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Economia de idéias

O direito autoral sobreviverá à bomba Napster? Não, mas a criatividade sim

Por John Perry Barlow

A grande guerra cultural finalmente foi declarada. Longamente aguardado por alguns e
uma surpresa desagradável para outros, o conflito entre a era industrial e a era virtual
agora está sendo travado às claras, graças a algo modestamente concebido, mas
destruidor de paradigmas: o Napster. O que está acontecendo com a rede global peer-to-
peer não é, de forma nenhuma, diferente do que aconteceu quando os colonos
americanos se deram conta de que eles eram muito mal servidos pela Coroa Britânica.
Os colonos expulsaram aquele domínio e desenvolveram uma economia mais adequada
a seu novo ambiente. Já para os colonos do ciberespaço, o barulho começou em julho
passado (2000), quando a juíza Marilyn Hall Patel tentou fechar o Napster e silenciar o
mercado livre de música - algo que já contava com nada menos de 20 milhões de
usuários. Embora um tribunal superior tenha favorecido os napsterianos, seu decreto
transformou uma economia em desenvolvimento numa causa e tornou milhões de
adolescentes politicamente apáticos em Hezbollahs eletrônicos. Nem os maiores esforços
da juíza Patel, nem os dos executivos da Associação Americana da Indústria Fonográfica,
a RIAA, em seus Porsches, nem os defensores da lei de direitos autorais alterarão um
fato simples: nenhuma lei pode ser imposta com sucesso a uma imensa população que
não apóia moralmente e que possui meios fáceis para sua evasão invisível. Os velhos
executivos da indústria de entretenimento não se deram conta disso. Eles achavam que a
internet ameaçava seus impérios de "infoentretenimento" tanto quanto o radioamador
ameaçava a NBC. Afinal, ainda eram "donos" daquilo que chamavam de "conteúdo". E
não se preocupavam nem um pouco com a possibilidade de qualquer pessoa com um
micro reproduzir facilmente sua "propriedade" e distribuí-la para toda a humanidade.
Então, veio o Napster. Ou melhor, veio a internet real, uma rede instantânea que confere
a qualquer garoto cheio de espinhas um poder distributivo igual ao da Time Warner. São
garotos que não ligam a mínima para as disputas legais - e vários deles têm habilidades
de decodificação suficientes para descobrir e anular qualquer código em que a indústria
de entretenimento queira embrulhar as "suas" mercadorias. Além de leis ridiculamente
mal orientadas (e, provavelmente, inconstitucionais), os executivos do entretenimento
estão colocando muita fé nas soluções de criptografia. Mas antes que eles percam tempo
com seus mais novos programas de algoritmos, deveriam examinar o que já criaram até
agora. São sistemas como, por exemplo, o formato de videodisco pay-per-view Divx, o
SDMI (Secure Digital Music Iniciative) e o CSS, o sistema de criptografia de DVD que
desencadeou suas próprias hostilidades legais. Aqui está o placar atual: o Divx nasceu
morto. O SDMI provavelmente nunca vai nascer e o DeCSS (o decodificador de DVD) foi
lançado e está a todo vapor. A última vez em que se tentou amplamente usar a
tecnologia para evitar as cópias - lembra quando a maioria dos softwares era protegida
contra cópia? - ela falhou completamente. Embora os executivos do entretenimento
sejam lentos demais para perceber isso, um dia eles se darão conta de algo que
deveriam ter entendido há muito tempo: a livre proliferação da expressão não diminui seu
valor comercial. O acesso livre a aumenta e deveria ser encorajado, em vez de reprimido.
A guerra está aí, mas no meu entender ela acabou. O futuro vencerá; não haverá
propriedade no ciberespaço. Contemplai o PontoComunismo. É uma pena que os
tubarões do entretenimento estejam tão presos no passado para reconhecer isso, porque
agora eles estão nos pedindo para entrar na guerra. Portanto, vamos engordar
advogados com um fortuna que poderia ser gasta criando e distribuindo criatividade. E
podemos ser forçados a testemunhar algumas execuções públicas inúteis - a cruz de
Shawn Fanning espera - quando poderíamos empregar tal gênio condenado num serviço
de um bem maior. Naturalmente, uma coisa é vencer uma revolução e outra bem
diferente é governar suas conseqüências. Como, na ausência de leis que transformem
pensamentos em coisas, poderemos ter certeza de receber pelo trabalho que realizamos
com nossas mentes? A estrela criativamente talentosa precisa procurar um emprego
durante o dia? Não. A maioria dos empregos de colarinho branco já é um trabalho
intelectual. A maioria de nós vive hoje graças à inteligência, produzindo "verbos", isto é,
idéias em vez de "substantivos", como automóveis e torradeiras. Médicos, arquitetos,
executivos, consultores, advogados sobrevivem economicamente sem ser "proprietários"
de seu conhecimento. É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um
trabalho criativo decente durante 5000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de
Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovado pelo Parlamento Britânico.
Sófoles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach
- todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela
propriedade das obras que criaram. Mesmo durante o auge do direito autoral,
conseguimos algo bastante útil de Benoit Mandelbrot, Vint Cerf, Tim Berners-Lee, Marc
Andreessen e Linus Torvalds. Nenhum deles fez seu trabalho pensando nos royalties. E
há ainda aqueles grandes músicos dos últimos cinqüenta anos que continuaram fazendo
música mesmo depois de descobrir que as empresas fonográficas ficavam com todo o
dinheiro. Não resisto em retomar algo que discuti em 1994, num artigo da Wired chamado
"A economia de idéias". A banda Grateful Dead, para quem escrevi canções uma vez,
aprendeu por acidente que, se deixássemos os fãs gravar concertos e reproduzi-los
livremente - "roubando" nossa "propriedade" intelectual na mesma forma como fazem
esses napsterianos -, as fitas se tornariam um vírus de marketing que criariam fãs dos
Deads suficientes para encher qualquer estádio. Embora os fãs dos Deads tivessem
acesso a gravações gratuitas, eles ainda compravam álbuns em tal quantidade que a
maior parte deles faturou o disco de platina. Meus adversários sempre destacam esse
exemplo como um caso especial. Mas não é. Aqui estão alguns mais próximos de
Hollywood. Jack Valenti, chefe da MPAA (a associação de cinema) e líder na luta contra o
DeCSS, brigou para manter os videocassetes fora da América por meia dúzia de anos,
convencido de que eles matariam a indústria cinematográfica. Com o tempo, aquela
muralha desabou. Apesar da popularização dos videocassetes, mais pessoas do que
nunca vão ao cinema, e os aluguéis e as vendas de fitas representam mais da metade
das receitas de Hollywood. A RIAA está convencida de que a fácil disponibilidade de
músicas comerciais livremente copiadas na internet levará ao apocalipse. Mas, ainda
asim, desde que o MP3 começou a inundar a rede, as vendas de CDs aumentaram 20%.
Depois de desistir da proteção contra cópias, a indústria de software esperava que a
pirataria se espalhasse. E isso não aconteceu - o mercado continua crescendo. Por quê?
Quanto mais um programa é pirateado, mais provavelmente ele se tornará um padrão.
Todos esses exemplos apontam para a mesma conclusão: a distribuição não-comercial
de informação aumenta a venda de informações comerciais. A abundância gera
abundância. Isso é exatamente o contrário do que acontece numa economia física.
Quando você vende substantivos, existe uma relação inegável entre a raridade e o valor.
Mas, numa economia de verbos, vale o inverso. Existe um relacionamento entre
familiaridade e valor. Para idéias, fama é fortuna. E nada torna você famoso mais
rapidamente do que uma audiência que quer distribuir o seu trabalho de graça. Da
mesma forma, ainda persiste uma crença geral e passional de que, na ausência de uma
lei de direitos autorais, artistas e outras pessoas criativas não serão mais remuneradas.
Sou sempre acusado de ser um hippie antimaterialista que pensa que deveríamos criar
para o grande bem da humanidade. Quisera eu ser tão nobre. Embora realmente acredite
que os artistas mais genuínos sejam motivados primariamente pela alegria da criação,
também creio que seríamos mais produtivos se não tivéssemos de ter um segundo
emprego para sustentar o hábito artístico. Pense quantos poemas mais Wallace Stevens
poderia ter escrito se não fosse obrigado a comandar uma companhia de seguros para
sustentar seu hobby. Depois da morte do direito autoral, acho que nossos interesses
serão garantidos pelos seguintes valores práticos: relacionamento, conveniência,
interatividade, serviço e ética. Antes que continue minha explicação, permitam-me definir
um credo: a arte é um serviço, não um produto. A beleza criada é um relacionamento e
um relacionamento com que há de sagrado naquilo. Reduzir tal trabalho a "conteúdo" é
como rezar usando palavrões. Fim do sermão. De volta aos negócios. O modelo
econômico que suportou a maior parte dos antigos mestres foi a patronagem: doações de
um indivíduo rico, uma instituição religiosa, uma universidade, uma empresa. A
patronagem é ao mesmo tempo um relacionamento e um serviço. É um relacionamento
que apoiou o gênio durante a Renascença e apóia ainda hoje. Da Vinci, Michelangelo e
Botticelli, todos eles, compartilharam o apoio tanto dos Médicis como, por intermédio do
Papa Leão X, da Igreja Católica. Bach teve uma série de patronos, mais notavelmente o
Duque de Weimar. Na realidade, a patronagem nunca desapareceu. Ela só mudou sua
aparência. Marc Andreessen beneficiou-se do "patronato" do National Center for
Supercomputer Applications quando criou o Mosaic. O CERN foi o patrono de Tim
Berners-Lee quando ele criou a World Wide Web. A Darpa foi o benfeitor de Vint Cerf; a
IBM, de Benoit Mandelbrot. Relacionamento, junto com serviço, é o centro daquilo que
suporta todo tipo de "trabalhador moderno do conhecimento". Os médicos são
economicamente protegidos por um relacionamento com seus pacientes, os arquitetos,
com seus clientes, executivos, com seus acionistas. Em geral, se substituirmos
"propriedade" por "relacionamento" entenderemos por que uma economia de informação
digitalizada pode funcionar muito bem na ausência de uma lei de propriedade. O
ciberespaço é propriedade imaterial. Relacionamento são sua geologia. Conveniência é
outro fator importantíssimo na remuneração futura da criação. O motivo pelo qual o vídeo
não matou o cinema é que era mais conveniente alugar um vídeo do que copiá-lo.
Software é fácil de ser copiado, naturalmente, mas a pirataria de software não
empobreceu Bill Gates. Por quê? No longo prazo é mais conveniente entrar num
relacionamento com a Microsoft se você pretende usar seus produtos permanentemente.
É muito mais fácil ter acesso ao suporte técnico se você dispõe do número de série ao
ligar. Aquele número não é uma coisa. É um contrato, o símbolo de um relacionamento. A
interatividade também é fundamental para o futuro da criação. Desempenho é uma forma
de interação. O motivo pelo qual os fãs dos Deads iam a concertos, em vez de
simplesmente ouvir fitas grátis, é que eles queriam interagir com a banda no espaço
físico. Quanto mais pessoas sabiam como era o som do concerto, mais queriam estar lá.
Tenho uma vantagem semelhante. Sou razoavelmente bem pago para escrever, embora
coloque a maior parte de minha produção na internet antes que ela possa ser publicada.
Mas sou muito mais bem pago para falar e ainda mais para dar consultoria, uma vez que
meu valor efetivo reside em algo que não pode ser roubado: meu ponto de vista. Um
ponto de vista exclusivo e apaixonado é mais valioso numa conversa do que a
transmissão unilateral de palavras. E quanto mais minhas palavras são replicadas na
internet, mais posso cobrar por interação simétrica. Finalmente, há o papel da ética. As
pessoas efetivamente se sentem inclinadas a premiar o valor criativo, se não for difícil
demais fazê-lo. Como disse Courtney Love, recentemente, numa brilhante declaração
contra a indústria fonográfica: "Sou um garçom, vivo de gorjetas". Ela está certíssima. As
pessoas querem pagar porque gostam de seu trabalho. Quem efetivamente presta
serviços sobrevive, embora as pessoas servidas não tenham nenhuma obrigação legal de
lhes dar gorjetas. Os clientes dão gorjetas porque é a coisa certa a ser feita. Creio que,
na ausência prática de lei, a ética vai desempenhar um papel mais importante na internet.
Num ambiente de conexão densa, onde muito do que fazemos e dizemos é registrado,
preservado e facilmente descoberto, o comportamento ético se torna menos uma questão
de virtude auto-imposta e mais uma questão de pressão social horizontal. Além disso,
quanto mais conectados nos tornamos, mais óbvio é que estamos todos juntos nisso. Se
não pagamos pela luz, ela desaparecerá e o lugar ficará na penumbra. Na internet, o que
vai, volta. O que era um ideal torna-se uma prática comercial sensata. Pense na net como
um ecossistema, uma grande floresta tropical de formas de vida chamadas idéias, algo
que exige que outros organismos existam. Imagine o desafio de escrever uma canção se
você jamais ouviu uma. Como na biologia, o que viveu antes se torna o composto daquilo
que vive a seguir. Mais ainda, quando você compra - ou "rouba" - uma idéia que se
formou em minha cabeça, ela permanecerá onde nasceu e você, de maneira nenhuma,
diminuirá seu valor compartilhando-a. Pelo contrário, minha idéia se tornará mais valiosa,
uma vez que novas espécies podem nascer no espaço informacional entre sua
interpretação e a minha. Posso imaginar o grande sistema nervoso eletrônico produzindo
modelos inteiramente novos de valor criativo, em que o valor não reside no artefato, que
é estático e morto, mas na arte real. Eu daria tudo para estar presente quando os Beatles
criaram suas canções. Daria ainda mais para ter participado. Parte das razões pelas
quais os fãs dos Deads eram tão obcecados por concertos ao vivo é que eles realmente
participavam, de alguma forma estranha e misteriosa. Era permitida a intimidade de ver o
início larval de uma canção, surgindo no palco, molhada e feia, e eles podiam ajudar a
alimentar seu crescimento. No futuro, imagino encontros eletronicamente definidos em
que as mentes residentes em corpos espalhados por todo o planeta possam assistir,
pagando assinatura ou ingresso, ao ato criativo em tempo real. Imagino o ato de contar
histórias ressuscitando. Contar histórias é altamente participativo, diferentemente daquela
coisa assimétrica e unilateral que atende pelo nome de Hollywood. Em vez do espectador
sentado, com uma cerveja na mão enquanto a TV despeja veneno eletrônico sobre ele,
imagino pessoas efetivamente engajadas no processo e dispostas a pagar por isso. Não
é preciso ter muita imaginação, isso é que um bom narrador público faz. Os melhores
deles não falam para sua audiência, mas falam com ela. Isso deveria acontecer agora no
espaço físico, mas a imensa popularidade das salas de bate-papo entre os jovens nativos
do ciberespaço anuncia zonas eletrônicas mais ricas, onde todos os sentidos são
envolvidos. As pessoas pagarão para estar nesses locais - e quem for bom em animá-los
será pago, e muito bem, por suas habilidades. Imagino novas formas de cinema
nascendo nesses locais. Aqueles suficientemente bons serão pagos para gravar,
produzir, organizar e editar. As pessoas também pagarão para ter acesso a material
fresco em primeira mão, como Stephen King está provando com a serialização de
romances na web. Charles Dickens provou a mesma coisa há muito tempo, com seu
domínio econômico da serialização. Embora Dickens ficasse irritado com o fato de os
americanos ignorarem seu direito autoral britânico, ele adaptou e inventou uma forma de
ser pago, fazendo que o público lesse suas obras nos Estados Unidos. Os artistas e
escritores do futuro vão se adaptar à possibilidade prática. Muitos já fizeram isso. Eles
são, afinal, pessoas criativas. É interessante pensar sobre quanto mais liberdade haverá
para os verdadeiramente criativos, quando os verdadeiramente cínicos forem tirados do
jogo. Quando desistirmos de encarar nossas idéias como propriedade, a indústria do
entretenimento não terá mais nada a roubar de nós. Podemos entrar num relacionamento
conveniente e interativo com a audiência que, por ser humana, será muito mais
eticamente inclinada a nos pagar do que os tubarões jamais foram. O que poderia ser um
incentivo mais forte para criar do que isso? Vencemos a revolução. Tudo está acabado,
exceto o processo judicial. Enquanto ele se arrasta, é tempo de iniciar a construção de
novos modelos econômicos que substituirão o que existia antes. Não sabemos
exatamente como serão, mas temos uma profunda responsabilidade em ser melhores
ancestrais. O que fizermos agora provavelmente determinará a produtividade e a
liberdade de vinte gerações de artistas ainda por nascer. Portanto, está na hora de parar
de especular sobre quando a nova economia de idéias chegará. Ela está aqui. Agora vem
a parte difícil, que por acaso também é a mais divertida: fazê-la funcionar.

John Perry Barlow é co-fundador da EFF (Eletronic Frontier Foundation)


BARLOW, John Perry. Economia de idéias. O direito autoral sobreviverá à bomba
Napster? Não, mas a criatividade sim. Info Exame. São Paulo, Editora Abril. ed. 179,
fev. 2001. p. 67.

Originalmente publicado na revista Wired-


http://www.wired.com/wired/archive/8.10/download.html

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