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DOS CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA

BASILEU GARCIA
Professor de Direito Penal na Faculdade de
Direito de São Paulo

SUMARIO: Peculato - Ooncussão - Oorrupção - Oorrupção


passiva - Facilitação de contrabando ou descaminho
Prevaricação - Oondescendilncia crimi~osa - Adt'ocacna
administrativa - Violilncia arbitrária - Abandono de fun-
ção - Exercicio funcional ilegalmente antecipado ou lJrorro-
gado - Violação de sigilo funcional - Violação de sigilo de
proposta de concorrilncia .

A matéria do titulo XI do Código Penal desdobra-se em três capi-


tulos. No primeiro se estudam os crimes praticados por funcionários pú-
blicos contra a administração em geral. O sujeito ativo é, portanto, o
funcionário público. Veremos que, em conexidade com a ação do funcio-
nário público, também pode aparecer como sujeito ativo o particular.
O segundo capitulo diz respeito aos crimes praticados por particular
contra a administração em geral; e o terceiro é relativo aos crimes con-
tra a administração da justiça, que tanto podem ser cometidos por fun-
cionários públicos como por particulares.
Há numerosas formas delituosas neste primeiro capitulo, desta,can-
do-se três pela sua importância: o peculato, a concessão e a corrupção:
Vamos estudar o peculato.
Peculato - O significado etimológico do vocábulo liga-se à palavra
pecus. Sabem que o gado já serviu como mediador de trocas. Exerceu
a função hoje atribuida à moeda metálica e ao papel-moeda. De pecus
também derivam as palavras pecúnia e pecúlio.
O peculato foi outrora considerado gravíssimo delito, sujeito a pena
capital, como quase todos os fatos delituosos que ofendiam diretamente
o Estado e as prerrogativas do soberano.
O Código nos fornece o seguinte dispositivo acêrca dêsse crime:
"Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro
bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo,
ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio". As penas são de "reclusão,
de dois a doze anos, e multa, de cinco a cinqüenta contos de réis".
Agente - já frisei - deve ser o funcionário público, e os senhores
sabem que o Código Penal nos dá um amplo conceito de funcionário
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público, sem atender aos ensinamentos do direito administrativo. No ar-


tigo 327 "considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem,
embora transitõriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprêgo
ou função pública". E equipara-se, no parágrafo, ao funcionário público
quem exerce cargo, emprêgo ou função em entidade paraestatal.
Os escritores de direito administrativo no Brasil sempre relembram,
entre os conceitos de funcionário público, o que era apresentado pelo ar-
tigo 86, § 1.·, da Constituição do Estado de São Paulo: "Considera-se
funcionário público todo aquêle que exerce, em caráter efetivo e me-
diante nomeação de autoridade competente, cargo público criado por
lei". De acôrdo com êsse dispositivo, são elementos do conceito dê fun-
cionário público a nomeação por autoridade competente, o exercíci.o efe-
tivo do cargo e ter êste sido instituído por lei. Nenhum dêsses reqllisitos
é essencial, no larguíssimo conceito penal de funcionário público.
De várias maneiras pode o agente cometer o crime. Encontt"amos
no art. 312 os verbos "apropriar-se" e "desviar". Na verdade. o fun-
cionário pode apoderar-se de valores ou desviá-los. Desviando-os, ~stará
também praticando uma apropriação, mas de modo especial. Por exem-
pIo: se por empréstimo cede a um amigo um objeto da repartição. E' um
desvio, que afinal também revela o ânimo de apropriar-se, desde que o
funcionário esteja dispondo da coisa como se fôra seu dono.
Outros dois verbos encontramos no parágrafo 1.·, a completarem a
indicação da materialidade do peculato. Diz êsse parágrafo: "Aplica-se a
mesma pena se o. funcionário público, embora não tendo a posse do di-
nheiro, valor ou bem, o subtrai ou concorre para que seja subtraido, em
proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona
a qualidade de funcionário". Só é possível' a subtração de valore;! pelo
funcionário, se êle não lhes tiver a posse. Se a tiver, é claro que haverá
apropriação ou desvio. Não tendo, porém, a posse, estando os beu~ con-
fiados a outrem, só poderá apoderar-se dêles subtraindo-os. Nesse caso,
cometerá um furto, ao passo que, na conformidade dos dizeres do corpo do
artigo, praticará uma apropriação indébita. De qualquer forma, tenha-se
uma apropriação indébita ou um furto, o delito se alça à categoria de
peculato, em vista da qualidade do agente, - funcionário público.
As vezes, porém, se o peculatário não subtrai bens, concorre para
que outrem o faça. O simples porteiro de uma repartição pública, que
não guarda valores, pode, sem diretamente os subtrair, praticar o crime
de peculato; por exemplo, se se limitar a abrir a porta, ensejando a que
um larápio entre na repartição para furtar, responderá como réu de
peculato. E não importa que os valores conservados na repartição per-
tençam ou não ao Estado . .
Nessas últimas palavras, avento um aspecto qU,e é preciso salifmtar.
Não é essencial, para integrar-se o peculato, que a ação ilícita se exerça
sôbre valores pertencentes ao Estado. E' bastante que se achem sob a
guarda, ainda que transitória, de agentes do poder público. Assim, pra-
ticará o crime um carteiro dos Correios que se apodere da importância
de um registrado.
Apenas sObre bens móveis pode recair o delito. A propósito, a lei faz
uma enumeração exemplificativa desnecessária, referindo-se a "dinheiro,
valor ou qualquer outro bem móvel". O peculato não se pode exer.:er so.
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bre imóveis. lIlstes, ligados ao solo como se acham, não são passíveis de
apropriações ou de furtos, a que em essência se reduz o peculato. Não é;
impossivel que um funcionário. público, especialmente ·se desempenha
algum alto cargo, se apodere de bens imóveis do Estado. Nesse ca~o, en-
tretanto, não estará agindo como peculatário, mas sim, tais sejam as cir-
cunstâncias, como falsário, engendrando documentos, contrafazendo es-
crituras públicas, etc.
Como adverti inicialmente, em concurso com o funcionário público,
o particular também pode ser sujeito ativo do delito. Sê-lo-á, noexem-
pIo que acabo de indicar: o de facilitar o funcionário público o crime de
outrem, o qual se prevalece de facilidades assim obtidas para ingressar
na repartição. E~tretanto, mesmo com abstração dessa hipótese, pode-
remos afirmar a tese do cabimento de criminalidade por peculato a par~
ticulares, tendo em vista regras gerais do Código Penal. Atenderemos.
não só ao principio capital sôbre a co-autoria (art. 25); mas particular-
mente ao art. 26, que se refere à comuniocabilidade das circunstâncias do
delito. l!lsse artigo declara: "Não se comunicam as circunstâncias de ca-
ráter pessoal, salvo quando elementos do crime".· A regra é que ae cir-
cunstt1ncias de caráter pessoal, as que concernem à pessoa do agente,
não se transmitem de uns a outros participantes do delito para agl'avar-
lhes ou favorecer-lhes a situação perante a lei penal. Mas dá-se a comu-
nicabilidade quando elas representam elementos da infração. Ora, s. qua-
lidade de funcionário público é elemento do crime de peculato, de forma
que todo individuo, sem função pública, que concorrer para o pt'culato,
se considera também peculatário.
Uma das questões mais interessantes sôbre o peculato é a relativa ao
momento consumativo do crime. Reveste-se de dificuldade em certas hi-
póteses. Vamos imaginar que, numa coletoria do Interior, chegue inespe-
radamente um funcionário da Secretaria da Fazenda, para tomar as
contas do coletor, e verifique estar ausente dos cofres o dinheiro arre-
cadado. Pergunto: a apuração do fato, nesses têrmos, habilita a justiça
a ter como consumado o crime de peculato? Distingamos, para suscitar a
dúvida: o funcionário não consegue repor imediatamente os haveres, e
pode acontecer que se ponha a campo, com a maior rapidez possivel, e
traga de casa, ou do bolso dos amigos, o dinheiro com que pretende sal-
var a situação.
E assim como figurei que essa tomada de contas seja efetuada im-
previstamente, sem atinência aos prazos fixados pelas leis, regulamentos
e códigos de contabilidade pública, poderei também admitir que se realize
em oportunidade previamente estabelecida.
Entendo que não oferece importância indagarmos se o funcionário foi
ou não surpreendido pelos seus superiores. l!lle não tem direito a ver
fiscalizada a sua honestidade ou desonestidade de acôrdo com datas fa-
tais. Os prazos, prefixados em beneficio da regularidade do serviço pú-
blico, não o isentam da pena cabivel, desde que se apure a existência do
crime.
Entretanto, a meu ver é pràticamente relevante a circunstância de
conseguir fazer a reposição sem demora. Tratando-se de bens fungíveis,
de que é exemplo caracterlstico o dinheiro, já vimos nQ estudo da apro-
priação indébita que a restituição do equivalente, no momento de sel'em
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prestadas as contas, evita a concretização do crime. Há quem diga que


em relação ao peculato a mesma regra não deve ser aplicada: que o fun-
cionário não pode, nem por um instante, distrair haveres pertc.llcentes
ao Estado e que, fazendo-o, incorre nas penas dó peculato. Acho que
nesse entendimento há rigor excessivo, que deve ser evitado em direito
penal, sob pena de fracasso das normas punitivas; rigor demais acaba
em rigor nenhum... Embora seja possivel dizer-se que o crime ef>tava
completo, quando o funcionário, sem demora, efetuou a reposição, acre-
dito que as autoridades administrativas não promoveriam a responsabi-
lização criminal do funcionário, satisfazendo-se com as providência& de
caráter disciplinar. E está bem que assim seja.
Cumpre, de resto, frisar que o próprio Código Penal nos insinua a
solução que estou indicando. A reparação do dano, em matéria de pe-
culato, tem a sua importância. No § 3 .• do art. 312, fala-se positiva-
mente na reparação do dano, com influência liberatória sôbre a pena.
E' verdade que se cogita de tal influência em matéria de peculato cul-
poso, e não de peculato doloso. Em todo caso, é um critério qUtl con-
corre como subsídio para a solução benigna que apontei.
Causa-lhes espécie, provàvelmente, a expressão "peculato culposo",
visto que estamos tratando de lesão patrimonial. Uma única vez depa-
ramos, no longo assunto dos crimes contra o patrimônio, modalidadp. cul-
posa. Foi quando vimos o crime de receptação. No art. 174, encontra-
mos, também, numa espécie de estelionato, aquela expressão de sentido
duvidoso "sabendo ou devendo saber", acêrca da qual se admite 1''' possi-·
bilidade de entender-se o elemento subjetivo culpa. Mas, de forma clará,
até aqui só deparamos referência à culpa, quanto a delitos patrimoniais
na receptação. Agora, encontramo-la no peculato. Fêz bem o legislador.
E' uma realidade o peculato culposo. Consiste no fato de, por negligência,
concorrer o funcionário para que outrem assalte o patrimônio público ou
- o patrimônio de particular confiado ao Estado. E' quase uma pp.culia-
ridade do nosso Código. Raros são os estatutos criminais que encerram
semelhante disposição. Ela é a seguinte; "Se o funcionário concorre
culposamente para o crime de outrem; Pena - detenção, de três meses
a um ano".
A influência do elemento subjetivo sôbre a pena, no peculato clllposo,
se exerce diferentemente, conforme as circunstâncias. Num caso é total,
noutro é parcial. Livra-se totalmente da pena o negligente, se ressarcir
o dano antes que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível. Portanto,
a lei dá muito tempo para reparar o dano. Se a indenização é efetuada
pelo funcionário quando já está definitivamente condenado, a pena se
reduz à metade. E' o que está escrito no § 3.·; - "No caso do parágrafo
anterior, a reparação do dano, se precede a sentença irrecorrível, extin-
gue a culpabilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta".
Como causa extintiva da punibilidade, já consideramos o ressardmento
do dano no peculato culposo quando, no ano passado, estudamos o ar-
tigo 108 do Código Penal.
Galdino Siqueira, a propósito da repercussão do ressarcimento SÔbre
a punibilidade do peculato culposo, manifestou o desejo de que o disposi-
tivo tivesse sido alongado pela legislação (e assim se externava ao tempo
da Consolidação das Leis Penais) à hipotése do próprio peculato doloso.
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Mas não tinha razão. O peculato doloso é muito mais grave. Existe
acentuada má fé do agente. 1!lle trai, deliberadamente, a confiança que
lhe é depositada pela administração pública. Revela-se individuo de pés-
simo caráter e reúne as condições que tornam aplicável uma pena severa.
Haveria ilogismo em tal extensão, porque a pretendida eficácia eximente.
da pena não existe para os atentados contra o patrimônio particular. Se
a reparação do dano não impede a punição pelo roubo, furto, apropriação
indébita, estelionato, por que haveria de impedi-l~ na hipótese de sofrer
o prejuizo a administração pública? Então o Estado - descumprindo o
dever social de punir - dá importância à reparação da ofensa ao seu
patrimônio, e não a dà em se tratando do patrimônio particular? Em
têrmos análogos Nelson Hungria teve oportunidade de assinalar essa in-
COngruência, criticando a proposta daquele provecto criminalista.
O que, parece, se poderia ter feito - e nisso não haveria mal algum
- era outorgar-se à reparação do dano uma influência relativa no pe-
culato doloso, mas não só nesse crime, senão em todos os crimes contra
o patrimônio. Então, sim, não h~veria incongruência. Sempre Q.ue o
agente de crime contra o patrimônio, público ou particular, desse provas
cabais de arrependimento, satisfazendo o dano, teria uma grand<l dimi-
nuição da pena. Não haveria prova mais sincera e eloqüente de arrepen-
dimento do que a reparação do dano. Assim se criaria um estimulo ao
ressarcimento, em beneficio das vitimas, pondo-se em prática postulado de
suma importância no direito penal moderno.
Uma inovação encontramos, na disciplina do peculato, no art. 313:
"Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercicio do
cargo, recebeu por êrro de outrem: Pena - reclusão, de um a quatro
anos, e multa, de um conto a dez contos de réis".
A hipótese poderá ser, entre outras, a de um funcionário público que
recebe, por exemplo, quantia maior que a devida como vencimentos, por
engano da repartição pagadora. O Tesouro costuma enganar-se contra
o funcionário e não a favor. Mas pode ser que algum dia se engane a
favor. A favor é uma expressão imprópria, no caso, porque o funcioná-
rio, se não devolve o que lhe foi pago a mais, vai para a cadeia ...
<Jomete peculato.
Está sempre sujeito o peculatário não só às penas aqui estipnladas,
como também a outras medidas de defesa social. Uma delas é a pena
acessória consistente na perda da função pública. Na parte geral do
Código existe cominação dessa penalidade a todos os casos em que se
revele, no delito, infração a dever funcional. Cabe, portanto, em todo
êste capitulo dos crimes contra a administração pública. Além disso,
verificado o desfalque, está sujeito o peculatário a prisão administ1'ativa
até três meses, decretada por autoridades da administração pública.
Dessa medida de caráter compulsório, que visa obrigar à reposição, 'se
ocupam as leis desde o Império. Ainda recentemente, o Decreto-lei .nú-
mero 3.415, de 10 de julho de 1941, estendeu a medida coercitiva do par-
ticular que se apodere de haveres do erário público. Da prisão adminis-
trativa também tratam o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da
União e o do Estado.
As figuras dos artigos 314 e 315 - O Código apresenta, a .,seguir.
algumas formas delituosas que não exigem demorados reparos .. ASsim,
- 400-

a do art. 314: "Extraviar livro oficial ou qualquer documento, de que


tem a guarda em razão do cargo; sonegá-lo ou inutilizá-lo, total ou par-
cialmente". As penas são de reclusão, de um a quatro anos, se o fato
não constitui crime mais grave. Suponha-se que alguém, para fugir à
responsabilização criminal por abusos funcionais, incendeie, com os livros,
a própria casa em que êles se acham, dissimulando dêsse modo as cir-
cunstâncias denotadoras da sua culpabilidade. Então, teremos, no incên-
dio, um crime mais grave que o do art. 314.
A propósito de incêndio, podemos figurar o peculato associando-se
a tal crime. Um coletor de rendas poderá ter a idéia de incendiar a co-
letoria para consumir as provas de um desfalque.
No Interior, há alguns anos um coletor foi acusado de simular um
crime, para acobertar a dilapidação de dinheiros públicos. Fêz uma via-
gem levando uma valise, em que dizia transportar os valores sob sua
guarda, e apareceu depois ferido, 'com as vestes amarrotadas e rasgadas,
dizendo ter sido vitima de um roubo.
A sua narrativa, desmentida por expressivo conjunto de indícios, não
foi levada a sério. Do hospital, êle foi para a cadeia; c da cadeia, para •
a rua. Perdeu o cargo.
Se o caso fôsse atual, êsse coletor poderia ser processado por alguma
outra infração, além do peculato? Entre os delitos contra a admin!stra-
ção da justiça se inscreve o do art. 340, intitulado "comunicação falsa de
crime ou de contravenção". O seu procedimento ,enquadrar-se-ia nesse
dispositivo, que é, aliás, deficiente. Devia ter sido completado por outro,
que previsse, a exemplo do Código italiano, o crime chamado "simulação
de crime",. No art. 340, é essencial que o agente comunique à autoridade
crime inexistente, provocando-lhe a ação repressiva. Mas há casos em
que o agente cria os sinais de um crime inexistente, para comprometer
alguém, sem que realize comunicação alguma. A figura de simulação de
crime atenderia à conveniência de impor-se a pena nessa hipótese.
E' também crime contra a administraçp.o pública (art. 315) "dar às
verbas 0\.\ rendas públicas aplicação diversa da estabelecida em lei". Não
acreditem muito na punição dêsse crime ...
Conclusão - Pela ordem de colocação no capítulo, e também pela de
importância, após o peculato cumpre-nos focalizar preferencialmente a
concussão. Trata-se de uma forma especial de extorsão, executada por
funcionário público. Oferece semelhança com o crime de corrupção, que
antigamente se chamava peita ou subôrno. Ao passo que a corrupção, sob
forma ativa e sob forma passiva, costuma apresentar-se como crime bila-
teral, porque se considera o procedimento de um funcionário corrt',ptível
oU corrupto e de um agente corruptor, - o delito de concussão é unila-
teral, porque o particular aparece exclusivamente como vitima.
Integra-se o crime como "exigir, para si ou para outrem, direta ou
indiretamente, ainda fora da função ou antes de assumi-la, mas em ra-
zão dela, vantagem indevida". Consistindo o delito em exigir, fica desde:
logo esclarecido existir um delito formal, que se perfaz com indepen-
dência da efetivação de um resultado. Pela mera eXIgênoia consuma-se
o crime, 'embora nenhum proveito ilícito consiga o funcionário desonesto
com· as suas manobras coercitivas.

Ü'I-".,IOTECA
I<'un4ação Getúlio VarfA"
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A exigência da vantagem indevida pode ser feita direta ou j.ndireta~


mente. Em pessoa, o funcionário se apresenta ao sujeito passivo ~ pra~
tica essa especial extorsão, ou então se serve de um parente ou amigo;
que vai em seu nome reclamar a desejada utilidade econômica. Um par-
ticular poderá, pois, na qualidade de co-autor, ser também responsabilizado
por êsse delito.
E' necessário que o crime se dê em razão de função pública, mas não
importa saber se a exigência de vantagem indevida se relaciona à prática
de atos normais do oficio ou' atos ilicitos. Quer faça o funcionário a exi-
gência para realizar o que pode realizar honestamente, quer prometa
uma imoralidade, será responsável pelo crime.
Completemos o estudo do delito de concussão. A palavra liga-se ao
verbo latino concutere, sacudir fortemente. Empregava-se o têrmo espe-
cialmente para alusão ao ato de sacudir com fôrça uma arvore para que
dela caíssem os frutos. Semelhantemente procede o agente dêsse crime:
sacode o infeliz particular sôbre quem recai a ação delituosa, para que
caiam frutos, não no chão, mas no seu bolso.
A afinidade entre a concussão e a extorsão é, por isso mesmo, evi-
dente. Mas convém salientar também a düerença. Ao conceituar â. con-
cussão, o nosso legislador criminal não emprega aquelas palavrad "vio-
lência" e "ameaça" do texto concernente à extol"são. Emprega, porém,' o
verbo "exigir". Na exigência há sempre, como é óbvio, alguma influência
intimidativa sôbre o particular que tem assuntos a tratar na repartição
e que depende da boa vontade do funcionário em causa. Se dessa forma
concluimos que na exigência há necessàriamente algo de coercitivo, não
é, porém, indispensável, para que se integre o crime, chegue a atitude do
funcionário ao extremo do emprêgo da fôrça flsica ou da grave ameaça
de que cogitamos ao tratar da extorsão prôpriamente dita. Assim, con-
cluiremos que a concussão é uma forma especial de extorsão, em que o
meio de constrangimento empregado não necessita revestir-se de alar-
mante intensidade.
Por outro lado, é preciso não confundir exigência com solicitação,
porque, se houver da parte do funcionário mero pedido, o crime será ou-
tro: corrupção passiva.
A lei se ocupa particularmente com os funcionários fiscais e fazendá-
rios. Em relação a êles, pode me.s fàcilmente surgir a acusação. pela
natureza das suas funções. Mas todo e qualquer funcionário que pratique
o fato previsto no artigo 316 responderá pelo crime. Não é por outro
motivo que a referência a "impôsto" e "taxa" (§ 1. 0 ), que faz pensar em
pagamento a funcionários da fazenda, não se encontra na parte princi-
pal do artigo, referente a funcionário em geral. Poderá praticar o cri-
me de concussão, por exemplo, o serventuário de cartório que exigir
custas indevidas.
Pode parecer estranho (e por isso convém se esclareça êsse ponto)
que o legislador puna o funcionário da fazenda, ainda que, na sua exigên-
cia, esteja visando a obtenção de rendas para as arcas do Tesouro. E' o
que está exposto no artigo 316, § 1. 9 : - "Se o funcionário exige impôsto,
taxa ou emolumento que sabe indevido, ou, quando devido, emprega 'na
cobrança meio vexat6rio ou gravoso, que a lei não autoriza". Basta que,
na realização da exigência, o funcionário use meio vexatório ou grav9$O

."
"~'~'..:::~~~
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não autorizado por lei, para que, independentemente da destinação 8. dar


às rendas auferidas, se integre o crime. E' claro que, se êle se apode-
rar das importãncias ou valores, o crime será muito mais grave. E no
§ 2.' se cogita da hipótese, cominando-se penas elevadas, que pod~m al-
cançar, sob o aspecto da privação da liberdade, o limite máximo àe 12
anos.
Cogita, no entanto, o legislador, da hipotése referida, de desejar r, fun-
cionário, empregando meios vexatórios, gravosos na cobrança, beneficiar o
Estado, - pelo menos por dois motivos: em primeiro lugar, porrlue o
Estado não pode apadrinhar arbitrariedades, embora se destinem ao
incremento das suas rendas. Há, no caso, um abuso funcional que requer
corretivo. Em segundo lugar, porque, embora a vantagem pecuniária se
enderece ao Tesouro, o funcionário fiscal ou fazendário geralmente se be-
neficia de maneira indireta, através de porcentagens, comuns no sistema
de arrecadação dos tributos.
Oorrupção - A semelhança entre o crime de corrupção e o de con-
cussão aconselhou colocar-se a matéria em textos vizinhos. Cotejemos
os têrmos das respectivas definições legais. A diferença essencial exis-
tente entre as duas figuras está em que a ação do funcionário, no caso
da concussão, representa uma exigência, seguida ou não do recebimento,
e no caso de corrupção passiva representa uma solicitação, de iguSl
modo seguida ou não do recebimento. Entre solicitar e exigir, entre-
tanto, a diferença às vêzes é quase imperceptível, de forma que dúvi-
das poderão aparecer na caracterização prática do fato.
O crime de corrupção existia na Consolidação das Leis Penais sob
nome diverso. Intitulava-se "peita ou subOrno". Embora as palavras
fôssem empregadas como sinônimas, enunciavam, realmente, duas mo-
dalidades. Já era assim no Código Criminal do Império. No velho esta-
tuto de 1830 havia a peita quando recebesse o funcionário dinheiro ou
(acrescentava alternativamente o texto na colorida linguagem da época)
"ou algum donativo". SubOrno ocorria, quando se deixasse corromper
o funcionário por influência ou (é textual) "outro peditório de alguém".
Ora, verificamos que a hipótese das vantagens materiais está localizada
no art. 317, na cabeça do artigo e no seu § 1 .• , e deparamos no § 2 .• a
alusão à influência de outrem, o que vem caracterizar o subOrno, tal
qual era previsto no Código Criminal do Império. Temo!), portanto, pei-
ta e subôrno no artigo 317 e seus pa~afos.
O subôrno ou peita, ou, para usar a denominação vigente, o crhne
de corrupção, apresenta geralmente aspecto bilateral. Como acusados figu-
raJIl no mesmo processo, quase invariAvelmente, um corruptor e um cor-
rupto ou corruptível. llste é o funcionário; aquêle é o estranho à repar-
tição. Essa bilateralidade pode ser indicada como um dos traços diferen-
ciais que separam a 'Concussão da corrupção, porque a primeira só pode
ser unilateral.
A bilateralidade não é, entretanto, requisito indispensável da cor-
rupção. Pode apresentar-se de maneira unilateral. Por isso o legislador
cogitou da corrupção em duas formas autônomas: corrupção passiva,
que está no art. 317, e corrupção ativa, que está no art. 333. Out.ro mo-
tivo ainda determinou a separação: a matéria dos crimes contra a admi-
nistração pública se divide em vários capitulos, o primeiro dos quais tra-
tados crimes praticados por funcionários públicos. E' natural que nesse
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capitulo ápareça a corrupção passiva, ou seja aquela em que é réu o


funcionário público. E é natural também que, havendo um segundo ca-
pitulo, .cuja rubrica Q.eclara tratar-se de crimes praticados por particula-
res, ai apareça a corrupção ativa, aquela de que é agente o estranho à
repartição.
Se a matéria se nos apresenta por essa forma bipartida, convém, t0-
davia, que a estudemos em conjunto. Isso me parece vantajoso para a
compreensão dos problemas que êsse interessante assunto proporciona.
E' o que vamos fazer.
Começo traçando uma classificação. As classificações, muitas vê-
zes, não oferecem utilidade prática: revelam um c11idado mais ou menos
ocioso pela simetria. Na hipótese, contudo, a classificação tem conse-
qüências práticas, e por isso eu a menciono.
Dividimos a corrupção em ativa e passiva. Ativa é aquela de que é
agente um particular, que exerce no flIDcionário a influência perversiva.
Passiva é a corrupção em que figura como autor do crime o funcionário
público. Faço em caráter provisório essas afirmações sôbre o agente, dê~,
ses dois tipos de delitos. Cada uma das formas de corrupção se divide em
própria e imprópria. Há corrupção propriamente dita quando o abuso
consistente na solicitação, recebimento, oferecimento ou promessa de van-
tagem indevida se dá para que o funcionário pratique um ato ilicito. Ao
invés, temos corrupção imprópria quando o funcionário se vende para
praticar aquilo que êle pode regularmente praticar.
Assim, não nos importa saber, para a responsabilização do funcio-
nário público, se o tráfico da função pública visou ou não ato ilicito.
Muita gente ignora isso e supõe ingênuamente que não é crime receber
dinheiro ou outra utilidade Jndevida, em conexão com a prática legal de
atribuições funcionais. E' um engano ledo e cego.
Seja ativa ou passiva, seja própria ou imprópria, a corrupção pode
l'er ainda antecedente ou subseqüente. E' antecedente, quando a vanta-
g-em é oferecida, prometida, solicitada ou recebida antes da realiza-
çãr:; do ato (que poderá ser, como acabamos de ver, licito ou mcito). E'
subseqüente a corrupção quando o oferecimento, a promessa, a solicitação
ou o recebimento da vantagem se dá depois de realizado o ato.
A divisão, fixada pela doutrina, pode I'cduzir-se ao seguinte ~squema:

{ antecedente
própria ...

Corrupção
\
passiva
Iimprópria.
SUbseqüente
{ antecedente
subseqüente

j { antecedente

I
própria ...
ativa subseqüente
{ . antecedente
imprópria.
subseqüente
Vejamos se essa variada nomenclatura tem consistência juridica, em
face do nosso direito objetivo. Atentemos ao texto do artigo 317, e ,ha-
vemos de concluir que tOdas as modalidades possiveis e imagináveis de

L •.1
- 404-
corrupção p8..l!siva (aquela de que é acusado o funcionário) estão ai in-
cluídas, e são, portanto, perfeitamente puniveis. "Solicitar ou receber,
- diz a lei - para si ou 1>ara outrem, direta ou indiretamente, ainda
que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vanta-
gem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem". Basta que o fun-
cionário solicite ou receba a vantagem em razã.o da função. Não se diz
que o crime só existe De o funcionário pedir ou receber para praticar um
ato. Muito menos o texto evita a incriminação se o recebimento ou pe-
dido se der depois de praticar-se o ato funcional. Não se entra em dis-
tinções. A vantagem foi solicitada ou recebida em razão da função pú-
blic.a? Há um nexo entre a solrc"itação ou recebimento e o exercício do
cargo? Se a resposta fôr afirmativa, concluir-se-á que o funcionário
cometeu o crime de corrupção passiva.
Evidentemente, porém, a lei não pode manter-se de todo indiferente
aos pormenores agravadores, ('\ é dêles que cogita o § 1.0, quando diz:
"A pena é aumentada de um têrço, 8e, em con8eqüência da vantagem ou
promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de
ofício ou o pratica infringindo dever funcional". Temos, agora, a cor-
rupção própria, porque o ato funcional se segue ao entendimento deso-
nesto. Na cabeça do artigo figura-se a corrupção imprópria, para punir-
se por si mesma a venalidade do funcionário, independentemente de ha-
ver êle praticado atos proibidos no exercicio do cargo. Mas se êle in-
fringe dever funcional, inclusive por omissão, - quando retarda ou deixa
de praticar ato de oficio, - terá a sua pena agravada, porque agora a
hipótese é de corrupção própriamente dita.
A lei é clara. Não deixa dúvida de que, ainda que o ato relacionado
à combinação inescrupulosa correllponda aos deveres funcionais, o cri-
me se integra. Assim, a corrupção passiva, quer seja própria, quer seja
imprópria, é punívcl. E é punível quer seja antecedente, quer seja subse-
qüente, não importando saber se a vantagem é recebida ou solicitada antes
ou depois da prática de ato ~oral. '
Vejamos. agora a corrupção ativa. Diz o artigo 333: "Oferecer ou
prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a
pratrcar, omitir ou retardar ato de oficio: Pena - reclusão, de um a oito
anos,· e multa, de um conto a quinze contos de réis. Parágrafo único - A
pena é aumentada de um têrço se, em razão da vantagem ou promessa, o
funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever
funcional" .
Temos novamente a corrupção própria e imprópria. Própria no pa-
rágrafo, e imprópria no corpo do artigo. Própria no parágrafo, porque o
vergonhoso negócio visa uma. conduta ilícita da parte do funcionário, que
é solicitado a cometer uma ilegalidade ou uma irregularidade. Imprópria
no artigo, porque menor é a torpeza: o funcionário lucrará indevidamen-
te para praticar algo das suas normais atribuições.
Mas vejamos se tem importância o momento em que o particular
oferece ou promete a vantagem: - êsse momento, tomado em relação ao
ato funcional desejado pelo corrupto r . Note-se que a lei fala em ofereci-
mento ou promessa para determinar o funcionario a agir. Isso nos está
mostrando, com tõda clareza, que o particular não é alcançado pela re-
pressão criminal quando ofereça ou prometa vantagem, ou a entregue
efetivamente, ao funcionário, depois ele ter êle praticado o desejado ato.
,·~V '>~

"
- 405-
Um gesto de liberdade que tenha, então, o particular, ainda que possa
representar uma imoralidade, não constituirá crime de corrupção ativa.
Mas o funcionário praticará o crime de corrupção passiva, se aderir
ao particular.
A classificação que apresentei oferece interêsse, portanto, para infe-
rirmos que a lei não cogita de tôdas as formas doutrinàriamente deli~
lleadas de corrupção ativa. Pune-se a ativa antecedente, seja própria;
seja imprópria. Mas não se reprime a ativa subseqUente. E' o que resulta
da locução "para determiná-lo".
O Código Penal italiano encerra textos muito semelhantes a êstes
que estamos examinando. Imitando-os, o nosso legislador procurou ser
mais conciso, mais lacônico, evitando as frases derramadas que são muito
do gôsto peninsular. A expressão "para determiná-lo", que tem tanta im-
portância na exegese que estamos fazendo, também consta no Código
italiano, através das palavras "per indurlo". Pois bem: os comentadores
do Código Rocco não discrepam em afirmar que o estatuto de seu pais
não cogita da corrupção ativa subseqUênte imprópria. Acham, possivel in-
crimina,r a corrupção ativa subseqUente só quando fôr ,própria. Fazem,
portanto, distinção quanto à licitude ou ilicitude do ato funcional desejado
pelo particular.
Acho que nem mesmo essa distinção é nos nossos textos cabivel, por-
que a expressão "para determiná-lo" está indicando que a oferta, a pro-
messa ou o pagamento feito pelo particular acusado dêsse crime deve
sempre anteceder à realização do ato funcional. Se o funcionário já
realizou o ato, não há determiná-lo a fazer alguma coisa, como exige o
nosso artigo 333 ao conceituar a corrupção ativa.
Entretanto, ainda aqui tem importãncia a distinção entre corrupção
ativa própria e imprópria, porque, se se tratar de corrupção própria, os
elementos probatórios convergirão, por via de regra, a demonstrar a exis-
tência de uma combinação prévia. E' pouco }1l-ovável que um funcio-
nário pratique um ato illcito em beneficio de "alguém, que depois oferece
ou entrega vantagem, sem que tenha havido uma promessa prévia. Ora,
a promessa é suficiente para, sob o aspecto material, integrar a figura
delituosa. Todavia, se há promessa prévia, não temos corrupção subse-
qUente, mas corrupção antecedente, que é alcançada pelo dispositivo
penal.
Explica-se a solução dada pelo legislador. Interessa muito mais ao
Estado a honestidade do funcionário público do que a do particular. E'
muito mais grave a falta do funcionário corrupto do que a do estranho
corruptor. Constitui sempre uma traição ao dever de seriedade no exer-
cicio do cargo receber o funcionário, em razão de serviço público, van-
tagens que não lhe são devidas. Eis porque o legislador amplamente in,.
crimina a conduta do funcionário, sem indagar se o seu pedid,o ou o re-
cebimento antecedeu ou se seguiu à realização do ato funcional. Quanto,
porém, ao particular, a sua atitude deve ser incriminada (e é o que faz o
legislador) quando êle, com as suas sugestões corruptoras, induz o fun-
cionário a agir de certo modo, seja ou não um modo certo... Mas se a
dádiva oferecida, prometida ou entregue pelo particular já encontra con-
sumado o ato que o preocupa, não está êle corrompendo o funcionário.
Não está, segundo a lei, realizando corrupção ativa.

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- 406-
Nenhuma das modalidades de corrupção admite tentativa. Quanto
ao funcionário, será punido como réu de crime consumado, se se limitar
a pedir. Mesmo que não receba o ilicito provento, está perfeita a infra-
ção. No que toca ao particular, consumará o delito ainda que se restrin-
ja a um oferecimento, repelido ou não. Pode dar-se que o oferecimento
não seja, repelido e, no entanto, não chegue a converter-se em aceitação,
por motivos alheios aos interessados no conchavo. Perante a lei, ° delito
estará consumado.
Acêrca do agente de ambas as formas delituosas eu fiz afirmações
provisórias. Cumpre elucidar agora as eX!ceções. Um funcionário pode
ser autor de crime de corrupção ativa e o particular pode sê-lo do crime
de corrupção passiva. Quanto à corrupção passiva, a lei adverte que o
crime se poderá dar através de pedido ou recebimento indiretamente efe-
tuado. Suponha-se que o funcionário relapso se utilize dos préstimos de
um intermediário, que poderá ser outro funcionário, como também um
particular. O nexo de co-autoria o vinculará à responsabilidade do prin-
cipal protagonista. Pode dar-se, também, que determinado servidor do
FJ8tado assedie outro, para obter dêle e prática de algum ato funcional
mediante remuneração: aí teremos como réu de corrupção ativa um
funcionário.
Colocado entre o corrupto e o corruptor, o intermediário será co-
autor dê:;te ou dequele, -:- do funcionário ou do particular? A questão é
relevante, porque, na punição dos crimes de corrupção ativa e passiva,
variou o legislador no montante da pena pecuniária, estabelecida com
rigor maior na corrupção passiva. A prova deverá encaminhar-se, en-
tão, no sentido de esclarecer se o intermediário representava, nas suas
propostas, o funcionário ou o particular. Será co-autor do delinqüente de
cuja tropeza se tornou porta-voz.
Corrupção passiva - Não ficou completo o estudo iniciado na aula
passada acêrca da corrupção passiva e da corrupção ativa. Os elementos
essenciais à compreensão da figura delituosa, em seus dois aspectos, fo-
ram, entretanto, . dados aos senhores. Frisei a conveniência da classifi-
cação do delito nas diversas 'Categorias por mim indicadas, e, da classi-
ficação feita, deduzi diversas conseqüências importantes, ajustadas à
técnica da nossa legislação. Ficou esclarecido que a punibilidade do fun-
cionário é mais extensa do que a do agente do crime de corrupção ativa
(art. 333). Procurei justificar o sistema da lei, que me parece certo.
O funcionário venal é uma fonte permanente de abusos no seio da ad-
ministração pública. Até que êle seja descoberto, confundido, processado
e condenado, muita coisa torta êle pode fazer. O estranho é um inci-
dente na vida do Estado. Se promete indecorosamente propina ou real-
mente dá remuneração em troca de uma imoralidade, pratica indiscuti-
velmente um ato anti-social, merecedor de pena, mas o seu procedimento
não representa uma traição a deveres inerentes a um cargo, como acon-
tece com o funcionário corrupto.
Na aula passada, uma pergunta solicitou a atenção de todos para
um ponto importante. Foi esta: a gorjeta é permitida? Mas que é gor-
o jeta? Gorjeta pode ser um níquel miserável, e pode ser um maço volu-
moso de cédulas. E' melhor não falarnl0s em gorjeta. Melhor é falar-
mos em vantagem, qualquer que seja, porque esta é a expressão dos tex-
tos legais. A lei nem ao menos diz vantagem pecuniária, mas vantagem
- 407-
indevida. Vantagem indevida será qualquer, independentemente das d-
fras que possam simbolizá-la. Uma entrada de cinema oferecida a um
porteiro de repartição pode ser uma vantagem indevida, desde que, em
virtude do oferecimento, 'êsse funcionário, indo divertir-se, franqueie as
portas da repartição a um estranho que deseje ali penetrar em hora
proibida, violando dispositivo regulamentar. Tudo depende das circuns-
tâncias do caso, do intuito que tem o funcionário e do intuito que tem o
estranho.
Mas não se deve esquecer que a essência de qualquer dessas duas
figuras delituosas é, segundo o seu próprio titulo, a corrupção. De per-
meio com incorruptiveis servidores do Estado, há pessoas que. se corrom-
pem por um nada e outras, mais exigentes, que se conservam honestas en-
quanto não se torne bastante eloqüente a vantagem indevida. E aqui é
importante considerarmos mais uma vez as categorias de corrupção -
própria e imprópria. E' claro que se se trata da hipótese de· solicitação,
recebimento, oferta ou promessa de vantagem para a prática de um ato
ilicito, muito mais fàcilmente se apreende a realidade do. crime, ainda
quc seja irrisória a vantagem, do que na· hipótese, muito diversa, de. se
achar a vantagem em conexão com algo perfeitamente normal e justo
nas atribuições funcionais. De acôrdo com as frias expressões do texto,
não cabe distinção, exceto para fixar-se o grau da pena, mas o juiz, que
é obrigado a vivificar a lei ao aplicá-la, não poderá permanecer indife-
rente a essas circunstâncias tôdas, mesmo porque terá que indagar se
existem ou não, sob as suas vistas, uma influência corruptora e o evento
assinalador de um estado de corrupção, perigosa para o interêsse pO-
blico.
Uma gratificação dada posteriormente, por um estranho a um fun-
cionário, já sabemos que, de acôrdo com a letra da lei, é suficiente para
incriminar o funcionário, se houver relação entre a vantagem e o exer-
cicio das funções. Não é 'SUficiente, porém, para incriminar-se o estra-
nho, desde que com isso êle não tenha determinado o funcionário a agir
de determinado modo, por haver realizado a oferta ou a entrega poste-
riormente. Mas o próprio funcionário, apesar de caber a sua ação na lei
penal, aplicada com rigor, muitas vezes. escapará à punição, quando jul-
gado por juizes de ânimo eqüitativo, em face de elementos que indiquem
ausência de imoralidade, segundo o entendimento ético que vigora nos
usos correntes.
Saliento que será relevante, na manifestação da benignidade do ma-
gistrado, indagar se a figura é própria ou imprópria. Por mais insigni-
ficante que seja a vantagem, se ela constitui o prêmio de uma ilegalidade,
dado antes ou depois de efetivar-se a conduta irregular, é claro que o
juiz deverá impor pena. Mas, reconhecendo a inexistência de um estado
de corrupção, poderá, sem com isso escandalizar a quem quer que seja,
omitir o castigo, se tiver perante si um modesto funcionário que·se de-
sempenhou normalmente das suas atribuições e depois recebeu uma gra-
tificação. Há, no organismo do Estado, certos funcionários, cujos irrisó-
rios vencimentos parecem mesmo ter sido estabelecidos na previsão de
aleatórios auxilios externos, porque chegam, exatamente, para o desgra-
çado morrer de fome.
Se um advogado gratifica um oficial de justiça, que cumpriu zelosa-
mente o seu dever, realizando com inatacável dedicação a diligência",ltue
- 408-
lhe competia, poderá criar, perante o rigorismo da lei, ensejo para que
êSse servidor da justiça responda criminalmente. Um juiz visceralmente
técnico seria capaz de condená-lo. Mas, graças a Deus, os juizes não são
máquinas e sim seres humanos.
Podemos desdobrar as hipóteses. Imaginemos um magistrado do in-
terior que está para sentenciar numa demanda. Um caboclo, interessado
no feito, manda-lhe de presente um leitão ou algumas galinhas. Se fôr
dezembro, mandará, naturalmente, um bom peru. O juiz deve tomar-se
de brios e devolver os humildes irracionais? Francamente, eu, se fOsse
êsse juiz, não os devolveria. Daria a minha sentença, sem consultar os
bichos. .. Há 'Certas provas de suscetibUidade que não impressionam bem.
As demonstrações muito enfáticas de honestidade fazem os observadores
filósofos pensar que não há tanta· honestidade assim.
Facilitação de contrabando ou descaminho - O crime do art. 318
é o da "facilitação de contrabando ou descaminho". A lei declara: "Fa-
cilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou des-
caminho (art. 334). Pena - reclusão de dois a cinco anos, e multa, de
um conto a dez contos de réis".
O dispositivo faz remissão ao art. 334, que define o contrabando e o
descaminho. São duas modalidades distintas, contempladas num só dis-
positivo. A primeira parte trata do contrabando, que é o comércio de
mercadorias proibidas. A lei diz: "Importar ou exportar mercadoria
proibida ... " Na segunda parte, o texto objetiva o descaminho, dizendo:
" ... iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou impôsto de-
vido pela entrada, pela salda ou pelo consumo de mercadoria". Trata-se
aqui do desvio de rendas atribuídas ao Estado.
Não vamos estudar hoje o contrabando e o descaminho. Ficará isso
para quando passarmos ao capitulo imediato. O dispositivo do art. 318
apenas cogita da atitude do funcionário culpado de facilitar a prática de
tais crimes.
Não era necessário que o Código disciplinasse de forma autônoma
êsse crime de facilitação. O funcionário que assim procede concorre,
como co-autor, na prática do crime de contrabando ou descaminho. Mas
sabemos que neste capitulo o Código Penal se mostrou sensivel à quali-
dade do sujeito ativo, criando figuras especiais em atenção à circunstân-
cia de ser funcionário público o agente. Foi o que fêz mais uma vez no
art. 318.
Prevaricação - O crime imediato, na ordem do Código, é o de pre-
varicação. Pra.eva.ricator, em latim, significava à pessoa que anda tor-
tuosamente, obllquamente. A expressão, em sua origem etimológica, é
elucidativa. Com o seu sentido se conforma a definição do texto, que é a
seguinte: "Retardar ou d~ixar de praticar, indevidamente, ato de oficio,
ou praticá-lo contra disposiçãO expressa de lei, para satisfazer interêsse
ou sentimento pessoa!".
A Consolidação das Leis Penais tinha, sObre o delito de prevaricação,
quase duas páginas. Apresentava-nos um dispositivo que presidia a nada
menos de dezessete alineas, - as quais cogitavam de modalidades parti-
culares. Prevaricava o funcionário que agisse por uma das formas ca-
suisticamente enumeradas, desde que assim fizesse por ódio, afeição, con-
templação ou para satisfazer interêsse pessoal. Mais conciso e prático, o
atual Código eliminou tantos pormenores, para fazer considerar, quanto
409 -
ao dolo especifico exigivel na verificação dêsse crime, apenas o' interesse
ou sentimento pessoal. Realmente, tal locução é bastante compreensiva.
O interêsse não deve, porém, ser de ordem material. Seria outro o delito:'
corrupção passiva. Se o funcionário infringe a lei ou pratica indevida-
mente ato de oficio de maneira abusiva, porque tem em vista uma van-
tagem pecuniária, suponhamos, incide no campo da corrupção passivà, e
não no campo da prevaricação, - delito menos grave, ao qual se désti-
nam penas reduzidas. Considere-se que a pena privativa da liberdade é '
detenção, ao passo que na corrupção é reclusão.
"Sentimento pessoal" são palavras que abrangem enorme variedade de
motivos. O ódio, a que se referia a lei precedente: o despeito, a inveja e
mesmo o amor e a simples amizade. E' possivel prevaricar visando-se
prejudicar e visando-se favorecer a alguém.
Condescendência criminosa - Entrelaçam-se, por vêzes, as figuraS
delituosas do capitulo. Note-se que na intitulada condescendência crimi-
nosa, há também referência a um sentimento do funcionário público, sen-
timento que o leva a infringir dever do cargo. Cogita-se aqui do dever
de responsabilizar o subalterno que agiu de maneira abusiva ou indevida.
Não tem o funcionário hieràrquicamente superior o direito de ser cle-
mente em face de abusos' do inferior. Cumpre-lhe responsabilizá-lo ou'
promover essa responsabilização pelas vias competentes.
Mas a indulgência é um sentimento de excelente qualidade. O Código
não teria, portanto, razão para exigir que fôsse reprimido criminalmente,
se não se tratasse de alguém que prejudica a administração pública. Não
temos o direito de ser condescentes, em certas circunstâncias. Faz mau
uso de um sentimento bom, por exemplo, o juiz que, obrigado a condenar
o agente indubitável de um crime, o põe em liberdade, só porque se toma
de comiseração por êle. Benigno não pode ser o promotor público, que
€:ntrava ou dificulta a ação penal por apiedar-se do inculpado. Juiz e
promotor, em tais exemplos, praticariam o crime de prevaricação. Do
mesmo modo, o chefe de seção, em face dos desmandos de um subalterno,
se vê na contingência de tomar as providências cabiveis. Pela omissão
Incorreria nas penas da condescendência criminosa.
E como distinguir essa condescendência piedosa de outras situações
psicológicas afins, mas diferentes? Por vêzes, o que existe não é a indul-
gência a que alude o dispositivo. E' relaxamento, é frouxiclão, e o senti-
mento que tem o sujeito ativo não é indulgência. O que o torna inativo
é simplesmente o pouco caso, a falta de zêlo. Pode ser que, apurada, da
parte do acusado, a existência, não do sentimento de comiseração indicado
pelo texto, mas tão só a negligência indesculpável, incorra êle no dispo-
sitivo referente à prevaricação, podendo-se sustentar que o móvel da
atitude do funcionário superior é o Interesse da sua comodidade, da sua
tranquilidade. Resta, porém, a dificuldade prática de saber quando é que
deixa de agir o funcionário por espirito de benevolência e quando é que
êle deixa de proceder por falta de zêlo. E incriminá-lo por prevaricação
comporta alguma dúvida. Teria sido melhor que o art. 320 dissesse:
"por indulgência ou negligência" .
.Advocacia administrativa - Advocacia administrativa é também
delito prcvisto por êste capitulo do Código Peual. Como notarão, se o te:rto
fôr levado a rigor, muito funcionário será alcançado pelas màlhas repres-
sivas. O Código diz isto: "Patrocinar, direta e indiretamente, interêssé-"
410 -

privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de


funcionário: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa, de um
conto a dez contos de réis". E é de reparar-se que nem ao menos, nesse
enunciado, se leva em consideração o fato de ser licito ou ilicito o inte-
rêsse apadrinhado pelo funcionário. Cogita-se da qualidade ilegitima do
interêsse visado apenas como razão agravadora da pena, no parágrafo
único, o que não deixa dúvida alguma de que a licitude de tal interêsse
não isenta das penas inicialmente cominadas.
A figura delituosa é estabelecida no objetivo de robustecer a obriga-
ção de estrita imparcialidade dos funcionários em face das pretensões
dos particulares perante o Estado, veiculadas pelas repartições públicas.
Seus contornos legais são, porém, imprecisos. Subordinam-se ao enten-
dimento, não muito seguro, atribuivel ao verbo "patrocinar". Que é pa-
trocinar? Patrocinio é proteção, auxilio, amparo. Patrocinar uma causa
é advogá-la, defendê-la.
De certo modo, tôda manifestação de boa-vontade de um funcionário
para certos papéis, na sua repartição, poderia ser interpretada como fa-
vorecimento, ou patrocinio. Precisamos, porém, colocar-nos dentro da
realidade, sem fantasias mitológicas, ao cuidar de impor sanções penais.
E' impossivel evitar que funcionários se interessem pelo andamento de
determinados papéis, atendendo ao pedido de um amigo ou conhecido.
Seria absurdo vislumbrar-se nesse fato corriqueiro e inocente o patrocínio
de interêsses, visado pelo legislador ao punir a advocacia administrativa.
O que se desejou punir é, como a própria denominação da modalidade
criminosa adverte, a atitude que comprove, da parte do funcionário, o
ânimo de advogar pretensões alheias, utilizando.se da sua qualidade e do
seu poder de funcionário, como fôrça para a vitória que, dêsse modo
desleal, tende a ser concedida a uma das partes. Para essa advocacia
criminosa não é preciso ser formado em direito ...
Há conveniência em limitar-se, pela forma exposta, o conceito do
delito. Se se lhe conferir desmedida amplitude, acabará por não ser ja-
mais executado. E embora a licitude do interêsse patrocinado não im-
peça legalmente a imposição de Pena, acredito que há de ser nos casos
de interêsse ilegítimo que o dispositivo será real e eficazmente aplicado.
Por exemplo: o funcionário prevalece-se da sua qualidade e consegue
conferir preferência a um mau concorrente, fazendo aceitar-se como me-
lhor o pior produto, numa concorrência pública. Ou facilita a entrada,
no território nacional, de um estrangeiro indesejável, acolitando de má
fé os seus supostos direitos. Ou proporciona um passaporte a quem não
tem a faculdade de obtê-lo. Poderia lembrar muitos outros exemplos,
para evidenciar que, servindo-se do seu prestigio, usa o funcionário de
uma arma temerosa, podendo cometer atos imorais e nocivos.
Trazido, porém, para o tribunal criminal, o acusado defende-se en-
tranhadamente. Se lançar dúvida no espírito do juiz sôbre a ilicitude do
interêsse patrocinado, ainda caberá desclassificar-se o crime, aplicando-
se as penas mitigadas previstas no corpo do artigo.
Violência arbitrária - O crime de violência arbitrária é definido nos
seguintes termos: "Praticar violência, no exercício de função ou a pre-
texto de exercê-la: Pena - detenção, de seis meses a três anos, além
da pena correspondente à violência" (art. 322). A lei manda, portanto.
- 411-
"-
aplicar, além das penas de seis meses a três anos, a correspondente ao
evento resultante da violência, parecendo, pelos seus têrmos, que p!'e:
coniza um concurso material.
Que violência será essa que constitui o elemento objetivo do delito?
A violência consiste no emprego de fôrça fisica ou influência moral,
intimidativa: ameaça. Todo e qualquer constrangimento, em suma,
oposto pelo funcionário, quer a outro funcionário, quer a um particular,
dará ensejo para ser responsabilizado pelo delito de violência arbitrária.
Figuro a seguinte hipótese: O chefe de seção embirra com o quarto escri-
turário e o expulsa da sala de trabalho, não permitindo mais que êle entre
no recinto para exercer as funções de seu cargo. Hipótese tlpica de vio-
lência arbitrária. E se, para cúmulo de audácia, agredir o subalterno,
responderá pelo crime de lesões corporais, em concurso com o crime de
violência arbitrária.
A lei. diz "no exercicio de função ou a pretexto de exercê-la". Assim
diz para contornar uma dúvida.. O ato arbitrário e violento costuma re-
fugir inteiramente à indole própria das· funções. Dêsse modo, poderá o
sujeito ativo não estar exercendo realmente funções do seu cargo. Es-
tará pretextando exercê-las. Mas o pretexto é suficiente para caracteri-
zar-se o crime.
A violência pode consistir em privação da liberdade. O diretor de
uma secretaria resolve trancafiar, na sala do arquivo, por exemplo, um
escriturário. Estará praticando violência arbitrária, em concurso com o
crime de cárcere privado.
Isso me leva a examinar, embora ràpidamente, o art. 850 do Código
Penal, que define o crime intitulado exercfcio arbitrário ou abuso de po-
der. Nesse dispositivo também se trata de casos de privação ilegitima da
liberdade. A düerença, porém, está em que no art. 850 o funcionário
público tem originAriamente poderes para realizar a privação da liber-
dade. Suponhamos um delegado' de policia que, podendo, em virtude do
seu cargo, fazer prisões, prende abusivamente alguém. Será acusado
dêsse crime do art. 850. Mas, na hipótese indicada, de um diretor de
secretaria que mande prender, haverá violência arbitrária (art. 322).
Em certas condições especiais, entretanto, o imaginado diretor de re-
partição poderá fazer prender um individuo. Estou pensando na hipó-
tese de flagrante delito. Não só um funcionário, como qualquer do povo,
tE'm poderes, fixados pela Constituição e pelo Código de Processo Penal,
para deter quem esteja cometendo um crime ou acabou de cometê-lo.
E' obrigado, porém, a apresentar o prêso, sem demora, à autoridade
competente.
Abandono de função ~ O abandono de cargo público é também cri-
me aqui capitulado. Não nos encontramos perante uma inovação dêste
Código. A Consolidação das Leis Penais já punia o abandono de função
pública com pena de multa. Cominava ainda a pena de perda do cargo,
nos casos de reincidência. Parece, entretanto, que ninguém havia notado
a existência da figura delituosa. Hoje, com o inteligente sistema do
atual C6dig~, de dar um nome em negrito para cada infração, à margem
do respectivo texto, vulgarizou-se muito a perseguição penal do velho
delito, agora descoberto. Em tOdas as varas' criminais desta Capital há
processos para reprimi-lo.
- 412-

o abandono de cargo público é conceituado no art. 39 do Estatuto


dos Funcionários Públicos Civis da União e no art. 45 do Estatuto do
nosso Estado, com as mesmas palavras. Entende-se haver abandono
quando o funcionário interrompe por trinta dias consecutivos o exercicio
das suas funções, fora dos casos previstos em lei.
Para verificar-se em que circunstâncias se deu o abandono, instau-
ra-se um processo administrativo, que antecede o processo criminal. Ge-
ralmente, quando se remetem a juízo as peças extraídas do processo ad-
ministrativo, para proceder-se à ação penal contra o funcionário, êle já
sofreu a pena administrativa, demissão.
Tais sejam as circunstâncias, compreende-se que o fato se escuse.
Serão admissíveis justificativas e dirimentes penais, Um funcionário de-
saparece. Trinta dias depois é encontrado perambulando pelas vias pú-
blicas. Enlouqueceu. Houve abandono de função pública, mas abandono
inocente, e como tal se proclamará no reconhecimento da inimputabili-
dade absoluta do acusado. O funcionário some. Um mês depois, apura-se
que está em Campos do Jordão, desorientado, transtornado, alheio às
obrigações da sua vida burocrática, socorrendo um filho que sU'cumbe A
llemoptise. Não será um caso tipico do estado de necessidade, a tornar
huma.Iiamente aceitável a sua ausência ao serviço?
E' claro que, ao incluir a cláusula "fora dos casos permitidos em lei",
o texto não está cogitando de justificativas e dirimentes penais, mas das
licenças e férias, das interrupções legais ou regulamentares do exercicio
da função. Mas nessas hipóteses que estou trazendo à lembrança dos
senhores aplicaríamos as normas gerais do Código Penal.
A redação do art. 323 parece-me defeituosa. Faz supor que exista
abandono permitido em lei. Como se a lei expressamente autorizasse, em
algum caso, o funcionário a abandonar o cargo público. O que se per-
mite ao funcionário, nas hipóteses legais, é, simplesmente, deixar o de-
sempenho das funções, de modo definitivo, mediante exoneração, ou pro-
visório, em interrupção do exercício. Deixar o cargo não é abandoná-lo.
Abandona-o o funcionário quando o deixa ilegalmente, ausentando-se in-
justificAvelmente por trinta dias consecutivos, do que decorre sempre um
perigo, maior ou menor, para a regularidade do serviço público.
De tal procedimento pode resultar efetivo prejuízo. A pena agra-
va-se. Agrava-se também nas circunstâncias previstas pelo último pa-
rágrafo do artigo: se o fato se verifica em lugar compreendido na faixa
de fronteira.
A faixa de fronteira alude o art. 165 da Constituição Federal. Mais
precisamente, como nota Temistocles Cavalcânti no seu "Tratado de Di-
reito Administrativo", existem duas faixas distintas. Uma é de cento e
cinqüenta quilômetros para dentro do território nacional e ao longo das
nossas fronteiras com países do continente. A ela se refere o preceito
constitucional. Nessa faixa prevalecem algumas sérias restrições ao di-
reito de propriedade e à organização do trabalho, em beneficio da de-
fesa nacional e para resguardo de interêsses patrimoniais do Brasil. Ela
abrange outra, menor, de pleno domínio da União. SObre a sua ampli-
tude e me!!mo sÔbre a realidade dêsse pleno dominio, muito se discute.
Na faixa de fronteira, como tal entendida a de cento e cinqüenta qui-
lômetros de largura, o delito de abandono de cargo é considerado par-
ticularmente grave. Nesse trecho do território nacional, bem cOIllpreen-
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slvel é a mais rigorosa exigência de continuida:de inalterável do trabalho


dos agentes do Estado. Suponha-se, por exemplo, 'um guarda fiscal que,
sem prévia demissão ou sem aguardar a chegada do seu irubstituto,
abandone o respectivo pôsto, assim contribuindo para a prática de crime
de contrabando ou descaminho. . .'
Exercfcio funcional ilegalmente antecipado ou prolongado - Essa
figura delituosa compreende duas formas: entrar irregularmente no
exercicio de função pública; indevidamente, persistir no desempenho da
função, quando está obrigado a deixá-la. Vê-sEl, pois, que, assim como
constitui delito o abandono do cargo, integra-o também, em certas condi-
ções, o excessivo apêgo do funcionário ao pôsto que legalmente perdeu.
As exigências legais a que deve satisfazer, antes de entrar em exer-
cicio, a pessoa nomeada para cargo público, sob pena de infringir o
art. 324 do Código Penal, são traçadas pelo Estatuto dos Funcionários
Públicos. Em São Paulo, pelo Estatuto estadual. Nos têrmos do seu
art. 14, que repete as disposições do Estatuto Federal, as quais' por sua
vez também foram trasladadas para o Estatuto dos Funcionários Muni-
cipais do Estado, são requisitos para o provimento em cargo público: I
- ser brasileiro; il - ter completado 18 anos de idade, sendo que para
alguns cargos a lei pode fixar maior idade minima; m - haver mim-
prido as obrigações e os encargos para com a segurança nacional; IV -
estar no gôzo dos direitos pol1ticos; V - ter boa 'Conduta; VI - gozar de
boa saúde; Vil - ser apto para o exercicio da função; vm - ter aten-
dido às condições essenciais prescritas para determinados cargos ou car-
reiras ( concurso, cujo prazo de validade não tenha expirado, salvo os
casos excetuados expressamente pela lei: habilitação profissional, para
certos cargos) .
Antes de entrar em exerc1cl.., deve o funcionário tomar posse do
cargo. Posse, segundo o art. 30 do Estatuto estadual, é o ato que investe
o cidadão em cargo ou função gratificada. A posse realiza-se perante as
autoridades competentes, na forma prevista pelo Estatuto, e verifica-se
"mediante a assinatura de um têrmo em que o funcionário prometa cum-
prir fielmente os deveres do cargo ou da função" (art. 32). Depois de
tomar posse, deve o funcionário entrar em exercicio . "O chefe da repar-
tição ou do serviço em que é lotado o funcionário é a autoridade compe-
tente para dar-lhe exercicio" (art. 38).
Há cargos cujo provimento, por prescrição legal, exige prestação de
fiança. Não poderá o nomeado entrar em exercicio sem ter satisfeito
essa exigência (art. 36).
Para a posse, a lei marca prazo prorrogável. Esgotado, torna-se
nula a nomeação, o que deverá ser declarado em decreto. Se o funcioná-
rio não assumir o exercicio dentro do prazo, será exonerado.
Dispõe o art. 34 do Estatuto estadual que a autoridade que der posse
deverá verificar, sob pena de ser responsabilizada, se foram satisfeitas
as condições estabelecidas em lei ou regulamento, para a investidura.
Será acusada, ainda, do crime do art. 324 do Código Penal, por tornar
possivel a violação dêsse dispositivo pela pessoa que ilegalmente entra
em exercicio do cargo. Pode definir-se com precisão o' nexo de co-autoria,
desde que a autoridade proceda conscientemente, sem incidir em "êrro
essencial sôbre o fato. .
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Quanto à segunda parte da figura delituosa: A comunicação oficial


de haver sido o funcionário exonerado faz-se pela publicação do ato ou
decreto no "Diário Oficial". Mas da remoção, substituição ou suspensão
nem sempre êle tem ciência por essa forma. Há transferências, as vêzes,
de uma seção para outra da mesma repartição, que são notificadas ao
funcionário apenas pela entrega, que lhe é feita, do respectivo título, que
fica em poder do funcionário e é averbado na repartição pagadora.
Também pode acontecer que o ato de suspensão não tenha publicidade.
O conhecimento advirá ao funcionário de comunicação da autoridade
superior.
Violação de 8igilo funcional - O longo estudo já feito dos crimes de
divulgação de segredo (art. 153) e violação do segredo profissional (ar-
tigo 154) dispensa-me, neste momento, de pormenorizar. O delito do ar-
tigo 325 constitui um caso especial da figura de violação de segredo pro-
flssionaI. Agente, agora, é o funcionário público. Ao sigilo o vincula a
ética da sua profissão de servidor do Estado. Mas como a sua infideli-
dade ofende o interêsse 'coletivo, mais relevante, para o codificador penal,
que o dos particulares, as penas são mais severas que as estabelecidas
no art. 154. Representam, quanto à privação da liberdade, precisamente o
dôbro.
Na tutela do ·interêsse particular de respeito ao segredo profissional,
condicionou-se o início do procedimento repressivo à representação do
ofendido. Lôgicamente, haver-se-ia de excluir, e assim se fêz, essa con-
dição no tocante ao delito ora em exame.
Observa-se no dispositivo, em confronto com o art. 154, tendência a
um rigor mais intenso. E' que se visa defender com a maior segurança
possível o segredo que aos órgãos da administração pública incumbe em
certos assuntos. Prescinde-se do elemento "possibilidade de prejuízo".
Não cuida o texto da influência de justa causa. Dilata-se o elemento ma-
terial do delito, punindo-se, sôbre a revelação de segredo, tôda atitude
que a facilita.
Se o texto silencia sôbre a possibilidade de prejuízo, é porque a presu-
me como de existência necessária. Trata-se, na verdade, de segredo. E o
Estado não tem segredos frívolos.
Justa causa para a divulgação, não obstante, é possivel, e com efi-
cácia plena. O silêncio do art. 325 significa que sômente se admitirá a
justa causa enquadrável numa das fórmulas legais de exclusão de crimi-
nalidade ou mesmo de punibilidade, catalogadas na parte geral do Có-
digo. Imaginemos um funcionário sob coação irresistivel, ameaçado de
morte, tendo ante si facínoras armados, que desejam arrancar-lhe o se-
gredo de que é depositário. A revelação não lhe acarretará pena. O he-
roismo da sua resistência, com sacrifício da própria vida, seria digno de
encômios. Mas o juiz que o julgasse pela revelação libertadora do cons-
trangimento invencível não o puniria. O direito penal não exige dos ho-
mens os belos rasgos de desprendimento que êles não costumam ter.
Na cominação das penas, concede-se que o fato constitua mais grave
crime. Por exemplo: pode acontecer que o segredo tenha sido transacio-
nado pelo funcionário relapso, que, nessa hipótese, será réu do delito de
corrupção passiva, em concurso com o do art. 325. Dadas, porém, cer-
tas condições, altera-se, em sua gravidade, o ato em si e isolado de vio-
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lação de segredo pelo funcionário. O art. 47 do Decreto-lei n. 9 4.766, de


1 de outubro de 1942, pune com elevadas penas de reclusão êste mesmo
delito, quando praticado em detrimento ,de "interêsse politico, interno ou
interna.clonal, do Estado". Um dos seus parágrafos estabelece a pena
capital para o caso de ser o crime cometido "com o fim de espionagem
politica ou militar, no interêsse de Estado em guerra com o Brasil ou de
Estado aliado ou associado ao primeiro" .
Violação do 8igilo de proposta de concorréncia - As compras de ma-
teriais necessários aos serviços públicos são geralmente feitas por meio
de concorrência. A êsse processo também recorre o Estado para a venda
do seu material inservivel e para a concessão de serviços públicos. As
cOI1'Corrências são públicas ou administrativas. As primeiras, para as
grandes aquisições anuais, revestem-se de maior' solenidade. As segun-
das destinam-se a aquisições mensais ou menores e realizam-se entre
concorrentes prêviamente inscritos para fornecimentos num certo pe-
nodo.
Nas concorrências, objetivando o Estado os mais vantajosos preços,
é essencial o sigiló das propostas.
Em nosso Estado, nas concorrências públicas, as propostas devem
ser apresentadas em envelopes fechados e la.crados, com requerimento·
de admissão na concorrência, acompanhado dos documentos referentes
à idoneidade da firma, situação econômica, quitação de impostos, etc. Os
envelopes são geralmente postos em um cofre ou urna, que sõmente se
abre na presença da comissão de compras e dos próprios interessados, ru-
bricando todos as propostas abertas, isso em hora aprazada no edital de
concorrência. Lavra-se uma ata, por, todos assinada. Nas concorrências
administrativas, as propostas devem também ser 'enviadas em envelopes
fechados e lacradós, que de igual modo se depositam em cofre ou urna,
para oportuna abertura, na presença dos interessados.
Essas cautelas nos fazem pensar que o crime previsto no art. 325
seja impraticável. Como poderá um funcionário devassar o sigilo de uma
proposta contida em um envelope fechado e la.crado? O crime, entre-
tanto, é possivel. Considere-se que na prática as formalidades não são
sempre observadas. Não é raro, por exemplo, admitirem-se propostas
enviadas em envelopes não lacrados. Não é dificil abri-los, devassando.
assim o respectivo conteúdo, e fechá-los de novo. O crime seria cometido
pelo funcionário incumbido de receber as propostas ou outro qualquer
que pudesse abrir o cofre ou urna.
O verbo devassar dá-nos a idéia de que o delito se integre pelo obje-
tivo conhecimento da proposta, através, portanto, da abertura do enve-,
lope. A palavra tem o sentido de pesquisar, observando, penetrando.
Não me parece que haja essa infração no ato do funcionário que, conhe-
cedor dos têrmos da proposta por informações verbais, dadas, suponha-.
mos, por algum empregado da firma fornecedora, revele a outros inte-
ressados a informação obtida. O que o dispositivo protege é a inviolabi-.
lidade material da proposta escrita. Assim o interpreto.

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