípio
de revocação da norma anterior pela posterior
• Ratione Loci: evidenciando o originário âmbito territorial das normas, a norma particular derrogaria
a geral
• Ratione Dispensationis: demonstrada a exceção de uma norma em relação a outra, a conciliação far-
se-ia por recurso à relação lógica espécie-género, sem se atender a outras razões.

Para além desta obra, também os cinco livros de Gregório IX (1243), ao qual se adicionou o sexto no tempo
de Bonifácio VIII; assim como as Clementinas ou Sétimo, criadas por Clemente V (1313) e as Extravagantes
de João XXII (recolha de decretais que andavam dispersas), surgiu o Corpus Iuris Canonici.

O direito velho (século VI) é composto pelas seguintes obras:


• Coletânea de Dionísio e exiguo: coletânea de Cânones e Decretais do sec VI
• Coleção Hispana: conjunto de leis elaboradas entre o sec VI e VII

O direito novo é composto pelas seguintes obras:


• Decretum de Graciano ou Concordia Discordantium Canonum
Decreto do papa Graciano, datado de 1140, que procurou harmonizar os textos e normas discordantes até aí
existentes e constituiu o inicio duma nova fase do direito canónico (ius novum).
• Decretais de Gregório IX
Obra datada de 1234, dividida em 5 livros compostos pelos decretos pontifícios do séc. XII e XIII que foram
reunidos pelo pontifício de Gregório IX.
• O Sexto
Livro assim designado por ter sido o sexto livro de decretais, posteriores ao ano de 1234 e reunidos no
pontificado do papa Bonifácio VIII.
• Clementinas
Obra datada do ano de 1313, que contem os decretais reunidos no pontificado do papa Clemente V, também
designada pelo Sétimo Livro dos Decretais.
• Extravagantes e Extravagantes Comuns
As primeiras integram as duas coleções de decretos realizadas pelo papa João XXII, e as segundas reúnem
decretais posteriores a 1313.

No sec. XVI, todas estas obras foram integradas, por Dionisio Godofredo, numa única obra que designou por
Corpus Iuris Canonici.

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Penetração do Direito Canónico na Península Ibérica

O direito canónico penetrou e foi recebido na Península Ibérica desde os seus alvores.

Situando-nos apenas nos tempos imediatamente anteriores à fundação da nacionalidade, pode-se assinalar
mais do que um documento em que se refere o direito canónico na fase pré-gracianeia, como são exemplos:
numa doação de D. Maurício, bispo de Coimbra, ao presbítero Afonso estatui-se que o objeto da doação não
será retirado ao beneficiado se não atuar com culpa pela qual segundo os cânones deve perdê-la; numa carta
de couto outorgada pelo conde D. Henrique aos 31 de março de 1108, contém-se alusão aos “decretos dos
santos cânones sobre as ordens eclesiásticas e as liberdades das igrejas”.

Posteriores à fundação da nacionalidade e, por isso, já da fase gracianeia, são outros instrumentos ou
referências mortis causa a coleções de Decretais que procederam as Decretais de Gregório IX. Deste modo,
multiplicaram-se os atos e documentos medievais as alusões aos livros de direito canónico.

A penetração do direito canónico era tal que nas cortes ou cúria alargada de 1211 houve necessidade de
hierarquizá-lo em relação ao direito do rei. A ordenação estabeleceu-se, segundo o entendimento geral, com
prevalência daquele. Estava-se perante um reconhecimento de supremacia eclesiástica, traduzida na
superioridade das normas jurídicas da Igreja sobre os vários monarcas.

Contudo, a penetração do direito canónico não se processou sem resistência. Esta evidenciou-se à medida em
que o poder dos monarcas aumenta pela consolidação.

o Beneplácito Régio
Criado por D. Pedro I, instituindo que as regras apostólicas só seriam publicadas se fossem aprovadas pelo
Rei. Face à contestação do clero, D. Pedro I iludiu-os, argumentando que beneplácito régio se destinava a
garantir a autenticidade dos textos canónicos e a evitar a entrada de letras apostólicas falsas. Portanto, seria o
interesse da Igreja que o Rei tentava salvaguardar, ao garantir a autenticidade dos textos canónicos e a evitar
a entrada de letras apostólicas falsas.

o Anti-clericalismo da população
Os clérigos abusavam de certas situações, através de coacção exercida sobre doentes terminais, para obter os
bens destes.
o Doutrinas Heréticas
Doutrina Franciscana, que professava a pobreza e lutando contra o enriquecimento da igreja à custa da
população
Averroismo, que professava uma heresia radical, que defendia que toda a humanidade tinha sido enganada
pelos Deuses.

o Abolição do juramento dos contratos


Criação de leis que obrigavam os clérigos a responder nos tribunais civis em matéria criminal.

Aplicação do Direito Canónico nos Tribunais

Não obstante todas as restrições, o direito canónico foi aplicado em Portugal. Não apenas nos tribunais civis
ou seculares, mas também em tribunais eclesiásticos. Paralelamente com a organização judiciária civil existiu
uma organização judiciária eclesiástica, ou seja, de tribunais da Igreja.

Estes conheciam as causas em função da matéria ou em função da pessoa. Os critérios utilizados para justificar
a intervenção dos tribunais da Igreja são o critério da pessoa e o critério da matéria:

o Critério da Matéria
O critério da matéria diz-nos que certas matérias devem ser obrigatoriamente julgadas nos tribunais da
Igreja, aquelas matérias que são do foro espiritual.

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Neste período histórico, Deus é a entidade em nome de quem tudo se faz, por isso, o homem tem dois fins, o
fim terreno e o fim espiritual. O fim terreno cabe, em última instância, ao Estado cumprir, que é a prossecução
do bem comum. O fim espiritual identifica-se com a salvação eterna da alma e compete à Igreja salvaguardar.

Por consequência, num período de marcada sacralidade, tudo tinha uma conotação espiritual e, por isso, tudo
devia ser julgado pela Igreja. Isto levou os nossos monarcas a atuarem, através de atos legislativos que criaram,
para restringirem a abrangência da atuação dos tribunais da Igreja à luz deste critério da matéria.

Há legislação dos nossos monarcas que vai proibir a aposição de cláusulas de juramento em contratos que
seriam puramente civis, para que a aposição dessas cláusulas não pudesse justificar a intervenção da Igreja,
mas sim da jurisdição civil.

o Critério da Pessoa
Porém, os tribunais da Igreja também julgam de acordo com o critério da pessoa, em que certas pessoas devem
ser julgadas nos tribunais. São elas, por exemplo, os membros do clero.

Os nossos monarcas também vão criar legislação para limitarem esta competência da Igreja, criando a regra
do foro do réu. Esta regra diz que se uma das partes for membro do clero, então deve-se seguir o foro do réu
e deve ser o tribunal da Igreja a julgar o caso. Contudo, se o réu for laico, se não pertencer à Igreja, o caso
deve ser julgado num tribunal do Rei.

Porém, há certas pessoas que têm privilégio de foro, ou seja, podem ser julgadas nos tribunais da Igreja, se
não decidirem em sentido contrário. Essas são as pessoas miseráveis, as viúvas e os órfãos. Os professores e
os estudantes universitários também tinham este privilégio de foro, uma vez que o ensino estava
essencialmente concentrado nas igrejas e nos mosteiros.

O costume gradualmente desenvolvido de que o clero não podia ser levado perante um tribunal civil foi
reconhecido oficialmente pelo imperador Justiniano, que o consagrou como privilégio.

Nos tribunais civis o direito canónico aplicou-se também, primeiramente, como direito preferencial. Seria o
próprio monarca que assim o determinaria.
Com efeito na cúria de Coimbra de 1211, decidiu D. Afonso II que as suas leis não valessem se feitas ou
estabelecidas contra os direitos da Santa Igreja de Roma.

É certo que este passo sofreu interpretação restritiva por parte do prof. Braga Professor Braga da Cruz
da Cruz, tendo escrito: “Cremos que se tem exagerado o significado da lei, afirma que aquilo que
quando se pretende ver nela uma total subordinação da vigência das leis pátrias Afonso II terá dito não foi
ao requisito da sua concordância com o direito canónico, embora seja fora de uma hierarquização de
dúvida que os canonistas pretenderam difundir e fazer valer a doutrina da direitos para aplicar no seu
subordinação total das leis civis às leis canónicas. Repare-se que a referida lei tribunal em caso de
de D. Afonso II não fala do direito da Santa Igreja, mas dos direitos da Santa potencial conflito entre
Igreja de Roma”, o que pode querer significar apenas, as suas regalias e fontes. Aquilo que o Rei
privilégios. A ser assim, as leis pátrias só não valeriam contra os cânones que quis dizer foi que o Direito
estabelecem especiais privilégios em favor da Igreja; mas nada obstaria à sua Régio não poderá atentar
aplicação, de preferência ao direito canónico, nos caos de mera diversidade de contra os direitos dos
regulamentações dada pelos dois direitos a problemas jurídicos idênticos. membros da Igreja.

O que é facto é que, sem prejuízo desta opinião isolada do Professor Braga da Cruz, à medida que avançamos
no primeiro período da História do Direito Português, a lei de Afonso II perde eficácia, o Rei vai consolidando
o seu poder e assumindo maior distanciamento face à autoridade da Igreja e do Papa, pelo que, a tendência
nos tribunais do Rei vai ser para nas questões civis, o Direito Canónico ser relegado para uma posição
subsidiária ou secundária, caso haja uma lei régia ou, sobretudo, uma norma de Direito Romano aplicável à
situação. Contudo, existe ainda aqui o critério do pecado, que nos diz que se nos tribunais do Rei a aplicação
de uma lei régia ou de uma norma do Direito Romano redundar em pecado, então não se deve aplicar essa
norma, mas sim a norma do Direito Canónico.

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COSTUME1

O conceito de costume na Idade Média e no período pluralista era diferente do conceito atual de costume. Há
duas aceções:

o O costume era entendido como sendo direito não escrito, opondo-se ao direito escrito (direito foraleiro,
direito romano, direito visigótico, direito canónico e direito castelhano).

o O costume é uma prática social reiterada com convicção de obrigatoriedade, ou seja, traduz-se na
repetição habitual de uma conduta havida por juridicamente vinculante. Integra dois elementos:
• Elemento objetivo (o uso; a prática reiterada; a observância da conduta)
• Elemento subjetivo (a convicção de que é juridicamente vinculante atuar daquela forma; a
ideia generalizada do caráter obrigatório da regra).

Neste período, o costume é indiscutivelmente a principal fonte de direito, surgindo como a mais antiga delas.
Para tal contribuiu:
• A insuficiência da lei e o facto de ela ser bastante lacunosa.
• Os nossos reis estão, essencialmente, voltados para outros assuntos e, por isso, não existia um aparelho
de autoridade, administrativo ou burocrático, relativamente forte e desenvolvido.
• A impossibilidade de se aplicar um Direito tecnicamente aperfeiçoado.
Só́ adquiriu mesmo pujança onde não existia um aparelho de autoridade, administrativo ou burocrático.

O costume era na origem, um processo de formação jurídica oral, ou seja, surgia com o caráter infixo ou
flutuante, com a fluidez de tudo quanto é meramente verbal. Por isso, era preciso prová-lo e, para evitar
incertezas que decorriam do próprio processo de revelação do costume, se procurou, muitas vezes, fixá-lo por
escrito.

A redução dos costumes a escrito feita com índole meramente privada não lhes retirava caraterísticas
especificas. Na medida, porém, em que se tratava de consagrar o costume através de outra fonte perdia ele a
sua idiossincrasia para se diluir em norma diversa, pelo menos quanto à obrigatoriedade.

Se o costume, à medida em que vai sendo acolhido noutras fontes, perdia o caráter específico para assumir,
total ou parcialmente, a feição destas quanto à obrigatoriedade, foi também, não obstante, adquirindo
generalização crescente. Por um lado, resultou isso da comunidade de costumes decorrente das famílias de
forais e estatutos. Por outro lado, do âmbito da aplicação mais ampla das fontes de absorção, como a lei. Ao
dizer-se que o costume vai adquirindo generalização crescente de forma alguma se pretendia contestar que ele
mantinha, não obstante e em larga medida, caráter restrito ou particular.

Para se ser fonte de direito, não basta a existência de costume. A doutrina apontou determinados requisitos
para que o costume pudesse valer como fonte de direito:

Antiguidade: o tempo necessário, apontado pela doutrina, para que o costume possa ser observado e seja
suscetível de resolver casos da vida, é 10 anos se for invocado contra pessoa presentes e 20 anos se for
invocado contra pessoas ausentes.

• Acúrsio e Baldo diziam indispensáveis dois atos, mas postulavam, com alguma contradição, a
frequência destes;
• Bártolo e Sequazes, por seu turno, deixavam a questão ao arbítrio do juiz.
• Os glosadores entendiam que, além do número de atos, em matéria cível se devia levar em
consideração o transcurso do tempo, isto, é antiguidade.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 239 a 258

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• Era de ensinamento do direito romano, traduzido em mais de um passo do Digesto que o costume era
antigo observado por muitos anos.
• Fontes canónicas exigiam, entre outros requisitos da norma consuetudinária, que fosse legitimamente
prescrita.
• Azão e Acúrsio fixaram o número de anos entre 10 e 20, conforme contra presentes ou ausentes.
• João André e Panormitano optaram por 10 anos, visto o costume se originar no povo, o qual se
considerava presente de forma constante.
• As Partidas estipulavam o prazo de 10 anos e vinte anos eram também, sem especificação.
Racionalidade: o costume tem que ser racional, isto é, estar conforme à razão.

• Deduziu-se isso de um rescrito de Constantino e de uma decretar de Gregório IX.


• Também as Partidas dispunham que ele devia obedecer à direita razão.

Consensualidade: o costume tinha de ter o consenso da comunidade e do legislador, o que, à época, era
uma e a mesma pessoa, na medida em que era a comunidade quem introduzia o costume, logo, requeria-se o
consentimento da maioria. O consensus communitais e o consensus legislatoris podiam coincidir, quando à
comunidade pertencesse a potestas legis condendae.

Conformidade com o direito divino: o costume tinha de estar em conformidade com a lei de Deus, a qual
ajustava a ideia de direito natural à utilidade pública, que, na época medieval, correspondia à salvação da
alma.

Valor jurídico do costume

o Na falta de lei, o costume aplicava-se como lei.


o O costume funcionava também como intérprete da lei ou como confirmador dela, não faltando leis que
lhe atribuíam igual força.
o O costume podia também ser integrado nas lacunas dos foros, corrigi-los ou mesmo revogá-los.

O costume pode ser introduzido pela comunidade, mas também pode ser introduzido pelo próprio tribunal,
que vai criar as próprias regras. Questão interessante é a relação entre o costume e o direito judicial, ou seja,
a ação criativa do direito pelos tribunais quando se deparam com o caso concreto, a forma como aplicam o
costume nos tribunais.

Costume Judiciário

Naturalmente, se não há lei em abundância, os tribunais não podem deixar de resolver os casos da vida, têm
de os resolver de alguma maneira.

Assim, o tribunal pode criar as suas próprias regras de organização e funcionamento, como por exemplo,
quantas testemunhas é que vão ser ouvidas, como é que as partes se comportam perante o tribunal, se devem
comportar-se através de um documento escrito ou oralmente, entre outras. Resumindo, o tribunal pode criar
regras de conteúdo processual. Além disso, também pode criar regras em matéria de Direito substantivo,
passíveis de resolver os casos da vida.

Reportando-se às sentenças judiciais do primeiro período da monarquia, o Professor Guilherme Braga da Cruz
afirmou que elas apenas dificilmente podiam ser olhadas como fonte jurídica de caráter autónomo.
“Na verdade essas sentenças (da cúria régia, dos tribunais municipais e dos tribunais arbitrais), apesar do peso
que possuíam no estabelecimento de correntes jurisprudenciais e de se revestirem, por vezes de força
vinculativa para a decisão de casos similares, eram sempre tidas e havidas, tão somente, como uma definição
autorizada de costumes anteriormente vigentes e não como um modo autónomo de criar direito novo.”

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A partir do século IV, chama-se a este costume judiciário Estilo (o costume introduzido pela prática
judiciária).

É uma espécie de direito não escrito, pois corresponde à prática de um tribunal


que cria um estilo de decisão, uma norma consuetudinária de direito processual,
passando assim a ser o costume o orientador da forma como se iria processar.

Enquanto que o costume é introduzido pela comunidade, ou seja, há uma prática reiterada da comunidade, o
estilo resulta de um determinado pretório (juiz), ou seja, é uma prática reiterada dos tribunais que são
chamados a resolver casos da vida, criando preceitos de Direito Processual e de Direito substantivo.

O estilo também é designado pelo costume em casa del rei na cúria régia.

A doutrina discutiu quais seriam os requisitos do estilo e concluiu que são a racionalidade, a conformidade ao
direito suprapositivo (direito natural) e a pluralidade.
A doutrina dominante entende que só o estilo de um tribunal superior é que era vinculativo, sendo o de um
tribunal inferior meramente indicativo.

Dentro deste direito judicial, interessa olhar para outra figura.

Façanhas

A façanha também é direito judicial, mas não é costume, não é uma prática reiterada com convicção de
obrigatoriedade, nem é costume judiciário, não é prática reiterada dos tribunais.

A façanha é um julgamento sobre uma ação fora do comum, que fica como padrão
normativo para o futuro. Eram decisões de tal forma complexas que se entendia
que deveriam passar a funcionar como um padrão de referência para o futuro
(regra do precedente britânico).

Imaginemos que estamos perante um facto particularmente excecional, um crime particularmente hediondo
ou uma ação que tem contornos particularmente marcantes.
O juízo sobre essa ação notável funcionará como padrão normativo, se surgir outra ação no futuro com
contornos semelhantes.

De acordo com a opinião colidida de grandes historiadores de Direito, a façanha é direito judicial e é um
julgamento por exemplos. Porque é que este julgamento funciona para casos futuros? Existem 3 opiniões
diferentes.

o Porque o juiz que julgou é particularmente notável e, portanto, a notoriedade advém essencialmente
do julgador.
o Porque suscitou uma forte discussão no tribunal acerca da via de solução que devia ser adotada e,
portanto, essa querela justifica a notoriedade deste primeiro julgamento.
o Porque o próprio caso é particularmente excecional.
Por uma ou por outra destas razões, este julgamento funciona como precedente ou como exemplo para um
caso futuro que seja semelhante.

A façanha foi entendida desta forma, até à opinião de José Anastácio de Figueiredo.

Este vem defender que a façanha é de facto um julgamento por exemplos e funciona como padrão normativo
para o futuro, por ser uma decisão régia e por só se aplicar a casos duvidosos ou omissos na legislação pátria,

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querendo isto dizer que apenas poderiam resultar da resposta a casos que não tinham sequer tutela na legislação
geral.
O que é facto é que se olharmos para muitas das façanhas que estão hoje disponíveis, vemos que muitas delas
não são decisões do Rei e, portanto, José Anastácio Figueiredo não tem razão.

À semelhança do estilo, a doutrina dominante entende que só a façanha de um tribunal superior é que era
vinculativa, sendo a de um tribunal inferior meramente indicativa.

Alvidros ou juízes alvedrios

São decisões de tribunais arbitrais. As partes designam livremente juízes árbitros, que julgam no âmbito dos
poderes que por elas são conferidos. Eles são escolhidos, em regra, para resolver questões céleres,
normalmente, relativas à atividade mercantil ou marítima.

As decisões dos juízes alvedrios sustentavam-se no costume e poderiam ser aplicadas futuramente por outros
juízes, já que os juízes alvedrios eram pessoas com grandes conhecimentos nas áreas para as quais eram
chamados a proferir decisões.

Da decisão destes juízes alvedrios, havia a possibilidade de recurso para os tribunais superiores,
nomeadamente, para a Cúria Régia, o que significa que a justiça ficava feita em primeira instância.

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IUS REGNI | DIREITO LEGISLADO E DIREITO VISIGÓTICO1

O direito legislado é aquele que é produto da vontade humana e está positivado, isto é, escrito. É o
direito elaborado pelo poder político, e situa-se nos séculos XI, XII e XIII.

Ordenamentos jurídicos anteriores à formação de Portugal

Deve-se aludir ao direito dos povos que se estabeleceram na Península Ibérica e sobrelevam, pela
importância que tiveram no nosso direito, o direito romano e os, por vezes, impropriamente chamados
direitos germânicos.
Entre as leis germânicas mais notáveis destacam-se a Lei Salica, dos Francos Sálios (séc.V), a Lex
Riburia, dos Francos Riburiários, as leis lombardas, de que a mais antiga é o Edicto de Rothario (643)
e em que se salientam as Leis de Liutprando, entre outras.

Menção especial cabe às leis dos Visigodos, povo que dominou a Península durante séculos e cujo
Império apenas terminou com as invasões muçulmanas.
Aos Visigodos se ficaram a dever alguns famosos monumentos jurídicos. Os mais importantes,
considerados do prisma cronológico são:

o Código de Eurico redigido cerca de 476


Atribuído ao rei Eurico e de que se conhece apenas um fragmento, o chamado Palimpseste de Corbie
Nele transparece já a influência jurídica de Roma, pelo que as suas normas estão muito longe de
representarem direito germânico, muito pelo contrário, representa direito romano vulgar. Uma tese
antiga sustentava que este Código, como as restantes leis visigóticas, era de aplicação territorial, ou
seja, que se aplicava a todas as populações senhoriadas por Eurico e sucessores.

o Breviário de Alarico, promulgado em 506


Teve por fontes constituições imperiais retiradas dos Códigos Teodosiano, Hermogeniano e
Gregoriano e de novelas de vários imperados, bem como escritos de juristas romanos. Por tudo isto, o
Breviário de Alarico é também conhecido como Lex Romana Visigothorum.
O Breviário de Alarico teria tido por fim, não revogar o Código de Eurico, mas pôr ao alcance dos
magistrados uma coletânea das principais e mais citadas leis romanas. Contudo, a derradeira
compilação legal dos Visigodos foi o Código Visigótico.

o Código Leovigildo
O terceiro momento jurídico que integra este acervo normativo de Códigos criados pelos godos.

o Código Visigótico
Também denominado por Liber Iudiciorum ou Iudicum, entre outros, foi publicado em 654 pelo rei
Recesvindo, após a correção, ao que se supõe de S. Bráulio, e com aprovação do VIII Concílio de
Toledo (633).
Este código representava, de certa forma, o termo da evolução legislativa do reino visigodo, contudo
é o último momento jurídico dos godos.

Depois de Recesvindo, Ervígio (680-687), no segundo ano do seu reinado, submeteu o Codex
Visighoticus a uma revisão oficial de que foi encarregue o XIII Concílio de Toledo.
O texto, assim fixado, era conhecido por Forma ou Fórmula Ervigiana e encontra-se distribuído por
12 livros, que se repartem em títulos e estes em leis.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 193 a 222

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A tais formas há́ ainda que acrescentar outra, resultante da revisão não oficial, em que, além de uma
nova lei (novela) do período Ervígio, 15 ou 16 leis posteriores de Egica (687-702) e também leis de
Vitiza (700-710) se encontram adicionados um título introdutório, verdadeiro tratado de direito
público, sendo denominada por Forma Vulgata, que apresenta certas flutuações, e que, segundo Guido
Astuti, “representou a base fundamental do direito vulgar espanhol e ainda no séc. XII e XIV, traduzida
em castelhano e outros dialéticos ibéricos, constituiu a fonte do chamado Fuero Juzgo (Forum
Iudicum), depois de ter exercido geral influência sobre a formação dos foros e costumes locais, antes
e a seguir às reconquistas”.

O Código Visigótico surge como “transição entre as fórmulas e o rigorismo do direito romano e os
costumes próprios do povo godo”, consagrando “o triunfo legal do povo romano e a cultura latina-
eclesiástica”.

Aplicação em Portugal do Código Visigótico

O Código Visigótico teve vigente no início da monarquia portuguesa, mas acaba por se ir esbatendo
progressivamente. Efetivamente, o Código foi citado em alguns documentos portugueses do século
XII, nos mesmos termos em que o vinha sendo anteriormente nos documentos leoneses; mas no século
XIII, essas citações desapareceram e o próprio fenómeno do renascimento do Código Visigótico
operado em Castela através da sua tradução para romance (Fuero Juzgo) já não tem repercussões
visíveis em Portugal.

Durante o tempo da reconquista cristã, antes da ascensão de Portugal à categoria de reino independente,
existem vários testemunhos da presença do Código Visigótico entre nós.
Nalguns casos, a referência constante dessas fontes do Código Visigótico são fórmulas repetidas e
copiadas, noutros casos tratam-se de transcrições de passagens relevantes do Código, o que demonstra
que ele era conhecido e aplicado no nosso país na época.

Contudo, a partir do século XII deixam de ser tão evidentes os testemunhos do Código Visigótico.
O Código Visigótico é fortemente influenciado pelo Direito Romano e, em Portugal, começa-se a
discutir a partir do século XII a aplicação do Direito Romano Justinianeu, sendo que a partir do século
XIII ele já é diretamente aplicado e já é fonte de Direito entre nós. Assim, como temos acesso à fonte
de Direito Romano direta, os juristas acabam por fazer entrar em desuso a aplicação do Código
Visigótico, que é Direito Romano vulgarizado.

A vigência do Código em território português durante o séc. XII deve ser entendida
restritivamente. Por um lado, é sabido que as populações cristãs sob domínio muçulmano
continuaram, à semelhança das que não caíram sobe o jugo dos invasores, a reger-se pelo
Código Visigótico nos séculos da reconquista antecedentes da fundação da nacionalidade
portuguesa. Por outro lado, conhecem-se numerosos documentos do séc. XII respeitantes
ao território português em que o Código Visigótico continua sendo invocado, o que
comprava ter havido continuidade. Só a partir do séc. XIII, e em concomitância com o
progressivo crescimento da legislação nacional e com a “redescoberta” do direito
justinianeu, as menções ao Código Visigótico principiam a desaparecer.

Há, de facto, no século XII, testemunhos da aplicação deste último esforço legislativo dos godos entre
nós.

O maior exemplo disso é uma lei de Afonso II, o primeiro rei legislador português, que na Cúria de
Coimbra, em 1211, criou um conjunto alargado de leis.
Uma dessas leis tem por objeto a proibição de uma legislação, de uns decretos, de um membro da
Igreja, Soeiro Gomes, que é Prior dos dominicanos. Hoje não é conhecido o conteúdo destes decretos,

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


mas sabemos, através de Alexandre Herculano, de que se trata de matéria temporal, de matéria que
importava ao Rei legislar. Portanto, Afonso II proibiu a circulação destes decretos em Portugal.

Além disto, Afonso II faz apelo a uma lei do Código pelo qual se regem os fidalgos em Portugal. Os
historiadores do Direito têm dado nota que este Código, onde estava inscrita essa lei, é o Código
Visigótico.

Ao mesmo tempo, se olharmos para as Ordenações Afonsinas, veremos que há inúmeras leis
constantes no Código Afonsino, que são transcritas do Código Visigótico de uma forma quase integral.

Isto significa, de facto, que ainda no século II, o Código Visigótico ainda é conhecido com grande
latitude e ainda é aplicado de forma bastante expressiva no nosso país.
Depois vai perdendo importância, porque entra em rivalidade com o Direito Romano, que é
tecnicamente mais aperfeiçoado e que acaba por prevalecer.

Leis de Leão, Coiança e Oviedo

As assembleias de Leão, Coiança e Oviedo parecem ter logrado vigência em Portugal.

o Leis de Leão, datam do reinado de Afonso V de Leão (1017) e vieram a fazer parte do chamado
Fuero de Leon ou Forum Legionensis.
Parte dos decretos da assembleia de Leão foram inseridos num cartulário bracarense - o Liber Fidei.

o Leis de Coiança, do tempo de Fernando I (1050)


As estatuições de Coiança acham-se incluídas no Livro Preto da Sé de Coimbra.

o Leis de Oviedo, de D. Urraca (1115)


As leis de Oviedo foram juradas pela condessa-rainha D. Tersa e pelo nosso primeiro monarca.

Suscitam-se dúvidas quanto à classificação das assembleias em que as normas em causa foram
elaboradas, isto é, quanto à natureza do órgão promanante.
Os historiadores falam em Cúria de Leão e Concílios de Coiança e Oviedo.
A verdade, porém, é que a distinção se afigura algum tanto artificial, pois quer os concílios, reuniões
eminentemente eclesiásticas, contavam com a colaboração de laicos, quer as cúrias, congregações
políticas não religiosas, com a intervenção de membros do clero; a isto acresce que umas e outras
assembleias legislavam em ambas as matérias da Igreja e Civil.

Momentos jurídicos castelhanos aplicados em Portugal

Na idade Média foram traduzidos para português vários textos de direito castelhano. Referem-se, de
hábito, a Suma ou Flores del Derecho, Suma ou Flores de las Leyes, e os Nueve Tiempos del Juicio
(tempo dos preitos), da autoria de Jacobo. Para além destas, também se traduziu o Fuero Real e as
Partidas (Sete Partidas) obras tradicionalmente imputadas a Afono X.

o Flores del Derecho


Tratado de direito processual do séc XIII (1235), que estava integrado numa coletânea vulgarmente
designada por Caderno dos Foros da Guarda e por isso se diz que era aplicado na região da Guarda.

o Tempo dos Preitos ou Nove Tempos do Juízo

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Obra de direito processual, também designada por 9 Tempos do Juízo, que divide o processo judicial
em 9 fases, estando integrada nos Foros da Guarda.

o Fuero Real
Criado entre 1252 e 1255, tem um carácter eminentemente localista e foi aplicado a todas as cidades
que não tinham um foral, ou para integrar lacunas do direito local, tendo, portanto, um carácter
subsidiário.

o Partidas
Criadas aproximadamente em 1256, 1263 ou 1265, por um grupo de juristas da corte de Afonso X de
Castela, e crê-se que foram aplicadas oficialmente em Portugal, pois existem partes copiadas desta
obra nas Ordenações Afonsinas

Progressivo desenvolvimento da legislação Régia

No quadro das fontes de direito relativas ao período medieval, as leis gerais começam por ocupar um
papel modesto. Conhecem-se poucos diplomas contendo normas gerais e abstratas de imposição
coativa. A lei aparece denominada variamente neste período, como decreto ou degredo, de ordenação,
de carta, de postura, de encouto, de constituição...

Do tempo de D. Afonso Henriques resta apenas a memória de uma lei sobre as barregãs (Dispõe sobre
a barrigania, ou seja, sobre as mulheres dos clérigos, as barregãs ou também designadas de concubinas.
D. Afonso Henriques, com essa lei, determinou que as barregãs dos clérigos fossem presas) e do de
Sancho I conhece-se comente uma provisão.

Todavia, aos poucos foi-se processando crescente atividade legislativa dos nossos monarcas.

Iniciou-se a marcha lenta, mas segura, para monopolização do direito positivo pelo príncipe. A função
legislativa, o poder legislativo, torna-se do rei. Decerto, ela será também exercida na cúria/conselho
régio e ou pelas cortes juntamente com o rei. As cortes e, por vezes, os municípios e outras formas de
organização política conseguirão delimitar relativamente a esfera de competência legislativa dos
soberanos em razão da matéria.
Em alguns casos, o rei não pode alterar ou revogar unilateralmente as leis. O seu poder legislativo
estava subordinado aos preceitos das outras ordens jurídicas, a começar pelo direito divino e pelo
direito natural.

De qualquer forma, porém, tornou-se cada vez mais acentuada a propensão para referir o monarca
como centro legislativo por excelência. Por outro lado, este na luta pela supremacia e pela
superioridade jurídico-política da Coroa, vai assumindo e reclamando para si o monopólio legislativo
e o papel de árbitro entre as diversas ordens jurídicas em presença.

Para se imporem e se fazerem respeitar pelos cidadãos da comunidade, as leis eram


normalmente elaboradas em cumprimento de determinados requisitos, argumentando-
se até que resultavam da verificação de todos ou de parte deles, nomeadamente:
Vontade Régia: Invocava-se que a lei era resultado duma vontade régia.
Conselho: Invocava-se que os conselheiros do rei, sábios nas matérias a legislar,
tinham sido ouvidos.
Cortes: Invocava-se que resultavam de deliberações das cortes, o que as tornava
também de cumprimento obrigatório.
Razoabilidade: Invocava-se que as leis eram elaboradas de acordo com a razão
Antiguidade: Invocava-se que a lei correspondia a uma prática reiterada, antiga e que
tinha apresentado boas soluções.

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Tornou-se, em suma, a fonte do poder e do direito. O progressivo crescendo da legislação régia
corresponde ao fortalecimento sempre constante do poder real, para o que não pouco contribuíram os
juristas educados na tradição e no culto do direito romano justinianeu. Trata-se da direção ideológica
contida no celebre princípio do que o que aprouve ao príncipe tem força de lei.

Em verdade, e no que toca à escassez, para além das duas leis já citadas, até D. Afonso III apenas se
dispôs da produção legislativa de D. Afonso II, pois de D. Sancho II não há vestígios de quaisquer leis.
E se a D. Afonso II cabe a Glória de ter sido verdadeiramente o primeiro rei legislador português – é
notável, considerada em termos relativos aos seus predecessores, a sua elaboração normativa,
sobretudo na Cúria de Coimbra de 1211.
Relativamente à época posterior a D. Dinis, a penetração do direito justinianeu e seu reflexo na
legislação nacional acentuou-se naturalmente, dada a fundação por este monarca do Estudo Geral, em
cujo currículo o direito romano figurava. A intensificação da função legislativa levou à compilação
das respetivas normas.
Existiram coleções de leis, das quais apenas se possui, redigido no período até 1415, o Livro das Leis
e Posturas, onde se contêm as leis de D. Afonso II a D. Afonso IV, bem como uma referida apenas
como do Infante D. Pedro. Outras compilações contendo leis destes e outros monarcas, como as
chamadas Ordenações de D. Duarte e as Ordenações Afonsinas são já posteriores a 1415.

Neste Código consignou-se a lei do direito, isto é, simultaneamente posta pelo rei e comum a todos os
seus sujeitos, como prevalecente a qualquer outra fonte do direito.

Até ao reinado de D. Afonso II, só se conheciam duas leis portuguesas,


nomeadamente uma lei do reinado de D. Afonso Henriques sobre as barregãs
(grávidas), e, uma lei do reinado de D. Sancho I sobre a isenção do serviço
militar.
Com efeito, as leis feitas pelos reis portugueses só surgiram, em número
considerado significativo, a partir do reinado de D. Afonso II (na Cúria de
Coimbra de 1211).
Neste período as leis portuguesas foram proliferando e acabaram por ser
compiladas em duas grandes obras, nomeadamente o Livro das Leis e Posturas
e as Ordenações de D. Duarte.
1) Livro das Leis e Posturas: Esta obra agrupa, sem qualquer critério de
sistematização, as leis elaboradas entre os reinados de D. Afonso II e D.
Afonso IV.
2) Ordenações de D. Duarte: Esta obra é mais completa e perfeita que a
anterior, já que organiza leis por reinados e, dentro destes, sistematiza-as por
matérias. D. Duarte mandou acrescentar-lhe um índice, de forma a facilitar a
consulta.
A questão da Noforça vinculatória
período pluralista, da
comleia anda ligadae ao
formação que respeita
consolidação dosa Estados,
possibilidade
a lei de
foi-justificar por
virtude a ignorância
se gradualmente afirmando como uma fonte de direito cada vez mais porque não
da norma. O Fuero Real dispunha que “ninguém não pense mal fazer
sabe as leis importante.
nem o direito, pois se fizer contra a lei, não se pode escusar da culpa porque não sabe a
lei”. Postula, necessariamente, o problema da ignorância do preceito e do respetivo conhecimento. Só
é, de facto, congruente exigir o cumprimento da lei e não atender à alegacão de ignorância se o
conhecimento for viável. Deste modo, numa lei de D. João diz-se: “E para não haver razão de dizer
que não conheciam esta minha Carta, hei de publicar nas audiências; e mando os Tabeliães das
Comarcas a registar nos seus livros e a lerem a cada ano no concelho”.

Mas geralmente a publicação das leis e de quaisquer ordens do soberano estava a cargo dos tabeliães,
que, depois de as registarem nos seus livros, as deviam ler no tribunal do concelho, ordinariamente
uma vez por semana, durante um certo período que chegava não raro até um ano. Além disso,

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publicavam-se também as leis na chancelaria da corte, mas esta prática nem sempre se observava. Se
a leitura pública das leis era, em geral, feita todas as semanas, em certos casos, todavia, a própria lei
estabelecia periodicidade diversa para a realização de tal solenidade, por exemplo D. Dinis ordenou
que a leitura mensal se efetue no primeiro conselho de cada mês.
Por vezes, a oralidade precedia mesmo o registo da lei. Em certos casos, de facto, o registo era feito
na chancelaria régia pela simples transcrição do texto que servia de base à leitura pública. Em matéria
de registo, ordenou-se, em alguns casos, não apenas os tabeliães que procedessem a transcrição nos
seus livros, mas às autoridades locais.
Assim, a lei tinha força vinculativa, ou seja, nenhum cidadão podia alegar a ignorância da lei pois estas
eram registadas no Livro de Chancelaria e lidas na missa amiúde ou muito amiúde, conforme a sua
complexidade e grau de importância.

Relativamente à aplicação da lei no espaço, deve-se considerar que nem todas eram de âmbito geral.
Ao lado das normas aplicáveis à escola do país e dimanadas do poder central – isto é, do rei, só ou em
cortes -, outras existiam igualmente dele oriundas, mas de aplicação geográfica restrita. Para além
delas, existiam ainda preceitos cogente (que coage) estatuídos pelas comunidades inferiores, como os
concelhos, e a tais comunidades restritas.
A aplicação da lei no tempo desdobra-se em dois aspetos:
• Sua entrada em vigor;
• Aplicabilidade retroativa.
De facto, não basta saber qual a entrada em vigor de uma lei. É imprescindível determinar se se aplica
a factos em curso à data de início da vigência ou a situações ou consequências jurídicas fixadas com
base em factos produzidos à sombra do direito anterior.

D. Duarte, então infante, estabelecerá que a lei devia ser interpretada de acordo com a sua letra e
recto espírito, pois condenava o que se afastassem daquela alterando enganosamente o seu espírito.
Há a salientar que neste período pluralista algumas leis não eram muito claras e, por isso, levantavam
dúvidas quanto à sua aplicação. Porém, quando tal ocorria, o monarca elaborava uma segunda lei,
denominada de lei declaratória, que esclarecia o sentido da primeira lei.

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IUIS REGNI | DIREITO OUTORGADO E PACTUADO1

Direito Outorgado: é aquele que resulta da outorga da concessão de algo, de normas, através de um ato
oficial.
Direito Pactuado: pressupõe um acordo entre duas partes, um encontro de vontades, celebrando-se um pacto
jurídico entre quem elabora as normas ou regras e quem as recebe para as aplicar. Deste resultam direitos e
deveres para ambas as partes.

Cartas de Privilégio

Aceção ampla: a carta de privilégio é um documento que estatui prerrogativas, liberdades, direitos, regalias,
franquias, isenções e privilégios de qualquer ordem. Nesta integram-se cartas de doação, cartas de franquia,
entre outras.

Aceção estrita: a carta de privilégio é um documento que estatui o regime jurídico específico de uma
determinada povoação. É este o sentido que vamos assumir.

Consoante os autores, as cartas de privilégio englobavam, entre outras:


• Cartas de povoação
• Cartas de foral / Forais
• Foros
• Cartas de doação
• Cartas de doação de terras
• Cartas de liberdade de uma população
• Cartas de franquia
Embora seja unânime que as principais e mais específicas eram as três primeiras.

Cartas de Povoação

Percebe-se que neste tempo histórico recuado, durante o período da Reconquista, que antecede a formação da
nacionalidade, houvesse a necessidade de atrair população para zonas escassamente povoadas ou mesmo
despovoadas. Assim, uma das formas de garantir a proteção das terras recentemente conquistadas, era atraindo
população para estas terras e é esse o papel das Cartas de Povoação.

A carta de povoação é um documento que procura povoar uma determinada


localidade, atraindo população para terras escassamente povoadas ou mesmo
despovoadas, com o propósito de garantir a sua defesa através do povoamento.
Eram elaboradas pelos monarcas e pelos senhores das terras, estabelecendo os
termos e as condições de ocupação e exploração das terras.

Esta carta praticamente restringe o seu conteúdo às condições de assentamento na terra, definindo os estatutos
dos futuros colonos e as condições de exploração da terra, tanto prestações patrimoniais – o tipo de tributos
que os colonos devem pagar aos senhores – como prestações pessoais. Definia-se também a forma como eles
poderiam explorar aquela terra e que direitos lhes estariam garantidos.

A questão que se coloca é saber se estes documentos que, em regra, eram outorgados pelos senhores das terras,
têm ou não uma natureza pactícia / contratual.
Alguns autores pensam que estas cartas são contratos agrários coletivos, como foi o caso de Eduardo de
Hinojosa e Martínez Marina. No entanto, esta natureza contratual foi posta em crise por grandes nomes da
doutrina espanhola, designadamente, Tomás y Valienti, que não considera que estes documentos tenham uma
natureza pactícia ou contratual, mas sim um conteúdo normativo.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 227 a 237

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1. Não há verdadeiramente um contrato, uma vez que os povoadores não estipulam as suas condições,
há, portanto, um ato unilateral do senhor.
2. Estamos perante uma figura de Direito público em que, para além das condições de exploração da
terra, muitas vezes, são criados vínculos pessoais entre o senhor da terra e os colonos que a vão explorar
3. A carta de povoação não obriga apenas aquele senhor que a outorgou nem os povoadores daquela terra,
a carta cria regras para o futuro e mantém-se durante toda a sua vigência, vinculando mesmo aqueles
que vêm a habitar aquela terra mais tarde.
Contudo, nenhum destes argumentos colide necessariamente com a natureza contratual das cartas de povoação
e, por isso, faz sentido integrá-las como figuras pactuadas, e não como atos de definição unilateral de regras.
Porquê?

Se é verdade que estas cartas são outorgadas pelos senhores, isto não significa que a natureza pactícia
desaparece pelo facto de não existir liberdade de estipulação por parte dos colonos.

Estes são contratos, porque há uma liberdade que permanece, a liberdade de celebração, ou seja, podemos
assinar ou não assinar o contrato. O mesmo acontece com as cartas de povoação, os povoadores não podem
alterar as prestações pagas aos senhores, não podem estipular, mas podem escolher ir ou não para a terra, têm
liberdade de celebração.

De facto, as cartas de povoação são contratos normativos, porque as suas regras dispõem para o futuro, mas
estas ideias não fazem com que se perca a natureza pactícia da carta de povoação.

Forais / Cartas de Foral

Eram cartas de privilégio que definiam o conteúdo de uma determinada povoação. Eram outorgadas
pelo monarca, pelo senhor eclesiástico ou pelo senhor feudal, sendo que no caso do monarca
também a mulher e os filhos as tinham de confirmar. Surgiram da necessidade de criação de normas
de direito público, com o fim de regular as relações entre o Estado e os particulares. Eram cartas
mais extensas e completas que as cartas de povoação, abarcavam um número muito mais
significativo de matérias.

Enquanto que as cartas de povoação têm um conteúdo estritamente agrário, as cartas de foral têm um maior
número de matérias como:
• Regras de Direito Processual
• Regras de Direito Militar
• Regras de Direito Fiscal
• Regras de Direito Penal
• Regras de Direito Administrativo
• Algumas regras de Direito Privado, nomeadamente, Direto da Família e Direito Sucessório

No que respeita à relação entre as normas do monarca e as normas específicas dos forais, há que referir que a
norma do foral prevalecia à do monarca, tendo esta, no foral, um carácter subsidiário, já que só se aplicava
em caso de lacuna no ordenamento do foral.

Mais tarde, iremos estudar os institutos da Família, das Sucessões e do Direito Penal. Este estudo consegue
fazer-se porque é muito baseado nestas cartas de foral. É neste tipo de fontes normativas, que se produzem no
reino, definindo as condições jurídicas aplicadas a uma determinada localidade, que encontramos o essencial
destes institutos.

Na prática, pode ser fácil distinguir as cartas de povoação dos forais, mas em teoria podem haver algumas
dificuldades porque, por vezes, o nome que é atribuído a determinado documento nem sempre coincide com
aquilo que deveria de ser o seu conteúdo.

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Exemplo: O Mosteiro de Lorvão, quando pretendeu povoar as terras de Santa Comba e de Treixede, emitiu
um documento que intitulou como carta de povoação. No entanto, quando olhamos para o seu conteúdo, vemos
que o mesmo não se restringe a definir as condições de exploração da terra e que integra mais matérias, por
isso, é normal que este documento tenha depois sido intitulado de foral.

Apesar disto, para Alexandre Herculano, o foral era uma carta constitutiva de um município porque estava
relacionada com o conceito de autonomia territorial.
Contudo, parece que assim não é, os forais não serviram sempre para elevar uma determinada povoação a
concelho. Se olharmos para o conteúdo e para as circunstâncias históricas que ditaram o aparecimento de
alguns forais, vemos que há cartas de foral que foram atribuídas a localidades que já eram concelhos ou a
localidades que nunca chegaram a ser considerados concelhos.

Outra questão que se debate a propósito dos forais, tem que ver com o seguinte:
Em regra, as cartas de foral são outorgadas pelos senhores, que podem ser laicos ou eclesiásticos, e um desses
senhores pode ser o Rei.
A questão que se coloca é: se o foral define o estatuto de uma determina localidade, qual é o valor atribuído a
uma regra que, para além de reger uma localidade, aparentemente também se destina a reger outras terras do
reino, ou mesmo todo o reino?

Exemplo: Existe um foral outorgado por um nobre para povoamento de uma localidade e há uma regra que
isenta todos aqueles que forem viver para aquela população de pagarem um tributo em todo o reino.

Obviamente, se o senhor em causa não é o Rei, ele não pode disciplinar para todo o reino. Então qual é o valor
desta regra? É considerada letra morta? Torna-se ineficaz?

A regra é reduzir o âmbito de aplicação daquele preceito. Portanto, se o senhor não pode disciplinar para todo
o reino, aquela norma é reduzida, aplicando-se apenas aquela terra ou a outras terras do mesmo senhor. Porém,
se o senhor em causa for o Rei, então pode haver uma norma geral e abstrata, que se aplicaria a todo o reino.

Porque é que podemos ter normas aparentemente genéricas integradas em carta de foral?
1. Há de facto forais que são originários, que foram criados especificamente para aquela terra.
2. Também pode acontecer que um senhor de uma terra aproveite um foral que teria sido outorgado por
outro senhor ou por ele próprio, para outra terra, criando, assim, famílias de forais.
Na verdade, grande parte dos forais que foram outorgados em Portugal não são originários, não foram
pensados de novo para a povoação daquela localidade.

Assim, é possível classificar os forais de acordo com 4 critérios:

Entidade outorgante
Forais régios: do rei, com a confirmação da rainha e dos filhos.
Forais particulares: do senhor eclesiástico ou do senhor feudal.

Molde ou matriz
Há que salientar as famílias de forais, ou seja, forais que tinham um texto base comum, destacando:
Famílias de Forais de Lisboa/Santarém
Famílias de Forais de Évora/Ávila
Famílias de Forais de Salamanca

Grau de complexidade das instituições municipais


Forais Rudimentares
Forais Imperfeitos
Forais Perfeitos

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Originalidade
Forais originários: criados especificamente para uma determinada comunidade.

Forais ampliativos: criados com base na estrutura de outros forais, aos quais se acrescentavam normas
específicas. Forais que funcionam como precedente de outros forais.

Forais confirmativos: eram confirmados pelo monarca ou correspondiam a cópias integrais de outros forais
anteriores.

Os forais são extremamente antigos. Numa primeira fase, eles estão escritos em latim vulgarizado, mas os
mais recentes já aparecem escritos em galaico-português. Consequentemente, é também possível distinguir os
forais pela sua antiguidade e pela língua utilizada.

Foros / Estatutos ou Costumes Municipais

São cartas de privilégio que surgiram no século XIII e XIV. Distinguem dos forais também pelo seu conteúdo,
porque abarcam muito mais matérias. Enquanto que forais têm essencialmente uma incidência no Direito
Público, os foros têm fortíssima incidência no Direito Privado.

Em regra, eram da iniciativa dos habitantes de um município, que formavam escritos, longos cadernos de
regras que, por vezes, se prolongavam mesmo por títulos e por capítulos, apresentando já uma sistemática
extraordinariamente interessante. Do ponto de vista da sua iconografia, também são riquíssimos, o que mostra
a importância que as populações atribuíam a estes direitos locais.

Os foros são constituídos pelas próprias autoridades locais, pelos próprios concelhos, que os ilustram de forma
muito rica. Os habitantes criavam ou alteravam as normas existentes no município, de acordo com o
conhecimento que tinham das leis e dos costumes locais. Nestes documentos extensos e complexos, cabiam
várias matérias sobre a revelação da vida jurídica local e dos costumes dos forais através de normas.
Os foros eram, portanto, cartas de privilégio mais relacionadas com o Direito Pactuado.

Nos foros podem-se encontrar várias fontes jurídicas, nomeadamente:


• Normas de base costumeira
• Normas de base visigótica
• Normas de base muçulmana
• Normas de base canónica
• Normas de base romana

Apesar de os foros serem mais recentes, isto não significa que as matérias que eles abarcam resultem de fontes
mais antigas. Muitas vezes, eles resultam de cartas de foral e de costume.

Também aqui se podem encontrar famílias de foros. Em Portugal, foram muito importantes os Foros de Sino
Ribacoa e, portanto, grande parte dos foros integram-se nesta família, que integra, essencialmente, 4 grandes
foros:
• Foros de Castelo Bom
• Foros de Alfaiate
• Foros de Castelo Rodrigo
• Foros de Castelo Melhor

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DIREITO PRUDENCIAL1

O Direito Prudencial é fundamentalmente um direito criado nas universidades,


portanto um direito universitário, de docentes académicos. Embora não tenha
surgido com o poder político, ajudou a consolidá-lo. Foi aceite porque ajudou
a consolidar o poder político e porque foi produzido pelos prudentes, aos quais
eram reconhecidas muitas qualidades.

O prudente é aquele que conhece o direito, que tem a capacidade de distinguir, em cada momento, o
justo do injusto, o devido do indevido. O prudente é aquele que tem Auctoritas, um saber socialmente
reconhecido, e Inventio, a capacidade de criar, de descobrir novas soluções para os casos em análise.
Assim, os juristas declaravam a verdade jurídica através da sua opinião justa e equitativa e resolviam
casos da vida.

A iuris pruentia baseia-se na auctoritas, mas desprovida de poder, ao contrário da lei, que repousa
sobre este, sobre a potestas.

Hoje a jurisprudência identifica-se com as decisões dos tribunais, que se podem impor pela força,
porque têm potestas.

A jurisprudência deste período histórico, é a atividade de todos os que constroem o direito em


termos científicos e independentemente de qualquer ligação ou dependência específica ao poder.
Identifica-se com a opinião justa daquele que tem o reconhecimento de a emitir, ou seja, que tem
auctoritas.

Na base do surgimento do Direito Prudencial estão causas de natureza política, religiosa, económica e
cultural.

o A deficiência do direito existente: a lei é uma fonte extraordinariamente lacunosa e, neste


período, vai-se caminhando muito lentamente no campo legislativo.

o O costume é fragmentário por essência e, ao mesmo tempo, também é localista, não há uma
escala geral, nacional ou global.

o A divisão do Império Romano em duas partes, Império do Ocidente e Império do Oriente, vai
dar origem a duas ordens jurídicas distintas. Na parte oriental, graças à cultura helénica, o
desenvolvimento do direito romano vai culminar no século VI com a obra legislativa do
imperador Justiniano, o Corpus Iuris Civilis. Na parte ocidental, o direito romano vai
ultrapassar a vulgarização, o que de alguma forma significa um período de declínio e
decadência, que contrasta com aquilo que se passa no lado oposto, até à queda de Roma no
século V.
Com efeito, nos finais do século XI, a recriação do Império do Ocidente, iniciada com Carlos
Magno no ano de 800, vai fazer com que o trabalho formidável de criação jurídica do Oriente,
seja aproveitado no Ocidente, a partir do século XII, através do labor das escolas. O imperador
precisava de um Direito forte para construir e edificar o seu Império.

1
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, 12º Edição, página 261 a 358

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o O desenvolvimento da economia medieval, que estava sujeita a trocas comerciais e cuja
evolução levou à criação de mais cidades Estado e ao surgimento de títulos de crédito,
transportes marítimos e seguros.

o O aumento da curiosidade científica do estudo do direito e a criação das universidades para o


efeito.

o O desenvolvimento da estrutura eclesial e do respetivo direito canónico, que encontrará na


ordem jurídica romano-justinianeia rico manancial técnico e conceptual de que podia
abastecer-se. De facto, os próprios clérigos, ao estudarem o direito romano nas universidades,
constataram que o mesmo dava resposta a uma série de problemas para os quais o direito
canónico não tinha solução.

Todos estes fatores levaram à necessidade de criação de um direito moderno, que favorecesse não só
os objetivos políticos, isto é, um direito imperial, como também que produzisse as soluções capazes
de corresponder às realidades económicas e culturais da época, a que o direito canónico não dava
resposta. Assim sendo, interessava também aos clérigos receber o que de bom o Direito Romano
tivesse.

A partir do século XII, o Corpus Iuris Civilis e, com particular realce, a sua obra maior, o Digesto,
passa a ser objeto de estudo preferencial em Bolonha, graças ao génio criativo Irnério, que é professor
em Bolonha e que olha para aquele acervo normativo como base essencial de análise. Ao fazer isto,
ele cria, de facto, um ensino técnico universitário de Direito.

Assim, percebe-se que o direito que vai funcionar como base de trabalho do labor jurisprudencial, no
período medieval, é o Direito Romano, que culminará com o Corpus Iuris Civilis.

Atualmente, o código de Justiniano encontra-se dividido em:


• Institutos e Digesto (vol I)
• Codex (vol II)
• Novelas (vol III)
Mas quando ele foi descoberto pelos prudentes, foi dividido de uma outra forma.

Os livros do Digesto, consoante foram sendo cronologicamente descobertos e conhecidos, foram


divididos em:
• Digesto Velho (abrange os livros 1 a 24)
• Digesto Novo (abrange os livros 39 a 50)
• Esforçado (abrange os livros 25 a 39)
Foram os últimos livros do Digesto a serem descobertos por Irnério, que os designou assim por
entender que o Direito contido nos livros anteriores ficava reforçado com estes livros.
Os livros do Codex, também foram divididos pelos prudentes em duas partes:
• Volume Grande (os 9 primeiros livros)
• Volume Autêntico ou Volume Pequeno (os últimos 3 livros)
Este continha as Instituições, as Novelas e os Livros dos Feudos.

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Escolas Jurisprudenciais na Idade Média

Escola dos Glosadores

É a primeira escola que começou a estudar novamente o direito romano nas universidades. Foi fundada
em Bolonha, por Irnério, nos fins do séc. XI ou inícios do séc. XII, e convoca um conjunto de grandes
nomes, dos quais se destaca Acúrcio, considerado o maior glosador desta escola. Entende-se que esta
escola finalizou com a morte de Acúrsio, cuja obra máxima, a Magna Glosa, se poderia tomar como
respetivo termo.

Os glosadores liam os textos de direito romano e, como estes tinham uma linguagem muito técnica,
na tentativa de os perceber, apunham-lhe glosas, que eram pequenas anotações ou explicações
normalmente colocadas nas margens (glosas marginais) ou entre as linhas dos textos (glosas
interlineares).

Entre os vários discípulos de Irnério, destaca-se Acúrcio. Ele é tão relevante para a Escola, que teve,
eventualmente, a capacidade de lhe pôr fim.

Acúrsio realizou vários trabalhos menores e foi também autor de uma das obras
capitais da história da jurisprudência, a Magna Glosa, elaborada entre 1220 e
1234, sendo composta por mais de 96 mil glosas. No fundo, ele recolheu todas
as glosas que os seus juristas antecessores efetuaram ao estudarem o Corpus Iuris
Civilis e compilou-as todas numa única obra, incluindo também algumas glosas
da sua autoria e alguns textos antagónicos.
Esta obra autónoma é também conhecida por Glosa Ordinária ou Glosa de
Acúrcio.

Portanto, quando nós temos uma síntese dos textos que integram o Corpus Iuris Civilis, a tendência
dos juristas posteriores é afastarem-se da análise do Corpus Iuris Civilis e concentrarem-se na síntese.

Então, abre-se uma escola de transição que é idolatra da obra de Acúrcio, dedicando-se exclusivamente
à Magna Glosa.

Escola dos Pós-acursianos

Esta escola surgiu no do fim séc. XII, limitando-se a fazer um trabalho de compilação e
sistematização das glosas. Só alguns autores é que dão importância a esta escola, defendendo que a
mesma surgiu na sequência de uma obra superior, nomeadamente a Magna Glosa, escrita por Acúrsio,
um grande glosador que marcou uma tendência evolutiva no que concerne ao tratamento dos textos.

A partir do século XIV, surge uma nova escola.

Escola dos Comentadores

Foi fundada por Cino de Pistóia, na segunda metade do séc. XIII e desenvolveu-se ao longo do século
XIV. Esta escola abandona a síntese e retorna ao Corpus Iuris Civilis, uma vez que os comentadores
faziam comentários nos textos de direito romano.

Os principais nomes desta escola foram Bártolo e o seu discípulo Baldo, sendo o primeiro conhecido
por ser a luz do direito, já que a sua influência se fez sentir até finais do séc. XVIII.

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Esta escola beneficiou do trabalho dos glosadores e criou o Direito Nacional, isto é, o trabalho dos
comentadores foi o de porem em prática os textos justinianeus, partindo já do trabalho de
esclarecimento dos glosadores, adaptando as normas justinianeias à realidade dos séculos XIII e XIV.
Os comentadores partiam, assim, de um texto de direito romano, muitas vezes já trabalhado pelos
glosadores, e desenvolviam um tema de forma discursiva, destacando-se, por vezes, do texto de
origem, ultrapassando assim a mera interpretação do texto.

Diferenciação e Relação entre as Escolas Medievais

Os historiadores do Direito têm apontado diferenças entre a Escola dos Glosadores e a Escola dos
Comentadores. Importa aqui realçar a comparação dos entendimentos das doutrinas tradicionais com
os da doutrina atual.

Doutrinas Tradicionais
Distinguiam as escolas medievais pelo método

Escola dos Glosadores Escola dos Comentadores


Olham para os textos de direito romano numa Desenvolvem um trabalho mais vocacionado
perspetiva de adoração ao texto, fazendo um para o espírito da lei, adaptando o direito
trabalho excessivo de apego à letra da lei – romano à realidade da época, fazendo,
interpretação literal de natureza gramatical e portanto, uma abordagem prática.
especulativa, inserida numa abordagem teórica
e muito académica. Não se limitavam a traduzir os textos do
Corpus, mas também a comentá-los,
Menos criativos e mais presos às letras dos emitindo, por isso, opiniões mais criativas e
textos. originais.

No entanto, isto é posto em causa quando olhamos para muitos dos comentários feitos pelos
comentadores. Verificamos que nalguns deles, falece essa nota de originalidade, traduzindo, no fundo,
síntese de opiniões de juristas anteriores.
Ao mesmo tempo, se olharmos para o trabalho dos glosadores, vamos ver que também eles praticaram
o comentário e que temos também criatividade nalgumas opiniões que nos legaram.
Assim, para ultrapassarmos esta diferença e, eventualmente, esta falta de justeza, poderia ser adequado
falarmos de Escola dos Glosadores e dos Pós-Glosadores.

Doutrina Atual

Discorda com as doutrinas tradicionais. Defende que é muito difícil, ou até mesmo impossível, haver
na Idade Média uma clara preocupação em distinguir a letra do espírito da lei, alegando que da letra
da lei já resultava o sentido literal e, por isso, não era de supor que os prudentes pudessem estudar e
explicar um texto sem aprenderem, pelo menos, o seu sentido mais imediato.

Os autores atuais defendem que o que realmente separa a escola dos glosadores da dos comentadores
são razões políticas, pelo que, na prática, não se deve fazer uma separação rígida entre as escolas.
Em termos metodológicos, não houve uma mudança, mas sim uma evolução natural, na medida em
que a existência de textos já explicados literalmente pelos glosadores permitiu aos comentadores ter
mais hipóteses de explorar outros sentidos dos textos, de aproveitar os seus conteúdos e de os adaptar
aos direitos locais.

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Distinguiam as escolas pela diferente perspetiva de estudo dos juristas e pelos seus objetivos.

Escola dos Pós-acursianos Escola dos Glosadores


Fizeram a transição deste estudo teórico Beneficiaram do trabalho feito pelos
para uma visão mais prática do direito. anteriores. Adotaram um objetivo
mais pragmático de utilização do
direito romano naquilo que ele tinha
Escola dos Glosadores de útil. Adaptaram o direito romano
Fizeram um estudo teórico do direito, aos casos em que as regras
pois tiveram de ter a tarefa de entender justificassem uma alteração.
e explicar os textos que ninguém Adaptaram o direito romano aos
conhecia. direitos locais (iura própria).

Há também uma diferença relevante de denunciar. Aquilo que as distingue essencialmente é o objeto
de análise.

Escola dos Glosadores


Quando ela surge, no século XII, a lei do Rei é ainda muito fragmentária e lacunosa. Portanto, os
glosadores podiam olhar para o Corpus Iuris Civilis quase como um objeto exclusivo de análise.

Escola dos Comentadores


Quando ela surge, no século XIV, já há um acervo legislativo mais abundante e mais expressivo
do que aquele que existia. Portanto, os comentadores têm agora a necessidade de olhar não apenas
para o Direito Justinianeu, mas também para o Direito próprio de Estados, onde eles desempenham
as suas atividades criativas. Têm uma necessidade de adaptar o próprio Corpus Iuris Civilis e o
Direito Romano ao Direito próprio de cada país. Os comentadores têm uma necessidade de articular
fontes normativas, que os glosadores não tinham.

Ligação da jurisprudência à Universidade

Há um dado que é particularmente relevante, a ligação do Direito Prudencial e do trabalho dos juristas
às Universidades.

A grande maioria destes prudentes são professores universitários e, neste período, as Universidades
florescem. Por outro lado, há uma grande fusão de conhecimento nos circuitos universitários da época,
até porque a língua que falam e escrevem em comum é o latim.
O principal centro universitário começa por ser Bolonha, mas pouco tempo depois começam a elevar-
se outros centros de grande referência pela Europa fora, como é o caso de Paris, Nápoles, Oxford e
também Lisboa e Coimbra.
O intercâmbio entre professores e estudantes universitários era muito grande, o que justifica que o
Direito Romano Justinianeu se transforme na fonte de Direito comum nestes centros de produção
jurídica.

Surge aqui o conceito de Ius Commune, o Direito Comum.


O facto de as escolas terem eleito o Corpus Iuris Civilis e o Direito Romano Justinianeu, pela sua
perfeição técnica, como objeto primacial de análise, no contexto académico, e depois terem emitido
opiniões que eram utilizadas para resolver casos da vida, no contexto dos Estados, fez com que o
Direito Romano se propagasse como Direito Comunal, criando uma matriz jurídica que nós
partilhamos.

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Géneros jurídico-literários utilizados nas escolas jurisprudenciais2

Glosas
Correspondem a pequenos comentários clarificadores de uma pequena passagem do conteúdo do texto,
isto é, correspondem a uma explicação sumária de uma palavra ou expressão de um texto jurídico de
Direito Romano. Podem ser:
Interlineares: escritas entre as linhas do texto.
Marginais: escritas à margem do texto.

Podem ser também de natureza:


Histórica: esclarecem assuntos ligados ás circunstâncias históricas referidas no texto
Filológica: explicam aspetos ligados à origem das palavras
Técnico-jurídica: explicam conceitos de direito
Retórico-dialéticas: explicam argumentos contidos no texto

Há também quem as classifique em:


Declarativas (de índole explicativa)
Discursivas

Distinctiones
É um género promovido ou consagrado nas glosas e corresponde à técnica de distinção, ou seja,
pegando numa norma geral vai-se estabelecendo divisões e subdivisões.

Consilia
São géneros literários que correspondem ao que hoje designamos por pareceres jurídicos, consistindo
na opinião de um jurista sobre uma consulta que lhe é feita, distinguindo-se, no entanto, dos
pareceres atuais nas formalidades e no grau de compromisso assumido pelo autor.

Os consilia eram elaborados com o fim de serem utilizados na resolução de uma situação concreta,
tinham, portanto, uma dimensão prática. Muitas vezes e, para terem mais força, os consilia eram
elaborados e jurados em nome de Deus e da Virgem perante o Evangelho e eram selados, na presença
de testemunhas, pelos notários das universidades a que os autores pertenciam.

Commentarius
Caracterizam-se pela sua forma discursiva, ultrapassando a mera interpretação do texto, já que
consistiam em longas dissertações sobre um tema, assumindo uma especial importância por terem
sido utilizados pelos juristas na adaptação dos textos romanos aos direitos da época, os chamados
direitos locais.

Contrariamente às glosas, os comentários continham posturas críticas aos textos romanos, sendo por
isso que se diz que são géneros literários superiores, nos quais os prudentes se afirmavam na sua
plenitude.
Bártolo, um dos principais juristas da escola dos comentadores, defendia que o jurista, ao analisar um
texto, deveria primeiramente saber qual era a solução correta e só depois é que deveria procurar um
texto legal para fundamentar e basear essa solução.

Lectura
Corresponde ao que hoje é uma lição universitária, mas numa lógica em que o professor se limita a
ler os textos e não pode ser questionado, uma vez que é alguém que é considerado como sendo

2
Ver as restantes figuras nas páginas 282 a 295 do manual, vol. I.

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superior. A lectura consistia pois numa lição universitária, em que se apresentava aos alunos um texto
cuja análise decorria em sete fases:

1) Leitura e ilustração sumária do texto e do conteúdo da matéria a discutir


2) Resumo da matéria e do conteúdo do texto
3) Leitura comentada com as explicações correspondentes
4) Resolução de eventuais contradições que o texto apresentasse
5) Formulação de conceitos jurídicos contidos no texto
6) Realização das distinções (distinctiones) necessárias ao esclarecimento desses conceitos;
7) Discussão e resolução dos problemas suscitados pelo texto, em que o docente fazia um breve
comentário sobre as várias opiniões possíveis e dava a sua opinião, a qual podia ser
inovadora ou seguidora de outras.
A lectura apresentava-se como uma espécie de aula prática que depois era escrita e que muitas vezes
tinha enxertados, no próprio processo da leitura, outros géneros literários mais simples.

Quaestio
É um género complexo, um método dialogado ou disputado, que corresponde à aplicação do princípio
da contradictio como forma de apurar a verdade e de resolver situações da vida reais ou
ficcionadas. É um elemento de atualização do direito, visto conduzir a um adequamento da norma às
situações da vida da época.

Quaestio facti: reporta-se a uma questão de facto; estava em causa a existência de um evento e,
portanto, provava-se.

Quaestio iuris: reporta-se a uma questão de interpretação do direito, implicava uma disputa intelectual
que se resolvia com o recurso a leges, ractiones e auctoritates.

A quaestio era muito utilizada nas aulas, onde o docente levava os alunos a aceitarem os seus
argumentos. No fundo, tratava-se da resolução de uma questão contrapondo argumentos a favor e
contra para cada solução possível.

A doutrina distingue as quaestio em três tipos de diálogo:


Catequístico (entre mestre e aluno)
Disputata (entre alunos)
Controversístico (entre pares)

O reconhecimento do valor científico e pedagógico da quaestio levou ao seu registo.

Quaestio reportata: a quaestio decorria na aula e era registada por um aluno, que transcrevia os
argumentos resultantes da discussão e a decisão final. Muitas vezes, o raportador completava esse
trabalho com novos argumentos seus, com críticas às posições assumidas e juntando um exórdio e um
título.

Quaestio redacta: era o mestre a redigir uma espécie de ata, na qual também acrescentava os
argumentos não discutidos no debate.

Como é que funcionava a quaestio?

1) O mestre enunciava os factos em causa, a hipótese que os alunos tinham de resolver.


2) Os alunos deviam de enunciar o problema, ou seja, deviam de dizer qual é a questão que
procuravam resolver.

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3) Os alunos apresentavam argumentos pró e contra uma determinada solução e chegavam, no
final, a uma determinada opinião justa e equitativa para o problema que tinham de solucionar.
4) Passava-se à resolução (solutio ou determinatio).

Metodologia das escolas jurisprudenciais

No trabalho de criação do direito, os prudentes utilizaram um método analítico-problemático,


designado por Ars inveniendi, isto é, arte de inventar ou encontrar argumentos.

Método problemático
O jurista medievo parte sempre de um problema da vida, seja uma situação real ou ficcionada. Ele não
pensa o Direito abstrato, ele não pensa o sistema jurídico, ele pensa o Direito a partir de problemas
concretos. O jurista obtinha uma solução para o caso concreto, depois de discutir a questão, recolher
os argumentos pró e contra e ponderar as várias soluções possíveis, optando, normalmente, pela
solução que, para ele, lhe parecesse mais razoável.

Método analítico
O pensamento do jurista da época é analítico. Isto significa que a base de trabalho do jurista medieval
é o preceito, o texto da norma. O jurista procurava, para cada caso, um preceito legal que lhe
permitisse encontrar a solução ideal, não se preocupando tanto com a consideração sistemática, isto é,
com o enquadramento no sistema jurídico, procurando, primeiramente, na norma, a solução que mais
lhe convinha e só depois é que a considerava no ordenamento jurídico.

Com efeito, como o código de justiniano não continha uma lógica sistemática, isto é, uma
harmonização de leis, os prudentes medievais, conscientes desse facto, tinham de analisar as leis nele
contidas isoladamente e ao pormenor, abordando-as com um ponto de vista crítico, criando Direito a
partir desse ponto de vista.
Assim, com base nesta metodologia, a primeira preocupação do prudente medieval era analisar o caso
concreto, depois ele tentava encontrar uma solução para o mesmo, ponderando todas as soluções
possíveis, sendo certo que a aplicação da lei tinha de ser controlada em função das respetivas
consequências, face a critérios de justiça de direito natural e de conveniência ou utilidade.

O que é a Ars inveniende?


Podemos separá-la em três elementos: as leges, as rationes e as auctoritates.

Leges

O jurista medieval também construiu o Direito como sendo uma ciência de textos, ou seja, a análise
e a resolução do problema baseia-se fortemente na intuição do jurista, mas não se serve apenas disso.

Depois de procurar mentalmente a solução mais justa e equitativa para um caso da vida, o jurista
procura no Corpus Iuris Civilis, particularmente, no Digesto, a base para fundamentar a sua opinião e
alicerçar a sua interpretação. Isto significa que o jurista não cria no vazio uma solução para o caso da
vida, ele serve-se do Corpus Iuris Civilis para fundamentar a opinião a que mentalmente chegou.

Portanto, as leges, significam que o jurista medieval se aproxima dos textos do Direito Romano
Justinianeu através desta preocupação essencial: interpretá-lo corretamente.

Neste período histórico, a gramática pôde, assim, ter a dignidade de disciplina filosófica, porque a
gramática não era estrita à sintaxe e à morfologia da frase, como nós hoje a entendemos. A gramática

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era entendida como a arte de falar e de escrever corretamente, mas também de bem interpretar os
poetas e os historiadores, apontando para uma ideia de gramática descritiva. Dentro dos vários sentidos
possíveis do texto, iríamos privilegiar aquele que melhor se harmonizasse com a justiça da solução
para o problema que estávamos a procurar resolver.

Os preceitos jurídicos eram analisados enquanto elementos de um texto,


obedecendo a uma gramática descritiva. A ciência jurídica medieval era
também uma ciência de textos, que deveriam ser interpretados corretamente.
As leges eram vistas como uma técnica de interpretação.

Depois do processo descrito anteriormente, era necessário coligir argumentos que pudessem
fundamentar a opinião dos juristas.

Rationes

São definidas por Lombardi como sendo os argumentos de equidade e também, numa segunda
perspetiva complementar, como argumentos de direito natural, de oportunidade e de lógica.

As rationes correspondiam à arte de criar argumentos para dar resposta a um caso


concreto. Funcionavam como instrumentos interpretativos da lei, sendo que quando
esta se mostra insuficiente, há que lhe juntar argumentos extralegais, baseados em
critérios de direito natural, de justiça, de equidade, de tempo, de espaço, de modo,
de oportunidade e de lógica.
Eram, portanto, argumentos fácticos que, no fundo, fortaleciam a opinião do jurista.

Quanto mais fosse o recurso a estes argumentos, naturalmente, mais rica seria a opinião, maior força
intrínseca ela teria e mais o ordenamento jurídico se assumia como prudencial e menos como legal.

O conhecimento alcançado pela utilização das rationes não é entendido como único e necessário, mas
é sempre visto como um conhecimento provável.
Os argumentos criados pelos prudentes medievais, apesar de partirem dos textos legais (código
justinianeu), também iam para além deles, buscando apoio na equidade, no direito natural, na
oportunidade e na lógica, e não num qualquer texto de lei humana ou divina.
Assim, pode-se dizer que, na Idade Média, para além do necessariamente verdadeiro e do
necessariamente falso, aceitou-se também a categoria intermédia da verdade provável (suscetível de
prova), daí a necessidade dos argumentos.

Na construção argumentativa, na interpretação dos textos e mesmo na criação de direito, os prudentes


recorreram a 4 instrumentos:

• Retórica
Não é um exercício dialogado, corresponde à arte de persuadir e de convencer. Entende-se que o
jurista para além de conhecer, tem de saber convencer, por isso, ele vale, naturalmente, se não houver
contradições internas no discurso.

• Dialética
É o método que a Idade Média considerava ser tecnicamente mais aperfeiçoado.

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É a arte da discussão, tem uma função de contraposição de argumentos, na base de um debate
controversístico e discursivo.
Neste caso, os argumentos seriam redigidos de uma forma mais adequada e mais suscetível de
fortalecer a adesão daqueles que estão a ouvir.

É este o cerne da Ars inveniende, da arte de encontrar argumentos. Contudo, ela vai depender,
naturalmente, do lugar que se ocupa. Por exemplo, o defendente do autor não vai utilizar os mesmos
argumentos que o defendente do réu.

• Lógica
Enquanto disciplina de pensar sem contradições.

• Tópica Jurídica
Consiste em observar um problema de todos os seus ângulos e recolher o maior número possível
de argumentos em busca de uma solução. Do uso da tópica jurídica resultam os chamados depósitos
de argumentos, que são conjuntos conseguidos pela observação de um caso nas suas diversas
perspetivas, podendo esses argumentos depositados ser a resposta a um determinado problema. São
argumentos possíveis os de semelhança, de diferença, de causalidade, de efeito, de antecedência, etc.

Auctoritates

No fim de todo este processo, temos apenas uma opinião. Quando é que essa opinião vale?
Ela vale em virtude do peso dessa mesma opinião ou do autor que a produziu, vale em função da
auctoritas.
O Direito Prudencial será seguido como fonte de Direito, se as opiniões dos juristas forem dotadas de
auctoritas. Elas são dotadas de auctoritas, em função do peso dos argumentos apresentados, que fazem
com que aquele saber seja socialmente reconhecido e, por isso, é suscetível, por si só, de resolver casos
da vida.

Auctoritates é definido como o saber socialmente reconhecido. A aceitação de uma solução concreta passava muitas
vezes pela autoridade de quem a defendia. Sabendo-se que a verdade jurídica era sempre meramente provável,
tornava-se particularmente importante o modo como ela se fundamentava e a sabedoria de quem a defendia.

Alguns problemas suscitaram uma pluralidade de opiniões e, nesses casos, era necessário distinguir
qual delas merecia maior credibilidade.
A este propósito surgiu o conceito de opinião comum dos doutores, entendida como aquela que era
defendida por um conjunto de juristas com auctoritas. A solução que tivesse a seu favor a opinião
comum dos doutores saía, naturalmente, reforçada e impunha-se relativamente às outras.

Ao longo do tempo, três critérios de fixação da opinião foram estabelecidos:


Critério quantitativo: a melhor opinião era a defendida pelo maior número de juristas.
Critério qualitativo: a melhor opinião era a defendida pelos juristas de maior prestígio.
Critério misto: conjugava os dois critérios anteriores e, por isso, era mais exigente.

Supõe-se que o critério quantitativo puro nunca terá sido usado, porque ele implicaria uma mera
contagem de opiniões. O critério misto foi, geralmente, o preferido, já que fixava como opinião comum
a mais defendida entre os melhores. Cumpridos os três elementos da Ars inveniende, chegada a
opinião, ela vai prevalecer, não porque o Rei lhe empresta a sua potestas, mas porque a sociedade lhe
atribui um determinado valor.

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Acolhimento do Direito Prudencial em Portugal3

A Idade Média é um período fecundo para o labor criativo da jurisprudência. No período medievo, o
direito prudencial é uma fonte extraordinariamente relevante em Portugal, principalmente, a partir de
meados do século XII.

Cumprindo esta ideia de pluralismo jurídico, podíamos invocar num tribunal a opinião de um jurista,
com base no Direito Romano. Portanto, o Direito Prudencial também integra a pluralidade de fontes a
que se poderia recorrer para resolver um caso da vida, no primeiro período histórico do Direito
português, no espaço físico de Portugal.

A questão que se coloca é saber quando é que o Direito Romano começa a ser trabalhado pelos juristas
no nosso país, quando é que o Direito Romano Justinianeu é recebido em Portugal?

Portugal mantinha algumas ligações com Itália, que é o principal centro de produção, estudo e
aplicação do Direito Romano Justinianeu na Idade Média, nomeadamente, a cidade de Bolonha. Este
facto, inculca em alguns historiadores a ideia de que o Direito Romano é conhecido entre nós desde
os primórdios da fundação da nossa nacionalidade.

A acrescentar a este elemento, encontramos o facto de desde o reinado de Afonso Henriques, que
encontramos juristas na Cúria Régia, o órgão que auxiliava o Rei nas suas funções governativas.
Designadamente, vamos encontrar um cargo que vai desempenhar um papel extraordinariamente
relevante, praticamente assumindo “as funções de um Primeiro Ministro”, que é o Chanceler.
Ora, desde o reinado de D. Afonso I que encontramos juristas na Chancelaria régia, designadamente,
o caso do Mestre Alberto, do Mestre Julião e de João Peculiar.

O facto de termos juristas, desde cedo, na Cúria Régia, designadamente, na Chancelaria do Rei,
determina a ideia, para alguns historiadores, que o Direito Romano já seria aplicável no nosso país
desde muito cedo. No entanto, daqui não decorre que tal assim aconteça, nem que o Direito Romano
em causa fosse o Direito Romano Justinianeu.

Então, desde quando é que, inequivocamente, o Direito Romano Justinianeu está em Portugal?
A doutrina diverge:

o Num primeiro momento, a receção do direito prudencial significa o conhecimento e situa-se


no século XII.
No entanto, há quem entenda que nos primeiros reinados não é possível ver a presença do
Direito Romano Justinianeu no nosso país e que, caso exista, trata-se de Direito Romano
anterior ao Código de Justiniano.

o Num segundo momento, há quem entenda que o direito prudencial teve influência sobre a
legislação portuguesa, designadamente, no reinado de Afonso II, em que houve uma lei sobre
a suspensão de penas e a mutilação dos cadáveres, que é nitidamente influenciada pelo Código
de Justiniano.

o Num terceiro momento, há também quem diga que a receção do Direito Romano Justinianeu
na ordem interna do direito português é inequívoca a partir do reinado de D. Afonso III e,
sobretudo, a partir do reinado de D. Dinis.

3
Rui e Martim Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, 12º Edição, página 335 a 358

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Porquê?
Não nos podemos esquecer da ligação do Direito Romano Justinianeu à Universidade.
D. Dinis fundou o Estudo Geral, no século XIII, em data imprecisa, em Lisboa, onde se estudava
Direito Romano. Este facto constituiu uma aceleração decisiva no processo de receção do direito
romano.

A Universidade começou sob o signo do próprio direito romano. Ele passou a ser ensinado na
Faculdade de Leis e durante cinco séculos foi o direito que os juristas portugueses aprenderam. Só no
séc. XVIII é que se introduziu uma cadeira de direito pátrio. Até aí, a formação dos juristas portugueses
era romanista e isso influenciou todo o trabalho autónomo ou integrado na esfera do poder.
A par deste direito, ensinava-se direito canónico na Faculdade dos Cânones.

Portanto, se temos dúvidas de que o Direito Romano Justinianeu influencia a legislação dos nossos
monarcas já em D. Afonso II, o que é facto, é que não temos dúvidas que essa influência é direta, a
partir do reinado de D. Afonso III e, sobretudo, a partir do reinado de D. Dinis.

A partir destes reinados, o Direito Romano Justinianeu aplica-se diretamente em Portugal, resolvendo
casos da vida.

Apesar de este dado ser incontestável, é de sublinhar que o primeiro sinal da presença do Direito
Romano Justinianeu no nosso país data de 1185 e deve-se ao testamento do bispo do Porto, D. Fernão
Martins. Ele legou à Diocese do Porto e de Braga um conjunto de obras de Direito Canónico e um
conjunto de obras de Direito Romano.
Essas obras são todas as que integram o Corpus Iuris Civilis e, designadamente, o Digesto, aparece
neste testamento dividido em Digesto Velho, Digesto Novo e Digesto Esforçado.

Assim, é seguro dizer que nos finais do séc. XII o direito justinianeu era conhecido pelo menos ao
nível de uma camada mais erudita da população.

Em síntese, podemos ver a receção do Direito Romano no nosso país em dois sentidos:
o Sentido estrito: influência de um Direito noutro Direito
o Sentido lato: aplicabilidade direta de um Direito no espaço físico de um determinado território.

A presença do Direito Romano no nosso país fez-se também de forma direta e indireta.

o Direta
O fenómeno da receção do direito romano foi um processo essencialmente académico. Antes do poder
político ter assumido esse direito e o ter utilizado, foram os juristas que, em muitos casos, eram mestres
na universidade, que estudaram e divulgaram o direito justinianeu.

Muitos juristas portugueses tinham estudado e ensinado em universidades estrangeiras, sobretudo em


Bolonha, e já se tinham apercebido da sua importância. Por isso, aplicaram esse direito em Portugal
quando regressaram ao país.
Existiam também muitos estudantes que iam estudar nos centros universitários e que depois
regressavam a Portugal e aplicavam o Direito Romano Justinianeu no território.

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o Indireta
Através das Siete Partidas devidas ao Rei Afonso X, de Castela.
Esta é uma outra fonte de Direito, que é fortemente influenciada pelo Direito Romano Justinianeu.
Chegaram até nós alguns fragmentos desta obra, alguns em versão castelhana, outros em tradução
portuguesa, o que inculca a ideia de que circulavam abundantemente em Portugal.
Para além disso, conseguimos encontrar nas Ordenações Afonsinas, leis recolhidas das Siete Partidas,
o que significa uma tradução praticamente fiel de textos desta obra.
Esta obra formalmente é de Direito castelhano, mas materialmente é de Direito Romano Justinianeu.

Também o Direito Canónico, fonte de Direito no nosso país, é fortemente inspirado pelo Direito
Romano.

Quando somos convocados, nas nossas vidas práticas, a resolver casos da vida, emitindo opiniões,
naturalmente, nós vamos emiti-las com base no Direito que nos formou. O jurista da época era formado
no Direito Romano Justinianeu, que assume, por isso, uma definição de Ius Commune, de Direito
Comunal, que não é aplicado apenas em Portugal, mas que se aplica como fundamento do Direito
Europeu.

Porém, tal como aconteceu no Direito Canónico, também no Direito Romano podemos encontrar
alguns fatores de resistência e de dificuldade à receção deste Direito, nomeadamente, de ordem
prática.

No século XIV, por exemplo, nós temos notas de agravos às Cortes, feitas pelos povos aos Reis,
denunciando que os juízes não sabem ler nem escrever e, por isso, não têm capacidade para aplicar um
Direito tecnicamente aperfeiçoado como é o Direito Romano Justinianeu.

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JUSTIÇA1

Os Homens da Idade Média conceberam o Direito enquanto função da Justiça, assim este surge de
forma a alcançá-la. Direito e justiça são conceitos interconverssíveis, não podem pensar um sem o
outro. Os homens de meia idade não podem pensar no Direito sem o filiarem num valor que o
transcende, que é a justiça. Sem ela seria impossível a convivência organizada, a manutenção da
comunidade política, a conceção como povo de um grupo humano.
A sociedade nas suas concretas e manifestações históricas, não traduziu uma consequência automática
e inevitável de uma ordem pré-estabelecida pela suprema vontade de Deus ou por leis da natureza,
necessárias e inalteráveis, mas sim o resultado do múltiplo e diversificado operar humano tendente à
realização da perfeição individual. A ordem social representava a projeção comunitária da condição
dos seus membros. Sendo os homens justos, justa seria a sociedade. Deste modo a perfeição identifica-
se, pois, e necessariamente, com a justiça.

Para além do Direito criado pelas várias fontes que vamos estudar, o direito criado pelos homens –
Direito Humano – em última instância, para estes homens, o Direito funda-se em Deus, ele é a entidade
em nome de quem tudo se faz, se governa, se legisla, se administra, se julga.
Para além do direito que os homens criam através de uma pluralidade de fontes, estes homens vão
também teorizar o Direito Natural, que vão fundar em Deus, e vão falar também numa Lei eterna,
criando uma tripartição de Direitos. Isto significa uma limitação para o legislador, porque se há
patamares de Direito que estão a cima das fontes criadas pelos homens, então o Direito criado por estes
está sujeito a limites, deve conformar-se com esses padrões anteriores e superiores.
O Direito é expressão da justiça e está também num plano que transcende o Direito criado pelos
homens através de uma pluralidade de fontes.

Vai se teorizar, então, um Direito natural, um Direito divino, um Direito eterno, que funciona como
padrão de validade e, ao mesmo tempo, limita a atividade do legislador. Para um homem deste período,
não é concebível que o Direito possa ser aquilo que o legislador quiser e que a lei possa ter qualquer
conteúdo.

No período pluralista, imperava uma desigualdade social quer no acesso ao trabalho, quer no acesso a
locais, quer ainda no uso de vestuário. O direito aplicável não era igual, pois os nobres eram julgados
em tribunais específicos e os impostos eram desiguais. O objetivo principal do homem medieval da
classe do povo era a salvação da alma, daí que o conceito de justiça se encontrasse também limitado
por esta ideia.

Dentro também dos quadros do tempo a grandeza individual correlativa à justa configuração da vida
coletiva pressupõe o acatamento pelo homem da lei divida e da lei natural, na sua integridade moral,
submetendo-se-lhes livremente. Da própria causa final da justiça resultava nela implementada a
existência de um elemento de habitualidade. Quem só esporadicamente tivesse vontade de a respeitar
não seria justo.

A justiça traduzia-se, pois, numa virtude, definida como o hábito bom orientado
para a ação. A justiça, para ser atingida, necessita de vários elementos, entre os
quais, o elemento volitivo humano, que se traduz na vontade do homem em ser
justo e, simultaneamente, o elemento de habitualidade, correspondente à
permanência dessa vontade, que não pode ser esporádica.

1
Rui e Martim Abuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo I, 12º Edição, página 91 a 108

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Relativamente à virtude em geral, ensinou Santo António: “A justiça é hábito de ânimo que, guardando
o bem comum, atribui a cada um aquilo de que é digno.”, e para quem o culto da justiça é “o supremo
bem nesta vida” e considerou a virtude a “libertação do pecado”.
A virtude forma-se, pois, pela repetição de atos livres praticados a partir das propensões nobres ou
pela correção das características psíquicas de cada homem realizada mediante operações do
conhecimento. O hábito de praticar atos maus acaba por comandar o homem, constituindo vícios que
lhe deformam ou anulam a vontade, assim a prática de atos virtuosos fortalece-lhe a possibilidade de
caminhar virtuosamente, que tanto vale dizer de tornar-se perfeito.

Conceito de Justiça

A ideia de justiça, complexo de todas as virtudes, coexistiu com a conceção de justiça como virtude
especifica. Denominada esta última justiça particular, ela corresponde à noção atualmente comum.

A justiça particular separa-se da justiça universal enquanto esta considera sobretudo o mundo
intersubjetivo e a justiça particular o campo as relações intersubjetivas (recíprocas). Nisso distingue
também das virtudes especificas que regulam a conduta do próprio agente para consigo, como a
paciência e a temperança. Outras virtudes como, caridade gratidão..., regulam igualmente a nossa
conduta em relação aos demais.

A Justiça particular separa-se da Justiça universal devido ás relações com o


mundo, isto é, enquanto que a Justiça universal é intra-subjectiva porque diz
respeito ao carácter e à consciência de cada pessoa, sendo a Justiça ideal e modelar
(síntese de todas as virtudes), a Justiça particular é inter-subjectva porque diz
respeito às relações dos elementos duma comunidade e, portanto, correspondia a
uma virtude especifica de cada um receber aquilo que lhe era devido.

Aristóteles teorizou: a atribuição do seu a cada qual. Obras clássicas, como de Cícero receberam esta
conceção aristotélica.

Santo Agostinho: “O que é a Justiça senão a virtude que dá a cada um o quanto lhe é devido?”,
proclamou: “a justiça é a virtude que á a cada um o seu”.

Ulpiano disse: “a justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito”, isto é, a
vontade de cada um em ter o mínimo indispensável para satisfazer as suas necessidades básicas, numa
perspetiva de que cada um receba, à luz da lei divina, uma recompensa por aquilo que lutou,
correspondendo esta recompensa à salvação da alma.

Qual fosse o seu (de cada um) a respeitar pela justiça, determinaram-no os doutores de acordo com o
direito natural. Cícero, Séneca e Ulpiano, cuja lição o Digesto conservara, definiram como virtude
suscetível de permitir a destrinça entre o bem e o mal, o devido e o indevido. Esta ideia de que a justiça
pressupunha, para a determinação do seu conteúdo, um ato deliberativo, encontra-se documentada em
várias fontes conexas à cultura nacional. “A Justiça é dar a cada um o que lhe pertence, depois de feito
um juízo reto”, ensinou Santo António.

Determinada a natureza da justiça (vontade constante) e o propósito desta (a atribuição do seu)


impunha-se ainda uma determinação quantitativa do operar humano, sob pena de não haver
consideração casuística da ação a desenvolver conforme as circunstâncias. Ela processou-se pela
ponderação das diferentes modalidades da justiça.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Universal
Justiça como valor do Direito (perfeição)
Justiça
Subjectiva
Particular
Objectiva

Justiça Universal

A justiça é o valor do Direito. Mas o que é o valor? Tradicionalmente, a justiça e a segurança são os
dois valores que encontramos associados ao Direito.
A lei comporta em si segurança, mas também ela própria é um valor. O que é que isto significa?
O valor pode ser visto em variadíssimas situações e, portanto, é nos inalcançável e inacessível.

o O valor pode ser visto como sendo absolutamente inalcançável.


Esta ideia de valor aponta para a justiça como tendo um conteúdo, mas tudo aquilo que nós possamos
pretender quando procuramos concretizar a justiça através de uma lei em concreto, não nos é possível
alcançar. A lei não consegue atingir o conteúdo essencial da justiça.
Naquele período, a lei não alcançava a verdadeira justiça, esta era intangível e imutável. O homem
tende para a justiça, mas não a consegue atingir.

o O valor também pode ser visto como aquilo que é justo para um, pode não ser justo para outro
– subjetivismo dos valores
Exemplo: Beleza. O que é belo para uns, pode não ser belo para outros.

o Outra perspetiva / terceira via – perspetiva existencialista dos valores


Os valores têm um determinado conteúdo, mas esse conteúdo depende do tempo e do espaço.
O sentido de justiça pode ser diferente consoante as vicissitudes que considerarmos.
A justiça universal é a perfeição. A virtude é um hábito bom orientado para a ação.
Neste período, a justiça universal é a síntese de todas as virtudes, é a perfeição.

Justiça Particular

A justiça pode ser vista como uma virtude particular, dotada de um conteúdo específico, ao lado de
outras virtudes. Depende de como a vemos, de forma objetiva ou subjetiva.

Justiça Subjetiva | Modalidades

Traduzindo-se a Justiça no dar o seu a cada um, fácil é ver a possibilidade de ordenar várias classes de
Justiça. Pensa-se a justiça relacionando sujeitos. O seu conteúdo em concreto depende dos sujeitos da
relação, quem atribui e quem recebe.
O seu conteúdo tem que ver com a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o seu direito.
O que é o seu? O seu deve ser visto como os nossos fins, é aquilo que é necessário à prossecução dos
nossos fins. Está dependente dos fins que cada um de nós prossegue em sociedade.
O seu individual pode e deve ceder perante o seu coletivo, desde que o seu individual seja justamente
indemnizado. Em certos casos para o jurista de hoje o direito é por vezes a expressão de justiça. E isto
era indiscutível na antiguidade, a Justiça era encarada como a estrela polar do direito, a meta.

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As “Siete Partidas de Afonso X” apresentam uma tentativa de classificação compreendendo:

• Justiça espiritual:
Os sujeitos desta relação, que não se encontram em pé de igualdade são Deus e Homens, há algo que
é devido a deus e deus retribui com a salvação no fim último do homem.

• Justiça política:
Os sujeitos desta relação, que não estão em pé de igualdade são o todo e as partes, ou seja, o Estado e
o cidadão.

• Justiça contenciosa:
Este conceito de justiça significa igualdade absoluta porque relaciona as partes entre si, aplica-se por
exemplo nas demandas. Exige uma absoluta igualdade entre si.

Álvaro Pais enumera a Justiça para com Deus (latria), para com as criaturas merecedoras de honra e
consideração (dulia), para com os superiores (obediência), para com os inferiores (disciplina), para
com os iguais (equidade).
Classificação na qual está subjacente a ideia aristotélica da separação entre a Justiça que deve presidir
às trocas entre iguais e a justiça a observar nas relações entre a comunidade e os indivíduos no tocante
à repartição entre a comunidade e os indivíduos na tocante à repartição de encargos e honras (difundida
por S. Tomás).

De acordo com Aristóteles (chamou geométrica à igualdade da justiça distributiva e aritmética à


igualdade da justiça comutativa) e posteriormente São Tomás de Aquino (filosofia escolástica), havia
a distinguir apenas dois tipos de Justiça particular:

• Justiça comutativa/sinalagmática:
Diz respeito às relações entre iguais (pessoas privadas) O objetivo típico da Justiça comutativa é a
troca ou comutação, requerendo-se nela absoluta igualdade entre o que se dá e quanto se recebe, sendo
necessário restituir quando assim não ocorre.

• Justiça distributiva:
Diz respeito às relações da comunidade com os seus membros. O campo de aplicação da justiça
distributiva é o das relações do conjunto político com as pessoas individualmente consideradas.
Ela impõe que os representantes da comunidade repartam os encargos segundo a capacidade de
resistência de cada membro e os bens públicos e prémios de acordo com a respetiva dignidade e mérito,
devendo ao rei justo distribuir a Justiça “a cada um segundo as suas obras”. Contudo, a Justiça
distributiva não exige uma igualdade absoluta, requer apenas que a relação entre o mérito e a
recompensa, a capacidade e o encargo, o investimento e a necessidade.

• Justiça Geral social ou legal


O que é devido pela parte ao todo para que o todo exerça a justiça distributiva.
Justiça distributiva é o todo que dá à parte, preside a ideia de Estado social.
Justiça geral é a parte tem que dar ao todo para receber do todo.

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Ainda que os sujeitos da relação sejam os mesmos, o todo e a parte, o sentido relacional inverte-se. Na
justiça distributiva, é o todo quem atribui o “seu” à parte, enquanto que na justiça geral, social ou legal,
é a parte que atribui o “seu” ao todo.

Esta justiça preside aos impostos, à tributação.


A tributação também deve seguir um critério de diferença, os diferentes rendimentos das pessoas.
Portanto, percebemos que, aqui, a justiça significa diferença.
Mas qual é o critério para aferir a diferença, a desigualdade? Onde é que a justiça particular subjetiva
significa igualdade absoluta? Na justiça comutativa. Aí, tem de haver uma igualdade absoluta entre
prestação e contraprestação.

Justiça Objetiva

Forma de retidão plena e normativa. Tal ideia encontra as suas origens na patrística clássica. Ligada a
Justiça à vontade, a consideração da Justiça divida a isso devia de conduzir. Por isso, a Justiça, na sua
forma pura, identificava-se com o próprio Deus, assim como com Ele se identificava o direito natural.

Ora, sendo Deus o modelo dos homens, feitos à Sua imagem e semelhança, seguia-se a consequência
de uma Justiça humana também objetiva, embora não perfeita, e apenas reflexo da Justiça divina. São
conceções que foram adotadas por muitos glosadores e comentadores e que perpassaram em palavras
de Santo António e se encontram recolhidas nas Partidas, onde se menciona Cristo como sol e fonte
de toda a Justiça.

Pela própria propensão da Justiça objetiva esta difere da subjetiva no tocante à respetiva constância.
Enquanto a Justiça subjetiva permite em si mesmas variações, a Justiça objetiva há de entender-se
como inalterada e inalterável, postulante sempre das mesmas condutas. Sob a influência da ideia
romana do bónus pater famílias, a jurisprudência medieval determinou o conteúdo da Justiça humana
objetiva com recurso à ideia de homem médio, sendo este, na racionalidade do seu atuar, o exemplo a
seguir e é, portanto, normativo.

Aqui olhamos para um sujeito em concreto e procuramos aferir se o comportamento daquele sujeito é
justo. Como é que se afere a justiça de um comportamento individual? Através de um padrão.
Na Idade Média, há 2 padrões no critério dos tratadistas:
1. Conduta do santo
2. Conduta do criminoso
No entanto, o padrão vai ser encontrado na tecnicidade do Direito Romano, no critério de um bom pai
de família, do homem médio, na racionalidade do seu agir.

Justiça e Direito

Concebeu o pensamento medieval a Justiça como a causa do direito. No seguimento de Boécio, a Idade
Média figurou a Justiça como fonte do curso de água com que representou o direito, como se pode ver
nas Partidas. Imagem da época foi a da filiação: o direito está para a Justiça como o filho para a mãe.
De tais figurações decorria a consequência de Justiça e direito possuírem a mesma natureza. Por isso,
não é raro encontrar-se os preceitos de Justiça e de direito como correspondentes. Os três preceitos do
direito referidos por Ulpiano – viver honestamente, não prejudicar o próximo, dar a casa um o seu –
são comuns à própria Justiça. Viver honestamente: Justiça geral, social ou legal; Não lesar o outro:
Justiça comutativa; Atribuir a cada um o seu direito: Justiça distributiva
Entre Justiça e direito, a diferença residia no facto de este traduzir aquela mediante preceitos
autoritariamente fixados. O direito era assim apenas um instrumento de revelação da justiça.

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CASAMENTO1

O casamento pode ser tido em duas dimensões:


• Estado Civil: estado entre duas pessoas, que aponta para uma comunhão de vida, geradora de direitos
e deveres de natureza pessoal e patrimonial

• Ato Jurídico: o contrato que dá aso a essa comunhão de vida

Formas de casamento

o Casamento por Benção


Realizado, à luz do direito canónico, num templo (local sagrado) e presidido por um sacerdote ou ministro do
culto, o qual ministrava o sagrado sacramento do matrimónio, sendo certo que esta forma de casamento tinha
necessariamente de ter o consentimento dos noivos e não podia ter impedimentos legais, com por exemplo
relações de parentesco entre os noivos.

Este casamento é similar ao atual casamento religioso.

É a forma mais solene de celebração do casamento na Idade Média.

Casamento legítimo, celebrado num templo, na presença de um sacerdote que confere a benção e na
presença de testemunhas

o Casamento de Juras
Não recebia qualquer sacramento e era celebrado em qualquer local, não podendo ser realizado num templo e
ser presidido por um sacerdote ou ministro do culto, que, no entanto, podia testemunhar o acto como outro
cidadão qualquer.

Este casamento é similar ao actual casamento civil.

Esta forma de casamento celebrava-se através de uma jura recíproca dos noivos.

De acordo com os costumes de Riba Côa, trata-se da manifestação de mútuo consenso das partes que sob
a forma de juramento se vinculam matrimonialmente. Neste caso ainda que o sacerdote possa estar
presente, este não dá a sua benção.

o Casamento de Pública fama/forma ou Cunhuçudos


Reconhecido em 1311 pelo rei D. Dinis, porém já existia antes na clandestinidade, pelo que também é
designado por casamento clandestino, casamento cognosudos ou casamento por conhecimento.

Foi clandestino durante muito tempo porque a união de facto não era aceite pelo facto de não ter sido
abençoada, estando assim à margem da lei civil e canónica.
Esta forma de casamento consiste na existência do estado de casado e na inexistência do acto de casar.

Em 1311 D. Diniz enquadra juridicamente esta forma de casamento, estabelecendo que para se reconhecer
um casamento de pública fama (presunção iniludível) seria necessário que um homem e uma mulher vivessem
na mesma casa há 7 anos consecutivos como marido e mulher, fizessem compras e vendas juntos e fossem
conhecidos na vizinhança como casados.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 146 a 165

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A lei de D. Dinis estabelece assim uma presunção iniludível, ou seja, quem preenchesse estes requisitos não
podia ser afastado desta presunção.

Aquilo que existe é por e simplesmente uma comunhão de vida, sem qualquer celebração especial.
Portanto, o casamento cunhuçudo pode ser equiparado à atual união de facto.

o Casamento por Rapto


Origem visigoda e consistia no casamento sem o pretium puelae (preço pago pelo noivo ao pai da noiva),
sendo certo que este casamento só tinha efeitos jurídicos caso houvesse o consentimento da raptada.

Este casamento de rapto só tem o nome, pois a raptada consentia o rapto, sendo certo que ocorria quando o
noivo não tinha condições económicas para pagar o dote, ou não agradava à estrutura familiar da noiva.

Existia no Direito Visigótico e verificava-se quando um homem recebia uma mulher livre por esposa sem
ter entregue ao pai desta o pretium pullae;

Apesar de existirem formas mais solenes de casamento do que outras, todas elas têm os mesmos efeitos e
geram os mesmos direitos e deveres. Não havia superioridade de um relativamente ao outro.

No entanto, isto não significa que a população não entendesse uma destas modalidades superiores às outras,
até porque a influência da Igreja neste período, levava a que as pessoas preferissem o casamento por bênção,
sob pena de poderem ser consideradas sanções espirituais.

Esta preferência que o nosso Direito antigo vai revelar face ao casamento por bênção, por influência do Direito
Canónico, tem reflexo na legislação dos nossos monarcas.
Designadamente, importa citar uma lei de D. Dinis, de 1311, a propósito do casamento de pública fama, que
diz: “Se um homem e uma mulher viverem na mesma casa durante 7 anos, tomando as refeições em conjunto,
vivendo em comunhão de vida, fazendo as compras juntos e sendo conhecidos pela vizinhança como marido
e mulher, então, são considerados casados, sem possibilidade de prova em contrário.”

No fundo, esta lei vem criar uma presunção legal, uma presunção iniludível, ou seja, quem preenchesse estes
requisitos não podia ser afastado desta presunção.

Será que é possível nós conhecermos, do ponto de vista histórico, os casamentos que foram celebrados e a
partir de quando? Esta questão aponta para o registo dos patrimónios. Será que os casamentos eram
registados?

É verdade que existe uma lei de D. Afonso IV, de 1352, que é dirigida aos clérigos, obrigando que todos os
clérigos que fossem casados com leigos registassem os seus casamentos num tabelião existente em cada
freguesia. No entanto, discute-se se esta lei se dirigia apenas aos clérigos que fossem casados com leigos ou
se se dirigia a todos os casamentos que tivessem sido celebrados sobre a jurisdição daquela Igreja. Seja de que
maneira for, a verdade é que esta lei permaneceu como letra morta, porque o primeiro registo de casamento
que se tem, data apenas do século XVI.

A Lei de 07 de Dezembro de 1352 de Afonso IV estabeleceu a obrigatoriedade dos clérigos casados


registarem os seus casamentos num tabelião existente em cada freguesia. Duvida-se porém que esta lei
tenha sido apenas referida para os clérigos (grupo social ao qual também pertencem os estudantes e
professores universitários, órfãos e viúvas), sendo talvez por isso que não teve muita eficácia.
Os registos mais antigos que se conhecem datam de 1531.

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Relações pessoais e patrimoniais

A regra da época era a de que a propriedade dos bens dos noivos se mantinha individualizada após o
casamento, isto é, os bens da mulher continuavam a ser da mulher e os do marido continuavam a ser dele,
sendo comuns os bens adquiridos após o casamento. Porém, a não ser que a mulher fosse comerciante, a
administração de todos os bens passava a ser exclusivamente do marido, podendo mesmo este alienar os bens
da mulher em seu favor e sem o consentimento dela. Após o casamento, a mulher não podia contratar, afiançar
e estar em juízo, activa ou passivamente, sem o consentimento do marido.

Estão excluídos da comunhão :


• Bens próprios levados pelos nubentes para o casamento;
• Bens adquiridos por sucessão, doação;
• Bens obtidos por sub-rogação de bens próprios;
• arras;
• Não comunicam ainda os bens vinculados em morgadio ou capela; os bens sujeitos a censo, gravados
com missas; bens de prazo; bens da coroa; bens doados com reversão do doador; dívidas contraídas
antes do casamento.

o Comunhão de gaanças
Ambos mantém a propriedade própria dos bens que levam para o casamento e adquirem a
titularidade/propriedade em conjunto dos bens adquiridos na constância do casamento (comunhão de
adquiridos).

No entanto, os bens que se adquirem durante o casamento por doação, sucessão ou sub-rogação, mantém-se
do próprio e não de ambos.

Ambos mantém a titularidade dos bens adquiridos até ao casamento, tal como os referidos naquelas exceções,
contudo, a administração desses bens, no que toca à mulher, está fortemente limitada.

Portanto, ainda que os bens sejam da mulher, eles estão sujeitos à administração do marido, que pode ser
bastante ampla no caso de estarmos perante bens móveis, mas no caso de bens imóveis ele precisa do
consentimento da mulher se os quiser alienar.

Por outro lado, os poderes da mulher estão também fortemente condicionados, por exemplo, se ela quiser
contratar ou afiançar, ela não o pode fazer sem o consentimento do marido, a menos que seja comerciante.

Este regime das gaanças, deve ser conciliado com o regime das arras ou dote.
Este é um bem próprio da mulher, foi constituído a seu favor antes do casamento, mas deriva do património
do novo. Portanto, a questão que se coloca é saber de quem é este património e qual é o seu regime.

Olhando para o direito costumeiro da época que os forais traduziam, parece que aquilo que se seguia é que as
arras deviam ser tratadas como bens próprios da mulher.
No entanto, na generalidade das localidades do reino de Portugal, em termos sucessórios, o dote segue um
regime diferente.

Isto significa que, em caso de morte da mulher, sem que ela deixe descendência, este património passa para o
marido. Esta é uma exceção à regra do Direito Sucessório, que determina que o marido está no último grau da
linha sucessória.

Porém, há uma exceção a esta regra, que são os chamados Foros de Sino Ribacoa, que atribuía a propriedade
das arras aos parentes da mulher, em detrimento do marido, seguindo a regra geral do Direito Sucessório.

Após o século XII, surge um outro regime, sobretudo, no sul do país.

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o Carta de metade
Podemos associar à atual comunhão geral de bens.

Este regime diz que todos os bens do marido e da mulher que são adquiridos antes e depois do casamento, são
bens comuns.

Todo o património anterior e posterior ao casamento era comum aos cônjuges, sendo certo que este regime
verificou-se mais no sul do País.

Comunhão de Gaanças Carta de Metade

Titularidade
Ambos mantém a propriedade própria dos bens que levam para o casamento e
adquirem a titularidade/propriedade em conjunto dos bens adquiridos na
constância do casamento, exceto os adquiridos por doação ou sucessão Este regime diz que todos
os bens do marido e da
Administração mulher que são
A mulher tem o poder de administração sobre os seus bens muito limitada, pelo adquiridos antes e depois
que estão sob administração do marido. do casamento, são bens
comuns.
Sucessão das Arra
Em caso de morte da mulher, sem que ela deixe descendência, este património
passa para o marido. Esta é uma exceção à regra do Direito Sucessório.

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ESPONSAIS1

São uma promessa recíproca de casamento entre os futuros conjugues ou, no caso de eles serem menores,
entre quem os possa legitimamente obrigar. No fundo, é um contrato-promessa de casamento que pode
desencadear efeitos pessoais e patrimoniais.

Este contrato evoluiu consoante os ordenamentos jurídicos que marcam a génese do Direito português.

Na época clássica os esponsais não eram vinculativos na medida em que não


se podiam associar sanções ao incumprimento deste compromisso.
Na época pós-classica passou-se a admitir a possibilidade de sanção por
incumprimento do compromisso.

o Época Clássica (Direito Romano)

Se existisse uma promessa de casamento, ela não tinha consequências jurídicas, inclusivamente, qualquer
cláusula penal ou consequência que se estabelecesse no próprio contrato para o incumprimento da promessa,
era considerada nula, e percebe-se porquê, se não fosse assim, a liberdade do casamento estaria condicionada.

o Época Pós-Clássica (Direto Germânico)

Por influência de Constantino, os esponsais passam a ter efeitos jurídicos e são vistos como a primeira fase
do casamento, o qual só se consumava com a tradictio (passagem da mulher da sua família ade origem para o
domínio familiar do marido), esta teria de ocorrer nos dois anos seguintes aos esponsais.

No seguimento do costume visigodo, os esponsais foram utilizados em Portugal e para serem válidos deveriam
ser reduzidos a escrito perante testemunhas.

Os noivos tinham de ter pelo menos 15 anos, podendo, caso não tivessem atingido essa idade, ser representadas
pelos pais ou irmãos, tendo o casamento de se realizar obrigatoriamente no prazo de 2 anos.

Durante a cerimonia o noivo entregava à noiva o anel esponsalício, celebrando-se depois uma escritura em
que ficava consignado que o noivo entregava um dote ao pai da noiva, designado por arras, que correspondia
a um quantitativo pecuniário destinado a assegurar o sustento futuro da noiva para o caso do noivo vir a falecer
ou a repudiar a noiva injustificadamente antes do casamento.

O dote (arras) deveria corresponder a 1/5 ou a 1/10 (dependendo dos autores) da fortuna do noivo, todavia em
muitos casos dependia dos costumes da região. Caso o noivo viesse a falecer antes do casamento, a noiva
recebia parte do dote (normalmente metade). Caso o noivo repudiasse a noiva sem motivo antes do casamento,
perdia o dote na totalidade, sendo este uma forma de a compensar.

No final dava-se a cerimónia do beijo dos noivos (lei do ósculo), fazendo a mulher uma jura de fidelidade ao
noivo, sendo certo que se não a cumprisse era considerada adúltera e punida como tal, que podia ser a morte.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 141 a 146

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


• Idade dos nubentes: 15 anos, caso contrário terão de ser legalmente representados;
• Entrega do anel esponsalício;
• Escritura dotal;
• Entrega da donatio ante nuptias (doação que o noivo faz à noiva para assegurar o cumprimento do contrato);
• Presença de testemunhas
• Após a celebração da cerimónia dos esponsais, o casamento terá de ocorrer no prazo máximo de 2 anos;
• Celebração por palavras de presente /palavras de futuro;
• Impossível a prorrogação deste prazo, ainda que as partes assim o aceitem;
• Penas a aplicar no caso do não cumprimento: o nubente varão perde o direito aos valores entregues à noiva
e esta se não guardar a devida fidelidade é unida como se de uma adúltera se tratasse;
• Se o noivo vier a falecer depois da cerimónia do ósculo, a noiva tem direito a ficar com metade das arras
(dote ex marito), bem como da donatio ante nuptia;
• É estabelecido um limite máximo para as arras (redacção do Fuero Juzgo) na proporção de 1/10 da fortuna
do noivo. Em Salamanca e em Riba Côa era determinado um limite máximo em numerário.
• Válidos os esponsais, se um dos nubentes casar com terceiro, este casamento é nulo.

o Direito Medieval Português


Esta evolução do casamento ao longo do tempo, determina que aquando da Reconquista Cristã e depois do
aparecimento de Portugal como reino, no fundo, o instituto venha a ser conformado com base nas matrizes de
onde provém, quer a matriz romana pós-clássica, quer a matriz germânica-visigótica. Por consequência,
também Portugal assumiu os esponsais como a primeira fase do casamento.

Além deste casamento tradicional dividido em duas partes: a desponsatio (esponsais) e a tradictio, em que o
consentimento da mulher estava excluído, surgiu também por influência visigoda o casamento por rapto que
consistia no casamento sem o pretium puelae (preço pago pelo noivo ao pai da noiva), sendo certo que este
casamento só tinha efeitos jurídicos caso houvesse o consentimento da raptada.

o Direito Canónico
O próprio Direito Canónico assumiu a relevância dos esponsais, apesar de se orientar para uma outra forma
de casamento, como podemos perceber através da leitura das Decretais de Gregório IX.

Está prevista no Direito Canónico, nomeadamente, nas Decretais, a figura do casamento presumido, que nos
diz que se depois dos esponsais sobreviesse, por exemplo, a cópula carnal entre os noivos, o casamento estava
perfeito, sem necessidade de qualquer outra solenidade.

Eram considerados a primeira fase do casamento porque se falava


objectivamente num concenso nupcial, sendo certo que se houvesse cópula
entre os noivos depois da cerimónia dos esponsais, presumia-se o casamento.

Causas de dissolução dos Esponsais

Ingresso na vida monástica;


Longa ausência de um dos nubentes;
Não ratificação dos nubentes dos termos esponsalícios, ao atingirem a puberdade; e que haviam sido
celebrados pelos seus representantes legais;
Moléstia contagiosa.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Segundo os Albuquerque são institutos familiares, aquelas diversas formas de organização social, que se
projetam, por vezes, em normas ou complexos normativos, e das quais resultam laços civis de parentesco,
normalmente produtores de importantes consequências na esfera social e patrimonial dos sujeitos.

Em termos técnico-jurídicos, instituto designa o conjunto de regras de Direito que, através de uma
pluralidade de fontes, vão reger e disciplinar uma determinada área.

A FAMÍLIA1

Definição de família | Evolução histórica


Existem três grupos de famílias que marcaram a evolução histórica do conceito de família: a Família Inicial,
a Família Patriarcal Romana e a Família Conjugal.

o Clã
Como ensinou o sociólogo Émile Durkheim, a noção mais ancestral de família, a primeira.

Correspondia ao agrupamento duma comunidade de pessoas, provenientes de um mesmo antepassado,


resultando a sua identidade própria de vínculos religiosos, propriedade comum e de trabalho coletivo.
Tudo isto gera direitos e deveres.

Os clãs eram simbolizados pelo Totem (símbolo normalmente um animal ou planta), sendo que os seus
membros podiam ou não ter proximidade afetiva.

o Família patriarcal romana


Assentava na autoridade do chefe, do pater familias, o qual agregava à sua volta um grupo de pessoas e de
meios patrimoniais, sobre os quais exercia a sua autoridade.

Na família patriarcal romana não eram exigidos vínculos sanguíneos, existindo dois tipos de vínculos:
• Agnatício: não passava pela obrigatoriedade de laços familiares sanguíneos, mas sim de autoridade
• Cognatício: caracterizado pela existência de laços familiares sanguíneos

Em ambos os vínculos, o pai dispunha da existência dos filhos, podendo ordenar ou permitir a sua morte e
isentar-se da obrigatoriedade de lhe prestar alimentos.

Esta estrutura familiar foi sendo combatida pelos imperadores cristãos, como Constantino, o qual determinou
mesmo que, nas relações familiares, se desse mais importância à “afectio”.

o Família conjugal
Família nuclear, verificamos que, neste caso, a noção é mais estrita e aquilo que determina a pertença à família
é essencialmente os laços de consanguinidade.

É a noção de família que nós hoje importamos.

Mesmo assim, se olharmos para a família nuclear, a noção de família mais ampla ou mais estrita constrói-se
em função das próprias circunstâncias, o grau de coesão é diverso e flutuante:
• Em período de grande instabilidade a família junta-se
• Em períodos individualistas a família afasta-se

Neste período, como é que a família estava regulada? Como é que este instituto estava conformado? As
instituições jurídico-familiares que se irão estudar são: os esponsais, o casamento, o poder paternal e a adoção.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 134 a 141

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

SISTEMA PENAL

O Direito Penal está hoje conformado por um conjunto de princípios que no primeiro
período da história do direito português não encontramos vigentes, como o princípio da
legalidade, que nos diz que qualquer comportamento penalmente relevante tem de estar
previamente tipificado na lei para ser punido como crime.

Além disso, neste primeiro período, o sistema penal é essencialmente pluralista, o que
significa que não está estritamente nas mãos do Estado ou do Rei.

Por outro lado, os princípios penais humanistas que hoje também vigoram, não se
encontram de igual forma neste período histórico, como podemos verificar:
• A não retroatividade da lei penal desfavorável para o agente
• As penas podem ser retroativamente impostas
• As penas podiam ser arbitrárias, ou seja, podiam ser aplicadas em função do juízo
casuístico do julgador e para os mesmos tipos de factos e de comportamentos
criminalmente relevantes podiam ser arbitrariamente aplicadas penas muito
diferentes.
• Abundam também as cláusulas gerais, não há uma precisão da regra penal
• Punem-se factos absolutamente insignificantes ou irrisórios de forma
desproporcionada e até cruel
• Abundam as penas infamantes, que não geram dor física, mas fundamentam dor
psicológica, vergonha ou vexame
• As penas também eram variáveis conforme as condições das pessoas, podendo
haver comportamentos idênticos punidos de forma diferente, única e
exclusivamente em virtude da pretensa do agente a um determinado grupo social
e não a outro
• As penas também eram transmissíveis, ou seja, se o agente do crime fosse um, a
pena poderia der aplicada não apenas a esse, mas, por exemplo, aos membros da
mesma família
Se olharmos para os meios de prova em processo penal, também vamos encontrar o
arrepio de alguns princípios estruturantes. Assim, não é de estranhar que, por exemplo, o
ónus da prova pudesse recair não sobre o autor, mas sobre o réu, que teria de demonstrar
a sua inculpabilidade, ou seja, teria necessidade de demonstrar que não era culpado.

Os meios probatórios também eram muito diversos, desde meios probatórios racionais,
como aqueles que temos hoje (a prova testemunhal, a prova documental), até meios
probatórios absolutamente irracionais, como os ordálios, os juízos de Deus ou a prova
caldária. Esta última, por exemplo, consiste no acusado colocar a mão dentro de um
recipiente com um líquido a ferver e, naturalmente, queimava-se.

Depois da invocação da divindade, o julgador diria que se ao fim de x tempo a ferida


estivesse sarada, então aquela pessoa era inocente, porque Deus viria ao seu auxílio. Se,
pelo contrário, a ferida se mantivesse, então Deus teria manifestado o seu juízo de
culpabilidade e, portanto, aquela pessoa seria considerada culpada.

Assim se vê que os princípios e as regras envolvidas no sistema penal da altura são


extraordinariamente diversas das que hoje os modernos sistemas penais exigem.
Vamos então conhecer este conjunto de regras.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

À medida que vamos caminhando no primeiro período da história do direito português,


iniciando no século XII e terminando no século XV, o monopólio estadual da coerção
que nós hoje temos, em que compete ao Estado exercer a ação penal, vai seguindo por
várias fases que partem de uma realidade completamente diversa.
A realidade da qual se parte é a chamada autotutela ou vingança privada – vindicta
privata. E percebe-se porquê.

Se o Rei está essencialmente devotado a outros afazeres, se a sua preocupação primeira


não pode estar, num momento inicial, na administração do reino, naturalmente, se o nosso
Rei não legisla, não pode estar nas mãos dele o monopólio da coerção. Não compete ao
Rei, num primeiro momento, exercer esse monopólio coercitivo, porque o monarca está
deslocado para outras matérias, designadamente, a Reconquista Cristã.
Se a sociedade existe, a tendência para a prevaricação e para a criminalidade, é uma
realidade. Portanto, se não compete ao Rei exercer a decisão, desses crimes, naturalmente,
a sociedade substitui-se ao aparelho de poder para punir a própria conduta criminosa.

Assim, o primeiro passo da entrega ao Estado deste direito de punir, está nas condições
que a comunidade vai exigir para que a vingança privada pode ser exercida. Ainda que a
reparação e a punição dos crimes estejam entregues à comunidade, a vingança privada
não é um processo desvinculado, ela está conformada por regras e são essas regras o
primeiro passo no sentido de atribuir ao Rei a publicização do ius punenti, do direito de
exercer a reparação e a punição dos crimes.

Num primeiro momento, não está apenas na disponibilidade do ofendido ou da sua


própria família exercer a vingança a seu belo prazer, pois o primeiro passo está na
comunidade definir regras através das quais essa punição deve ser exercida.
Estas regras corporizam essencialmente dois modelos de punição, de autotutela:
• A perda de paz relativa
• A perda de paz absoluta
O segundo momento na passagem do esquema de vingança privada para a monopolização
pelo poder central da punição está no facto de se exigir também que a vingança que vai
ser exercida pelo ofendido ou pelos seus familiares, seja proporcional à ofensa que ele
sofreu – lógica da lei de taleão (olho por olho, dente por dente)
Exige-se uma certa proporcionalidade entre a ofensa e a reparação da ofensa.

O terceiro momento neste percurso é a autoridade comunitária passar a propor e depois


passar mesmo a exigir que a vingança não se realize em virtude de ser possível compor o
crime. A composição é uma forma de por fim à vingança, oferecendo o agressor ao
ofendido ou aos seus familiares uma qualquer remuneração que lhes pareça bastante, para
repor a paz. A própria comunidade vai garantir que essa composição seja executada e que
os acordos não sejam ultrapassados e as expectativas defraudadas.

O quarto momento é o estabelecimento de um árbitro. A comunidade vai passar a exigir


que um juiz possa atentar nos contornos do caso penal e ditar a sua sentença. Inicialmente,
este juiz é uma entidade privada e a sua intervenção é facultativa, mais tarde, a
intervenção do decisor passa a ser obrigatória e, finalmente, passa a ser pública. Assim,
caímos no monopólio estatal da coerção.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

A perda de paz relativa

É a forma mais pura e tradicional de autotutela, de autodefesa. Aplica-se aos crimes


considerados graves.
Para além do homicídio, havia outros que eram equiparados em termos de gravidade e de
consequência, como é o caso da violação e de certas ofensas corporais graves.
Para estes crimes, o esquema de reparação e punição do crime, é a perda da paz relativa.
E esquema porque está sujeito a regras, determinadas pela comunidade, através das quais
a vingança deve ser exercida.

A perda da paz relativa é um processo, está subordinado a regras que eram impostas pelas
autoridades locais, designadamente, as autoridades concelhias.

Como é que este processo funciona?

Para que a vingança pudesse ter lugar, era necessário que o ofendido ou os seus familiares
(no caso de homicídio), viessem fazem previamente fazer um desafio formal ao agressor,
perante a autoridade local, a Assembleia do Concelho, dando nota de que houve a prática
daquele crime.

Depois, o autor do delito, o inimigo, gozava de um período de tréguas (9 dias), durante o


qual ele beneficiava de um seguro, ou seja, durante esse tempo a vingança não poderia
ser exercida sobre ele. Quando ultrapassados esses 9 dias, seguia-se a declaração solene
de inimizade.

O criminoso tinha então 8 dias para abandonar o local do crime (desterro) ou para adiar
a vingança, desde que pagasse uma quantia designada por fredume, que revertia em parte
para o Conselho e outra parte para o ofendido e seus familiares. Todavia, este pagamento
não afastava a possibilidade de findos os 8 dias, o ofendido e a família perseguirem o
agressor.

Finalmente, o ofendido e a família efetivavam a faida, a vingança final, a qual resultava,


muitas vezes, na morte do criminoso.
Era este o processo e o resultado normal da perda de paz relativa, exceto quando houvesse
lugar à composição.

A Composição

É uma forma de pôr fim à vingança, repondo a amizade entre o agressor e o ofendido ou
os seus familiares. Há vários tipos de composição:
Composição pecuniária: é uma forma de pôr fim à vingança privada através de um
quantitativo em dinheiro que o agressor pagava e que revertia para o ofendido ou para os
seus familiares, sendo considerado bastante e excluindo, assim, a prossecução da
vingança. No fundo, o criminoso indemnizava a vitima ou seus familiares e essa
indemnização era considerada reparação bastante, a vingança não prosseguia e a paz
estava restaurada.
Composição corporal: é uma forma de pôr fim à vingança privada, sobretudo, nas
circunstâncias em que o criminoso não tem bens. É o chamado “entrar às varas”, em que
o criminoso recebia publicamente um conjunto de varadas do ofendido.
Composição por missas: o agressor mandava rezar um determinado número de missas
em honra do ofendido.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

Composição por cárcere/por prisão: é uma forma de encarceramento privado a que o


agressor ficaria sujeito, em benefício do ofendido ou dos seus familiares.

Qualquer um destes tipos de composição tinha como efeito pôr fim à vingança privada e,
portanto, a faida já não teria lugar.
Em regra, terminava através de uma cerimónia que incluía o chamado ósculo paxis, o
beijo da paz. A amizade estaria reposta e a justiça estaria saldada.
A composição, em rigor, não é propriamente uma pena, mas é um sacrifício que a lei
impunha e facultava aos criminosos, para que estes evitassem a vingança do lesado ou
dos seus familiares.

A perda de paz absoluta

Há quem nela entenda o antecedente remoto da pena de morte.


Neste caso, a contenda não se trava apenas entre o criminoso e o ofendido e os seus
familiares, mas o criminoso pode ser legitimamente punido por todos na comunidade.
O criminoso ficava na posição de fora do direito, era considerado uma espécie de inimigo
público de toda a comunidade, podendo e devendo ser perseguido e morto por todos.

Aplicava-se quando se estivesse perante crimes extraordinariamente graves, como:


o Crimes de lesa majestade (ex. aleivosia, calúnias, ofensas ou traição ao rei)
Eram crimes com uma particular censurabilidade por significarem aleivosia ou traição. O
criminoso atuava de forma aleivosa, cometia traição.

o Violação de tréguas

o Violação de paz especial (decretada nas assembleias da igreja)


Por exemplo, um homicídio praticado em determinados lugares como a Igreja ou a
Assembleias do Concelho. Eram lugares considerados de tal forma sagrados ou com uma
dignidade pública, que a morte perpetrada nesses espaços configurava uma especial
traição.
A perda de paz absoluta não admitia qualquer composição pelo que, uma vez iniciado o
seu processo, o mesmo tinha de culminar com a morte do criminoso.

Ao olharmos para o direito foraleiro, vamos perceber que as comunidades, através das
fontes de direito, vão prever não apenas os esquemas da vingança privada, mas também
as penas que devem ser aplicadas a determinados crimes.

A pena de morte, estava prevista para determinado tipo de crimes considerados graves,
como o homicídio, a violação, as ofensas corporais graves ou o ladrão reincidente.
A forma de execução da pena de morte mais frequente era o enforcamento, mas também
existiam outras formas como por exemplo, enterrar vivo o criminoso debaixo do corpo
da sua própria vítima, a lapidação, a crucificação, a fogueira, o afogamento e, para os
nobres, reservava-se a decapitação.

Existiam ainda penas pecuniárias, designadamente, para aqueles que tivessem


património. Estas penas surgiram não apenas como penas autónomas, mas também como
penas subsidiárias para o caso de não haver lugar a outro tipo de penalidades com um
conteúdo mais corporal.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

As penas pecuniárias eram aplicadas para compensar o ofendido na mesma proporção da


perda que teve pela ação do infrator, sendo exemplo o anuveado, que era a pena aplicada
ao crime de furto e que consistia no pagamento ao ofendido de 9 vezes o valor do objeto
furtado.
Também se utilizavam penas corporais, sobretudo, como penas subsidiárias das penas
pecuniárias para aqueles que não tivessem bens. As penas corporais mais comuns eram o
desorelhamento, o esvaziamento dos olhos, os açoites em público e o corte da mão, que
nalguns casos deveria ficar presa à porta do lesado, para funcionar como exemplo.

As penas privativas de liberdade consistiam na prisão ou servidão. Eram utilizadas


quando não havia lugar às penas pecuniárias e para garantir o seu pagamento. Tem,
essencialmente, uma função repressiva e, sobretudo, uma função coercitiva.

As penas cruéis e infamantes não se destinam a imprimir dor física, elas eram aquelas
que se consideravam particularmente humilhantes e vexatórias, como por exemplo, o
corte da barba nos homens, o corte do cabelo nas mulheres, a procissão do réu de pé,
descalço e com uma corda ao pescoço, a flagelação pública do réu, o marcar o réu com
um ferro em brasa e a exposição do réu em gaiolas no pelourinho das vilas.

Algures neste caminho, vamos ver os nossos monarcas ocupados com estas questões
penais e a criarem legislação, fortemente influenciados pelo direito romano e pelo direito
canónico, no sentido de chamarem a si o monopólio coercitivo. Desde cedo, os nossos
monarcas vão se ocupar do sistema penal, criando legislação sobre a matéria.

D. Afonso II, no acervo legislativo de 1211, vai produzir um conjunto de leis


particularmente relevantes para o sistema penal:
• Proibição da realização da vingança privada dentro da casa do agressor
• Proibição da destruição dos bens do inimigo
• Impede-se que a vingança possa recair sobre os homens que estavam ao serviço
do inimigo, a não ser que eles tivessem tomado parte pessoal do delito
• Estabeleceu-se que a vingança devia terminar e estava concluída quando já
tivessem ocorrido duas mortes, uma de cada lado, mas se não houvesse lugar à
morte, o conflito deveria ser julgado pelos juízes do Rei

D. Afonso IV preocupou-se particularmente com o exercício da vingança privada, no


sentido de o limitar.
Em 1325, o monarca decretou a ilicitude da vingança em geral, ressalvando, porém, os
direitos dos fidalgos, conhecidos por direitos de acoimar, onde a vingança privada era
costume.

No ano seguinte, o Rei, fundamentado no ius commune, vem proibir a vingança privada,
mesmo entre os fidalgos, chegando mesmo a culminar a morte para os fidalgos que
desobedeçam a esta orientação. Entre 1326 e 1330, vai sendo produzido um conjunto de
leis do mesmo monarca que têm este efeito, proibir a vingança privada.

Ao mesmo tempo que se pretende trazer para a esfera pública, para a Cúria Régia, o
arbitrário destes conflitos, também vai sendo produzida legislação, que vai proteger a
justiça pública e criar particulares deveres para os juízes, nomeadamente, orientando-os
pelo valor máximo do Direito, que é a justiça.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


Regente Susana Videira | Aulas Teóricas

Em 1355, D. Afonso IV elaborou uma lei que ficou conhecida como “a lei dos crimes
públicos”. Esta lei definia e estabelecia a punição de um conjunto de crimes que, pelas
suas características, se entendia que deviam ser de investigação oficiosa e obrigatória,
mesmo que não haja queixa do ofendido (crimes públicos). Como tal, eram considerados
os seguintes crimes:
• Crimes Políticos ou de Lesa Majestade;
• Homicídio doloso qualificado e os ferimentos graves;
• Crimes contra a justiça pública, como a resistência ao oficial do rei;
• Crimes religiosos, como a heresia, o sacrilégio ou a blasfémia;
• Crimes sexuais, como a violação, o adultério, o incesto, a bigamia e a alcovitaria;
• Crimes quanto à propriedade, como o furto e o dano;
• Crimes de Feitiçaria.

Esta lei é considerada um marco no sistema penal medieval português.

Sofia Cunha FDUL 2019/2020


PODER PATERNAL1

Direito Romano

Vivia-se sob o princípio da autoridade suprema do “pater-familia”, o qual detinha a titularidade dos bens de
todos os membros do grupo familiar e dispunha do poder de vida ou de morte dos filhos (agnação) e das
pessoas que compunham a sua família, o que extravasava o nosso entendimento de poder paternal.

No Direito Romano, o poder paternal significaria a subordinação à pater potestas, à autoridade do


paterfamilias, e essa não cessa mesmo quando o filho casa e constitui a sua própria família.

Direito Visigótico

O poder paternal, de facto, está entregue ao pai, mas a mãe já tem determinados direitos, que acabam por
significar uma relevância grande da sua função.

Ao mesmo tempo, o poder paternal não estava apenas configurado como um poder de sujeição à pater
potestas, mas também como uma espécie de poder-dever ou poder funcional.

Isto significa que o direito de correção que os pais têm, a autoridade que lhes assiste, era vista como uma
contrapartida das obrigações dos deveres que o poder paternal tinha relativamente aos filhos, nomeadamente,
deveres de educação, deveres de proteção e deveres de direção.

A pater potestas cabia ao pai, ainda que a legislação visigótica venha reconhecer à mãe determinados direitos
que ombreiam com os direitos do pai. Por exemplo, se o filho menor pretendesse casar, estava sujeito não
apenas à autorização do pai, mas também da mãe.

Como consequência deste direito paternal que assiste ao pai relativamente ao filho, se o filho adquirisse
património, este era propriedade paterna, sendo trazido à coação, em sede de herança, no caso de morte do
chefe de família.

No entanto, há determinados bens que os filhos podem manter como seus, nomeadamente, os bens que advém
da herança da mãe e também alguns bens que eram considerados especiais, como por exemplo, doações que
o Rei fizesse aquele filho.

Importa também sublinhar que, embora o exercício do poder paternal coubesse ao pai, se ele morresse durante
a menoridade dos filhos, a mãe não passava a exercer o poder paternal, mas sim uma tutela sobre os filhos.

A autoridade do pai não se fundamentava em aspetos políticos e servia para disciplinar a vida
familiar. O exercício do poder paternal cabia ao pai, e se ele morresse durante a menoridade dos
filhos, a mãe não passava a exercer o poder paternal, mas sim uma tutela sobre os filhos.

Direito Foraleiro Português

No direito foraleiro português percebe-se uma evolução nesta matéria, relativamente à matriz visigótica que
foi deixada.

O poder paternal pertence a ambos, ao pai e à mãe, ainda que seja percetível uma superioridade paterna face
ao facto de ele configurar o chefe de família.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 165 a 169

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Aqui, se a mãe morrer, o pai não permanece com o poder paternal, mas sim com uma tutela que vai exercer
subordinado à fiscalização dos parentes. Por outro lado, se o pai morrer, a mulher mantém o exercício do
poder paternal (patria potestas).

O poder paternal cessa com a morte de um dos pais, mas cessa também quando o filho casa e constitui a sua
própria família.

Revela já uma evolução nesta matéria, o poder paternal extingue-se pela morte, mas o cônjuge sobrevivo,
ainda que seja a mulher, mantém o exercício do poder paternal (patria potestas).

ADOÇÃO2

A adoção está prevista no Direito Romano Justinianeu. Este previu duas formas de adoção: a adrogatio e a
adoptio.

• Adrogatio: sujeição de um paterfamilias a outro paterfamilias perante os comícios curais.

• Adoptio: adoção de um simples filius família.

Na época pós-clássico acentuou-se a tendência para eliminar a adrogatio e fazer a adopção no sentido da
adoptio, segundo o princípio “adoptio naturam imitatur”.

Mantém-se e evolui um conceito de adopção em que se pretende colocar o adoptado na situação que teria se
tivesse nascido no seio da família, deixando de existir a forma política de adopção.

Quando chegamos ao Direito antigo português, quando Portugal nasce como reino, não encontramos
vislumbre a figura de adoptio, mas surge-nos uma outra, a perfilactio, que tem um significado próximo, mas
com contornos e fins diversos.
• Perfilactio: destina-se a evitar que as regras sucessórias sejam aplicadas e outros propósitos, como
legitimar filhos nascidos fora do casamento.

Quando se dá a receção em Portugal do Direito Romano Justinianeu, o que é facto é que nós vamos encontrar
nas Siete Partidas, algumas referências à adoção no sentido de adoptio romana.

O que é facto é que este instituto não se impôs no nosso direito antigo ao longo dos tempos. Por isso, as
Ordenações Afonsinas, vão se ocupar de forma muito incidental deste instituto da adoção.

Aliás, este instituto entra em decadência no século XVI, e o primeiro Código Civil, de 1867, não introduz
qualquer regra dedicada à adoptio.

Portanto, em Portugal, durante este período histórico, a adoptio está presente nas fontes de forma muito
modesta, mas o instituo particularmente relevante foi a prefilactio.

2
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 169 a 171

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


DIREITO SUCESSÓRIO1

O que é a sucessão em sentido técnico-jurídico?

Ela pode ser identificada como a modificação subjetiva da relação jurídica de pessoas, ou mais amplamente,
da situação jurídica, isto é, a alteração de um complexo de direitos e deveres de que um determinado sujeito
era titular.

Em termos teoréticos, a sucessão pode ocorrer inter-vivos, entre sujeitos que estão vivos e atuantes na ordem
jurídica, ou pode ser mortis-causa, se atendermos especialmente ao facto de determinado certo tipo de
sucessão se encontrar na morte daquele em cuja posição jurídica outros vão ingressar.

Aqui, quando falamos em sucessão, referimo-nos à sucessão mortis-causa, em


que se substitui o sujeito da situação jurídica, em virtude da sua morte. O
fenómeno sucessório opera através da morte como facto designativo. Portanto,
quando alguém morre, é preciso saber o que acontece à titularidade dos seus
bens e das suas situações jurídicas.

Conceitos base
De cujus: é a pessoa falecida que deixa bens para distribuir.

Mortus: é a pessoa falecida que não deixa bens para distribuir.

Pré-defunto: é o filho que morre antes do pai “de cujus”.

Herança: é o conjunto de bens que importa afetar aos herdeiros, porém, até à data da morte do “de cujus” os
herdeiros apenas têm expectativas, pois só com a morte daquele é que são chamados a receber a herança.

Sucessão universal

O novo sujeito substitui o anterior sujeito na totalidade das relações jurídicas pertencentes ao primeiro. O
sujeito que morre assume tecnicamente a designação de de cujus e quem lhe sucede assume a designação de
herdeiro. Aquilo que este último recebe chama-se herança.

Sucessão singular/particular

Apenas se sucede na titularidade de certos e determinados direitos, que estão também ligados a certos e
determinados bens. Aquele que recebe um certo e determinado bem, designa-se por legatário e o que ele
recebe é um legado.

O fenómeno sucessório conforme o estamos a observar opera a partir do desaparecimento de um sujeito,


chamando-se outro sujeito à nova titularidade. Porém, uma coisa é encontrar-se aberta a sucessão porque a
morte ocorreu, outra coisa é saber-se quem virá a suceder.

O chamamento à herança pode ocorrer por força de um ou dois fundamentos jurídicos:

A Vontade
Se o de cujus deixou designado sucessor, podemos privilegiar a sua vontade.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, I Volume, Tomo II, 1983, página 171 a 185

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


A Lei
Se não houver essa manifestação de vontade, o ordenamento jurídico intervém supletivamente para determinar
em concreto como é que o património do de cujus será deferido. A lei substitui-se ao de cujus e indica o seu
sucessor.

Contudo, estas duas fontes não se excluem necessariamente, porque a vontade deve mover-se nos quadros do
direito. Se a vontade operar, então, também é necessário que essa vontade, no fundo, salvaguarde as normas
imperativas e obrigatórias que o ordenamento jurídico estabelece e que limita essa vontade.

Quando a lei permite que o de cujus expresse a sua vontade em relação a uma parte dos seus bens – quota
disponível – mas, por outro lado, restringe a sua liberdade de dispor do restante património – quota
indisponível – então os dois fatores de chamamento à herança (vontade e lei) funcionam em simultâneo.

É neste contexto que surge então uma outra distinção.

Sucessão voluntária
(relacionada com a quota disponível)

É aquela em que a vontade do autor da sucessão pode operar através de um testamento ou de um contrato.

• Sucessão testamentária: ato jurídico unilateral em que o de cujus faz um testamento e só após a sua
morte é que se conhecem os beneficiários.

• Sucessão contratual: ato jurídico bilateral praticado entre o de cujus e terceiros, só produzindo efeitos
após a morte do de cujus.
Teoricamente é possível, mas não era admissível porque através de um contrato a vontade de um
poderia facilmente suplantar ou sobrepor-se à vontade do outro, limitando-a.

Instituto da redução por inoficiosidade: ocorre para corrigir a vontade do de cujus, reduzindo o valor da
herança dos legatários até à quota disponível, quando esta foi ultrapassada pelo de cujus.

*Sucessão legal ou imperativa


(relacionada com a quota indisponível)

É aquela em que o autor da sucessão nunca pode ou já não pode modificar, por ter morrido.

• Sucessão legitimária: quando há a disciplina da vontade, ou seja, o autor da sucessão fez um


testamento, mas a lei intervém e impõe-se imperativamente à vontade do de cujus, definindo os
herdeiros para a quota indisponível. No fundo, a lei protege obrigatoriamente determinadas categorias
de herdeiros.

• *Sucessão legítima ou supletiva: o de cujus, podendo dispor da quota disponível, podendo


disciplinar o destino dado aos seus bens através de um ato de vontade, não o fez e, por consequência,
o ordenamento jurídico intervém de forma supletiva para disciplinar o destino a dar aos bens do autor
da sucessão.
O ordenamento jurídico intervém estabelecendo essencialmente uma ordem, um elenco de classes
sucessórias, que deve ser seguido para a atribuição do património do de cujus.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


*Sucessão legítima no Direito Visigótico
No direito visigótico, existiam quatro graus de sucessíveis, que eram, pela sua ordem de importância: os
descendentes, os ascendentes (pais, avós, bisavós, etc), os colaterais (irmãos, tios, sobrinhos) e o cônjuge
sobrevivo.
Portanto, se não houvesse testamento, a herança deveria ser atribuída seguindo-se esta ordem.

No direito visigótico os bens eram repartidos em estirpes e depois divididos por cabeça.

Além disso, existiam também dois princípios essenciais que regiam o fenómeno sucessório:

Princípio da igualdade dos sexos: consistia na igualdade entre homens e mulheres no que toca à capacidade
para deixar herança. Os direitos sucessórios da mulher não sofriam qualquer limitação, ou seja, a mulher, pelo
facto de o ser, não tem qualquer limitação em termos sucessórios e, portanto, também tem capacidade para
deixar herança.

Princípio da proximidade de grau: distribuía toda a herança aos parentes do grau mais próximo, afastando
os outros da sucessão (atualmente, o grau mais próximo é composto pelo cônjuge sobrevivo e pelos filhos).
Se existir um parente mais próximo, ele sucederá em preferência ao parente mais afastado, em termos
supletivos. Por exemplo, se houver filhos, não sucedem os netos, e assim sucessivamente.

Porém, este princípio tem duas exceções:

o Direito de representação: na sucessão dos descendentes permitia-se que os netos do de cujus


ocupassem o lugar do seu pai, caso ele tenha morrido primeiro que o seu avô. Eles podiam concorrer
à herança em proporção de igualdade com os seus tios e, eventualmente, com outros descendentes que
estivessem nas mesmas condições.

o Direito de troncalidade: operava na sucessão dos ascendentes, quando o de cujus morria sem
descendentes. Os bens próprios do de cujus, portanto, que lhe advieram por património familiar
(herança ou doação), deviam reverter para o mesmo lado da família de onde esses bens provinham.

Contudo, esta regra surgiu no direito visigótico em termos muito limitados:

• só se admitia este princípio se à sucessão do de cujus concorressem dois ou mais avós de linhas
diferentes;
• esta regra não se aplicava se fossem os pais os sucessores, portanto, só se aplicava se os
sucessores fossem os avós, bisavós e demais ascendentes;

Como é que o Direito Sucessório estava disciplinado no direito português, por forte influência do direito
visigótico?

Em Portugal, vai manter-se no geral o sistema das linhas sucessórias acolhido pelo código visigótico, contudo,
o direito de troncalidade vai ser admitido em termos muito mais latos, tornando-se mesmo um elemento
particularmente caracterizador do nosso sistema sucessório.

Ø Este direito também se aplicava mesmo que concorressem os dois pais à sucessão.

Ø A limitação existia porque importava olhar para a proveniência desse bem: se o bem tivesse origem
num colateral ascendente ou num ascendente para além dos avós (portanto, nos bisavós), então não se
aplicava o direito de troncalidade.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Ø Este direito só se aplicava, de facto, se o membro da família fosse mais próximo, com o propósito de
manter o bem no mesmo lado da família.

*Sucessão legal no Direito Visigótico e no Direito Romano


É a sucessão que o ordenamento imperativamente impõe, impossibilitando o de cujus de dispor, post mortem,
no todo ou em parte do seu património. Tem-se a intenção de manter dentro da família o conjunto de bens que
estavam na titularidade do de cujus.
Por isso, as limitações que existem apenas se aplicam, por vezes, aos bens próprios do de cujus (que recebeu
por sucessão ou liberalidade familiar) e não aos bens adquiridos (resultantes da sua própria atividade).

Direito Romano
Acolhia a total e absoluta liberdade de testar todos os bens. O autor da sucessão poderia dispor em vida,
por morte, livremente de todos os seus bens ou, mais amplamente, do património familiar.

Direito Visigótico
Quase não previa a capacidade de testar, já que existia um forte sentimento de comunidade, não sendo bem
vista a alienação do património para fora do seio familiar.
Contudo, por influência do Direito Romano, começou-se a admitir uma quota de livre disposição dos bens,
correspondente a 1/5 do património, a par dos 4/5 que permaneciam indisponíveis e teriam de ser
obrigatoriamente deixados à família.
A quota disponível era normalmente entregue a instituições religiosas, ideia que transitou para o período
da reconquista cristã, já que era entendido como sendo uma forma de comprar um lugar no céu.

Com efeito, no período da reconquista impôs-se a ideia de solidariedade familiar, o que se refletiu no regime
do sistema visigótico, passando então a vigorar os seguintes institutos:

Laudatio parentium
Todos os atos de disposição patrimonial de bens imóveis, quer em vida, quer em morte, estavam sujeitos à
aprovação dos familiares. Naturalmente, que se o parente tivesse uma pretensão sucessória, ele não autorizaria
e, por essa via, limitava a vontade do proprietário do bem em causa.

Sistema da reserva hereditária


Todos os sucessíveis beneficiavam dos bens próprios, ou seja, dos bens do património familiar, sem distinção
de grau ou classes.

Sistema de sucessão legitimária


Só os descendentes e os ascendentes é que beneficiavam de todo o património do de cujus, independentemente
de serem bens próprios ou adquiridos. Se o de cujus só tivesse colaterais, não se aplicaria limitação e ele podia
dispor livremente dos seus bens.

*Sucessão legal no Direito Antigo Português


O antigo direito português, numa fase inicial, praticamente desconhecia o testamento.

A partir do século XIII, por influência do Direito Romano Justinianeu, já encontramos consagrada no direito
português a figura do testamento. A prova disso mesmo é uma lei de 21 de maio de 1349, que rege a
publicação dos testamentos.

Esta lei diz-nos quais são as formas pelas quais os testamentos podiam ser realizados:

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o Escrito particular celebrado perante um tabelião e, assim, podia prescindir de testemunhas;
o Escrito particular na presença de testemunhas, mas sem exigência da intervenção do tabelião (notário);
o Por forma verbal e perante testemunhas, sendo que estas validavam o testamento;
Esta lei também vem declarar que os juízes eclesiásticos poderiam considerar válidos os testamentos feitos
por escrito particular, sem a presença do tabelião e sem testemunhas, desde que não houvesse dúvidas de que
esses testamentos efetivamente exprimiam a última vontade de quem os escreveu.

Havendo testamento, a vontade do testador, no direito antigo português, é absolutamente livre, como no
Direito Romano, ou estava limitada, como no Direito Visigótico?

O antigo direito português conheceu limitações à vontade do testador, que estão plasmadas no Direito e,
portanto, voltamos a ter uma sucessão legal.
Porém, esta sucessão legal é legitimária. Estamos perante um corpo de regras que é impositivo, obrigatório e
que se impõe à vontade do testador, ele não pode desrespeitar.

A quota livre no direito português era de 1/5 no Norte (por influência visigótica) e de 1/3 no Sul (por influência
muçulmana).

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ORDENAÇÕES AFONSINAS1

Elaboração e inicio de vigência

Os elementos essenciais relativos à história das Ordenações Afonsinas constam do proémio do seu livro I e aí
se referem os pedidos insistentes, formulados em Cortes, no sentido de ser elaborada uma nova coletânea
do direito vigente que evitasse as incertezas derivadas da grande dispersão e confusão das normas, com
graves prejuízos para a vida jurídica e a administração da justiça.
Cada vez se tornava mais árdua a coordenação das várias fontes, a fim de se apurar o direito aplicável aos
diversos casos concretos.

D. João I atendeu essas representações e encarregou João Mendes, corregedor da Corte, de preparar a obra
pretendida.

Entretanto, ocorria a morte de D. João I e, pouco depois, a de João Mendes.


Por determinação de D. Duarte, a continuação dos trabalhos preparatórios foi confiada a Rui Fernandes,
outro jurista de méritos confirmados, que pertencia ao conselho do rei.
Porém, a obra não ficou concluída no fim do breve reinado de D. Duarte.

Falecido este rei, o Infante D. Pedro, regente na menoridade de D. Afonso V, incitou o compilador a aplicar-
se à tarefa. Rui Fernandes veio a concluir a obra em (28) julho de 1446, na Villa da Arruda.

O projeto foi seguidamente submetido a uma comissão composta pelo mesmo Rui Fernandes e por outros três
juristas, Lopo Vasques, Luís Martins e Fernão Rodrigues.
Após ter recebido alguns retoques, procedeu-se à sua publicação com o título de Ordenações, com o nome de
D. Afonso V.

Desconhece-se a duração exata dos trabalhos de revisão.


Parece de admitir, todavia, que a aprovação das Ordenações se tenha verificado pelos fins de 1446 ou, mais
provavelmente, em 1447. Afigura-se, sintetizando, que os naos de 1446 e de 1447, foram, presumivelmente,
o da entrega do projeto e o da publicação das Ordenações.

Qual parte das Ordenações que terá sido redigida por João Mendes e qual parte é que terá sido redigida pelo
Rui Fernandes?

O Livro I, da autoria de João Mendes, está redigido num estilo diferente dos livros seguintes, é o chamado
estilo direto e decretório, também designado por legislativo. Este estilo consiste numa forma de redigir a lei
como se ela estivesse a ser criada naquele momento, sendo um estilo mais perfeito do ponto de vista técnico.

Os restantes livros, da autoria do Dr. Rui Fernandes, estão redigidos num estilo compilatório, ou seja, as leis
foram reproduzidas exatamente como teriam sido criadas. Este estilo consiste na transcrição da norma jurídica,
incluindo todas as versões anteriores da mesma, bem como todos os comentários e anotações que se fizeram
sobre ela, sendo um estilo mais perfeito do ponto de vista histórico.

No entanto, esta explicação das diferenças de estilo, não responde à questão que colocámos. As matérias que
integram os restantes livros eram facilmente compiláveis, mas no caso dos cargos públicos do Livro I, essas
normas foram redigidas especificamente para este esforço compilatório, não existiam leis anteriores sobre esta
matéria e, por isso, não era possível obedecer ao estilo de mera compilação.

Assim, podemos concluir, então, que não é possível distinguir quais as partes das Ordenações que foram
redigidas por um e por outro autor.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 36 a 51

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A segunda questão que se coloca tem que ver com o início da vigência das Ordenações.

O trabalho compilatório foi concluído durante a menoridade de D. Afonso V, enquanto D. Pedro, o Infante de
Alfarrobeira, assumia a regência do reino. É um facto que havia uma forte resistência a tudo aquilo que pudesse
ser obra do Infante, por isso, é normal que se pergunte se as Ordenações Afonsinas terão vigorado em Portugal.
A resposta é afirmativa.

O facto de terem chegado até nós exemplares das Ordenações em número tão significativo, inculca a ideia de
que eles foram fonte de direito vigente no nosso país.

Além disso, ainda não se utilizava a imprensa, pelo que levaria considerável tempo a tirarem- se as cópias
manuscritas, laboriosas e dispendiosas, necessárias à difusão do texto das Ordenações em todo o País, fora da
Chancelaria Régia e dos Tribunais Superiores.

Acresce que se verificava grandes desníveis de preparação técnica entre os magistrados e demais
intervenientes na vida jurídica dos centros urbanos e das localidades deles afastadas.

Sistematização

Talvez por influência das Decretais de Gregório IX, as Ordenações Afonsinas encontram-se divididas em 5
livros.

Cada um dos mesmos compreende um certo número de títulos, com rubricas indicativas do seu objeto, e estes
acham-se subdivididos em parágrafos.

Todos os livros são precedidos por um proémio, que no primeiro se apresenta mais extenso por nele se narrar
a história da compilação.

o Livro I
Abrange 72 títulos, ocupa-se dos regimentos dos diversos cargos públicos, apresentando, portanto, um
conteúdo jurídico-administrativo.

o Livro II
Composto por 123 títulos muito heterogéneos, disciplinam-se os bens
e privilégios da Igreja, os direitos do rei, e a sua cobrança, a jurisdição Livro I: trata dos cargos públicos;
dos donatários, e as prerrogativas da nobreza, o estatuto dos Judeus e Livro II: trata da matéria do
dos Mouros. Agora, consagravam-se providências de natureza Direto Público, portanto, os
política ou constitucional. direitos do Rei, dos clérigos, dos
nobres, o fisco, as notarias, os
o Livro III judeus, os mouros;
Com 128 títulos, tratava do processo civil. Livro III: trata do Processo Civil;
Livro IV: trata do Direito Civil
o Livro IV substantivo;
Ao longo de 112 títulos, se ocupava do direito civil substantivo, Livro V: trata do Direito Penal;
designadamente de temas de direito das obrigações, direito das
coisas, direito da família e direito das sucessões.

o Livro V
Continha 121 títulos sobre direito e processo criminal (podendo certos atos processuais encontrarem-se, em
certos casos, regulados no livro III).

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Fontes Utilizadas | Técnica Legislativa

Com as Ordenações Afonsinas procurou-se, essencialmente, sistematizar e atualizar o direito vigente.

Assim, utilizaram-se na sua elaboração as várias espécies de fontes anteriores:


• Leis gerais
• Resoluções régias
• Petições
• Dúvidas apresentadas em Cortes ou mesmo fora destas
• Concórdias
• Concordatas
• Bulas
• Inquirições
• Costumes gerais e locais
• Estilos da Corte e dos tribunais superiores, ou seja, jurisprudência,
• Praxes ou costumes aí formados;
• Normas extraídas das Siete Partidas
• Preceitos de direito romano e de direito canónico, designados, respetivamente por “leis imperiais” ou
“direito imperial” e “santos cânones” ou “decretal”,
• Alusões ao “direito comum”.

Quanto à técnica legislativa, empregou-se o chamado Estilo Compilatório: transcreviam-se, na íntegra, as


fontes anteriores, declarando-se depois os termos em que esses preceitos eram confirmados, alterados ou
afastados.

Contudo, nem sempre se adotou este método.


Designadamente, em quase todo o livro I, utilizou-se o estilo decretório, que consiste na formulação direta das
normas sem referência às suas eventuais fontes precedentes.

Importância da obra

As Ordenações Afonsinas assumem uma posição destacada na história do direito Português.


Constituem síntese do trajeto que desde a fundação da nacionalidade, ou, mais aceleradamente, a partir de
Afonso III, afirmou e consolidou a autonomia do sistema jurídico nacional no conjunto peninsular.
Além disso, representam o suporte da evolução subsequente do direito português.

As Ordenações posteriores, a bem dizer, pouco mais fizeram do que atualizar a coletânea afonsina.

A publicação das Ordenações Afonsinas liga-se ao fenómeno geral da luta pela centralização.
Acentuou-se a independência do direito próprio o Reino em face do direito comum, subalternizado no posto
de fonte subsidiária por mera legitimação da vontade do monarca.

As Ordenações Afonsinas significam um esforço do monarca em organizar e sistematizar o Direito vigente.


Apesar de conterem um número considerável de leis, elas ainda não cobriam a totalidade das questões que
eram necessárias solucionar.

Por isso, além das fontes principais do direito, estabeleceu-se um sistema de fontes subsidiárias, isto é, uma
hierarquia de fontes do direito para recorrer na falta de direito pátrio.
Contudo, importa sublinhar que mesmo assim nem todas as fontes de direito que persistem neste período estão
integradas neste elenco das fontes principais e subsidiárias de direito.

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Fontes Principais/Primárias
• A lei do Rei (próprias ordenações)
• O estilo da corte (costume judiciário)
• O costume antigo (prática social reiterada com convicção de obrigatoriedade)

Se estas não oferecerem solução para um determinado caso, recorremos às seguintes:

Fontes Subsidiárias
• O Direito Romano (para questões temporais)
• O Direito Canónico (para questões espirituais e temporais de pecado, como por exemplo a usucapião
de má fé)
• A glosa de Acúrsio
• A opinião de Bártolo
• A resolução régia

Em que matérias é que estas fontes subsidiárias se vão aplicar?


O Direito Romano aplica-se nas matérias puramente temporais, exceto se, contrariando o Direito Canónico,
fizessem incorrer em pecado – critério do pecado
O Direito Canónico aplica-se nas matérias espirituais e nas matérias temporais de pecado.

De acordo com o Direito Romano, era solução que nesta situação o possuidor de má fé se pudesse transformar
em proprietário, desde que a situação se prolongasse durante um longo período de tempo, neste caso, 30 anos.
O Direito Canónico, por sua vez, não permitia a usucapião de má fé, uma vez que se incorria em pecado.

Além disso, o Direito Canónico vai também aplicar-se nos casos em que o Direito Romano não prevê solução,
ainda que se trate de uma questão puramente temporal, exceto se for contrariado pelas opiniões e pelas glosas
dos doutores em leis, remetendo-se para a resolução régia.

Direito Romano Direito Canónico


Aplica-se em matérias temporais quando não Aplica-se nas matérias espirituais e nas matérias temporais de
incorresse no pecado. pecado
O possuidor de má fé se pudesse transformar Não permitia a usucapião de má fé
em proprietário. Aplicar-se nos casos em que o Direito Romano não prevê solução

Esta opinião era pacífica até à contradita do Professor Duarte Nogueira.


Baseado na ideia de rivalidade entre os dois direitos, o professor entendeu que em questões puramente
temporais, que não são de pecado, se o Direito Romano não oferecer solução, deve aplicar-se a glosa de
Acúrsio, se esta também não solucionar, a opinião de Bártolo e, por último, a resolução régia.
Portanto, segundo a maioria da doutrina aplica-se o Direito Canónico, mas segundo este professor passa-se
para o patamar seguinte.

Como dissemos anteriormente, o direito foraleiro não está aqui previsto, mas ele permanece como direito
aplicado neste período, sendo objeto inclusivamente de reforma. Os forais estão desatualizados, mas são
entendidos pelas populações como as suas cartas de liberdade e, por isso, eram olhados com particular favor.
Assim, também os monarcas vão olhar para os forais, como é o caso de Manuel I, que será protagonista de
uma reforma desta fonte de direito.

A opinião dos doutores também não está prevista de uma forma direta e imediata, como vai acontecer nas
Ordenações Manuelinas. Ela está apenas prevista de forma implícita. Valoriza-se Bártolo, sem prejuízo
daquilo que os outros doutores possam dizer em contrário.

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ORDENAÇÕES FILIPINAS1

São as últimas compilações que conhecemos, foram aquelas que permaneceram mais tempo em vigor, sendo
completamente revogadas apenas no século XIX com a codificação, designadamente, com o Código Civil de
1867. Porém, veremos primeiro o contexto que dita o seu aparecimento.

Contextualização Histórica

A coleção das extravagantes não passou de simples obra intercalar.


Impunha-se uma reforma profunda das Ordenações Manuelinas, cada vez mais urgente. Até porque estas não
realizaram a transformação jurídica que o seu tempo reclamava.
Portanto, a elaboração de novas Ordenações constituiu um facto natural de Filipe I, em cujo reinado se
tomaram outras providências relevantes na esfera do direito: substituição da Casa do Cível, que funcionava
em Lisboa, pela Relação no Porto, a que o mesmo monarca concedeu regimento, e a entrada em vigor de uma
lei de reformação da Justiça.
O desejo permitiu a Filipe I demonstrar pleno respeito pelas instituições portuguesas e emprenho em atualizá-
las dentro da tradição jurídica do País.
Os trabalhos preparatórios da compilação filipina foram iniciados entre 1583 e 1585. Também existem
dúvidas sobre os juristas intervenientes: apontam-se Jorge Cabedo, Afonso Vaz Tenreiro e Duarte Nunes de
Leão.

Elaboração e início da vigência

As novas Ordenações ficaram concluídas em 1595 e receberam aprovação por Lei de 5 de junho desse mesmo
ano, mas que não chegou a produzir afeito. Só no reinado de Filipe II, através da lei de 11 de janeiro de 1603,
iniciaram a sua vigência – a mais duradoura em Portugal.

No reinado de D. Filipe I desenvolveu-se consideravelmente a atividade legislativa, o que fez com que
houvesse a necessidade de revisão das Ordenações Manuelinas.

Para este trabalho foram encarregados três juristas, nomeadamente, Jorge Cabedo, Afonso Vaz Tenreiro e
Duarte Nunes de Leão.

Estas Ordenações têm uma norma que manda revogar/cessar a vigência de todas as leis extravagantes, com
poucas exceções:
o Ordenações da Fazenda
o Artigos das Cinzas
o Leis que se encontrassem transcritas num determinado livro da Casa da Suplicação
É um facto que há um grande desfavor relativamente a este texto, devido a ter origem em reis estrangeiros,
por isso, todos os erros e gralhas encontrados ficaram designados de filipismos.

Sistematização

A sistematização desta obra é exatamente a mesma que encontramos nos textos compilatórios anteriores.
Assim, encontramos:

• Livro I Trata dos cargos públicos;


• Livro II Trata da matéria do Direto Público;
• Livro III Trata do Processo Civil;
• Livro IV Trata do Direito Civil;
• Livro V Trata do Direito Penal;

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 58 a 63

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A diferença que surge relativamente às Ordenações anteriores, tem que ver com a inclusão sistemática, que
é uma diferença essencial do ponto de vista político.

A epígrafe da matéria relativa ao direito processual, onde se incluem as fontes subsidiárias, já tinha sido
alterada na edição de 1521, passando a ser “Como se julgarão os casos que não forem determinados pelas
Ordenações”.
Esta matéria estava integrada no Livro II, sobretudo, na parte dedicada aos privilégios da Igreja e às relações
entre o Estado e a Igreja.

Nas Ordenações Filipinas, esta matéria passa a estar trabalhada no Livro III, dedicado ao Processo Civil.

Podemos fazer um juízo crítico relativamente à inclusão, como fez o Professor Braga da Cruz.
Será que o Livro III seria a sede mais adequada para tratar aquela matéria?

Esta inclusão sistemática tem um significado particular. A matéria relativa ao direito processual passou para
o livro III porque a aplicação do direito deixou de ser vista como uma questão política, de conflito de poderes
entre o Estado e a Igreja, e passou a ser vista como uma questão técnica, uma mera questão de processo.
Encontrar o direito aplicável era já no séc. XVII um problema de direito processual

Assistimos, portanto, a uma tendência de fortalecimento e centralização do poder do rei.

Nem todas as fontes de direito que estudámos no período anterior estão integradas neste esforço compilatório,
designadamente, os forais.

As fontes principais e as fontes subsidiárias mantiveram-se, mas foram introduzidos alguns conceitos mais
específicos.

Fontes Principais/Primárias
• A lei do Rei
• O estilo da corte
Passou a ter correspondência com o costume judiciário, ou seja, uma prática repetida nos tribunais superiores
que se transformava numa norma a ser seguida pelos tribunais inferiores. Passou mesmo a consignar-se que o
estilo da corte tinha de ser plural (usado por mais de um tribunal), antigo (com pelo menos 10 anos) e
conforme à razão.
• O costume antigo
Para ser aceite como fonte principal, passou a ter de ser plural, antigo (com pelos menos 100 anos), conforme
à razão e conforme à lei.

Se estas não oferecerem solução para um determinado caso, recorremos às seguintes:

Fontes Subsidiárias

• O Direito Romano (para questões temporais)


• O Direito Canónico (para questões espirituais e temporais de pecado)
• A glosa de Acúrsio
Exceto se for contrariada pela opinião comum dos doutores, tanto anteriores como posteriores.
• A opinião de Bártolo
Exceto se for contrariada pela opinião comum dos doutores posteriores. Esta ficou mais reforçada, em
consequência da valorização das opiniões deste jurista na prática judiciária, ocorrida durante o séc. XVII.
É nesta época que alguns autores falam de uma fase bartolista do direito português
• A resolução régia

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ORDENAÇÕES MANUELINAS1

Elaboração

Relativamente pouco tempo durou a vigência das Ordenações Afonsinas, sobretudo considerando as
dificuldades que sempre rodeiam a preparação de uma obra deste género.
Concluídas e aprovadas pelos meados do séc. XV, logo em 1505 se tratava da sua reforma.

Com efeito, nesse ano, D. Manuel encarregou três destacados juristas da época, Rui Boto, Rui Grã e
João Cotrim, de procederam à atualização das Ordenações do Reino, alterando, suprimindo e
acrescentando o que entendessem necessário.

É um esforço compilatório de atualização e de aperfeiçoamento das primeiras Ordenações. Uma das


funções essências do Rei é a tarefa de realizar a justiça, ele assume-se como alguém que tem uma
particular responsabilidade de realizar a justiça, oferecendo-a aos súbditos. Isto aponta para o Rei não
apenas como o supremo juiz, mas também como o supremo legislador, num tempo histórico em que
não há separação de poderes.

Como a lei do Rei se destina a produzir efeitos num tempo alargado, então, o processo de elaboração
das leis deveria estar rodeado de particulares cautelas, o que aponta para a exigência de requisitos.
Além disso, não é possível impor o cumprimento da lei aos súbditos, se não for possível levá-la ao seu
conhecimento.

A lei deve ser clara, a sua disciplina deve ser retilínea, há a obrigação do Rei proceder à interpretação
autenticamente se o texto da lei for obscuro e o conhecimento pelos destinatários é indispensável para
impor o cumprimento normativo legal.
O conhecimento da lei passa também por um esforço de compilar o Direito vigente.

Tem-se conjeturado sobre os motivos que levariam o monarca a determinar tal reforma.

Não seria indiferente a D. Manuel, que assistiu a pontos altos da festa dos descobrimentos, ligar o seu
nome a uma reforma legislativa de vulto.
A suposição alicerça- se em vários testemunhos, inclusive na importância atribuída pelo rei ao direito
e à realização da justiça (no âmbito do direito local, D. Manuel procedeu à reforma dos forais).

Encontra-se uma outra condicionante na introdução da imprensa, pelos finais do séc. XV. Uma vez
que impunha levar à tipografia a coletânea jurídica básica do país, para facilidade da sua difusão,
convinha que a mesma constituísse objeto de um trabalho prévio de revisão e atualização.

A primeira impressão das Ordenações Manuelinas foi realizada por um grande editor da época,
Valentim Fernandes. Este editou entre 1512 e 1513 todos os 5 livros que integram as Ordenações.
Sabemos, inclusivamente, que o primeiro livro a ser impresso não foi o Livro I, mas sim o Livro V.
Porém, à data do manual dos Professores Albuquerque, só se conheciam os dois primeiros livros e, por
isso, naquela altura surgiu a dúvida se efetivamente teria existido uma impressão dos restantes livros.
Essa dúvida está hoje ultrapassada, como já vimos.

Em 1514, encontra-se uma nova edição dos 5 livros das Ordenações, devida a outro editor, João
Pedro Bonini.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 52 a 58

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No entanto, entre 1514 e 1521, o Rei não parou de legislar, aliás, sabemos que, entretanto, apareceram
algumas leis de particular relevância. É o caso, por exemplo, do Regimento dos Contadores das
Monarcas, que data de 1514, ou o Regimento e Ordenações da Fazenda, que data de 1516.
D. Manuel entendeu que faria todo o sentido estas leis serem incluídas nas Ordenações e, por isso,
realizou-se uma nova edição, definitiva, em 1521. Nesta última, o monarca mandou, sob severas
penas, que todas as edições anteriores fossem destruídas.

Os compiladores desta edição foram juristas de primeira nomeada, como Rui Boto, Rui da Grã,
Cristóvão Esteves e João Cotrim.

Apesar do Rei pretender que esta edição seja definitiva, a verdade é que ela não será a última.
Já após a sua morte, foi encontrada uma outra edição das Ordenações Manuelinas, datada de 1539,
que assinala algumas diferenças significativas.

Sistematização

Manteve-se a estrutura básica de cinco livros, integrados por títulos e parágrafos.


Conservou-se, paralelamente, a distribuição das matérias, embora as Ordenações Manuelinas
oferecessem consideráveis diferenças de conteúdo, quando comparadas com as Ordenações Afonsinas:
• Supressão dos preceitos aplicáveis aos Judeus e aos Mouros, que, entretanto tinham sido
expulsos do país
• Inclusão da disciplina da interpretação vinculativa da lei, através dos Assentos da Casa da
Suplicação
• Alterações em matéria de direito subsidiário.

Apurou-se que não houve uma transformação radical ou profunda do direito português.

Estão sistematizadas em 5 livros:


Livro I: trata dos cargos públicos;
Livro II: trata da matéria do Direto Público;
Livro III: trata do Processo Civil;
Livro IV: trata do Direito Civil substantivo;
Livro V: trata do Direito Penal;

Há uma diferença, na edição de 1513 e 1514, esta matéria das fontes está tratada no Livro II, Título
III, enquanto que na edição de 1521 surge no Livro II, mas no Título V. Porém, a epígrafe é exatamente
a mesma: “Quando a lei contradiz a decretal, qual delas se deve guardar?”

Técnica Legislativa

Relativamente ao mérito técnico deste trabalho, importa dizer que as leis foram rescritas como se se
tratasse de leis novas. É verdade que muitos desses preceitos legais são, no fundo, um reescrever de
preceitos anteriores, mas do ponto de vista técnico avança-se e aprimora-se o texto afonsino anterior.
Abandona-se o estilo compilatório e todo o texto manuelino, nos vários livros, é escrito no estilo direto
e decretório.

Por outro lado, como documento histórico, o texto manuelino perde algum favor face ao texto afonsino
porque agora não é possível perceber de forma imediata se uma determinada lei é nova, criada naquele
tempo histórico, ou se se trata de um reescrever de uma lei antiga.

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Fontes Principais/Primárias
• A lei do Rei
• O estilo da corte
• O costume antigo

Se estas não oferecerem solução para um determinado caso, recorremos às seguintes:

Fontes Subsidiárias
• O Direito Romano (para questões temporais)
• O Direito Canónico (para questões espirituais e temporais de pecado)
• A glosa de Acúrsio – EXCETO se for contrariada pela opinião comum dos doutores tanto
anteriores como posteriores
• A opinião de Bártolo – EXCETO se for contrariada pela opinião comum dos doutores
posteriores
• A resolução régia

Introduziram também, como fonte de direito subsidiária, a opinião comum dos doutores como critério
filtro de utilização e de tutela da glosa de Acúrsio e da Opinião de Bártolo.

Com efeito, a glosa de Acursio só seria utilizada como fonte subsidiária se não fosse contrariada pela
opinião comum dos doutores.

No que respeita à opinião de Bártolo, esta só poderia ser utilizada como fonte subsidiária se não
pudesse ser contrariada pela opinião comum dos doutores proferida em momento posterior à opinião
de Bártolo.

Esta consagração da opinião comum dos doutores foi entendida por alguns autores como uma cedência
ás ideias do humanismo, que criticava as escolas medievais e particularmente as suas maiores figuras.

Outros autores explicam duma outra forma esta opção das Ordenações Manuelinas, defendendo que
Bártolo não foi posto em causa porque a opinião comum dos doutores foi produto da sua escola e,
além disso era preciso deixar em aberto a possibilidade dos juristas posteriores terem opiniões mais
válidas e actualizadas do que ele.
Estes autores fazem aliás notar que a prevalência da opinião comum dos doutores só funciona em
relação a juristas futuros, nunca se contestando a autoridade de Bártolo em relação aos juristas
anteriores ou do seu tempo.

Edição

Enquanto estiveram em vigor, as Ordenações Manuelinas foram objeto de várias edições.


A primeira, acabada de imprimir a 11 de março de 1521, saiu da tipografia de Jacob Cromberger.
Após a sua substituição pelas ordenações Filipinas, em 1603, as Ordenações Manuelinas, ainda
conheceram a edição universitária de 1797, destinada a facilitar a investigação histórica.
Nela se incluiu, a seguir ao prefácio, uma tabela de correspondência, em quatro colunas, entre os
preceitos desses Ordenações, das Ordenações Manuelinas de 1514, das Ordenações Manuelinas e de
leis Extravagantes, com indicação do lugar de consulta.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


LEIS EXTRAVAGANTES1

O aparecimento de compilações oficiais de fontes de direito, como as ordenações, não impedia que se
continuasse a legislar. Surgem assim diversas leis que não ficaram incluídas nos grandes corpos legais, dando-
se-lhes o nome de extravagantes (por estarem de fora).

Coleção de Duarte Nunes de Leão

Uma dinâmica legislativa acelerada, caraterística da época, teve como efeito que as Ordenações Manuelinas
se vissem rodeadas por inúmeros diplomas avulsos.

Estes não só revogavam, alteravam ou esclareciam muitos dos seus preceitos, mas também dispunham sobre
matérias inovadoras.

Acresceu a multiplicidade de interpretações vinculativas dos assentos da Casa da Suplicação.

Tornou-se imperiosa a elaboração de uma coletânea que constituísse um complemento sistematizado das
Ordenações, permitindo a certeza e a segurança do Direito.

Coube iniciativa ao Cardeal D. Henrique, regente na menoridade de D. Sebastião, que encarregou o licenciado
Duarte Nunes de Lião de organizar um repositório do direito extravagante, ou seja, que vigorava fora das
Ordenações Manuelinas.

Esse jurisconsulto (à data procurador da Casa da Suplicação), dispunha de experiência que assegurava o êxito
do empreendimento legislativo pretendido. Na verdade, tinha elaborado uma coletânea particular de preceitos
extravagantes, segundo determinação de Lourenço da Silva.

Ora, na compilação que obteve força vinculativa, em vez de uma transcrição das leis e dos assentos anteriores,
procedeu-se, com o objetivo de torná-la menos volumosa e de consulta mais cómoda, ao resumo ou excerto
da essência dos diversos preceitos.

A essa síntese reconheceu o Alvará de 14 de fevereiro de 1569 “fé e crédito”, atribuindo-lhe “a mesma
autoridade” das disposições originais.
Antes, porém, cometeu-se a Lourenço da Silva e a outros letrados do Conselho e Desembargo do Rei uma
revisão desse “relatório de substância” das normas extravagantes.

Sistematização

A coletânea compunha-se de seis partes, que disciplinavam sucessivamente:


• Ofícios e os oficiais régios
• Jurisdição e os privilégios
• Causas, incluindo-se trechos de uma lei importante de D. João III sobre os trâmites dos processos nos
tribunais
• Delitos, a fazenda real, matérias diversas.

Cada uma das partes compreendia vários títulos, cujos preceitos se designavam leis, ainda que extraídos de
natureza diversa. As leis mais extensas encontravam- se subdivididas em parágrafos.

Esta compilação data de 1569 e é diferente de uma outra compilação que não é oficial, é manuscrita, a que
José Anastácio de Figueiredo chamou de Primeira Compilação, sendo que esta é a Segunda Compilação.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 64 a 76

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


José Anastácio de Figueiredo, chama a atenção para o facto desta edição manuscrita ser, do ponto de vista da
sua perfeição técnica, mais significativa que a de 1569. O autor afirma isto porque estas leis não estão
resumidas, estão transcritas integralmente.

Esta versão está dividida apenas em 4 partes, que tratam sucessivamente:


• Ofícios, Jurisdições e Privilégios
• Causas Judiciais
• Delitos e Penas
• Causas Extraordinárias

Outras Coleções

Foi produzido no reinado de Filipe I de Portugal, sendo concluído em 1595, mas só entrou em vigor em 1603,
no tempo de Filipe II de Portugal.

Porém, importa salientar que este esforço não esgotou a existência de leis extravagantes neste período.
Com efeito, ainda no século XVI, encontram-se outras compilações de leis, muitas delas sem valor oficial,
mas que têm como propósito tornar mais fácil o conhecimento da lei que vigorava:
o O Sistema ou Coleção dos Regimentos Régios
o A Coleção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de Portugal, Parte II
o A Coleção da Legislação Portuguesa
o A Coleção Cronológica de Leis Extravagantes
o Coleção de greves pontifícios e leis regias
o Coleção de Leis, Alvarás e Decretos Reinado D. José I
o Coleção de Leis, Alvarás e Decretos Reinado D. Maria I
o Coleção de Leis, Alvarás e Decretos e Cartas Régias

Contudo, há alguns diplomas que atingem particular destaque, que foram publicados depois das Ordenações
Manuelinas, e que mereciam ser extravagantes. Alguns exemplos são:
o Regimento da Relação do Porto
o Lei de Reformação da Justiça

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


MOVIMENTO GERAL DA CODIFICAÇÃO1

Durante todo o século XIX, mas já com precedentes desde os meados do século XVII, a Europa assiste
a um movimento codificador generalizado, traduzido na elaboração de amplos corpos legislativos
unitários, obedecendo a uma orgânica mais ou menos científica e que condensavam, autonomamente,
as normas relativas aos ramos básicos de direito, já então individualizados.

As tentativas de codificação e racionalização da ordem jurídica só irão tornar-se realidade


já em meados do séc. XIX, quando a amenização da vida política e o amadurecimento da
ciência do direito permitem a elaboração e discussão dos diversos projectos de código.

O processo mostra-se complexo nas suas várias determinantes (filosóficas, ideológicas, políticas,
económicas e sociais)
Em termos filosóficos, a codificação partiu da ideia de que se devia consagrar o racionalismo, agora
misturado com os novos ideais da plenitude do ordenamento jurídico e da segurança ou certeza na
aplicação do direito.

Embora o movimento revele denominadores comuns, importa salientar, no campo civilístico, duas
orientações, formal e substancialmente diferenciadas, cujos paradigmas residem, justamente, nos
Códigos Civis Francês (1804) e Alemão (1900).

Os Códigos modernos, são fundamentalmente inovadores, propóem-se realizar uma verdadeira


transformação jurídica, com o escopo da modernização, progresso e felicidade dos povos; dito de outro
modo, em vez de pura síntese do direito do passado, manifesta-se uma profunda intenção prospectiva
(ao contrário da velha tradição do Corpus Iuris Civilis e das Ordenações, que, basicamente
representavam períodos de síntese ou de estagnação da criatividade jurídica, na qual a principal
intenção consistia na mera organização de repositórios actualizados de direito vigente).

Na raiz do movimento codificador, encontram- se vectores jusracionalistas e iluministas.

Havia que estabelecer a nova ordem decorrente do direito natural racionalista, isto é, daquele conjunto
de normas que traduziam valores imutáveis que se tornava possível atingir pela razão.

Importa reter uma diferença importante: em determinados países as codificações surgiram com o
patrocínio do Despotismo Esclarecido, ao passo que noutras foram consequência da difusão das ideias
oriundas da Revolução Francesa, onde o princípio da separação de poderes detinha um enorme relevo.

Este postulado conduzia a que todo o direito se apresentasse como uma exclusiva criação do poder
legislativo, daqui se traça o caminho do positivismo legalista:

• Direito é uma criação do Estado, enquanto poder legislativo, e esse direito positivo transforma-
se num dado indiscutível
• Direito identifica-se com a lei e qualquer problema seria resolvido através do formalismo de
uma dedução lógica do sistema para o caso concreto
• Negava-se assim, ao julgador, qualquer possibilidade mínima associada a uma função criadora,
transformando-se num autómato do silogismo judicial
• Valores da certeza e segurança jurídicas, tidos na altura como valores fundamentais

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 223 a 227

| SOFIA CUNHA
As raízes deste movimento científico e legislativo em Portugal, estão na:

o Recepção das concepções acerca da ordem jurídica

Se estava assim definida em sede geral a aplicação do Direito Romano como fonte subsidiária, em
matérias políticas, económicas mercantis e marítimas, poder-se-ia recorrer imediatamente às leis em
vigor nas nações estrangeiras consideradas iluminadas. è a porta aberta para a recepção dos Códigos
modernos, nomeadamente:
1)Prússia
2)França
3)Áutria
4)Sardenha
Ferreira Borges, o autor do primeiro código moderno português, exprime bem essa tendência quando
no prefácio do seu Dicionário Jurídico-Comercial nos diz que: “Nas matérias de puro direito civil, e
em falta de lei pátria expressa, preferimos as determinação do Código Civil de França”.

o Produção doutrinal dos autores da Escola do Direito Natural Moderno e do Usus Modernus
Pandectarum

A Lei da Boa Razão e a sua interpretação autêntica feita pelos Estatutos da Universidade em 1772,
vem abrir o caminho para a citação frequente dos autores do Usus Modernus Pandectarum, e em geral
das escolas do direito natural quer em obras doutrinais, quer em foro, pois estes serão considerados
como a melhor fonte de esclarecimento para se determinar qual o direito romano conforme à Boa
Razão, ou seja, aos princípios de direito natural ou das gentes aceite como vigente pelas nações
modernas e iluminadas da Europa. Os autores representativos dessas tendências, como Strik, Boehmer,
Muller, passam a ser lugar comum de citação nas obras dos juristas portugueses.

o Vontade política de se proceder a reformas profundas no corpo de direito pátrio, no âmbito do


movimento reformista e revolucionário que em Portugal vai abalar as estruturas do antigo
regime a partir do período revolucionário de 1820.

Para além das raízes doutrinárias e legislativas começa a ser frequente a intenção de reformar o direito
português, tanto na sua forma como no seu conteúdo.
Um alvará de 4 de Setembro de 1810 vem dizer que toda a legislação deve ser uniforme em sistema,
coerente em princípio e ajustada ao direito natural, fonte da justiça universal, para que as suas decisões,
assentadas nos ditames da razão e do justo, sejam respeitadas e observadas.

É pois em nome da certeza e segurança das relações jurídicas, dum conhecimento exacto e unívoco do
direito e como manifesta expressão de 1 visão racionalista que se vai preconizar a criação dos códigos
nos quais, por ramos do direito, a matéria jurídica será exposta de forma sistemática e lógica e
subordinada ao desenvolvimento de princípios naturais e imutáveis de equidade, aceites como pontos
de partida

Em suma, as correntes históricas do pensamento jurídico, a revolução francesa e os seus efeitos,


bem como a opinião de alguns autores, defensores da necessidade de codificação, foram as causas
de influência do movimento codificador português.

| SOFIA CUNHA
Ideias essenciais do Liberalismo

O século XIX é marcado pelo projeto político do liberalismo que se funda no pensamento de John
Locke, que apesar de ter vivido apenas 4 anos neste século expressou todas as ideias que caracterizam
o pensamento político-jurídico do mesmo. É com ele que simbolicamente consideramos que se inicia
doutrinariamente o liberalismo político. No que respeita a Portugal o Liberalismo instaura-se com a
revolução liberal de 1820.

o Direitos Naturais do Homem

O Homem, devido à influência do racionalismo século passado, é o ponto de partida e o ponto de


chegada pois é ele e os seus direitos que fundamentam o poder.
Recuperando a ideia antiga, com base na influência do método científico das ciências exatas, ficciona-
se um Estado de natureza onde os Homens são detentores de certos direitos, nomeadamente:
• Liberdade
• Segurança
• Propriedade

Direito transformados pela revolução francesa. Para Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Sendo que no seu estado natural o Homem tem determinados direitos, quando surge o Estado este tem
que garantir e preservar os direitos que o Homem tem quando não integrado numa sociedade. Assim
o Estado é contruído para salvaguardar estes direitos naturais, liberdade, segurança e propriedade.

o Constituição Escrita

Entendeu-se que a forma mais adequada de proteger estes direitos seriam impondo limites através da
lei. Assim liberdade não significa fazer tudo o que queremos, mas sim o que a lei permite e não proíbe.
Se a lei é o garante e o limite da salvaguardar dos direitos, porque não passá-los a escrito e compilar
numa constituição.

o Soberania popular

O fundamento está no direito dos Homens e não no direito natural ou divino, assim a soberania deixa
de estar no reino e passar a estar no povo. Surge a necessidade de um poder eleitoral, ainda que com
sufrágio censitário ou capacitário, passa-se a soberania para o povo.

o Governo Representativo

A soberania do povo é exercida pelos seus representantes. Os representantes são designados pelo povo
e exercem o seu poder em favor destes.

o Separação de poderes

Não fica por uma divisão de funções entre executivo, legislativo e judicial engloba igualmente um
limite ao poder, procurando que os governadores não excedam a concreta medida dos seus poderes.

| SOFIA CUNHA
DIREITO ADMINISTRATIVO1

Outra das preocupações do séc. XIX foi a do direito administrativo, traduzida em sucessivos códigos,
postulando quase pendularmente diferente atitude do poder central face ao local, oscilando entre o
modelo francês, centralizador e a tradicional autonomia municipal.

1º Modelo municipalista, surgiu em 1836 e foi referendado por Manuel da Silva Pasos, conhecido por Passos Manuel.
2º Modelo centralista, surgiu em 1842 e foi referendado por Costa Cabral.
3º Regressou a modelo municipalista, surgiu em 1878 e foi referendando por Rodrigues Sampaio.
4º Manteve o modelo municipalista, surgiu em 1886 e foi referendado por Luciano de Castro
5º Surgiu em 1896 e foi referendado por João Franco
6º Surgiu em 1936 e baseou-se num projecto de Marcello Caetano, possuindo já várias alterações avulsas.

Constituição de 1822 e a carta Constitucional 1826


A constituição de 1822 tal como a carta constitucional de 1826 dedicavam algumas regras aplicáveis
à organização administrativa do país.

Propunha a constituição de 22 o enquadramento do território em circunscrições maiores denominadas


distritos, à frente das quais se encontraria um administrador-geral, de nomeação régia, auxiliado por
uma junta administrativa integrada por tantos membros quantos os concelhos existentes no distrito; a
competência respectiva não era todavia discriminada, atribuindo-se-lhe genericamente intervenção
em todos os assuntos da administração pública.
A nível concelhio, mantinham-se as Câmaras, integradas por vereadores eleitos directamente sendo o
mais votado designado presidente, dotadas de ampla autonomia.

A Carta de 1826 não introduziu grandes alterações limitando-se a denominar as circunscrições


maiores, províncias, designação nos últimos séculos já tradicional no país.
Enquadramento do pais fosse feito em distritos, à frente dos quais existiria um administrador geral
de denominação régia que era auxiliado por um conjunto de ministros que seriam tantos quanto os
conselhos que houvesse no distrito. A carta constitucional de 1826 não altera esta organização,
apenas se limita a alterar a denominação de distritos para províncias.

Decreto nº23
O tratamento minucioso da organização administrativa do reino, apenas teria lugar no período que
antecede a guerra civil. O momento de partida, foi a actividade legisladora de Mouzinho da Silveira
assessorada por Almeida Garrett.

Denotando clara aceitação do modelo francês centralizador, determinou o reformador no seu decreto
a divisão do território em províncias, comarcas e concelhos, junto dos quais funcionariam
representantes do governo central respectivamente designados perfeitos, sub-perfeitos e provedores.

Foram então definitivamente revogados os forais, completando-se drasticamente a tentativa de


redução ensaiada desde 1822 pela ordem liberal, mantida todavia, apenas na supressão dos direitos
banais. Chegava-se assim ao termo do longo percurso autonómico dos concelhos do qual, os forais
constituíam ainda o símbolo mais nítido. Substituía-se por uma dependência feroz, entendida como
favor do estado e não como restauro dos direitos próprios da comunidade, que em antiguidade
superavam largamente o próprio Estado.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 246 a 252

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Código Administrativo 1836
Reagindo ao centralismo de Mouzinho da Silveira, vai o Setembrismo elaborar em 1836 o primeiro
Código Administrativo português na sequência de uma substancial redução do número de concelhos.

A orientação era então diversa face ao projecto anterior, embora não esquecesse o papel preponderante
do governo central.

Propunha-se a divisão do território em distritos, concelhos e freguesias, tendo à frente


respectivamente um administrador-geral, um administrados e um regedor, escolhidos pelo
governo entre listas votadas.

Temperava-se o intervencionismo com a existência também a nível local de órgãos eleitos, a junta
geral administrativa do distrito, a câmara municipal e a junta de paróquia.

Na vigência deste código surgiria a constituição de 1838, mantendo os órgãos existentes e remetendo
para a lei ordinária no que tocava à estrutura distrital e concelhia.

Reagindo a este movimento centralizador encontramos o primeiro código de Direito


Administrativo, elaborado no contexto do Setembrismo em 1836.
Face ao centralismo anterior, temos uma maior descentralização, dividindo o pais por distritos,
conselhos e freguesias, sendo cada um dirigido por um administrador escolhido pelo poder central,
contudo de entre listas votadas pela população. Existia a nível local órgão eleitos como câmara
municipal, junta geral administrativa do distrito e a junta da paroquia. Temperava-se a influência
do poder local com órgãos eleitos localmente.

Código Administrativo 1842


A colectividade local e a curta duração dos mandatos não favoreceram a estabilidade administrativa.
Por estas e outras razões, a reacção manifestou-se com o governo de Costa Cabral através da redacção
do no Código Administrativo em 1842.

A atitude foi então centralizadora, passando a divisão administrativa a assentar em distritos e


concelhos, retirando-se à freguesia a dignidade que o código anterior lhe conferia, em compensação
da drástica redução no número de concelhos.

Centralismo detectava-se ainda na competência interventiva de agentes do governo, em especial do


governador civil, representante da autoridade central do distrito.

A aplicação deste código estendeu-se também às colónias, e manter-se-ia até à República, embora
alterado em 1869.

O Código de 1842 manteve-se em vigor durante larga parte da terceira vigência da Carta
Constitucional.

Reagindo ao código de 1836, surge sob a direção do governo de Costa Cabral o segundo Código
Administrativo datado de 1842.
Este volta a ter uma tendência centralizadora. Passa a aceitar a divisão do país em distritos e
conselhos, a freguesia deixa de ter a dignidade que tinha anteriormente e o centralismo manifestava-
se no governador civil sendo este o representante do poder central no próprio distrito.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Código Administrativo 1878
A sua substituição deveu-se a Rodrigues Sampaio em 1878, que no novo Código Administrativo
retomou a divisão local tripartida de Manuel da Silva Passos.

Favorecia a organização local conferindo-lhe maior autonomia, suprimindo-se genericamente a


competência interventiva central;

Código Administrativo 1886 e 1896


Até ao fim da monarquia tiveram ainda vigência 2 códigos: o de 1886, de Luciano de Castro, próximo
do outro em orientação e conteúdo e o de 1896 de João Franco.

Este último retomava o movimento pendular apenas não seguido pelo de 1886, adoptando postura
centralizadora ao mesmo tempo que retirava ao distrito a qualidade de ente administrativo local.

Já no séc. XX, , mas ainda antes da República, nova tentativa de reforma seria ensaiada através de um
projecto de Luciano de Castro.

Tal não viria a verificar-se contudo, devido à suspensão do diploma logo após a sua publicação.
A transição para a República far-se-ia através da reposição do Código de 1878, em conjunção com o
de João Franco, subsidiariamente utilizado.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


DIREITO CIVIL1

Várias as tentativas das cortes para promoverem a codificação do Direito civil, quer
através de comissões, quer através da abertura de concursos públicos.

No sec. XIX, na área do Direito Civil, na sequência das correntes liberais, surgiu um movimento
codificador que desencadeou várias tentativas de criar um novo Código Civil.
Em 1821 foi constituída uma comissão, composta, entre outros, por Ferreira Gordo, Correia de
Lacerda., com vista à elaboração do código civil, não tendo, porém, tal trabalho sido concluído.
O primeiro Código Civil foi elaborado em 1868 por António Luís Seabra, desembargador da
Relação do Porto, e foi publicado pela Carta de Lei de 1 de Julho de 1867, data que marca o fim
das Ordenações Filipinas.
Este Código Civil só foi revogado em 1966 pelo actual Código Civil.

11 de Outubro de 1821
Constituída uma comissão de justiça civil.

26 de Novembro 1821
Oferecido ás cortes um projecto da autoria de Jeremias Bentham.

Surge também, nessa altura um trabalho de titulo “ Que é o Código civil” e da autoria de
Vicente José Cardoso da Costa em que o autor criticando os códigos estrangeiros defende
para Portugal um código novo chegando a publicar em anexo a sistematização e
organização das matérias a incluir, de maneira a incluir várias outras matérias dificilmente
enquadráveis numa sistematização de um só ramo do direito.

29 de Março de 1822
Deputado Bastos apresentou ás cortes um projecto de prémio para quem dentro de um
ano apresentasse o melhor projecto de Código civil.

O código deveria ser dividido em duas partes contendo uma o código civil e outra o
código de Processo civil. Daqui se infere que ainda não estavam completamente
autonomizadas as matérias de direito substantivo e adjectivo.

A este apelo respondeu apenas o desembargador de relação do Porto Alberto Carlos de


Menezes que apresentou ao congresso um projecto do código civil.

A Vilafrancada com a consequente dissolução das cortes deitou por terra o concurso.

Para além destas circunstâncias, ainda não estava suficientemente sedimentada nos
jurístas portugueses uma tradição jurídica moderna que permitisse sem rupturas e com
alguma originalidade o aparecimento de um código civil que modificasse todo o corpo
do dto civil.
Os novos métodos de exposição sintética e sistemática das matérias não estavam ainda
suficientemente desenvolvidas e o ensino do direito não permitia ainda os
desenvolvimentos desejados.

Coelho da Rocha descreveu as insuficiências das reformas pombalinas.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 280 a 304

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Estas pretenderam substituir o método analítico ligado ainda ás tradições da escolástica
no ensino e na ciência do direito pelo método sintético-compendiário, no qual se
preconiza a exposição sistemática e global das matérias e a elaboração de compêndios
que sirvam de base ao estudo das mesmas.

E o método de ensino está obviamente ligado à prática jurídica.


Segundo Coelho da Rocha “este mau método, unido à falta dos estudos subsidiários,
levava-os depois no uso do foro a fundamentar as suas decisões antes nas opiniões, arestos
e casos julgados do que na interpretação e sólida inteligência das leis.
Tal é o defeito comum dos comentadores das Ordenações e praxistas”.
A própria Carta Constitucional no seu título VIII que trata das garantias dos direitos civis
e políticos dos cidadãos, estabelece como suporte dessas garantias a organização, quanto
antes de um Código Civil e criminal fundados nas sólidas bases da justiça e Equidade.

Na legislatura que ainda teve o seu início em 1826 procurou dar-se execução a este artigo
da Carta e quer na Câmara dos Pares quer na Câmara dos Deputados tentou-se promover
a elaboração de um código civil.

Para esse fim foi nomeada uma comissão formada entre outros por José Homem Carreira
Telles. Essa comissão publicou em 30 de Janeiro de 1827 o seu parecer seguido de um
projecto de lei.
A proposta era idêntica à já anteriormente feita. Ao autor do projecto era paga uma
gratificação e devia ser apresentado a qualquer das câmaras legislativas. Neste projecto
mais uma vez se preconizava que o código para além da matéria substantiva, contivesse
também uma segunda parte referente ao processo civil, deveria ser conforme à carta
constitucional e na medida do possível acomodado aos costumes do reino.

Este projecto foi moroso em termos de discussão quer na Câmara dos Pares quer na dos
Deputados. O Conde de Linhares, por exemplo, insistia na necessidade de constar na lei
do concurso a obrigação de cada artigo do código proposto ser fundamentado.

7 de Março de 1828
Discussões continuavam e a legislatura terminou com a reacção dos absolutistas, sem se
ter chegado a qualquer conclusão.
O assunto regressa em termos idênticos através de projecto de lei preparado por uma
comissão parlamentar de legislação e que se propõe mais uma vez arbitrar prémios
pecuniários a quem apresentar novo projecto até 10 de Janeiro de 1837.

25 de Abril de 1835
Rainha D. Maria sanciona esse projecto e transforma-o em lei. Em resposta a essa
iniciativa Correa Telles apresentou ás Cortes um projecto de Código Civil. Estas
resolveram que este projecto fosse remetido à comissão de legislação.

Decreto de 10 de Dezembro de 1845


Mais uma vez constituída uma comissão para redacção dos projectos dos códigos civil e
penal, comissão essa que acabou por redigir o último tendo preterido o primeiro.

Por essa razão é publicado no Diário do Governo de 9 de Agosto de 1850 o decreto que
finalmente vai dar lugar à elaboração do Código Civil de 1867.

Assim, os homens de estado, como os jurisconsultos, concordam todos hoje em que a


redacção dos códigos para ser metódica, precisa e clara, deve ser feita por uma só pessoa,

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


e revista depois por comissões compostas de pessoas idóneas para tão importante
trabalho.

O juíz da Relação do Porto, António Luiz de Seabra, a quem por este Projecto se incumbe
a leitura do novo Código Civil, é geralmente considerado como um dos mais aptos para
se desempenhar satisfatoriamente, e com prontidão, de tão pesado encargo.

A Comissão proposta para rever os trabalhos do redactor, sendo, como é, composta de


Lentes da Faculdade jurídica da Universidade de Coimbra.

O Decreto provém do Ministro dos negócios Eclesiásticos e da Justiça.

Posteriormente não foram fáceis as relações entre Seabra e os membros da comissão,


tendo o autor do projecto deixado de apresentar parcialmente o resultado do seu trabalho
à comissão revisora.

31 de Dezembro de 1856
Termina o projecto.

Entretanto é aumentada a comissão revisora com, entre outros, Alexandre Herculano de


Carvalho.
Não foram pacíficas as discussões em torno do projecto, quer dentro quer fora da
comissão, que aliás foi sofrendo algumas alterações na sua constituição.

25 de maio de 1864
A comissão considerou concluída a revisão geral.
O projecto foi de seguida apresentado às cortes e nelas discutido.

22 de Junho de 1867
Foi o código aprovado e publicado.

Dado que se previa um período de vacatio legis de 6 meses, entrou em vigor em 22 de


Março de 1868.

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DIREITO COMERCIAL1

A ideia de codificação do direito está ligada ao constitucionalismo tendo sido frequentes os debates e
as resoluções em Cortes no sentido da promoção de iniciativas tendentes ao aparecimento de projectos
de códigos, a fim de serem discutidos e aprovados pelo Parlamento.

Nestes domínios vigora como direito subsidiário e nos quadros da Lei da Boa Razão de 1769, as leis
estrangeiras , o que provocava uma grande confusão acerca da lei correcta a aplicar.

A criação do código comercial começa a ser debatida nas cortes em fevereiro de 1823, pouco depois
da revolução liberal. É discutido nestas cortes um projeto do fim de 1822.

28 de Março de 1821
Ferreira Borges terá apresentado na sessão “um projecto de direito marítimo” mas que não teve
seguimento
6 de Julho 1821
em que se deliberava acerca da constituição de comissões externas para a elaboração de códigos
decidiu-se que Ferreira Borges continuasse com a redacção do Código de Comércio.
3 de Fevereiro de 1823
A questão do Código Comercial aparece pela primeira vez debatida nas Cortes e é discutido um
projecto datado de 6 de Dezembro de 1822.

Nesse projecto, considerando-se que o comércio é a principal fonte de riqueza das Nações, e devido a
tal não pode ser regulado por uma legislação fragmentária, dispersa e insuficiente. Determinando-se
como objectivo das Nação a criação de um código que fixe os princípios de todas as transacções
mercantis, e faça desaparecer dos usos locais e estrangeiros, refundindo-se no sistema comum.

A legislação nacional era escassa na área comercial, pelo que tudo se


regia com base nas práticas das praças do comércio e à luz da lei da
boa razão era nesta área que o direito romano oferecia menos soluções.

É pois a intenção de sistematizar num só código ou corpo de normas e princípios reguladores da


actividade mercantil, a qual exige, para segurança das transações, um direito claro e certo.

Pretende-se um código que compreenda as normas relativas ao comércio em terra e ao comércio


marítimo, divisão que ainda perdura, mas que contenha também a organização e a competência dos
juízos comerciais em primeira e segunda instância e a forma do processo, isto é, prevê a existência de
um organização judiciária própria bem como um processo comercial autónomo do processo civil.

Os princípios deveriam ser “os adoptados por todas as nações comerciantes, a linguagem pura e clara,
a distribuição das matérias determinada pela sua maior ligação e os usos da praça, de que a experiência
tiver demonstrado a utilidade.

Para este efeito foi aberto um concurso público, estabelecendo-se que os projetos deveriam ser
apresentados às Cortes.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 227 a 246

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Para além da discussão, em Cortes, sobre os prémios a atribuir ao “vencedor”, foram também debatidas
outras questões, como a originalidade do código, a vantagem de ter um código comercial separado do
civil, entre outras.
Os excesso do parlamentarismo ficaram patentes nas longas e inúteis discussões travadas a propósito
de matérias ligadas a factores de ordem científica.

Voltando o tema ao parlamento através de uma comissão encarregada de examinar um projecto em


que o deputado e insigne jurista Borges Carneiro propõe o estabelecimento de prémios para quem
apresentasse os melhores projectos para os códigos civil e comercial.
Essa mesma comissão vem considerar que o código comercial em que se inscrevam as regras de direito
marítimo e mercantil é tão necessário como os outros.

É num Decreto assinado por Mouzinho da Silveira que novamente a autoridade pública se mostra
preocupada com a criação de um Código Comercial.
Para este efeito cria uma comissão composta por 5 membros a fim de redigir os códigos comercial e
criminal.

O novo ministro dos negócios eclesiásticos e da justiça, Joaquim António de Magalhães propõe ao
regente D. Pedro um Decreto que este promulga, e em que, em virtude dos membros da comissão
anteriormente nomeada terem sido encarregados de diversos trabalhos, cujo projecto seria
incompatível com a tarefa que lhes tinha sido adjudicada, propõem a reformulação total da comissão
anteriormente criada.
A esta nova comissão é também atribuída a tarefa de proceder à divisão judicial do reino. por provisão
do mesmo ministro fica definido que o primeiro trabalho da comissão fosse a divisão judicial do Reino,
devendo encarregar-se exclusivamente deste assunto.
Findo este trabalho deveria esta comissão elaborar um projecto de Decreto para regular o exercício da
liberdade do cidadão na publicação dos seus pensamentos e opiniões por meio da imprensa. Estava
portanto inviabilizado o sucesso das comissões parlamentares ou governamentais na feitura dos
códigos.

A elaboração do primeiro Código Comercial português será produto do trabalho individual de Ferreira
Borges. O seu projecto será aprovado por Decreto de 18 de Setembro de 1833.

Entra então em vigor o primeiro dos códigos modernos portugueses. Constituído por 1860 artigos, está
dividido em 3 partes, 1 relativa ao comércio marítimo, uma ao comércio terrestre e o livro terceiro
trata da organização do foro mercantil e das acções comerciais.

Surgem diversas comissões nas cortes com a intenção de criar o código comercial, contudo estas
não tiveram sucesso devido a serem ultrapassadas pelas circunstâncias e a sua elaboração cabe então
a Ferreira Borges que, em Londres durante exilio político, posteriormente apresentado ao rei que o
aprova com decreto de 1833. A promulgação por D. Pedro foi aconselhada pelo ministro da justiça,
pois era uma necessidade para a nação.

Sistemática do código
Parte I: Comércio Terrestre
Parte II: Comércio marítimo
Parte III: Organização do foro negativo e das ações do comercio

Fontes legislativas do Código de Ferreira Borges


Inspirou-se nos códigos que conhecia (no da Prússia, da Flandres, da França, no Código da Espanha,
nas leis comerciais da Inglaterra, etc...).

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


O código comercial, sendo o primeiro a ser criado, dizia que caso não existisse legislação nacional
própria em matérias de direito civil puro se devia aplicar subsidiariamente o código napoleónico, pois
Ferreira Borges (autor do código) considerava que este poderia ser o código de todas as nações da
época.

Em matéria de organização do foro, não recorreu a fontes exteriores mas apenas às instituições
portuguesas existentes à prática pessoal forense que teve como advogado.

Quanto à segunda parte do Código que trata do comércio marítimo refere Ferreira Borges ser “esta a
porção de legislação que os séculos nos transmitiram e aprovada por todas as vicissitudes do tempo.

Os usos e costumes do mar formam o manancial de todas as leis do comércio de mar, de tal sorte que,
apesar de não ter comparação alguma o comércio de hoje com o dos tempos passados, a lei do mar
ficou imutável e sobranceira a todas as transformações e omnipresente às concorrências do dia”.

Também num trabalho bastante curioso do juiz dos tribunais de comércio Gaspar Pereira da Silva é
indicado artigo por artigo a fonte que inspirou o autor do Código.

Conclui-se dessas obras terem sido o Código francês, o projecto de Código Comercial italiano e o
Código Comercial Espanhol de 1829 os seus principais inspiradores.

Quanto ao domínio científico é um produto da cultura jurídica do seu tempo que Ferreira Borges
dominava perfeitamente. E sobre comercio e direito comercial tinha os conhecimentos mais profundos.

Toda a nossa legislação antiga lhe era familiar, todas as colecções, compilações que constituíam a
antiga legislação mercantil de todos os povos cultos, as obras de todos os antigos tratadistas,
fundadores do direito comercial.

O Código Comercial de 1833 vem a vigorar até à entrada em vigor do actual Código aprovado por
carta de lei de 28 de Junho de 1888 e para entrar em vigor em todo o continente e ilhas adjacentes
no dia 1 de Janeiro de 1889 e para o ultramar.

O Código Comercial de 1888, que ainda hoje vigora apesar de já muito retalhado pela abundante
legislação extravagante que modificou e revogou partes inteiras desse código, foi da autoria de Veiga
Beirão e encontra-se dividido em 3 livros:
Parte I: Comércio em geral
Parte II: Contratos Especiais
Parte III: Comércio Marítimo

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


DIREITO PENAL1

No primeiro quartel do séc. XIX o Direito penal português assentava ainda a sua base legislativa no
livro V das Ordenações Filipinas onde estavam tratadas as matérias relativas aos delitos e às penas.
O sistema penal mantém as mesmas características que já apresentava nas Ordenações Afonsinas e
Manuelinas.

As penas eram aplicadas de forma arbitrária e desigual, conforme a condição social do réu e até
mesmo transmissíveis.
• Pena de morte é largamente utilizada podendo em alguns casos ser precedida de suplícios, bem
como as penas corporais infamantes.
• Prisão tem carácter sobretudo preventivo ainda que em alguns casos assuma natureza
repressiva podendo a sua duração ser arbitrária ou fixa.
• Punem-se factos absurdos e de escassa relevância ético-social.
• Tortura é admitida como meio de prova.

As intervenções legislativas dos nossos monarcas posteriormente às Ordenações Filipinas e em matéria


penal em nada se afastaram dos princípios e das tendências que vinham caracterizando este domínio
da ordem jurídica.
Surgem vários diplomas que mostram o carácter desproporcional das penas aplicadas em pleno século
XIX: Carta régia de 1 outubro 1824.

Legisla-se então para suprir alguma falta das Ordenações ou insuficiente rigor das mesmas.

Uma lei de D. João IV de 19 de Dezembro de 1640 proíbe coma pena de morte que alguém passe para
Castela.
Combatem-se práticas e actividades perigosas e inumanas: proíbem-se os desafios, as facas de ponta
aguda, o uso de ferros e prisão rigorosa de escravos.

Lei de 23 de Setembro de 1701


Por vezes a necessidade prática pode justificar a execução mais severa duma pena “por ser necessário
mandar para o Estado da Índia considerável número de gente, mandei ordenar aos corregedores e
Ouvidores das comarcas, que desde logo começassem a dispôr e executar as prisões de gente para a
Índia”.
“que todos os presos fossem de idade e robustez, que, me possam servir de soldados naquele Estado”.

Em algumas disposições estabelecem-se contudo princípios certos e louváveis.

Que a pena deve ser conforme aos casos e culpas, que se cometam.
Uma lei de 1606, uma carta de lei de 1639 e um Decreto de 14 de Julho de 1668 defende-se que “a
brevidade na imposição da pena e na sua execução é a que mais satisfaz a República ofendida”.
Um regimento de 5 de Setembro de 1671 defende o princípio de que “as penas devem executar-se com
igualdade nos grandes, pequenos, poderosos e humildes.

No reinado de D. José na linha do absolutismo político do Marquês de Pombal, surgiram vários


diplomas referentes a matéria criminal caracterizados pelo rigor punitivo: entre eles destacam-se as
disposições sobre os crimes de lesa-majestade em que os culpados têm sempre a pena de confiscação

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 252 a 280

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e de reversão dos bens à coroa, não prescrevem nem se extinguem pela morte dos delinquentes, que
são tão horrorosos que o seu castigo se aparta das regras ordinárias e que, quem os comete deixa áridos
e secos as suas linhas para a sucessão dos morgados, que as pessoas que os cometem ficam inábeis e
infames com seus filhos e netos, e estabelece-se a pena de infâmia contra os filhos e netos dos hereges.

Não deixou a legislação pombalina de reflectir por vezes a influência do humanitarismo jurídico que
determinava a execução das penas, o que demonstra uma certa abertura às novas doutrinas.

Alvarás 28 de julho de 1751 e 12 de junho de 1769


Manifesta-se o princípio de que as penas devem ser proporcionadas aos delitos.

Assento 8 de Agosto de 1758


Princípio de que as penas não admitem extensão por Direito

Assento de 22 de Junho de 1768


Sustenta-se que não existindo culpa não deve haver castigo

Lei de 3 de Agosto de 1759


Dispõe que, quando as penas estabelecidas não são bastantes para coibir os delitos necessita-se de nova
providência.

Já temos conhecimento das tentativas de reforma geral das Ordenações e em especial do Livro
referente ao direito penal, que teve lugar no reinado de D. Maria I e cujo principal autor e
impulsionador foi o grande jurista do iluminismo português Mello Freire.

Esta tentativa, contudo, não teve eficácia prática.

No séc. XIX o direito penal assentava ainda no Livro V das Ordenações Filipinas, que consagrava
penas cruéis e infamantes, o que levou à necessidade de existir uma reforma penal, influenciada por
teses humanitaristas de Francisco Freire de Melo (sobrinho de Melo Freire), o qual lançou uma obra
em 1822, que impulsionou o movimento reformador da codificação penal.
As Ordenações do Reino possuíam várias lacunas, pois não previam um grande números de
situações ilícitas.
Porém, na época pombalina, foi desenvolvida alguma legislação penal que já dava indícios de
consagrar princípios defendidos pelo Humanitarismo Jurídico.

O advento do liberalismo em Portugal é marcado no campo do Direito penal por um trabalho


doutrinário e polémico da autoria de Francisco Freire de Mello sobrinho de Mello Freire. O livro
tinha o nome de “Discurso sobre delitos e penas”.

Este livro surge num contexto de grandes reclamações a propósito da reforma do Direito penal que
vão surgir com grande frequência na imprensa liberal nascida após a revolução liberal.

Criticar-se o estado caótico da legislação e o obscurantismo da lei que não garante a univocidade da
sua interpretação nem certeza na sua aplicação.
A lei penal é considerada bárbara e sem critério, determinando a aplicação de leis cruéis e sem relação
com a gravidade do delito.
As Ordenações são severamente condenadas, não deixando de perspassar como pano de fundo de todo
esse discurso a filosofia utilitarista como base e critério da renovação.

O trabalho de Freire de Mello foi editado em Portugal em 1822.

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A influência da escola humanitarista de Beccaria e Filangieri é aqui patente.
Indo buscar as suas raízes filosóficas aos autores racionalistas dos séc. XVII e XVIII e ao
enciclopedismo francês setecentista o humanitarismo no direito penal é de certa maneira a forma como
o jusracionalismo se vai opôr à intolerância religiosa da ortodoxia da mesma forma que no campo da
construção e da sistemática jurídica renova os quadros dogmática anteriores.

Assente numa ética racionalista esta corrente vai pugnar pela humanização do direito ao rejeitar formas
gravosas de reacção social (penas cruéis), ou a condenação por motivos destituídos de fundamentos
ético-sociais.

O Marquês de Beccaria veio dar feliz expressão a estas ideias humanitaristas de reforma do direito
penal. A obra de Freire de Mello inclui as ideias da época relativamente ao direito penal e à
necessidade da sua reforma.
A desproporção entre delito e penas constitui a primeira preocupação de Freire de Mello, q eu
preconiza dever ser a medida da pena determinada pelo fim que esta se propõe prosseguir.
Assim, as penas cruéis são afastadas.

Quanto às penas infamatórias a sua opinião já não é tão radical, podendo estas funcionar para evitar
alguns delitos.

Mostra-se Freire de Mello muito preocupado com a necessidade de clareza e segurança da lei penal.
A discricionaridade do juiz deverá ser reduzida ao máximo sob pena de se dar azo ao arbítrio e à
injustiça. Citando Jeremias Bentham considera deverem as leis penais serem “ claras, precisas, gerais
sem deixar aos juizes livre arbítrio”.

A transmissibilidade das penas é igualmente impugnada pelo jurista português.

Considerando que a prisão deve ter apenas uma função preventiva e não de pena, mostra-se Freire de
Mello particularmente avesso à prisão perpétua.
Já é patente em algumas passagens a perspectiva correccionalista do direito penal critério de acordo
com o qual a pena apresenta um intuito de prevenção especial, devendo contribuir para a regeneração
do criminoso.

Esta crença na recuperação e correcção dos criminosos não é contudo suficiente para afastar Freire de
Mello da consideração da necessidade da pena de morte. A primeira questão que ele pôs é a de saber
qual o fundamento da mesma. A este respeito afasta o critério de Beccaria que se baseou na ideia de
contrato social para negar que alguém ao entrar no estado de sociedade tenha oferecido a esta o direito
de lhe tirarem a vida. Freire de Mello apesar do respeito pelo autor italiano não se atreve a negar ao
legislador o direito de impor a pena capital, restringindo-a a dois casos , no assassínio voluntário e na
traição à pátria.
Trazendo para Portugal a escola Humanitarista vem-nos dizer que as leis penais estão desatualizadas e necessitam
de ser atualizadas à luz de alguns princípios:
• A medida da pena deve ser determinada pelo fim que se destina a prosseguir
• Abolição das penas cruéis
• Penas infamantes devem ser abolidas (freire de melo diz que bem aplicadas podem ser compreensíveis)
• Claras e seguras
• Transmissibilidade das penas é ilegítima
• Pena de prisão deve ter efeito preventivo e não de castigo (abolição pena perpétua)
• Pena de morte, há divergência doutrinária: Freire de Melo não é lapidar apenas a restringe a dois casos:
homicídio qualificado e traição à pátria.

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Codificação

No campo político e legislativo registe-se o interesse que as Cortes constituintes vão dar à questão da
elaboração do Código Penal.

1º Surgiu em 1852, e foi da autoria de Duarte Leitão, Sequeira Pinto e Alves Sá., considerados dos melhores
juristas da época.
2º Surgiu em 1886, com base num projecto da autoria de Levy Maria Jordão, tendo vigorado até 1982.
3º urgiu em 1982 e foi da autoria de Eduardo Correia.
4º Surgiu em 1995, baseado num projecto do Prof. Figueiredo Dias e já foi revisto por diversas vezes.

1821
Nomeiam uma comissão, com sede em Coimbra, com o objectivo de elaborar um projecto de “Código
de delitos e penas e da ordem do processo criminal”.
Esta comissão era constituída por 5 jurisconsultos.

Também a Constituição de 1822 vai consignar alguns pontos com relevância para o direito penal:
• Artigo 9º preconiza a igualdade dos cidadãos perante a lei
• Artigo 10º diz que nenhuma lei , muito menos a penal será estabelecida sem absoluta
necessidade
• Artigo 11º toda a pena deve ser proporcional ao delito, abole as penas cruéis e infamantes.

Estes expedientes não foram céleres tendo em 18 de Agosto de 1832, surgido um decreto da autoria
de Mouzinho da Silveira, que declarava incompatível com o regime da Carta Constitucional e com o
espírito das luzes o código da Ordenação do livro V.
Termina nomeando uma comissão de 5 membros encarregada de redigir um projecto de código
criminal.

1833
Projecto de código penal oferecido ao governo pelo jurista José Manuel da Veiga.

Portaria 29 de Novembro de 1836


Instrui o mesmo no sentido de rever o projecto oferecido. A pedido do próprio é constituída uma
comissão a fim de o auxiliar na tarefa. As conclusões viriam a ser apresentadas em 31 de Dezembro
de 1836. Embora contra os desejos de José Manuel da Veiga e da comissão foi introduzida a pena de
morte.

A sua vigência será só enquanto as Cortes Gerais não aprovassem um projecto melhor, tinha um
carácter de transitoriedade, era necessário e urgente substituir o anterior. Esta código não chegaria a
entrar em vigor.

10 de Dezembro de 1845
Fracassadas todas estas iniciativas cria-se novamente uma comissão encarregada de redigir os
projectos de código civil e penal, dando contudo prevalência ao segundo.

8 de Agosto de 1850
Encarregado António Luís de Seabra de elaborar o projecto de Código ficando a comissão liberta dessa
tarefa tendo concluído o código penal.

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Decreto ditatorial de 10 de Dezembro de 1852
Promulgado por, sem contudo, ser revisto e aperfeiçoado.
Deste facto e das inúmeras críticas que se fizeram ouvir

6 de Junho de 1853
Resultou a nomeação de uma comissão com a finalidade de rever o código.

Decreto de 30 de Dezembro de 1857.


Pouco produtiva veio essa comissão a ser reformulada.
Da nova comissão faz parte Levy Maria Jordão, o mais destacado penalista português do séc. XIX,
responsável pelas reformas futuras no dto penal português.

1959
Dos trabalhos dessa comissão surge em dois volumes um projecto da autoria deste penalista.
Tal projecto não vem a impor-se na íntegra mas influencia decisivamente a reforma penal e das prisões.

Marco importante da história penal portuguesa uma vez que é abolida aã pena de morte em Portugal,
para além de se proceder a importantes reformas nos domínios penal e penitenciário.

À reforma de 1867 sucedeu a Reforma Penal de 1884.

Em 1886, viria a ser elaborado o Código Penal.

Seguiu-se o código de 1982 da autoria de Eduardo Correia, tendo em 1995 sido reformulado pelo Prof.
Figueiredo Dias.

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DIREITO PROCESSUAL1

O direito processual é consequência da necessidade de dirimir conflitos resultantes da


violação do direito substantivo ou da insusceptibilidade de determinar o seu real alcance,
quer entre privados, quer públicos, quer reciprocamente entre si.

Torna-se necessário objectivar normas especificadoras do caminho a seguir nos órgãos


adequados, preceitos esses vinculativos não só do órgão como dos que nele litigam.

Por estas características é frequente designá-lo de instrumental, em relação ao ramo de


direito a que se liga, razão pela qual temos ou teremos tantos direitos processuais quantas
vias autónomas de resolução de conflitos situados no âmbito de um certo ramo jurídico.

No direito português da época que estudamos, a tendência foi manter uma certa
proximidade formal entre os tradicionais ramos processuais, o civil e o penal, fazendo-os
incluir no mesmo código.

Foi assim com a Reforma Judiciária de 1832, com a Nova Reforma Judiciária de 1837 e
com a Novíssima Reforma Judiciária de 1841, que, aliás também incluíam disposições
relativas à organização judiciária, isto é, à organização e competência dos tribunais.

A partir de então a tendência separadora impôs-se.

1876
Primeiro Código de Processo Civil já completamente distinto do Penal, logo seguido de
outro ligado ao âmbito comercial, mantido em vigor até 1939.

No âmbito penal a codificação tardaria mais.

Apesar das diversas tentativas ensaiadas, a Novíssima Reforma Judiciária manter-se-ia


em vigor.

Alterada em numerosos pontos através de legislação extravagante, apenas em 1929 viria


a ser substituída por um novo e primeiro Código de processo Penal

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 304 a 306

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HUMANISMO JURÍDICO, CULTURA E ENSINO DO DIREITO
SÉCULOS XVI E XVII1

O Direito Prudencial e o Direito Romano


No período medieval, há um facto determinante de recuperação do Direito Romano.

Essa recuperação verifica-se:


o Iniciativa de Justiniano, corporizada no Corpus Iuris Civilis
o No século XII, no trabalho das escolas, que também recuperam o Direito Romano Justinianeu, que era
estudado pelos glosadores e pelos comentadores
o No século XV, se olharmos para as Ordenações, percebemos que o Direito Romano também está
consagrado no texto legal, no elenco das fontes subsidiárias
o Ainda nas Ordenações, temos também a opinião comum dos doutores, que condiciona a aplicação da
glosa de Acúrsio e da opinião de Bártolo.

Assim, a cultura jurídica avolumou a procura da opinião comum dos doutores. Mas onde isto se verifica
melhor é no Direito Prudencial.

O direito prudencial, trabalhando sobre o direito romano, continua a ter uma grande importância no período
do monismo jurídico, inclusivamente, foi uma fonte subsidiária do direito português, nomeadamente, nas
Ordenações.

Com efeito, o Direito Prudencial teve uma relevância nas ordenações do reino devido:
o Trabalho dos juristas, que eram chamados a analisar e a estudar o direito romano, que também era
subsidiário nas Ordenações
o Obras dos juristas Acúrsio e Bártolo
o Opinião comum dos doutores

O objectivo e resultado do trabalho dos juristas era o desenvolvimento da ciência jurídica, e nesta época, ela
progrediu essencialmente através dos estudos e pareceres formulados pelos prudentes, muitas vezes
concluídos pela formulação de uma opinião comum.
Neste período, o critério preferido de fixação da opinião comum foi o qualitativo (determinava que o peso da
opinião de alguns juristas, ou seja, o seu prestígio, é que devia prevalecer).
Antes do séc. XV e nos sécs. XVII e XVIII, usava-se o critério misto ou de maioria qualificada.
Contrapondo estes dois critérios, existe também o critério quantitativo, onde pesa o maior número de
opiniões iguais.

Apesar de esta temática ser tão debatida, o que é facto é que a opinião dos doutores está presente nas
Ordenações. Porém, tudo isto se passa no nosso país durante o século XVI, enquanto lá fora é o Humanismo
Jurídico a corrente de pensamento que está a deixar marca. Desta forma, percebemos que Portugal está em
contra círculo. Enquanto lá fora se pensa o Humanismo Jurídico, em Portugal é a opinião dos doutores que
surge consagrada.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 109 a 127

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O que é que se passa com a cultura jurídica e com o ensino do Direito no nosso país?

A cultura jurídica portuguesa no período que vai das Ordenações ao Liberalismo desenvolveu-se por impulso
de fatores internos e externos.
o Internos: o papel desempenhado pela Universidade.

o Externos: os movimentos ou correntes do pensamento jurídico que foram divulgados na Europa e que
tiveram, com maior ou menor intensidade, influência em Portugal. Entre eles destacam-se o
Humanismo e o Racionalismo.

Universidade
A Universidade, criada em data incerta entre 1288 e 1290 por D. Dinis, com a designação de Estudo Geral,
foi a instituição fundamental para o desenvolvimento da ciência do direito ao longo dos séculos.
Depois de mudanças sucessivas entre Lisboa e Coimbra, fixou-se em Coimbra em 1537 com D. João III.
Este monarca preocupou-se em conferir-lhe condições de prestígio, por isso, seguia atentamente a sua vida e
procurou trazer alguns grandes mestres. Contudo, no campo do Direito, apenas conseguiu a vinda de juristas
de segundo plano, que exerceram muito pouca influência. Apenas o direito canónico foi servido com a vinda
de Martim de Azpilcueta Navarro.

Graças ao clima de renovação cultural do Humanismo e à Reforma Joanina da Universidade, o ensino


jurídico em Coimbra conheceu algum esplendor, embora momentâneo.
A Universidade continuava exclusivamente assente no ensino do Direito Romano.
No ciclo de estudos continuam a existir duas escolas:
o Faculdade de Cânones
o Faculdade de Leis
1) No primeiro ano estudam-se as Instituições
2) Seguem-se dois anos de Código
3) No último ano vinha o estudo do Digesto
Ao ensino do Direito Nacional não era consagrada nenhuma disciplina, aquilo que se estudava era estritamente
o Direito Romano na sua configuração justinianeia.
O método de ensino também continua a ser, no essencial, o método escolástico tradicional.
o A matéria era exposta através de casos práticos
o Enumeravam-se opiniões a favor e contra
o No final era ditada a sentença

A quaestio era o género literário primacial no ensino universitário.

Houve também a preocupação de eliminar do ensino universitário o instituto da opinião comum, permitindo-
se apenas a enumeração de 1 ou 2 posições, interessando assim mais a qualidade do que a quantidade.

A Reforma Joanina da Universidade não atingiu significativamente quer o método, quer o curriculum das matérias
lecionadas. Continuava a seguir-se o método escolástico e em Direito continuava a usar-se o método casuístico. Além
disso, não havia ainda qualquer cadeira dedicada ao ensino do direito pátrio, permanecendo o direito romano. Depois
de D. João III e deste período de maior atividade nos estudos universitários, voltou-se a um período de estagnação.

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Reforma Filipina
Mais tarde, os Filipes, vão dar azo a uma nova reforma do ensino do Direito.
Em 1591 foram elaborados os Estatutos Filipinos da Universidade, revistos e repostos em vigor em 1598.
Estes estatutos são regras que vão ditar o funcionamento da Universidade reformada, mais tarde conhecidos
por Estatutos Velhos, para os distinguir dos Estatutos Novos de Marquês de Pombal, no século XVIII.
Estes estatutos, por influência de Manuel Rodrigues Navarro, vão trazer para a Universidade de Coimbra, de
forma definitiva, a influência marcante de Bártolo.
O ensino jurídico continua a ser dado em latim, com base na leitura e no comentário dos textos romanos
justinianeus. A Universidade continua a estar dividida entre a Faculdade de Leis e a Faculdade de Cânones.
o Faculdade de Cânones: integra 7 cadeiras
1) Duas cadeiras dedicadas às Decretais
2) Uma cadeira reservada à leitura do Decreto
3) Estudava-se também o Sexto
4) Estudavam-se as Clementinas
5) Estudavam-se duas catedrilhas de Decretais

o Faculdade de Leis: integra 8 cadeiras


1) Lia-se o Esforçado
2) Lia-se o Digesto Novo
3) Lia-se o Digesto Velho
4) Lia-se os Três Livros
5) Lia-se o Código, que tinha duas cadeiras menores
6) Lia-se as Institutas
Daqui resulta que, no texto legal, o direito romano, a glosa de Acúrsio, a opinião de Bártolo e a opinião comum
dos doutores, são fonte de direito em Portugal. E no ensino jurídico, estamos a ver as tendências bartolistas
cada vez mais vincadas neste século.
É consagrado de novo o reinado de Bártolo, dispondo que Bártolo e panormitano constituíam texto obrigatório
das faculdades jurídicas. Este sistema continuou vigente até à Reforma Pombalina.

Tendências Bartolistas
Em Portugal, tanto o ensino como o pretório foram desenvolvidos sob o signo de Bártolo e da opinião
comum, tornando-se estes em critérios rectores de toda a vida do direito. Só alguns juristas atraídos pelas
novidades do humanismo conseguiram superar a hegemonia do bartolismo.
Apesar de Portugal contar com alguns impulsionadores do humanismo jurídico, como Luís Teixeira, a nossa
cultura jurídica não conseguiu suplantar em definitivo o bartolismo.
Os mais representativos autores do séc. XVI (como Manuel da Costa, Aires Pinhel, entre outros) não
conseguem autêntica autonomia metodológica e no séc. XVII apenas 2 juristas (Eduardo caldeira e João
Altamirano) se podem enfileirar na nova escola jurídica.
A mesma coisa se passou no direito canónico, onde apesar da figura de Martim Azpilcueta Navarro, ficam
presos à influência de Bártolo e da opinião comum.
Em relação aos tratadistas de Direito português, distribuíam-se por três grupos, não sendo nenhum deles
favoráveis às divagações eruditas dos humanistas:
o Ou se dedicavam ao comentário e remissões das Ordenações (Manuel Barbosa, Gonçalves da Silva...)
o Ou se consagravam à análise de casos concretos (como casuístas se apontam António da Gama, Pereira
de Castro...)

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o Ou escreviam sobre a prática (praxe) forense (praxistas a destacar são Manuel Mendes de castro e
Manuel Lopes Ferreira).
Humanismo Jurídico
A primeira corrente do pensamento jurídico divulgada na Europa a partir do séc. XV foi o humanismo jurídico,
também conhecido por Mos Gallicus, em contraposição à expressão de Mos Italicus.

Mos Italicus
Conhecimento do Direito Prudencial pelas escolas prudenciais. Teve como palco essencial Bolonha, em Itália.

Mos Gallicus
Este movimento surgiu nos fins do séc. XV e desenvolveu-se no séc. XVI, por oposição ao Direito Prudencial,
numa lógica de que o conhecimento só seria verdadeiro se pudesse ser demonstrado. Traduziu-se pela contestação
e crítica da metodologia dos prudentes medievais e, particularmente, dos seus maiores juristas.
O principal centro inicial deste movimento de crítica é França. Porém, cedo se propagou pelo norte da Europa,
principalmente por aqueles países que foram mais influenciados pela Reforma Protestante e por Martinho Lutero.
Este movimento também é designado por Escola Culta, Escola Elegante, Escola Alciateia ou Escola Cujaciana.

O movimento humanista critica toda a metodologia medieval, todo o ensinamento do Direito efetuado pelas
escolas medievais, designadamente, pela Escola dos Comentadores, sendo que Bártolo é o principal alvo de
crítica. Para isso, vai basear-se em critérios de filologia.
Os humanistas jurídicos elencaram uma série de críticas ao trabalho dos prudentes, nomeadamente:
Ao nível da linguagem
No regressar às origens que o Renascimento significa, verificaram que as origens que se devem procurar é o
próprio Direito Romano e concluíram que aquilo que os prudentes apresentavam não era direito romano
autêntico, era um “direito formado de glosas a glosas”. Alegam que os prudentes fizeram uma deturpação dos
textos romanos.

Na opinião destes humanistas, ao estudarmos e aplicarmos o Direito Romano através da opinião dos juristas
medievos, aquilo que estamos verdadeiramente a aplicar não é o Direito Romano, é a opinião do jurista
medievo com base nesse direito.

Além disso, o latim que se escreve e que se fala na Idade Média, não é o mesmo do tempo de Justiniano, nem
é o mesmo da Antiguidade Clássica.
Era preciso fazer uma tábua rasa de todos os ensinamentos dos juristas medievos sobre o Direito Romano e
demolir todas as suas opiniões baseadas nesse direito. Não nos devemos apoiar no dogma da opinião, como
mandam as Ordenações. O jurista deve afastar todas essas opiniões que deturpam os textos romanos e deve
recuperar esses mesmos textos.
Era preciso regressar ao próprio Direito Romano na sua pureza, sujeito à livre interpretação do jurista.
Ao nível do objeto de análise
Acusaram os prudentes de se terem limitado ao estudo do Corpus Iuris Civilis, quando este não continha
certamente o melhor do direito romano. Também ele é uma deturpação, visto que o Digesto é uma recolha em
50 livros de opiniões de juristas clássicos. Portanto, o Direito que vai ser aplicado não é o verdadeiro direito
romano que os romanos de Roma usavam.
Por outro lado, esse estudo era incompleto porque não sabiam grego e o código justinianeu tinha uma
estrutura histórica grega.

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Ao nível da veracidade das fontes
Acusaram-nos de não se ter preocupado com a veracidade das fontes jurídicas e não jurídicas dos trabalhos
que produziram e, portanto, de terem efetuado um trabalho com base em fontes erradas, já que eles (humanistas
jurídicos) tinham constatado que as fontes do código justinianeu estavam erradas.

Ao nível das técnicas utilizadas


Acusaram-nos de não terem técnicas de raciocínio jurídico, tais como a filologia. Afirmaram também que para
ultrapassarem tal defeito, eles se basearam na autoridade dos doutores, quando o que se deve promover é a
liberdade de pensamento.
Assim, os humanistas do século XVI pretendem acabar com todo o trabalho das escolas prudenciais, com
o dogma da opinião, criticando Bártolo e a opinião comum dos doutores.
Aquilo que importa para os juristas do século XVI, reconhecendo a importância técnica do Direito Romano,
é retornarem à Antiguidade Clássica e lerem e interpretarem livremente esses textos, de acordo com a sua
razão.
Estamos aqui perante um novo movimento intencional de recuperação do velho/clássico Direito Romano.
Esta é uma forma de pensar Direito completamente nova.
Isto está nitidamente em contra círculo com aquilo que se passa em Portugal.

Humanismo Jurídico │Efémero momento em Portugal

Portugal teve a glória de contar com alguns impulsionadores ou nomes representativos do


humanismo jurídico. De facto, alguns juristas atraídos pelas novidades do humanismo
conseguiram superar a hegemonia ou ditadura intelectual do bartolismo.
Contudo, não passou tudo de um fenómeno efémero. A verdade é que a nossa cultura jurídica
pouco respirava da escola culta e não conseguiu suplantar em definitivo o bartolismo.

Neste mesmo período, lá fora pensa-se humanismo jurídico e defende-se a libertação do Direito das glosas,
dos comentários e de todo o trabalho das escolas medievais. Procura-se a pureza dos textos romanos.
Enquanto que em Portugal, Bártolo é a referência maior que tem expressão na própria lei nacional, nas
Ordenações do Rei.

Contudo, alguns juristas portugueses integraram o humanismo jurídico porque foram estudantes em França e
foram discípulos de alguns destes nomes internacionais do humanismo jurídico. É o caso de Luís Teixeira, de
Henrique Caiado e de Martinho de Figueiredo.

Porque é que o humanismo jurídico em Portugal foi um efémero momento e estes autores não tiverem força?
o Alguns destes humanistas portugueses tiveram nula influência em Portugal, porque não regressaram
ao país
o Outros regressaram, mas dedicaram-se a outras tarefas, sem terem contacto com a vida prática jurídica
o Outros desinteressaram-se completamente do Direito
O que é facto é que no século XVI, o Humanismo Jurídico lá fora é um momento de crítica acérrima ao saber
medieval, e em Portugal a tendência é contrária, Bártolo está consagrado na lei e no ensino do Direito.
No entanto, haverá um momento em que o humanismo acabará por atingir expressão, que é com o século da
razão, o século XVIII.
Seguiram-se outras correntes de pensamento, designadamente, o Usus Modernus Pandectorum no séc. XVII,
e o Racionalismo Jurídico no séc. XVIII, criticando sempre o trabalho dos prudentes.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


RACIONALISMO JURÍDICO E A LEI DA BOA RAZÃO │ SÉCULO XVIII1

Após aquele efémero momento que foi o humanismo jurídico em Portugal, o ensino e a cultura caíram numa
progressiva decadência, contra a qual o século XVIII vai reagir.
O século XVIII é um grande século porque, depois da Antiguidade Clássica, depois da influência que o
Cristianismo teve no pensamento na Idade Média e depois do Renascimento do século XVI, não há outro
período da história do espírito europeu que tenha sido mais agitado e mais conturbado de ideias do que este.
Assim, ele é conhecido como o Século das Luzes ou a Época da Ilustração.
Neste século, surgem várias correntes do pensamento importantes. É o caso da Escola Iluminista, da Escola
Racionalista do Direito Natural e do Usus Modernus Pandectorum.

Escola Iluminista
O século XVIII é tão grande, denso e tão rico que é difícil caracterizá-lo em breves traços. O número de
tendências, de forças e de ideias é tremendo e, por isso, em vez de falarmos em Iluminismo, seria mais
adequado falarmos em Iluminismos. Esta expressão é mais adequada porque, naturalmente, o iluminismo
português não terá sido igual ao iluminismo inglês, por exemplo, e assim sucessivamente.
Podemos caracterizar o século XVIII como uma época em que se produz uma enorme valorização da Razão
humana. Contudo, isto não quer dizer que no passado a Razão não tenha tido importância, de facto, quando
falámos em São Tomás de Aquino, por exemplo, percebemos que este era um autor racionalista por entender
que o Direito Natural era a participação da lei eterna na criatura racional que lhe permitia descobrir preceitos
primários e secundários.
Se no passado é possível encontrar a relevância atribuída à Razão, particularmente à Razão do Homem, o que
é facto é que no século XVIII há uma hipertrofia sem precedentes à Razão humana. Essa hipertrofia afirma-
se não só no campo científico-natural, mas também nas ciências humanas, nas ciências morais e nas ciências
do espírito, particularmente, no Direito.
Este período histórico é também um período de extrema valorização do método ensaiado na Escola das
Matemáticas. Isto significa que nenhuma ideia consegue atingir foros de racionalidade se não passar por um
método das ciências naturais. Assim, o método e a experimentação vão receber grande relevância.
Por outro lado, neste período, a cultura vai-se secularizar. É o tempo da fundação dos jornais, do surgimento
dos centros de estudo, dos salões, da proliferação das academias. A cultura e o saber ganham importância e,
por isso, este século foi um século de críticos e de demolidores.
Assim acontecerá também ao nível da aplicação e do ensino do Direito.

Usus Modernus Pandectorum


Este movimento surgiu no séc. XVII e, seguindo a linha do pensamento humanista, também criticou o trabalho
dos prudentes, adiantando, porém, uma nova ideia, a da necessidade de atualização do Direito Romano.
Esta escola de pensamento baseava-se na ideia de que o direito das pandectas, isto é, o direito romano, deveria
ser aproveitado naquilo que tivesse de essencial à luz do direito natural e de válido relativamente aos direitos
nacionais. Portanto, o direito romano era subsidiário ao direito régio, mas mesmo assim, só se deveria aplicar
se estivesse atualizado.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 127 a 129
Este direito deveria ser filtrado pelo critério da razão e dele só se aproveitava apenas o que tivesse de atual.
Dever-se-ia distinguir o direito romano caduco, daquele que fosse ainda suscetível de aplicação moderna.
Esta corrente de pensamento pressupõe a ideia de que o Direito Romano deve ser objeto de uma análise crítica
à luz daquilo que, neste tempo histórico, deve ser entendido como moderno, atual e vivo, expurgando do
Direito Romano aquilo que é obsoleto, antigo e historicamente datado. O Direito Romano deve ser lido
criticamente e deve ser utilizado de modo atual e moderno.
O século XVIII avança significativamente, retornando ao Direito Romano e considerando que este direito
deve ser recuperado para ser aplicado naquilo que era novo e essencial aos tempos em presença. Tudo aquilo
que era a história do Direito Romano deveria ser afastado, fechado no seu tempo.

Escola Racionalista
Este movimento surgiu no século XVIII e corresponde à manifestação jurídica do iluminismo, realçando a
importância da razão, mas uma razão humana diferente da que era considerada no séc. XII. A razão que deveria
ser considerada era a reta razão, iluminada pelo conhecimento humano e não pelo divino.

O século XVIII vai definir também uma nova fórmula de Direito Natural.
Defende a existência de um direito natural eterno e imutável, baseado na
razão humana, a que se chamava “recta ratio”, e que era por onde se
deveria moldar o direito positivo.

Antes, o direito natural era um conjunto limitado de preceitos, que se fundava em Deus, e que se impunha
com particular vigor à observância do Homem.
Agora, este direito vai ter o Homem como ponto de partida e como ponto de chegada.
Isto significa que o Homem entra na sociedade para salvaguardar um corpo de direitos de que já disporia num
hipotético estado da natureza.

O Homem teria vivido hipoteticamente num estado livre do Estado e a passagem para o estado de sociedade
e a constituição do ambiente político, designadamente, através de uma ideia de pacto/contrato social, tem
apenas por escopo salvaguardar esses direitos de que o Homem já disporia no estado de natureza.
Esses direitos são, em termos essenciais, a liberdade, a segurança e a propriedade. Os direitos naturais
são aqueles direitos de que o homem já disporia racionalmente no estado de natureza e que, uma vez
constituído o Estado, devem ser salvaguardados. O Direito Natural seculariza-se e centra-se agora no Homem.
As principais manifestações desta razão encontravam-se descritas numa obra de Luís António Verney, “O
Verdadeiro Método de Estudar”, onde o mesmo critica a opinião de Bártolo e a metodologia dos prudentes,
adiantando ainda que os prudentes não tinham aprofundado a história do Direito Romano, escondendo essa
falha grave com a imposição da sua autoridade.
Além disso, o autor critica todo o ensino, incluindo o ensino do Direito em Portugal, considerando que ele
está “ferido de morte”. Porquê?
o Para além de recuperar todas as críticas que o Humanismo fizera, o autor vai dizer também que o
ensino jurídico estava ele próprio obsoleto, porque estava particularmente assente na argumentação
silogística, no amor pedantesco às citações dos juristas medievais, um método que o século XVIII não
considerava adequado.
o Havia um total e absoluto desconhecimento da história, portanto, os textos não eram vistos nos seus
contextos.

o Criticava-se também a excessiva dependência do Direito Romano por parte dos juristas.

O racionalismo jurídico, no fundo, é uma corrente de pensamento profundamente nacionalista, que pretende
afastar o Direito Romano e substitui-lo pelo Direito Nacional.
Outras manifestações racionalistas encontradas no séc. XVIII, foram, nomeadamente, a elaboração da Lei da
Boa Razão, a Reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra e os movimentos da codificação.

Lei da Boa Razão


Vigorava o elenco das fontes de direito herdado das Ordenações Filipinas.
Esta lei percebeu que não poderia alterar as mentalidades, nomeadamente, a aplicação prática do Direito, por
isso, teve como objeto disciplinar as fontes de direito, revogando o parágrafo respetivo do livro III das
Ordenações Filipinas.
Trata-se de uma Lei de 18 de agosto de 1769, inicialmente identificada, como os restantes diplomas da época,
pela simples data. Só no século XIX é que recebeu o nome de Lei da Boa Razão e assim ficou conhecida para
o futuro. É uma lei devida ao Rei D. José I, sob o consulado de Marquês de Pombal.
Visava impedir irregularidades em matéria de utilização dos assentos e de utilização do direito subsidiário,
pretendia fixar normas precisas sobre a validade do costume e fixar os elementos a que o intérprete podia
recorrer para o preenchimento das lacunas.
Assim, veio consagrar as bases principais da legislação portuguesa e revela uma profunda influência
racionalista ao sujeitar a validade de qualquer fonte de direito, incluindo o costume, ao critério da
conformidade à Boa Razão.

O que é que a Lei da Boa Razão nos vem dizer quanto às fontes de direito?

• A primeira fonte que se deve aplicar é a Lei do Rei. Esta é a fonte primária essencial.

• Segue-se o Estilo da Corte, que permanece como fonte de direito, mas para ter essa natureza precisa
de ser confirmado pelos assentos da Casa da Suplicação.
Ø Os assentos são fontes de interpretação das leis. Os assentos produzidos pelas relações
subalternas podiam ser objeto de recurso para a Casa da Suplicação. Os assentos produzidos
pela Casa da Suplicação podiam ser objeto de recurso para o monarca.

• O Costume permanece como fonte de direito de forma muito residual e limitada. Para ser considerado
fonte de direito, o costume tinha de ser conforme à boa razão, não podia contrariar a lei e tinha de ter
mais de 100 anos.

• Em casos omissos, isto é, na falta de Direito Pátrio, o Direito Romano funcionava como subsidiário.
Contudo, passa a estar absolutamente submetido ao Usus Modernus Pandectorum, ou seja, o direito
romano tinha de estar trabalhado, moderno, conforme à boa razão e reconhecido pelas nações europeias
cristãs.
• Surge uma nova fonte de direito. No caso de lacunas sobre matérias políticas, económicas, mercantis
ou marítimas era permitido o acesso direto às leis das “Nações Cristãs, Iluminadas e Polidas” da
Europa, sendo o direito romano liminarmente posto de lado.

• O Direito Canónico é relegado para as questões do foro espiritual, sendo aplicado apenas nos tribunais
eclesiásticos. Deixou de ser fonte subsidiária de direito. Ele passa a poder ser aplicado na sua vigência
apenas em 4 situações:
o Se a Lei do Rei remetesse para ele;
o Nos casos em que os seus preceitos fossem aplicáveis pelo uso das nações civilizadas e polidas
da Europa, em correção do próprio Direito Romano;
o Se não fosse possível recorrer a outros ordenamentos;
o Nos casos em que os ministros tenham necessidade de conhecer o Direito Canónico para obviar
aos próprios abusos dos juízes eclesiásticos que consideram aquela questão do foro espiritual;

A glosa de Acúrsio, a opinião de Bártolo e a opinião comum dos doutores são definitivamente revogadas à
luz da boa razão.

A Reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra


Rei D. José I e Marquês de Pombal tinham a intenção de alterar o Direito. Assim, percebeu-se que o Direito
vigente não bastava para orientar os juristas a cerca das leis e das demais fontes que deveriam aplicar e por
que ordem é que deveriam ser aplicadas.
Percebeu-se também que não era possível alterar a aplicação do Direito, sobretudo, não seria possível fazer
relevar a Lei relativamente ao Direito Romano, se na Universidade se continuasse a estudar apenas Direito
Romano. O ensino do Direito precisava de ser profundamente reformado.
A Reforma da Universidade vai ser precedida, logo em 1770, da criação de uma Junta de Providência
Literária. O papel deste conjunto de especialistas seria verificar o estado da Universidade para depois se fazer
um diagnóstico seguro. Ela foi incumbida de emitir um parecer sobre as causas da decadência do ensino
universitário e de obter propostas adequadas à sua reforma.

O veredicto a que chegou a Junta era previsível: a responsabilidade pelo estado em que se encontra o estudo
em Portugal, particularmente, do estudo do Direito, é clara e é atribuída aos Jesuítas. Por consequência, os
jesuítas são expulsos do país e a Universidade de Évora é encerrada. O estudo do Direito permanece, assim,
restrito a Coimbra, que deverá ser reformado.
Essa comissão apresentou no ano seguinte (1771) um relatório circunstanciado, com o título de Compêndio
Histórico da Universidade de Coimbra, onde criticou de forma implacável a organização do ensino existente
e propôs a aprovação de uns novos estatutos, também denominados de Estatutos Pombalinos, os quais havia
elaborado e que vieram efetivamente a ser aprovados por uma Carta de Lei de 28 de agosto de 1772.
D. José I refere no Título I, Livro II dos Estatutos da Universidade, que a preparação anterior de todos aqueles
que iriam entrar no curso de Direito era determinante para o sucesso desse mesmo curso. Além disso, diz
também que os pais precipitam a entrada dos seus filhos nos estudos jurísticos pela cega ambição dos melhores
lugares. Portanto, o próprio texto dos estatutos reflete a severidade do diagnóstico.
Assim, uma das primeiras ordenações que o Rei vai fazer nos Estatutos é estabelecer a idade mínima para
que se pudesse ingressar nos estudos jurídicos: 16 anos completos.
Além de se fixarem as condições de ingresso, também se atentou no que seria necessário para que os estudantes
candidatos pudessem ser previamente bem instruídos. O capítulo II refere que disciplinas é que devem ser
objeto de um exame preparatório para que se possa ingressar no estudo das faculdades jurídicas,
considerando que o conhecimento das disciplinas filosóficas e das letras era determinante.
Também se alterou o tempo de duração do curso, antes eram 8 anos e agora passaram a ser 5 anos, o mesmo
tempo de duração do curso de teologia.
Depois definiu-se que disciplinas é que deveriam ser lecionadas no curso de Direito. As profundas alterações
consistiram na introdução das disciplinas de História do Direito e do Direito Pátrio no Curso de Leis e na
introdução da disciplina de Direito Natural (que integrava o Direito Público Internacional e o Direito das
Gentes) nos dois cursos, de Leis e de Cânones.
O Direito Pátrio corresponde ao direito legislado. Ora, entre o direito romano e o direito pátrio, aquele que
tem mais autoridade é precisamente o pátrio, e o direito romano é apenas subsidiário. O Direito Romano
continua a ser estudado de uma forma expressiva, mas ele tem que estar sujeito ao crivo do Usus Modernus
Pandectorum.
Introduziu-se também uma mudança do método de ensino, que passou do método da escolástica (Lecture)
para um método analítico, sintético, demonstrativo e compendiário.
Este método consistia em fornecer primeiramente aos estudantes um conspecto geral de cada disciplina,
através de definições e da sistematização das matérias. Depois, seguindo uma linha de progressiva
complexidade, passar-se-ia de umas proposições para outras até se chegar ao esclarecimento científico, sendo
certo que tudo isto deveria ser acompanhado de manuais adequados, sujeitos até a aprovação oficial. Isto
significa que nas disciplinas lecionadas devem existir manuais sintéticos, que expressem de uma forma
simples a matéria que se está a estudar.
Cai-se num ensino que perde a sua função de contradita, de diálogo, de exercício dialético, para que o ensino
se baseie essencialmente no compêndio, no manual, na leitura, na apreensão do que era consagrado nos
manuais, que deviam espelhar o conteúdo das disciplinas a lecionar.

D. José I diz-nos ainda que era necessário cessar e anular os antigos estatutos da Universidade de Coimbra.
ASSENTOS1

Especial interesse no quadro das fontes de direito deste período têm os assentos.

Os monarcas, assim como tinham o direito de legislar, possuíam o direito de interpretar


as suas leis. No período pluralista, faziam-no pessoalmente através de leis aclaratórias,
porém no durante o período monista passaram também a fazê-lo através dos tribunais
superiores, nomeadamente da Casa da Suplicação e da Casa do Cível.

No Livro de Posses da Casa do Cível, encontra-se 12 assentos assinados pelo rei e no


Livrinho da Casa da Suplicação, aparecem assentos tomados na apresentação do Regente
do Reino o Infante D. Pedro, bem como de D. Afonso V e monarcas posteriores.

As dúvidas de interpretação da lei eram remetidas para o monarca termos do fim,


conforme as Ordenações Afonsinas. Contudo, foi D. Manuel quem pela lei de 10 de
dezembro de 1518 delegou na Casa o poder de resolver por assento e com autoridade
legal os casos duvidosos.

Dispõe a referida lei: “E assim, havemos por bem, que quando os ditos Desembargadores
tiverem alguma dúvida do entendimento de alguma Ordenação (...), vão com a dita dúvida
ao Regedor, o qual na mesa grande com os Desembargadores, que bem determinará e,
segundo a sua determinação, se porá sem sentença. E se na dita mesa prevalecer a dúvida
e que ao Regedor pareça bem que seja do nosso conhecimento, reencaminha para nós
(reis). E os que de outra maneira interpretarem as Ordenações, serão suspensos”.

De acordo com este alvará, porém, o valor dos assentos é restrito ao processo em que a
dúvida se suscita, não sendo aplicada a decisão a outras causas. Contudo, o valor legal
genérico dos assentos fora ampliado conforme o disposto no alvará de 10 de dezembro
de 1518, feito pelas Ordenações Manuelinas.

Em 1518, D. Manuel delegou na Casa da Suplicação o poder de resolver os casos


duvidosos através de assentos.
De acordo com esta lei, o valor dos assentos restringia-se ao processo em que a dúvida
se tivesse suscitado.
Porém as Ordenações Manuelinas ampliaram este valor, atribuindo a alguns assentos
valor genérico.

Com a extinção da Casa do Cível e a criação substitutiva de uma Relação no Porto (1582),
as dúvidas passaram também a ser de competência desta.
E o estabelecimento de Relações Ultramarinas deu origem a que estas se arrogassem, por
igual, a faculdade de produzir assentos.

Em 1582, a Casa do Cível foi extinta e foi criada a Relação do Porto, que também passou a poder
emitir assentos.
A mesma faculdade veio a caber ás Relações Ultramarinas (duas no Brasil e uma no Oriente).

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 76 a 79

HISTÓRIA DIRIETO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Advirta-se, contudo, que dos assentos das Relações ditas subalternas (Poro e Ultramar)
cabia, no domínio da Lei da Boa Razão, recurso para a Casa da Suplicação.

No caso dos Assentos da Suplicação ficava sempre aberto o recurso para o monarca.

O papel dos assentos, de acordo com a célebre lei pombalina, era meramente
interpretativa e, por isso, não constituíam via adequada para a resolução dos casos
omissos, que deviam ser levados ao conhecimento do soberano, para este os integrar.

Com a Lei da Boa Razão de 1769, atribuiu-se-lhes valor interpretativo e portanto não
constituíam forma de integração de casos omissos.

Conforme os assentos tivessem por objeto a decisão particular de dúvida em certa causa,
sem dele se originar regra autêntica para outras causas, ou, pelo contrário, os seus efeitos
passassem a ser genéricos, assim se chamavam os assentos de autos ou assentos legais,
sendo apenas estes que possuíam valor de lei.

Das diferenças de regime entre os vários assentos resultou a distinção entre:


assentos de autos (com valor restrito ao processo em causa)
assentos económicos (relativos à disciplina interna do tribunal de que emanavam)
assentos legais (com força genérica e equiparados à lei).

HISTÓRIA DIRIETO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


COSTUME1

Apesar da lei ter ocupado o lugar de maior relevo no conjunto das fontes jurídicas, pelo menos a nível central
o costume era ainda de normal utilização, conforme a inclusão nas sucessivas Ordenações ao lado do estilo da
corte.
O costume foi fonte principal de direito nas ordenações, apesar de em termos práticos ter sido sujeito a
requisitos sucessivamente mais exigentes.

Requisitos do costume

No seu estudo doutrinário prestava-se atenção a questões, ambas como forma de dar consistência à sua
alegação vinculativa:

o O tempo decorrido desde um primeiro momento em que a sua existência fosse comprovada
Na inexistência de doutrina certa com sede no C.J.C., de acordo com o Espinosa, admite-se no direito comum
a necessidade de um período de 10 anos de vigência para adquirir aquela natureza, sem no entanto se distinguir
em concreto qual a orientação da conduta face à lei no direito canónico, porém, exigia-se, em regra, ao costume
contra legem um prazo de 40 anos.

o Número de actos nos quais se demonstrasse a sua invocação


Aceita-se com frequência um mínimo de dois actos para a conduta poder ser entendida como juridicamente
vinculante.

Era necessário um período de (para além e segundo a lei) 10 anos de


vigência para o uso adquirir aquela natureza; exigência em regra, ao
costume contra legem um prazo de 40 anos, aceitando-se no mínimo de
2 atos para a conduta poder ser entendida como juridicamente vinculante.

Direito consuetudinário como fonte de direito comum

Foi em articulação com o estilo que a lei positiva previu o direito consuetudinário como fonte de direito
comum, desde as primeiras Ordenações que a matéria foi regulada em conjunto com o direito subsidiário.

Nas Ordenações Afonsinas refere-se apenas o seu carácter vinculativo ao lado da lei e do estilo.
As Manuelinas também, sem se expressarem com maior clareza, levam o discurso um pouco mais longe,
fazendo referência aos requisitos exigidos pelo direito comum.
A esta regulamentação não fugiram as Filipinas.

Outro ponto merece ser referido. É sabido que as manuelinas referem a comum opinião dos doutores, como
fonte subsidiária. Confrontando-a com o conteúdo do C.J.C., que expressamente proibia as interpretações,
tornou-se necessário à doutrina encontrar justificação concludente.
Seguindo indicações de Baldo, diz-se que a opinião comum vinculava porque tinha a força do costume.

10 de Agosto de 1769
Regulamentariam com minúcia os seus requisitos em novos moldes, introduzindo em nome da razão maior
severidade na matéria.

Efectivamente, depois daquela data só valeria o costume em que concorresse a antiguidade provada de mais
de 100 anos, e conformidade à boa razão e a não oposição à lei, o que o mesmo é dizer à vontade do rei.

Para além da pluralidade e da racionalidade sempre exigidas, no séc. XVIII, o costume passou só era válido
se tivesse pelo menos 100 anos, se fosse conforme à boa razão e não se opusesse à lei.
A Lei da Boa Razão de 1769 veio a proibir o costume “contra legem”.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 82 a 88

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Força vinculativa do costume face à lei

Identificado como a voluntas populi, o costume representa a força natural e dinâmica que conforme o
sentimento jurídico das comunidades em que se não exacerbaram ainda os individualismos dominadores.

Quando a complexidade do funcionamento social ou outros factores apontam para a substituição do


sentimento jurídico colectivo pela lei, de imediato se coloca o problema de articulação entre os dois.

O conflito entre costume e lei é antigo.

No direito romano surge patente a confrontação da posição de:


• Salvio Juliano, Século II d.c
• Constituição de Constantino de 319 d.c. em que a situação descrita é a da primazia da lei.

No período estudado o problema pôs-se de igual modo, logo que o renascimento jurídico facultou ao
monarca a possibilidade de brandir a lei como elemento centralizador.

Assim, houve necessidade de conciliar inteligivelmente a vigência simultânea dos dois.

A explicação foi então tentada através da presunção da vontade régia em querer ver tal fonte aplicada.
Assim aconteceu entre nós, salvaguardando-se a primazia da primeira.

O costume tinha força de lei, considerando-o a manifestação da vontade tácita do monarca. A explicação
resultava da tentativa de conciliar “a posteriori” a realidade vivida – o costume -, com outra fonte que lhe
fazia concorrência.

A pretensão de redução da primeira à lei aparece assim como tentativa de sujeitar algo que aparece espúrio
nos sistemas a caminho da centralização.

A doutrina tem alguma dificuldade em explicar o facto de no período monista, em que a vontade suprema
era a do rei, se tivesse dado algum valor à chamada “voluntas populi”, na qual se traduzia o costume.

Nesta época, a própria estruturação do poder político não dava grande relevo à expressão da vontade
popular. Por isso, e em face da resistência do costume, os teóricos da época vieram dizer que o costume
era a vontade tácita do Rei, pelo que valeria não por ser originário na vontade popular, mas porque era uma
manifestação indirecta da vontade do próprio Rei.

Ainda hoje o costume é fonte de direito, embora, só em casos muito restritos e permitidos pela própria lei,
ele constitua fonte criadora de normas.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


DIREITO CANÓNICO1

A relevância do direito canónico no contexto das fontes jurídicas está intimamente ligado
com o posicionamento da Coroa frente à Igreja e ao Papado.
O fundamento desta ordem arranca da ideia de que a igreja pelo próprio acto fundacional
de Cristo representava uma sociedade distinta da sociedade civil, da civitas, pelo que tinha
a sua disciplina jurídica própria.
A existência simultânea das duas sociedades colocava um problema de articulação entre
as várias realidades. Esta articulação sofreu ao longo dos tempos soluções divergentes.

A posição do direito canónico perante a ordem jurídica civil portuguesa esteve sempre
relacionada com as questões de poder entre a Igreja e o Rei.

Posição da coroa perante a Igreja e o Papado

A monarquia portuguesa retirou originariamente da auctoritas pontifícia a sua


legitimidade nos quadros internacionais da época, o que, desde logo, levou ao
reconhecimento implícito da superlatividade do Papa em relação aos governantes
seculares.

No período pluralista a supremacia da Igreja foi aceite e as teses hierocráticas


dominaram em Portugal.

Se é certo que a linha hierocrática ou teocrática em que tal facto se integra foi sofrendo
erosão à medida que se caminha da Idade-Média para os tempos modernos, não é menos
certo também, que por parte dos nossos monarcas continuou subsistindo interesse na
manutenção do papado como autoridade internacional, devido à expansão portuguesa.

De facto, os direitos de Portugal sobre os mares e terras descobertas, além de outros


fundamentos, como a inventio, eram sustentados com base em bulas pontifícias, cuja
força provinha da autoridade política internacionalmente reconhecida ao Papa.

No período monista, apesar do direito canónico ter sofrido uma grande evolução e de,
em termos teóricos, a supremacia da Igreja não ter sido posta em causa, o facto é que,
na prática, essa supremacia foi contrariada, já que a lei pátria tinha supremacia sobre
as outras.

O grande movimento que ficou conhecido pelo nome de Reforma, as pretensões e


interesses políticos de alguns príncipes e o orgulho nacional de vários países, conduziu a
uma contestação da autoridade romana quer no plano espiritual quer no plano temporal.

As teorias favoráveis à superlatividade do Papa receberam acolhimento em Portugal. O


país, por conveniência, era obrigado a acatar, ao menos no campo teórico, a autoridade
romana, embora os nossos monarcas, ciosos da sua independência, na prática e quando
poderosos motivos políticos se opunham à aceitação de uma semelhante autoridade
fossem prontos a fugir-lhe.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 91 a 104

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Uma das medidas instituídas durante o pluralismo e que persistiu nos sécs. do período
monista foi o beneplácito régio, limitador da aplicação do direito canónico que, no
entanto, teve uma revogação temporária entre 1487 e 1495 com D. João II e foi depois
reposto em vigor, permanecendo até aos tempos do constitucionalismo.

Beneplácito Régio

Instituto jurídico de autorização de publicação das letras apostólicas no reino, em vigor


desde o reinado de D. Pedro I, suscitou da parte da Igreja múltiplas diligências tendentes
a uma revogação pelos monarcas portugueses.
Estes resistiram a todas as tentativas.

Apenas com D.João II foi consentida e desejada a revogação.

O texto da carta revogatória do beneplácito não contém uma exposição esclarecedora de


motivos (alude apenas a causas da ordem religiosa), mas atendendo ao contexto da
política interna e internacional portuguesa no período em causa, enxerta-se num conjunto
de circunstancias que interessavam ao Papado e Portugal em 1 optimização de relações.
Nomeadamente, estava em causa a consolidação interna da realeza e toda a política de
expansão.

Que a revogação do beneplácito constitui da parte de D. João II um acto ditado pelos


sucessos políticas do momento prova-o o facto do monarca poucos anos volvidos, em
1495, embora por via indirecta o ter restabelecido, ao fazer depender do Desembargo do
Paço a execução dos rescritos apostólicos que necessitasse de ajuda do traço secular e
evocando a resolução das dúvidas que os mesmos suscitassem.

Este sistema foi mantido nos reinados seguintes e passou às Ordenações Filipinas. D. João
V alargou a solução a outras letras apostólicas e no tempo do Marquês de Pombal o
beneplácito foi frontalmente reafirmado.

O constitucionalismo manteve-o em vigor.

Recepção dos decretos do Concílio Tridentino

Se a política interna e internacional ditada pelas necessidades da realeza e da expansão


levou à revogação do beneplácito, também o alinhamento político de Portugal com as
nações que desencadearam a Contra Reforma e a tradicional obediência a Roma dos
nossos monarcas, bem como o cariz religioso destes e da população em geral, originaria
uma atitude de acatamento da parte do ordenamento católico – a constituída pelos
decretos do Concílio de Trento.

Este Concílio aberto em 1545 foi encerrado em 1563, havendo legislado em matéria
dogmática, liturgica e disciplinar, dentro de 1 linha ideológica de defesa da ortodoxia face
à reforma.

As resoluções tridentinas foram aprovadas em consistório secreto e delas dado


conhecimento aos católicos pela Bula Benedictus Deus.
Nela se apela para a ajuda dos príncipes no sentido de apoiarem a observância das
disposições conciliares e na mesma data pelo breve Sacri Tridentini Concillii era enviado

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


um exemplar autêntico dos decretos tridentinos ao Rei de Portugal. Ao breve citado outras
letras apostólicas se seguiram todas com vista à recepção e aplicação das disposições de
Trento no nosso país.

12 de Setembro
Alvará régio ordena às justiças que prestem ajuda aos prelados na execução das
determinações tridentinas.

24 de Novembro
Provisões regulamentam essa ajuda.

2 de Março de 1568
Primeira é revogada fixando-se casos de competência comum da jurisdição eclesiástica e
civil (mixti fori) e estabelecendo-se a regra de que a ajuda secular à autoridade espiritual
nos casos em que estivesse em jogo a liberdade ou o património só devia ser concedida
“após verificação da regularidade do processo eclesiástico e da legitimidade da sentença”
(Marcello Caetano).

Finalmente, estatuía-se no diploma sub judice que “se nos casos mixti fori a justiça
secular já tivesse sido chamada a proceder, a jurisdição estava preventa (conforme era
tradição do Reino e se achava estabelecido nas Ordenações Manuelinas), ficando os
tribunais eclesiásticos impedidos de intervir ou julgar”.

19 de Março de 1569
Porém, uma nova provisão permitia às autoridades eclesiásticas a execução das suas
sentenças directamente. Isto é, ficavam dispensadas de pedir a ajuda do braço secular,
independentemente até de ser um caso de competência mista.

Para Marcello Caetano, esta Provisão, ao permitir aos prelados a execução, por estes, de
sentenças mesmo na esfera temporal que atingissem leigos, “constituía uma grave
alteração ao direito português, que conferiu a D. Sebastião a primazia, entre todos os
estados católicos, na concessão de prerrogativas soberanas à Igreja”.

Concórdia de 1578
Ordenações Filipinas e a interpretação vieram, contudo, minimizar os efeitos da provisão
de 1569 reintegrando-se na linha de equilíbrio de que a provisão de 1568 foi expoente.

O Direito canónico como Direito Subsidiário

Durante este período, o Direito Canónico manteve o seu caracter de direito subsidiário
em termos idênticos àqueles que lhe eram reconhecidos pelas Ordenações anteriores até
à Lei da Boa Razão (18 de Agosto de 1769).

Esta lei veio, porém, a pretexto de uma aparente contradição de uma disposição do Livro
3 das Ordenações Filipinas, provocar 1 rude golpe no sistema vigente.

Dispõe o parágrafo 12 da Lei da Boa Razão que se separe definitivamente a utilização do


Direito canónico e pátrio, com o objectivo de se acabar com os conflitos entre a utilização
destes dois ordenamentos.

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS | SOFIA CUNHA


Desta forma, os tribunais não eclesiásticos, em matérias temporais, apenas recorreriam
ao direito pátrio, ao direito subsidiário e aos costumes com força de lei.

O passo seguinte na limitação imposta ao direito canónico veio a ser dado com a Lei da
Boa Razão, em 1769, quando se dispôs que o direito canónico só poderia, a partir daí, ser
utilizado nos tribunais civis em quatro situações possíveis:

• Nos casos em que a própria lei civil o mandasse aplicar;

• Nos casos em que os seus preceitos fossem utilizados pelas nações civilizadas da
Europa, como forma de correcção às normas do direito romano;

• Nos casos em que fosse impossível o recurso a qualquer outra legislação;

• Nos casos em que se devesse tomar conhecimento da norma canónica para


impedir os excessos e a opressão praticada pelos Juízes Eclesiásticos, isto é, para
evitar os abusos desses Juízes.

Fora destas situações, o direito canónico não devia aplicar-se nos tribunais civis.

A lei da boa razão, recorrendo às palavras dos professore Albuquerque, veio vibrar o
golpe mortal no sistema vigente.
Esclareceu definitivamente que: “aos meus ministros seculares não toca o conhecimento
de pecados; mas sim, e tão somente dos delitos; e ordenando, como ordeno, que o referido
conflito fundado naquela errada suposição cesse inteiramente; deixando-se os referidos
textos de Direito Canónico para os Ministros, e Consistorios Eclesiásticos o observarem
(...) seguindo somente os meus Tribunais, e Magistrados Seculares nas matérias
temporaes da sua competência as leis Pátrias, e subsidiárias, e os louváveis costumes, e
estilos legitimamente estabelecidos.”.

A cultura canonística em Portugal

Quanto à situação da canonística neste período, refira-se que o ensino universitário do


Direito continua distribuído por 2 faculdades: cânones e leis.

A faculdade de cânones conheceu as vicissitudes da docência jurídica em geral.

Entre os canonistas de maior nomeada contam-se Martim de Azpilcueta Navarro,


Bartolomeu Filipe e Gonçalo Mendes de Vasconcelos e Cabedo para o séc. XVI, e para
o séc. XVII Agostinho Barbosa, D. Rodrigo da Cunha e Tamudo da Fonseca

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ESTILO DAS CORTES1

Nas Ordenações Afonsinas como depois nas Ordenações Manuelinas e Filipinas


mencionava- se, entre as fontes de direito, o estilo da corte.

O conceito de estilo não era unívoco, sendo certo, todavia, que se tratava de um costume
de origem judiciária/tribunal.

O estilo era uma fonte principal de direito no período monista, embora estivesse sujeito a
requisitos de validade.

O estilo (que se formava nos tribunais de última instância ou superiores) devia, como as
demais fontes de direito, obedecer a certos requisitos:

• Não devia, tal como qualquer ato judicial, contrariar a lei


• Devia ser prescrito, ou seja, existir à mais de 10 anos
• Ser plural, quer dizer que não bastava um ato judicial para se tornar um estilo,
antes se impunha a multiplicidade de atos.
• Depois do assento de 20 de dezembro de 1757, julgou-se que o estilo devia ser
também conforme à boa razão. De acordo com as Ordenações, os estilos da Corte
legitimamente estabelecidos constituíam lei e se deviam observar como tal.

De acordo com a disciplina das ordenações, os estilos valiam como lei e deviam ser
aprovados por assento.

Em 1605 determinou-se que só seriam válidos os estilos aprovados por assento da Mesa
Grande da Casa da Suplicação.

E, depois de 20 de Dezembro de 1757, exigiu-se que fosse conforme à boa razão.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 79 a 82

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A QUESTÃO DO NOVO CÓDIGO1

Por decreto de 31 de março de 1778, a rainha D. Maria I tomou a decisão de nomear uma comissão, na qual
se integravam 10 juristas, que funcionavam como assessores de uma Junta de Ministros, com o objetivo de
todos em conjunto procederem à reforma das Ordenações Filipinas e elaborarem um Novo Código.
Porém, a questão do Novo Código não passou de uma querela doutrinária e nunca chegou a acontecer na
prática. Este tempo histórico é conhecido como “A Viradeira”.

Composição da Comissão
A comissão era presidida pelo Ministro e Secretário de Estado do Negócios do Reino, dela fazendo parte o
Desembargador do Paço, o Desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação, o Procurador da Fazenda do
Ultramar e o Procurador da Coroa.

Além destes 5 notáveis da hierarquia judicial eram agregados à comissão 10 jurisconsultos, colaboradores na
especialidade.

A Junta tinha como missão estabelecer a Ratio das Leis em vigor, o que até aí se apresentava difícil visto a
pluralidade de umas como a antiguidade de outras.
Para este efeito estabeleceram-se balizas metodológicas, determinando-se que os Membros da Comissão
seguissem a divisão de matérias contida nas Ordenações , pelo que os jurisconsultos se repartiriam em grupos
de análise a cada 1 dos 5 livros das Ordenações.

Estas medidas tinham como objectivo:


• Averiguação das leis, que pela sua antiguidade, eram já inúteis, tentando-se a sua adaptação para o
presente e futuro;
• Averiguação das leis que se encontravam revogadas total ou parcialmente;
• Averiguar quais as leis, que devido à variedade de opiniões sobre a sua Ratio, teriam sido aplicadas de
forma diferente;
• Averiguar quais as leis que necessitam de ser revistas, para benefício público, podendo depois
proceder-se à escolha daquelas que poderiam fazer parte do novo Código.

Os motivos desta decisão tinham a ver com:

• Antiguidade de algumas leis


• Existência de outras leis de que não havia a certeza se estavam revogadas
• Existência de leis que levantavam dúvidas de interpretação na prática forense
• Existência de leis que a experiência aconselhava a modificar

Como o trabalho desta comissão não foi produtivo, em 1783, um outro jurista foi incumbido de reformar os
Livros II e V das Ordenações, relativos a matérias de direito público, direito político-administrativo e direito
criminal.
Este jurista era Pascoal José de Melo Freire dos Reis, conhecido pela sua tendência conservadora e
absolutista. Do seu esforço resultaram dois projetos de Código de Direito Público e de Código Criminal.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 130 a 153

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Melo Freire
10 de Fevereiro de 1783
Pascoal José de Melo Freire dos Reis passa a fazer parte da comissão revisora

A partir de 1789 vai publicar sob a égide da Academia das Ciências as suas Institutiones Iuris Civilis Lusitani
e Institutiones Iuris Criminalis Lusitanis.

Orientou a sua reforma do Livro II em torno de alguns princípios essenciais, que traduzem a sua filiação à
conceção do direito divino dos reis, do despotismo esclarecido. Ele defendia um conceito de monarquia
pura, era absolutista convicto e simpatizante das teses hierocráticas, argumentando que não poderiam existir
leis limitadoras do poder do monarca.

Ele entende que o poder que advém ao rei é derivação imediata de Deus. Os príncipes não devem a sua
autoridade ao povo, não estão dependentes dele, porque não é dele que recebem o seu poder. Assim, as
limitações que existem ao poder do Rei são muito reduzidas e praticamente se restringem às regras da sucessão
régia, consagradas nas atas das Cortes de Lamego. Contudo, isto não quer dizer que ele queira um Rei
desumano, na verdade, ele quer um bom pai.

Depois da apresentação do trabalho de Melo Freire, a Rainha nomeou por decreto de 3 de fevereiro de 1789,
uma Junta de Censura e Revisão dos trabalhos, da qual fazia parte um outro jurista e lente de cânones, de
seu nome António Ribeiro dos Santos, conhecido pela sua tendência liberalista.

Ribeiro dos Santos


Era considerado um pró-liberal, simpatizante das teses antihierocráticas e defendia um conceito de monarquia
consensualista, em que o poder do monarca estava limitado pela existência das chamadas leis fundamentais,
que resultavam expressa e tacitamente de uma convenção entre o Rei e o Povo.

As Cortes, na opinião deste jurista, não podiam ser vistas como uma fonte limitativa do poder, até porque
existiam direitos invioláveis.

Com efeito, as diferenças de conceção do poder político de um e de outro, levaram a uma polémica e a um
conflito político-jurídico entre os dois, o que frustrou completamente a aprovação destes projetos, os quais
não passaram de uma tentativa para a elaboração de um novo código.

Disputa Ideológica

Esta polémica reduzia-se a uma luta entre um adepto do despotismo esclarecido, Melo Freire, e um
simpatizante do liberalismo, Ribeiro dos Santos.

Melo Freire defendia um conceito de monarquia pura, era absolutista convicto e simpatizante das teses
hierocráticas, argumentando que não poderiam existir leis limitadoras do poder do monarca.

Ribeiro dos Santos era considerado um pró-liberal, simpatizante das teses anti- hierocráticas e defendia um
conceito de monarquia consensualista, em que o poder do monarca estava limitado pela existência das
chamadas leis fundamentais, que resultavam expressa e tacitamente duma convenção entre o Rei e o Povo. As
Cortes, na opinião deste jurista, não podiam ser vistas como uma fonte limitativa do poder, até porque existiam
direitos invioláveis.

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Monista Legalista

Embora defendendo modelos políticos diferentes, ambos consideravam o direito como monopólio do Estado,
fosse ele produzido exclusivamente pelo Rei (Melo Freire) ou dividido entre o Rei e as Cortes (Ribeiro Santos).

Entre o liberalismo vintista e o jacobino e o despotismo esclarecido de Pombal há o mesmo objectivo


estadualista: neste é o príncipe iluminado a uniformizar a variedade pluralista das comunidades, naquele são
os parlamentos e as respectivas “vontades gerais” absolutas.

O mesmo tipo de razão iluminando dois processos apenas instrumentalmente contraditórios. Porque o real
inimigo de ambos é a sociedade pluralista gerada na Idade Média onde o poder dos reis nasceu ou cresceu
através do consenso das ordens.

Fontes de direito
Para ambos, a ordem jurídica assentava numa visão monista, em que a lei era praticamente a fonte exclusiva
do direito.

Assentos da Casa da Suplicação


• Melo Freire
Propõe que mantenham força para resolver dúvidas sobre a Ratio de leis e sua aplicação, isto é, autoridade de
interpretação autêntica.

• Ribeiro dos Santos


Pelo contrário, considera isto como inconveniente: “é conferir-lhe um porção considerável do poder
legislativo, que nunca convém deixar sair das mãos do Príncipe, para a delegar e repartir pelos súbditos. “É
necessário inspirar aos povos confiança, respeito e amor às leis, e por conseguinte às interpretações, que fazem
parte deles: ora os povos pelo comum respeitam mais a lei e declaração, que emana imediatamente do sagrado
consistório do Príncipe”
Nota: O conceito de lei em Ribeiro dos Santos adquire precisos contornos: “as leis devem ser simples
mandamentos, que determinem as acções dos súbditos, e não lições académicas, em que se exponham as
razões e motivos em que elas são fundadas” porque ”dando-se as razões das leis, se abre francamente a porta
a desvairadas dúvidas e interpretações”.

É importante referir também que Ribeiro dos Santos entende que não basta uma mera revisão quanto ao
edifício das fontes de direito, mas sim uma codificação do Direito.
Direito Romano, ambos concordavam em retirar-lhe a posição de direito subsidiário. Porém:
• Ribeiro dos Santos vai ainda mais longe, criticando bastante o próprio ensino do Direito, afirmando
que é um exagero existirem oito cadeiras de Direito Romano e apenas uma de Direito Pátrio. Ele
entende inclusivamente que o ensino do Direito deveria ser reformado no sentido de limitar mais ainda
a presença do Direito Romano.

Livro V de Direito Criminal, a polémica foi particularmente grande:


• Melo Freire
Tão severamente criticou o direito criminal das Ordenações, na esteira do humanismo de Beccaria, no seu
projecto de Código Criminal ficou aquém da filosofia que o norteava e que tão longamente expende nas
Institutiones Iuris Criminalis Lusitani.
No projecto mantém a pena de morte para vários delitos, aceitando crueldades como o esquartejamento post
mortem.
• Ribeiro dos Santos
Pelo contrário, se considerava a pena de morte como lícita, demonstra exaustivamente a respectiva
inconveniência. Ele declara a este respeito que não convém hoje propor no Código este princípio – que a pena
de morte no estado ordinário é necessária na república. Esta pena não pode ser senão uma guerra contra um
cidadão, cuja morte se tem por útil e necessária à conservação da sociedade, e que nunca pode verificar-se no
estado ordinário da república.

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Monarquia Pura de Freire de Melo

Na resposta à primeira Censura de Ribeiro dos Santos, Melo Freire confessa explicitamente os princípios que
o nortearam:
• A autoridade do Rei não provém do Povo, nem dele recebe o poder que exerceram e continuam a
exercer;
• Em Portugal não há qualquer lei que limite o poder do rei, e que entregue parte do poder ao povo ou a
qualquer outra ordem social, logo, por consequência, o poder reside só na pessoa do Rei;
• A sucessão do Reino deve ser decidida pelas actas das Cortes de Lamego e não pelos “princípios de
Direito Público universal, e das Gentes”;
• O Reino de Portugal pertence ao Rei para nele exercer o livre império e administração, visto não ter
sido doado ou provindo da translação dos povos, mas adquirido por direito de sangue ou por conquista.
Não quer isto dizer que o reino seja propriedade do rei, e que este possa usar e abusar dele, mas só que
o Rei temo direito de livre administração de todos os bens e pessoas do estado, e autoridade para dispôr
de tudo segundo a exigência da causa pública.
Melo Freire dizia ainda que não quer “um rei tirano e despótico”. “Eu quero um rei humano, que conheça que
ele foi feito para a república, e não a república para ele; que ame os seus vassalos; que lhes administre justiça
sem acepção de pessoas; que os contenhas nas suas respectivas obrigações; que os premeie e castigue depois
de os ouvir, que lhes faça guardar os seus privilégios que não forem prejudiciais aos povos; que respeite o
sagrado direito de propriedade; que não abuse do seu poder e que não prive o homem e o cidadão da sua
liberdade natural e civil, senão no caso de assim o pedir a causa pública e o bem universal da sociedade”.

Quanto a outras “cedências” de Melo Freire, Cabral Moncada refere que aquele no Projecto afirmou que aos
vassalos, como membros do corpo político do Estado, de que o rei teria a direcção e o governo, estão
igualmente inerentes e competem certos e determinados direitos, fazendo uns e outros o objecto do direito
público.

A monarquia consensualista de Ribeiro dos Santos

Ribeiro dos Santos faz questão em especificar o que entende por leis fundamentais resultantes da “convenção
expressa ou tácita entre o Povo e o Príncipe, que devem ser as primeiras, que mais se declarem, e se ponham
em maior luz”.
Para o autor estas eram, além das actas das Cortes de Lamego, as que garantiam os direitos invioláveis, os
foros e privilégios do corpo da nação e dos diferentes estados do reino.

“O bem do Estado pede, que depois de se haverem posto neste Código os sagrados direitos de majestade do
Príncipe, não esqueçam os direitos invioláveis da nação”, porque haveria de “considerar os vassalos como
corpo da nação”.
“Os direitos que competem aos vassalos podem ser de 2 géneros: direitos públicos, devidos a todos os vassalos
em razão das leis fundamentais, ou naturais ou positivas; os direitos particulares, que podem resultar a cada
um deles em razão dos seus serviços feitos à Coroa para obterem mercês e recompensas. Os primeiros
pertencem ao direito público universal, ou ao direito público constitucional da Nação...”

Diz claramente “que os povos, constituindo os reis, lhes não transferiram absolutamente todo o poder e
autoridade que tinham, mas só lhes deram o poder de administração, fazendo-os primeiros magistrados e
mandatários da nação; e a ela inteiramente sujeitos e responsáveis no seu governo”.

Criticando a Melo Freire o facto de estabelecer ao príncipe o direito de privativamente fazer leis, Ribeiro dos
Santos, invocando os antigos privilégios das Cortes que considera como não prescritos, considera a questão
do seguinte modo: ”Este antigo conselho legal das Cortes não era uma instituição arbitrária e dependente da
vontade dos nossos príncipes, mas um estabelecimento constitucional, fundado nos nossos antigos usos e
costumes... que exigiam a concorrência da Nação, ou dos seus representantes, no exercício do poder
legislativo”.

Era a defesa de uma monarquia consensualista e representativa, conformada por uma constituição histórica e
limitada pelos foros tradicionais e por um direito superior aos povos e aos reis.

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REFORMA DOS FORAIS1
Os forais são uma fonte de direito local extraordinariamente importante.
Quando chegamos ao século XV e XVI esta fonte permanece como fonte de direito em Portugal. Ainda
que eles não estejam integrados no texto das Ordenações, o que é facto é que eles continuavam a reger
como direito local a vida das populações, correspondendo a símbolos de autonomia.
No período pluralista, os forais foram uma fonte de direito essencial, porém, no período monista,
foram perdendo a sua importância e foram-se, a pouco e pouco, desatualizando, devido à língua em
que estavam redigidos (latim) e devido à sua antiguidade.
Além disso, os nossos monarcas foram legislando e, por vezes, surgiam conflitos entre os forais e a
lei do rei.
Tudo isto levou a protestos e a pedidos de reforma, que se tornaram particularmente insistentes no
século XV.
D. João II foi sensível à reivindicação dos povos e, em 1481, vai mandar recolher os forais à Corte
para que esse direito local pudesse ser atualizado. O que é facto é que esta determinação do rei parece
não ter sido bem-sucedida.

Nessa altura, as cartas de foral e os foros continham menções, atributos,


moedas, pesos e medidas que já não correspondiam aos de uso corrente,
justificava-se, por isso, uma Reforma dos Forais, a qual começou em 1497
com a recolha dessas cartas de privilégio e findou por volta de 1520, portanto,
já no período das Ordenações Manuelinas.

Em 1497, D. Manuel I, manda recolher à Corte todos os forais e a demais documentação onde
estivessem consignados direitos sobre as terras a nível local, para que pudessem ser reformados.
O rei vai encomendar este trabalho aos juristas Rui Boto, João Façanha, Fernão de Pina, Rui da Grã,
Diogo Pinheiro e João Pires.

O objetivo deste trabalho era que os forais fossem atualizados, portanto:


o Manteve-se a matéria atual
o Expurgou-se a matéria que já não era adequada
o Atualizou-se o que era necessário
A reforma dos forais não serve apenas o interesse dos povos, em permanecerem como fonte local
atualizada, serve também o interesse do rei. Havia muita matéria integrada nos forais, sobretudo, ao
nível do direito público, onde o monarca também foi legislando, por isso, não lhe interessava que essa
matéria permanecesse legislada avulsamente. Se agora existe lei régia que disciplina toda aquela
matéria para vigorar em todo o território nacional, então, o rei também aproveitou para retirar dos
forais aquela matéria que já estava prevista em lei geral e que não valia apena estar lá incluída.

1
Rui e Martim de Albuquerque, História do Direito Português, II Volume, Tomo II, 1983, página 88 a 91

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Assim, foi também associada aos forais legislação relevante que o rei tinha, entretanto, produzido, para
facilitar o trabalho de unificação: a Ordenação e Regimento dos Pesos e o Regimento dos Oficiais
das Cidades, Vilas e Lugares do Reino.
Este trabalho foi concluído em 1520, altura em que os forais reformados foram devolvidos ás terras.
Resultou então uma classificação:

• Forais velhos (anteriores à reforma)


• Forais novos (atualizados ou reformados)
• Forais novíssimos (atribuídos depois da reforma, depois de 1520)
O conteúdo dos forais passou a restringir-se ao seguinte:
o Prestações e serviços a que as comunidades deviam ficar sujeitas perante o rei e perante os
senhores das terras.
o Encontra-se a transcrição de algumas leis gerais que eram particularmente relevantes para as
localidades, nomeadamente, a lei da vizinhança, que definia quem é que podia ter o estatuto
de vizinho naquela localidade.
o Estabeleceram-se regras quanto aos funcionários, os tabeliães e às quantias que deviam ser
pagas.
As matérias de índole geral foram retiradas dos forais porque estavam já reguladas nas Ordenações.

Estes forais, se comparados com os forais antigos, não têm a mesma originalidade, perdem grande
parte do seu conteúdo, deixaram de ser fonte essencial de direito para muitos ramos do Direito, que
permanecem agora regulados por lei, nas Ordenações.
Contudo, as populações continuam a olhar para os forais como as suas cartas de liberdade, as suas
cartas de privilégio, os seus estatutos locais. No fundo, eles expressam os seus direitos face ao rei e à
lei geral.
Devido a tal, algumas localidades, ainda hoje, continuam a celebrar os seus forais.
Apesar de limitados a matérias de interesse local, os forais vigoraram ainda até ao séc. XIX e só foram
extintos no âmbito de uma reforma administrativa, pelo chamado Decreto 23 de Mouzinho da Silveira.

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