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TURCO DE CUIA E BOMBACHA: SÍRIOS E LIBANESES

NO RIO GRANDE DO SUL


Julio César Bittencourt Francisco1
Introdução
Embora a maioria dos sírios e libaneses que chegou ao Brasil fosse formada por
agricultores, a estrutura fundiária do país, baseada nas grandes propriedades e na
monocultura, a carência de terras disponíveis a baixos preços e os parcos recursos
financeiros trazidos por eles inviabilizaram sua fixação no meio rural. Como eles
também não se enquadraram na categoria de operários urbanos, ficaram à margem do
perfil idealizado pela política imigratória brasileira. Esses imigrantes concentraram-se
sim nos centros urbanos, mas nele desenvolveram atividades relacionadas ao comércio,
seja primeiro como ambulantes (mascates), ou mais tarde em negócios regularmente
estabelecidos. Contudo, a sua atuação profissional não estava restrita somente às
cidades, uma vez que a “população rural representava um importante contingente de
consumidores a serem atendidos” (ALMEIDA, 2000, p. 87). Desse modo, eles deram
uma importante contribuição no processo de ocupação do território nacional,
“funcionando como elementos dinamizadores dos mercados local e regional, integrando
regiões até então isoladas do mercado consumidor” (NUNES, 1986, p. 62).
Nos primeiros anos de atividade, os mascates, em visita às cidades interioranas e
principalmente às fazendas, levavam apenas miudezas e bijuterias. Mas com o passar do
tempo e o aumento do capital, começaram também a oferecer tecidos, lençóis, roupas
prontas, entre outros artigos. Conforme acumulavam os ganhos, os mascates
contratavam um ajudante ou compravam uma carroça; o passo seguinte era estabelecer
uma casa comercial. Foram eles que introduziram as práticas da alta rotatividade e alta
quantidade de mercadorias vendidas, das promoções e das liquidações.
Algum tempo depois, principalmente em São Paulo, onde se concentravam os
mais importantes comerciantes atacadistas, eles ingressaram no setor industrial. A
expansão de suas atividades econômicas na produção têxtil na década de 1920 coincidiu
com a ‘era dourada’ da fabricação de tecidos no Brasil. Após a Primeira Guerra
1
Mestre em Memória Social e Documento pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Professor Assistente do Departamento da Ciência da Informação da FABICO/UFRGS. Doutorando em
História pela PUC/RS.
Mundial, as fábricas brasileiras de têxteis aumentaram em 50% a sua produção,
reduzindo assim a participação das importações inglesas no mercado nacional. O grupo
étnico que mais se beneficiou desta situação foram exatamente os sírios e libaneses que,
no final dos anos 1920, despontaram como uma poderosa força econômica em São
Paulo (TRUZZI, 1992, p. 66). Na década seguinte, era crescente a sua presença no
conjunto da indústria têxtil brasileira, destacando-se, sobretudo na produção de fibras
sintéticas.
Sírios e Libaneses e as estatísticas nacionais da 1ª metade do século XX
As estatísticas da Imigração Brasileira de 1880 a 1969 mostram que, enquanto
portugueses representavam 31% das migrações, italianos 30%, espanhóis 14%,
japoneses 5%, alemães 4%, os imigrantes do Oriente Médio totalizavam somente 3% e
iniciaram sua entrada no Brasil a partir do período de 1890 (LESSER, 1999, p.9).
Os dados numéricos sobre a entrada no Brasil dessa corrente imigratória são
muito imprecisos, sobretudo porque até 1892 todos eles (sírios, libaneses, palestinos e
mesmo turcos) foram classificados como turcos. Foi apenas a partir deste ano que os
sírios passaram a ser registrados separadamente. Como até 1920 – depois, portanto, do
término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e início do mandato francês na Síria e
no Líbano – o Líbano foi considerado parte da Síria, por isso todos os libaneses foram
incluídos entre os classificados como sírios. Todavia, “tanto antes como depois de 1892
a imensa maioria dos imigrantes registrados como turcos eram, de fato, sírios e
libaneses” (PIMENTEL, 1986, p. 121). Ernesto Capello (2002) afirma basicamente o
mesmo, mas fornece outras datas. Segundo ele, as duas nacionalidades – síria e libanesa
– “foram incluídas numa única categoria pelas autoridades de imigração brasileiras até
1926, ano em que o Líbano se separou da Síria”. Na verdade, complementa o autor, até
1908 todos os imigrantes do Império Otomano eram classificados no Brasil como
‘turco-árabes’. Por conseguinte, diz ele, “é totalmente impossível ter à disposição dados
estatísticos confiáveis acerca do número de imigrantes especificamente sírios ou
libaneses” (CAPELLO, 2002, p. 34).
Contudo, é certo que nos períodos de 1895 a 1914, nos anos 1920 e no pós 1945
registraram-se as entradas mais expressivas desses imigrantes no país. Durante as duas
grandes guerras, o fluxo se reduziu de modo significativo ou praticamente cessou. No
conjunto, os dados disponíveis contabilizam o ingresso de 57.020 pessoas entre 1895 e
1914, de somente 2.693 entre 1914 a 1919 (no contexto da Primeira Guerra Mundial) e
de 42.210 de 1920 a 1930, totalizando 101.923 imigrantes (ALMEIDA, 2000, p. 14).
Nesse último período os ingressos anuais dos sírios e libaneses variaram entre mil e
cinco mil imigrantes, atingindo um pico de 7.308, em 1926 (NUNES, 2000, p. 60).
O ano de 1930 marca o início das restrições imigratórias. Pelo Decreto 19.482,
de 12 de dezembro de 1930, o novo governo brasileiro (Getulio Vargas havia assumido
o poder pouco antes, através da vitória da Revolução de 1930), limitava a imigração aos
estrangeiros já domiciliados no Brasil, aqueles cuja entrada fosse solicitada pelo
Ministério do Trabalho e, sob certas condições, aos trabalhadores especializados
(PIMENTEL, 1986, p. 47). A subsequente adoção do sistema de cotas, somada à
depressão econômica, provocou uma redução substancial do fluxo imigratório em geral.
No caso específico dos sírios e libaneses, entre 1930 e 1940 a média de entradas no
Brasil ficou entre cem e quinhentos por ano. Com a Segunda Guerra Mundial, esses
números foram drasticamente reduzidos2 (NUNES, 1986, p. 89).
DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO SÍRIA E LIBANESA: PRINCIPAIS
ESTADOS RECEPTORES

Estado 1920 1940


São Paulo 19.285 23.948
Minas Gerais 8.684 5.902
Distrito Federal 6.121 6.510
Rio de Janeiro 3.200 2.541
Rio Grande do Sul 2.565 1.903

2
Cabe informar que o termo ‘imigrante’ foi redefinido pelo Decreto nº 24.215, de 9 de maio de 1934.
Desse modo, imigrante passou a ser aquele que vinha ao Brasil para exercer um ofício ou profissão por
mais de 30 dias; o não imigrante, por sua vez, era quem permanecia no país por até 30 dias. Essa
definição foi considerada insatisfatória, e por conta disso, quatro anos depois a legislação foi novamente
alterada, pelos decretos nº 406, de 4 de maio de 1938, e nº 2.010, de 20 de agosto de 1938, incluindo
agora as categorias ‘permanente’ e ‘temporário’. Os classificados como temporários eram os turistas,
viajantes em trânsito; os permanentes os que constituíam lar definitivo no país (KNOWLTON, 1961, p.
35, apud SIQUEIRA, 2000, p. 26-27).
Paraná 1.625 1.576
Pará 1460 848
Mato Grosso 1232 1.066
Bahia 1206 947
Quadro 1 – quadro montado pelo autor. Fonte: Recenseamento do Brasil
1920, 1947, p. 123, apud PIMENTEL, 1986, p. 56.

Ainda de acordo com o Censo de 1940, o número de sírios e libaneses do sexo


masculino chegava a 27.689, enquanto as mulheres somavam 18.097. Os homens
também superavam em muito às mulheres em relação à naturalização: 4.163 contra
1.284. Todavia, no que concerne aos descendentes de segunda geração, registrava-se um
grande equilíbrio: 53.769 homens contra 53.307 mulheres (CORTES, 1958, p. 72).
A imigração árabe no Rio Grande do Sul
Como vimos acima, o Rio Grande do Sul foi o quarto estado brasileiro em
número de ingressos oficiais de sírios e libaneses (se considerarmos o DF. – Guanabara,
e Estado do Rio de Janeiro como um só estado) contabilizando 4.468 pessoas até 1940.
Há escassa literatura ou trabalhos acadêmicos sobre imigração de árabes no Rio
Grande do Sul, as exceções são o trabalho de conclusão de curso de Ciências Sociais de
Rosi Maria Reis Selaimen da UNISINOS, de 1987, o livro de Cecília Kemel: sírios e
libaneses: aspectos da identidade árabe no sul do Brasil do ano 2000 e a dissertação de
mestrado Leonora Silveira Pereira, defendida em 2001 no Programa de pós-graduação
em Antropologia da UFRGS, intitulado A discreta presença muçulmana de Porto
Alegre. A professora Denise Jardim, deste Programa de Pós graduação da UFRGS, é
autora de alguns trabalhos sobre Palestinos no Sul do Estado do Rio Grande do Sul.
Há ainda um verbete no volume V da Enciclopédia Rio-grandense (1958) cujo
organizador, Klaus Becker, destaca algumas famílias árabes que se estabeleceram no sul
Estado do Rio Grande em fins do século XIX, especialmente em Rio Grande, Pelotas e
Bagé. Essas informações encontram apoio no trabalho de Cecília Kamel (2000) que
indicam que “a entrada desses primeiros imigrantes no Rio Grande do Sul deu-se pelo
porto de Rio Grande, por via terrestre a partir do porto de Santos e, não raras vezes,
também por vias terrestres a partir da Argentina e do Uruguai”.
Com acesso aos quatro cantos do Estado, não é estranho, portanto, que os
sírios e os libaneses se encontrem disseminados por todo o Rio Grande do Sul,
Embora algumas localidades se tenham tornado grandes redutos desses
imigrantes entre elas, Pelotas, Alegrete, Santa Maria, Cachoeira do Sul, Bagé,
Passo Fundo, Rio Grande, Caxias, Erechim, São Gabriel e São Borja, além de
Porto Alegre. Acrescente-se ainda, que além da cidade de Rio Grande no
interior do Estado, especialmente no trecho que vai de Capão da Canoa, até São
José do Norte, existem entre os moradores, um grande grupo de sírios e
libaneses inteiramente integrados à vida rural gaúcha. (KEMEL, Cecília, 2000,
p.34)

A História Oral: Um estudo de caso no Rio Grande do Sul.

Como parte do projeto ‘Memórias da Imigração’, realizado entre 2003 e 2004 no


departamento de pesquisa da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, o autor
realizou 37 entrevistas com imigrantes e descendentes de sírios e libaneses para a edição
de um livro sobre esta imigração que seria lançado em 2005. A publicação do livro
acabou por ser cancelada, no entanto, algumas entrevistas foram usadas em sua
dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em Memória Social e
Documento da UNIRIO, defendida em 2005, sob o título ‘Imigração sírio e libanesa no
Rio de Janeiro: escolhas individuais, memórias coletivas’.
Como um estudo de caso, e para ilustrar este artigo, selecionamos a entrevista de
Muhamed Baccar, filho de um imigrante libanês, muçulmano, que se estabeleceu no Rio
Grande do Sul no início do século XX. A entrevista foi realizada em 27/02/2003 no Rio
de Janeiro. A transcrição da entrevista foi editada, de maneira que a fala do descendente
fosse priorizada. As perguntas que fizemos estão subtendidas a partir das respostas,
como veremos a seguir. Muhamad fala de si e da memória de seu pai Ahemed, que
chegou ao Rio Grande do Sul aos 18 anos nas primeiras décadas do século XX.
Meu nome se pronuncia exatamente assim, Muhamad Amin Baccar3. Nasci em 02 de
Julho de 1932, em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. O nome do meu pai é
Ahemed Amin Baccar e o da minha mãe Naigla Baccar.

3
Muhamad Baccar foi um pioneiro da Petrobrás. Faleceu aos 79 anos em 06/09/2011 no Rio de Janeiro.
Para maiores informações consultar http://memoria.petrobras.com.br (procurar depoimento pelo nome)
Meu pai veio do Líbano, acho que com uns 18 anos...
Meu pai veio do Líbano, acho que com uns 18 anos. Ele é de uma cidade chamada
Joadet Marjayoûn. Minha mãe já é filha de libaneses, nascida no Brasil. A minha
mãe nasceu em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. A família dela é Bugazel, em
árabe eu não sei, talvez seja Burdzem ou coisa que o valha. Minha mãe falava
português, ela não falava árabe. Aprendeu a falar árabe com meu pai, ou seja, o
que ele tinha que falar com ela em árabe ela entendia... Tenho duas irmãs vivas,
são Bader e Fátima.

Era analfabeta em português e em árabe


Eu só conheci minha avó materna, só. Ela falava árabe, português muito mal.
Era analfabeta em português e em árabe. Tenho lembranças muito boas dela,
principalmente porque ela era ótima cozinheira. Era uma pessoa comum do
interior do Rio Grande do Sul, usava um coque na época, vestia- se com roupas
compridas, em geral mais escuras, mais austeras. Mas era o comum daquela
época, para aquela idade dela. Tudo o que ela fazia era delicioso,
principalmente o quibe, o charutinho. Ah, ela fazia de pilão é claro. Eles eram
cristãos.

O que vou falar são conclusões minhas...


O que vou falar são conclusões minhas... interpretando ao longo das histórias que
ele contava. Ele chegou na época da Primeira Grande Guerra, foi justamente
quando o Império Otomano se desmanchou. Ele veio até com um passaporte turco.
Chegou em São Paulo e já tinha uns parentes dele na cidade de São Jorge. Só
depois ele foi para o Rio Grande do Sul.

Então ele veio fugido para depois voltar.


Ele tinha uns tios aqui. Não sei se foi por isso que ele veio... O que eu acho é
que ele veio porque havia uma guerra entre os muçulmanos e os franceses, que
dominavam essa área de Marjayoûn. Ele não dizia nada, eu que concluí. Ele
era do exército. Do exército local. Quer dizer que devia ser de uma força de
libertação nacional. É, deve ter sido. Eu sei que a cabeça dele estava a prêmio,
então ele veio fugido para depois voltar.

Meu avô foi fuzilado pelos franceses

Pouco tempo depois houve as independências da Síria e do Líbano. Antes disso,


por exemplo: eu sei assim de história que escutava... Meu avô foi fuzilado pelos
franceses. O meu pai tinha um ódio dos franceses tremendo. Quer dizer, o que está
acontecendo hoje na Palestina, no Oriente Médio, já existia naquela época em
relação aos ingleses e franceses. Meu avô foi fuzilado porque era das forças
revolucionarias lá.

Ele usou gravata preta até o final da vida.


Então eu me lembro bem que quando meu avô morreu, quer dizer, quando se
soube da notícia, meu pai passou a usar uma gravata preta e ele usou até o final da
vida. Isso eu era pequeno e ele usou até quando morreu. Ele não falava nada do pai
dele, sei apenas que ele estava no exército, então não tinha profissão. Se chegou
com 18 anos, então veja você que ele era muito jovem.

Se estabeleceu numa vila com sorveteria e bar

Somos quatro filhos, meu pai se estabeleceu depois que casou. Creio que deve ter
casado com uns vinte e quatro anos. Acho que ele mascateou durante muito tempo
antes de casar, então, depois que ele casou, se estabeleceu numa vila com uma
sorveteria e um bar. Na época, chamava-se Vila Teresa, hoje é Vera Cruz, é um
município. Era um distrito de Santa Cruz do Sul e hoje é município de Vera Cruz.
Tanto é que eu disse assim Santa Cruz, mas de fato eu nasci em Vera Cruz. Era um
povoado. Quando ele se mudou para Santa Cruz, foi logo depois que eu nasci, acho
que eu tinha um ano. Ele chegou e já botou uma faixa, de sorveteria e bar.

Melhor sorveteria do Rio Grande do Sul. De sorvete, eu entendo...

O interessante é o seguinte: a sorveteria chegou a ser considerada a melhor


sorveteria do Rio Grande do Sul. De sorvete, eu entendo, se você me disser: “Ah,
vamos comer um kibom?” Nem vou, porque eu sei que é porcaria. De sorvete eu
entendo. Ainda guardo as receitas dele... A sorveteria não foi assim um negócio
fantástico, mas deu para se viver bem. Aí, ele se mudou para Santa Cruz e terminou
comprando uma casa no melhor ponto comercial da época, na rua principal. Era rua
Marechal Floriano.

Teve apenas um outro patrício

Lá não havia nenhum outro árabe. Teve apenas um outro patrício que era um
solteirão, ele era muito amigo do meu pai e de mais ninguém. Esse solteirão
chamava-se Hassib Zorbi. Era conhecido por seu Filipe. É interessante essa coisa,
porque ele bebia e meu pai evidentemente não bebia. O Hassib bebia qualquer
coisa. Mas ele bebia, não é que ele vivesse bêbado, nunca viveu, eu nunca vi ele
bêbado, mas ele bebia. Gostava de um traguinho, Dom Bosco. Uma garapa. E vivia
do jogo. Jogo carteado. Mas ele jogava. Jogava com os alemães, toda vida que eu
conheci ele assim. Ganhava dinheiro. Vivia com aquilo. Ele gostava muito de mim,
eu era pequeno. Ele gostava de fazer um churrasquinho e tal. Ele era cristão. Só sei
que ele era assim. O Hassib não ia lá em casa porque ele vivia lá no bar, sempre as
nove horas ele chegava e sentava lá numa mesa. Falava árabe com meu pai, era
muito amigo dele, e aí saía de lá e ia jogar a noite, ganhava o dinheirinho dele,
vivia numa pensão, tomava chimarrão.

Era um homem extremamente correto


Meu pai morreu como um tipo de... Como é que eu vou dizer? De autoridade
daquela área. Os negócios que eram feitos, ele era consultado. Ele ajudava as
pessoas, créditos. Na praça meu pai fez um nome muito bom. Ele era muito
acreditado, muito respeitado. Ele era um homem extremamente correto. O que hoje
é difícil, não é? Ele era extremamente sério, na cidade ele era muito respeitado.
Depois, como estrangeiro, ele nunca se meteu em política. Ele sempre foi
absolutamente apolítico. Se dava com todo mundo porque era centro da cidade e
todo mundo ia lá. Ele nunca se envolveu com política. Ele nunca falava em
política. Ele sempre se dava com todo mundo, era absolutamente imune. Ele era
estrangeiro, mas nunca se naturalizou nem nada.

Marjayoûn é bem no sul do Líbano, quase na Palestina


O meu pai tinha alguns amigos em Porto Alegre, que raramente visitava. Naquela
época Porto Alegre ficava a quatro horas de viagem de ônibus, hoje fica à uma hora
e meia. Mas naquela época, quando tinha sorte fazia em quatro horas. Então os
amigos, a maioria do pessoal que morava em Porto Alegre era cristão ou era
Maronita ou Ortodoxos, poucos, muçulmanos havia muito poucos. Isso em todo
Brasil. Hoje há bastante por causa dessa nova imigração da Palestina. Ah, mas é
porque ali no Líbano, aquela zona, a maioria do pessoal que imigrou para o Brasil
veio da zona de Beirute e de outros lugares. Meu pai é de Marjayoun, que é bem no
sul do Líbano quase na Palestina, e aquilo, na época, eu acho que houve uma
divisão; ali era considerado Síria também. Até que os franceses dividiram tudo,
então aquela parte sul do Líbano era mais muçulmana.

O problema é dos últimos cinquenta anos

Meu pai ele era contra o sionismo. Ele começou a ser contra o sionismo quando
eles tomaram a Palestina e fizeram a Palestina. Mais ou menos em 1948. Até então
ele se dava bem com os judeus. Como eles conviveram bem durante quatro mil
anos ali. Esse problema é dos últimos cinquenta anos. É que a gente tende a
aumentar os cinquenta anos e esquecer a história que tem quatro mil anos.
Tenho cara de brasileiro, não é?
Meu pai era muito bem aceito também. Falava um pouquinho de alemão. Ele era
igual a um brasileiro. Parecia assim comigo. Eu tenho cara de brasileiro, não é?
Moreno. Mas meu pai, quando ele falava o “P” denunciava. O alemão falava pior
ainda.

Homens seriam batizados católicos e as filhas mulheres, não.

Ah, interessante isso, quando meu pai casou com a minha mãe, ela era cristã e ele
muçulmano. Eles concordaram que os filhos homens seriam batizados católicos e
as filhas mulheres, não. Então eu sou batizado católico e as minhas irmãs não eram
batizadas. Hoje elas são católicas, as minhas irmãs e eu não, nunca frequentei
igreja. Do lado, cinquenta metros de casa, na rua principal, ficava o Colégio
Marista, então meu pai, que se dava com os padres, também acordou com eles que
eu ia estudar no Colégio Marista, desde que não precisasse fazer o curso de
religião. Os padres concordaram, chegou-se a um acordo. Então eu não estudava
catecismo, não estudava e nem prestava exame.

Comida lá de casa era comida árabe

A comida lá de casa era comida árabe. Duas ou três vezes por semana. Os vizinhos
não vinham na nossa casa não. Os alemães não têm essa sociabilidade é cada um
por si. O alemão é muito fechado, cada família para si. Não é como o árabe que
gosta de juntar a parentada, juntar os amigos. Na cidade não havia chegada
constante de outros imigrantes árabes. Isso era muito raro. Só depois de 1948, com
a criação de Israel é que chegaram novos imigrantes Palestinos ao Sul.

Eram árabes mesmo, da comunidade

Tirei o científico lá em Porto Alegre. Depois eu fiz o vestibular e passei para


engenharia química. Na UFRGS. Em Porto Alegre eu conhecia os amigos de meu
pai, que era gente de muito dinheiro e de muita importância lá. Eles eram árabes
mesmo, da comunidade. Eram atacadistas de tecidos muito fortes. Eu tirei o curso
muito novo. E quando eu me formei, tinha 21 anos. Engenheiro Químico.

Ele ensinou as rezas, claro!

Eu com meu pai só falávamos em árabe. Obrigatoriamente tínhamos que falar


árabe com ele. Ele ensinou, claro que ensinou. O processo de nos ensinar era o
seguinte, tinha os livros que ele comprava em São Paulo. Também as rezas, claro!
Lembro-me perfeitamente: “Biçmillah irrahman irrahim! ‘Al-hâmdo li’Lláhi
Râbbil-álamin, Arrahmáni’rrahím, máliqui yâumi’ddin! Iyyáca nâebudo wa-Iyáca
naçtaín! Ehdená ‘çeráta’lmustaquim, çeratá’lladína aneâmta âleihim,
gâeiri’lmaghdúbi âlaihim, walá’ ddallin! Amin”.

Significa como se fosse um poema

Essa é a abertura do alcorão, qualquer livro de reza muçulmana abre com


essa reza. Significa como se fosse um poema. É uma reza que se traduz
assim: “Em nome de Deus, beneficente e misericordioso! Louvado seja
Deus, Senhor dos Mundos, beneficente e misericordioso, Senhor do Dia do
Julgamento! A Ti, somente, adoramos, de Ti, somente, esperamos socorro!
Mostra-nos o bom caminho, o caminho desses que tens favorecido, não o
caminho desses que incorrem na Tua cólera nem o dos que se perdem!
Amém”. É mais como uma reza assim, ele é rimado, em árabe é rimado e
em árabe é meio cantado também. Essa é a abertura, todos os muçulmanos
são obrigados a conhecer isso.

Conclusão

Todo vigor e potencial da metodologia da história oral restou comprovada neste


artigo. Mesmo se tratando do depoimento de um filho de imigrantes, pertencente a
chamada segunda geração, podemos observar que a memória transmitida4 só se
fortalece com o passar do tempo.
Uma ponte de memória ligando os séculos XIX e XXI foi estabelecida por sobre
o século XX através do depoimento de Muhamad. A micro-história como fonte primária
também é lugar privilegiado na história oral, como no caso da memória de fatos ligados
a trajetória do pai imigrante, mas também a eventos ligados as cidades de Santa Cruz do
Sul e Porto Alegre, que foram lembrados pelo entrevistado, e que, de outra forma,
estariam irremediavelmente perdidos ou esquecidos.
Ao se transferir do sul do Líbano para o sul do Brasil, o imigrante Ahmed
Baccar mudou não só o seu destino. Esta ação radical reverberou, sem dúvida, nas
próximas gerações de descendentes. Por isso, quando um brasileiro fala de seu pai
imigrante, em um projeto de história oral, ele esta recuperando uma parte da própria
história da imigração. Os fatores de expulsão da terra de origem, a trajetória e adaptação
na terra de acolhimento, a pauta matrimonial, a mobilidade espacial, a forma de
ascensão social, inclusive nas escolhas da segunda geração, só confirmam a
historiografia existente, porém, muitas vezes a desmente mas, quase sempre, a amplia e
enriquece.
Importante destacar o contraste entre os dois modelos migratórios no Rio Grande
do Sul. O alemão, restrito a áreas geográficas e cidades do sul do Brasil e que trouxe
4
De acordo com Pollack (1989) a memória é constituída por três elementos: os acontecimentos vividos
pessoalmente; os acontecimentos ‘hereditários’, quando se refere a fatos presenciados pelo grupo à qual a
pessoa se sente pertencer (...) e a memória construída, pelas pessoas e personagens. p.206.
colonos sob convite das autoridades, recebendo terras e auxílio fiscal, e o árabe, que foi
espontâneo, ou por conta própria, e, que se espalhou por quase todos os municípios do
território brasileiro, do Piauí ao Rio Grande do Sul, do Acre ao Maranhão, onde não há
cidade ‘que se preze’ que não tenha uma família árabe.
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