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A Hermenêutica de Bultmann

(ALTMANN, Walter (ed.) Rudolfo Bultmann: crer e


compreender. São Leopoldo: Editora Sinodal: 1986, Série Teologia Sistemática a-9, pp.223-
229.)

"Será possível a exegese livre de premissas?"

Bultmann responde a esta pergunta com duas respostas antagônicas: sim e


não. Sim, se “livre de premissas” subentender uma “não pressuposição dos
resultados da exegese”, isto é, se o intérprete antes de confrontar-se com o
texto estivesse livre de pressuposições sobre o mesmo. Não, que é o seu
conceito fundamental, visto que o exegeta aborda o texto guiado pela pré-
compreensão do próprio intérprete. Bultmann afirma que por mais
objetivo que o hermeneuta pretenda ser ao abordar um tema, ele não pode
escapar à compreensão que dele tem:

“Resulta que uma compreensão, uma interpretação, sempre está orientada por um enfoque...
Isto, porém, inclui que ela nunca está isenta de premissas, mas precisamente, ela está dirigida
por uma compreensão prévia do assunto, consoante a qual ela pergunta ao texto" (O problema
da Hermenêutica, 1950, p.206).

I. A Contiguidade de seu conceito fundamental

Bultmann procura provar suas assertivas através de três pilares


argumentativos, a saber:

1. A exegese livre de preconceito.

Proposição fundamental: A rejeição do método da alegorese.

Bultmann distingue entre alegoria e alegorese. Alegoria consiste no próprio


gênero literário que pergunta pelo sentido tencionado pelo texto; enquanto
alegorese é uma forma de eisegese. Cita como exemplo de alegorese a
interpretação de Fílon sobre uma idéia estóica, o uso de Dt 25.4 por Paulo
em 1 Co 9.9, e o texto de Gn 14.14 em que os 318 servos de Abraão são
interpretados como profecia da cruz de Cristo na epístola Barnabé (9.7s) .
Isto posto, a interpretação alegórica, segundo Bultmann, só é válida
quando é exigida pelo próprio texto. A alegorese, por outro lado,

"é uma forma crassa e infiel de abordar o texto; eisegese...” Está claro nestes casos que "o
exegeta não ouve o que o texto diz, e sim fá-lo dizer aquilo que ele, o exegeta, já sabe de
antemão.”

2. A exegese dirigida por preconceitos.

Proposição fundamental: Os relatos históricos dos discípulos serem


estritamente fiéis por ser basearem na convivência destes com Cristo, e a
consciência messiânica de Jesus.

Segundo Bultmann, tanto um quanto o outro, somente pode ser


demonstrado pela pesquisa histórica. Bultmann concluiu seu argumento
afirmando que:

“Toda exegese que é dirigida por preconceitos dogmáticos não ouve o que o texto está dizendo,
mas fá-lo dizer o que ela quer ouvir”.

3. A Exegese pode ser livre de preconceitos, mas jamais será livre de


premissas

Proposição fundamental: A premissa imprescindível é o método histórico


ao se inquirir os textos.

Para Bultmann, o fato de a exegese não ser livre de premissas não tem
caráter fundamental, uma vez que o exegeta “está determinado por sua
individualidade, isto é, por suas tendências e hábitos específicos, por seus
dons e pontos fracos”.Assim, a investigação do exegeta é ampliada ou
ínfima a partir de “seus dons” e “seus pontos fracos”. Neste sentido,
o“exegeta elimina sua individualidade para educar um ouvir de interesse
puramente objetivo.”

II. Exposição do método histórico-crítico

1. Bultmann perfila que o método histórico deve ser aplicado utilizando a


exegese gramatical: “um texto deve ser interpretado segundo as regras da
gramática...”, e, segundo o autor, levando os matizes estilísticos dos
textos “... à exigência de que a exegese histórica observe o estilo individual
do texto”. Estas duas regras desembocam na observação sincrônica e
diacrônica da linguagem:

“a observação de que cada texto fala na linguagem de sua época e de sua esfera histórica... o
exegeta precisa conhecer o condicionamento histórico da língua daquela época da qual provém o
texto a ser explicado.”
2. Bultmann, a partir desse raciocínio, problematiza a respeito
dos idiomatismos hebraicos e sua influência sobre o grego
neotestamentário: “Onde e até que ponto o grego neotestamentário está
determinado pela linguagem semítica?” Bultmann pressupõe então, que,
o estudo das literaturas apocalípticas, rabínicas, dos textos de Qumran e da
historiologia da religião semita sãoconditio sine qua non para uma
compreensão satisfatória. Cita, de modo sintético, uma abordagem
diacrônica do termo grego pneuma.

3. O método histórico para Bultmann, implica na premissa de que a história


é uma unidade no sentido de uma contextura integrada de efeitos e por isso
mesmo “.. a concatenação de curso histórico não pode ser quebrada pela
intervenção de poderes sobrenaturais do além, significa portanto, que
não pode haver ‘milagres’ nesse sentido”.

4. Bultmann, no afã de conformar as Escrituras aos padrões modernos,


entendia que a Bíblia estava sujeita aos mesmos princípios filológicos e
históricos aplicados a qualquer outro livro, e por isso mesmo, os milagres
e as intervenções de Deus na história deveriam
serdemitologizadas, pois “... a ciência histórica não pode constatar uma
atuação de Deus, mas apenas constata a fé em Deus e na sua ação”. A
partir dessa perspectiva, a ciência não pode constatar esse episódio como
fato histórico, porém, deixa a critério do intérprete: “Mas ela própria na
qualidade de ciência, não pode constatá-lo nem contar com esta
possibilidade, ela somente pode deixar por conta de cada um se ele quer
enxergar atuação de Deus num evento histórico...”; continua afirmando
que “os textos bíblicos não podem constituir exceção, se é que queremos
entendê-los historicamente.”

5. Bultmann considera o exercício de interpretar o texto historicamente


como uma necessidade, já que se trata de uma língua estrangeira, costumes
anacrônicos e cosmovisão estranha ao exegeta. Traduzir, segundo
Bultmann, “significa tornar compreensível, e pressupõe
compreensão.” Essa compreensão da história pressupõe a“compreensão
das forças atuantes a concatenarem os fenômenos
individuais.” Essa força para Bultmann são aspectos “sociolingüísticos”
tais como os problemas sociais,
necessidades econômicas, paixões, idéias e ideais humanos que
transparecem no texto a ser interpretado. Neste sentido, dificilmente,
apesar de completo esforço, se chegará a uma visão uniforme pois “no caso
de cada historiador individual sempre preponderá determinado enfoque
ou perspectiva.” O conceito bultmanniano é que cada exegeta esteja
consciente de que seu enfoque é unilateral ao inquirir o fenômeno a partir
de determinada perspectiva. Assim, “a compreensão histórica é necessária
a compreensão do objeto" (das sachliche Verständnis). Em suma: a
compreensão histórica irá pressupor compreensão do objeto em pauta na
história e das pessoas que agem na história.

6. Desta forma a exegese sempre pressupõe certa compreensão dos objetos


pelo intérprete, que se manifesta direta ou indiretamente nos textos. Isto é
o que Bultmann chama de contexto vivencial
ou“Lebenszusammenhang” no qual se encontra o intérprete. O quadro
histórico só é falsificado, segundo Bultmann, quando o
exegeta“considerasse sua compreensão prévia uma compreensão
definitiva”, pois o evento histórico (geschichtlich) só poderá ser
reconhecido no futuro: “o evento histórico faz parte do futuro.”

7. Concluindo seu argumento, Bultmann formula cinco teses relacionadas


às conseqüências da exegese dos textos bíblicos. A quarta tese que trata do
princípio existencial, provavelmente foi e será a que mais expressa o
método exegético de Bultmann. A quinta mostra o relativismo
bultmanniano, de que a compreensão de um texto nunca é definitiva, pois
fala para dentro da existência. O papel do exegeta, segundo Bultmann, em
sua conclusão, é que o exegeta “ precisa ouvir a palavra da Escritura como
palavra falada para dentro de sua situação histórica específica, ele
sempre entenderá de forma sempre nova a palavra antiga”, isto é o que
Bultmann chama de quadro conceptual ou “Begrifflichkeit”.

Continua...

(Este texto foi apresentado em 30/07/98 ao Dr. Estevan F. Kirschner, no curso de Hermenêutica Avançada,
oferecido pelo CETEOL, em São Bento do Sul, Santa Catarina)

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