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CRIMINALIZAÇÃO DA SITUAÇÃO DE RUA NO CONTEXTO DAS ‘JORNADAS

DE JUNHO’: O CASO RAFAEL BRAGA VIEIRA NOS AUTOS DO PROCESSO

Rosimeire Barboza da Silva1


Viviane de Melo Resende2

Resumo
Em 2013, grandes manifestações públicas ocorreram no Brasil. As reivindicações pautaram
especialmente a mobilidade urbana, mas o aprofundamento da agenda consolidou um tema que
ganharia força: a organização de megaeventos esportivos no país e seus custos financeiros e sociais.
Ao mesmo passo, entretanto, que mobilizações tomaram o espaço público, a repressão estatal se
incrementou. Protestos foram violentamente reprimidos, e leis e decretos foram formulados para
oferecer base jurídica à detenção arbitrária e à identificação compulsória de manifestantes. No Rio de
Janeiro, numa grande manifestação em 20 de junho de 2013, foi detido Rafael Braga Vieira, jovem
negro em situação de rua. Portando dois frascos de produtos de limpeza, Rafael foi julgado e
condenado a uma pena de cinco anos em regime fechado. A detenção arbitrária, a fragilidade das
provas, a pressuposição de conduta criminal, a desproporcionalidade da pena e a condução do
processo de acusação manifestam como os direitos de algumas pessoas são violados para
supostamente garantir a segurança de outras. Neste trabalho, analisamos dadosdos autos do processo.
O caso de Rafael é emblemático por evidenciar a construção de opinião pública que se baseia em
julgamentos morais entre “cidadãos de bem” e “não-cidadãos”.
Palavras-chave: Análise de Discurso Crítica, Situação de Rua, Megaeventos, Jornadas de Junho,
Cidade Revanchista, Caso Rafael Braga Vieira.

Prólogo – Rio de Janeiro, 20 de junho de 2013


Eram quase seis horas da tarde quando, depois do ‘corre’ diário no garimpo de peças usadas
no Largo do Machado em Laranjeiras, o morador de rua Rafael Braga Vieira voltou ao local
que lhe serviria de abrigo naquela noite.3 Rafael já pernoitava havia aproximadamente um
mês no estabelecimento desativado. Garimpeiro-camelô, vendedor de objetos antigos no
DingoMall, um mercado organizado por pessoas em situação de rua nas proximidades da
feira de antiguidades da Praça XV de Novembro, o ‘corre’ do dia lhe rendera algumas peças
que guardaria no casarão abandonado na Rua do Lavradio. Ao chegar, Rafael percebeu que
haviam deixado ali dois recipientes lacrados: uma garrafa de água sanitária Barra e um

1
Doutoranda em Ciências Sociais pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), Portugal.
Colaboradora do jornal O Trecheiro: Notícias do Povo da Rua, de São Paulo. E-mail: rosebs@ces.uc.pt
2
Professora Adjunta do Departamento de Linguística da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora do Programa de Pós-
Graduação em Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional.
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Linguística (2014-2016). E-mail: viviane.melo.resende@gmail.com.
3
Para reconstruir a história de Rafael, utilizamos informações de variadas fontes. As expressões grafadas em itálico nisto a
que chamamos ‘Prólogo’ e também na segunda seção deste artigo são citações literais das seguintes fontes: (i) a entrevista de
Matias Maxx a Rafael Braga Vieira, publicada, com o título "A única pessoa condenada pelas Jornadas de Junho", no site da
VICE Media Brasil, disponível em: <http://www.vice.com/pt_br/print/a-unica-pessoa-condenada-pelas-jornadas-de-junho>;
(ii) a notícia "Prisão de morador de rua nos protestos completa um ano", assinada por Ricardo Senna, publicada pela BBC
Brasil e disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140620_salasocial_morador_rua_preso_produtos_limpeza_um_ano_rs.s
html?print=1>; (iii) o Termo de Declaração de Rafael Braga Vieira à justiça carioca: RIO DE JANEIRO, Secretaria de
Estado de Segurança, Termo de Declaração (Procedimento: 005-06559/2013) - Rafael Braga Vieira (Autor), 2013.

1
desinfetante Pinho Minuano. Pensou em levá-los para a tia, moradora de outro edifício
abandonado na vizinhança.
O clima na rua era de tensão. Pouco tempo antes, agentes da Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro haviam arremessado uma bomba de gás lacrimogêneo contra a
Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), situada em frente ao casarão. Naquele
momento, manifestantes também eram confrontados por policiais militares e civis, esses
últimos destacados em caráter eventual como força auxiliar de ‘repressão à violência’ nos
protestos. Ao sair do casarão, Rafael foi abordado por cerca de dez policiais:

– Vêm cá, ô moleque. Aí neguinho... ô moleque. O que você tem aí? Ah, cara, você tá com
coquetel molotov? Você tá ferrado, neguinho.

Rafael ouviu com surpresa a ‘dura’ dos policiais e, antes que pudesse responder, foi agredido.

– Eles chegaram me agredindo, me deram coronhada, bateram minha cabeça na parede da


delegacia.

Após ser espancado na rua, na presença de manifestantes, Rafael foi conduzido à DCAV
pelos policiais Eduardo Nogueira Vieitos e Erick Duarte Correa, ambos lotados naquela
delegacia e únicas testemunhas arroladas no Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, que
seria movido contra Rafael posteriormente. Ao chegar à delegacia, Rafael notou que pegaram
a garrafa de Pinho Sol, amarraram um paninho e falaram que era coquetel molotov. A
sessão de tortura também continuou na DCAV.

– Chegaram lá dentro, acabaram de me arrebentar e colocaram no “porquinho”, me


deixaram um tempão lá e depois me chamaram: “Tua casa caiu”.

No jargão policial, o “porquinho” é uma cela de quatro metros quadrados, utilizada para
triagem e avaliação de presos/as. Segundo Rossoti (2011, p. 1), “o ‘porquinho’ serve como
um dispositivo para avaliar o comportamento do preso antes de sua alocação no convívio
comum”.
A prisão “em flagrante” foi convertida em prisão preventiva em 24 de junho, e em 28
de junho a denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro contra Rafael Braga
Vieira foi formalmente recebida pelo juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte, da 32ª Vara
Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Sua sentença de condenação veio a
público em 2 de dezembro de 2013.
.......................................................................................................................................................
Neste artigo, analisamos, à luz da Análise de Discurso Crítica, os documentos dos
autos do Processo movido contra Rafael Braga Vieira que estão disponíveis em acesso aberto

2
para consulta pela Internet. Dividimos o artigo em três seções: na primeira, contextualizamos
brevemente as chamadas Jornadas de Junho, manifestações multitudinárias ocorridas naquele
mês em diversas capitais brasileiras, tecendo considerações também sobre os abusos policiais
ocorridos nesse contexto. Na segunda seção, nosso esforço de contextualização focaliza
especificamente o andamento do Processo nº 0212057-10.2013.8.19.0001, contra Rafael
Braga Vieira. Na terceira seção, apresentamos nossas análises, tão minuciosas quanto
possível neste espaço, de quatro documentos dos autos do processo: a Decisão que
comunicou a prisão de Rafael em 24 de junho de 2013; a Decisão que recebeu a denúncia do
Ministério Público contra Rafael em 28 de junho de 2013; a Decisão que indeferiu o pedido
de revogação da prisão preventiva de Rafael em 27 de setembro de 2013; a Sentença que
condenou Rafael e dosou sua pena em 2 de dezembro de 2013. Por fim, naquilo a que
chamamos Epílogo, trazemos os últimos movimentos dessa história, que estão além de nossos
dados nesse artigo, pontuando alguns eventos decorrentes da intervenção do Instituto de
Defensores de Direitos Humanos no caso Rafael Braga Vieira.

1. Jornadas de Junho e truculência policial na “cidade revanchista”


As manifestações multitudinárias que ocorreram, em diversas capitais do Brasil, no mês de
junho de 2013, ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. Tais manifestações, embora
assumissem como marco as reivindicações contra o aumento das tarifas de ônibus,
aprofundaram pautas e debates mais amplos, como o direito à cidade e a organização de
megaeventos esportivos no país, com seus custos financeiros e sociais, e colocaram em
evidência inédita uma questão denunciada há longos anos por movimentos sociais das
periferias brasileiras: a truculência, a violência e a desproporção de ações policiais contra
civis no Brasil.
No contexto específico das Jornadas de Junho, a resposta desproporcional das
polícias à organização popular foi destacada como uma investida do Estado brasileiro contra
o Estado de Direito, condenada veementemente por observadores internacionais (AMNESTY
INTERNATIONAL, 2014). Com a presença de uma imprensa estrangeira diversificada, que
atendia a interesses comerciais e políticos distintos dos meios de comunicação nacionais, as
manifestações lograram coberturas que acabaram por se tornar partícipes na desconstrução da
imagem de ‘rebelião incontrolável e violenta protagonizada por vândalos’ que os grandes
meios da comunicação nacionais e os governos insistiam em associar aos protestos em
dezenas de cidades do país. A mídia conservadora, nesse sentido, foi parceira na

3
disseminação de um discurso maniqueísta que contrapunha ‘manifestantes pacíficos e
ordeiros’ e ‘manifestantes violentos’.
Se, por um lado, os primeiros esforços para a produção de narrativas oficiais – pelos
poderes públicos, federal e estaduais – e midiáticas – representadas pelos grandes meios de
comunicação – calcaram-se na produção de discursos sobre o caráter ‘temerário’ das grandes
aglomerações, por meio da criminalização das condutas de manifestantes; por outro lado, tais
esforços ruíram quando jornalistas responsáveis pela cobertura dos protestos se tornaram
alvos da repressão policial. Os testemunhos divulgados – também no jornalismo
convencional4, mas principalmente nas redes sociais5 – por jornalistas atingidos por balas de
borracha enquanto exerciam seu trabalho propiciaram uma reviravolta nas narrativas
midiáticas, que passaram a incluir, ainda que timidamente, questionamentos sobre as ações e
os abusos das polícias.
Com a produção de narrativas que se opunham aos relatos oficiais e midiáticos
dominantes, a desproporcionalidade e a violência das ações de repressão policial durante as
Jornadas de Junho e manifestações posteriores vieram à tona. A divulgação massiva de
imagens e relatos sobre policiais que investiam contra manifestantes ensejaram diversas
denúncias contra o Estado brasileiro em organismos internacionais de direitos humanos,
como a Organização dos Estados Americanos (CONECTAS, 2014; MAIA, 2014). Nesse
contexto, nove organizações de direitos humanos, e vítimas da repressão policial, se reuniram
em Washington nos dias 29 de novembro de 2013 e 28 de março de 2014 para apresentar
relatórios e denunciar os abusos cometidos por autoridades brasileiras, e representantes do
governo federal foram intimados a responder sobre os abusos de poder, a letalidade de armas
empregadas contra manifestantes – como teaser, bala de borracha, gás lacrimogêneo, mas
também arma de fogo (AMNESTY INTERNATIONAL, 2014) –, a ilegalidade das práticas
de detenção compulsória, a criminalização da liberdade de expressão e os gastos públicos
bilionários despendidos com ações arbitrárias de repressão (BLANCO; TEIXEIRA, 2014).
Como sabemos, o poder público tende a desempenhar um papel importante na
regulação do espaço urbano, principalmente no uso de forças policiais que asseguram ‘ordem

4
Sobre isso, publicaram-se, entre outros, os textos "'O Estado é mais cego do que eu’, diz fotógrafo que perdeu o olho em
protesto" (disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/12/06/o-estado-e-mais-cego-do-que-eu-
diz-fotografo-que-perdeu-o-olho-em-protesto.htm>)e"Repórter da TV Folha é atingida no olho por bala de borracha durante
protesto em SP" (disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/13/reporter-da-tv-folha-e-
atingida-no-olho-por-bala-de-borracha-durante-protesto-em-sp.htm>), ambas do PortalUOL Notícias
5
Ao lado do papel desempenhado pelas redes sociais na desconstrução de narrativas oficiais e midiáticas sobre os protestos,
que negavam a participação e o envolvimento ativo das polícias em ações violentas, vale destacar a centralidade da cobertura
independente realizada por repórteres da Mídia Ninja. Esse coletivo de repórteres foi responsável por documentar e registrar,
por meio da realização de vídeos e de sua transmissão em tempo real, vários momentos emblemáticos das Jornadas de
Junho, bem como diversas situações de abuso por parte das polícias civis e militares.

4
pública’, coibindo e reprimindo manifestações. 6 Com pressupostos inspirados na política
nova-iorquina de Tolerância Zero, a Secretaria Especial de Ordem Pública do Rio de Janeiro
(SEOP) foi criada em 2009 pelo governo municipal carioca. Muito já foi escrito sobre os
efeitos devastadores da adoção de medidas similares à Tolerância Zero em diferentes partes
do mundo, e o sociólogo Loïc Wacquant (2001, p. 19), um de seus críticos mais contundentes
e perspicazes, a definiu como “[um] instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária
da pobreza que incomoda – a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço
público, alimentando, por conseguinte, uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente
de incômodo tenaz e de inconveniência – [que] propagou-se através do globo a uma
velocidade alucinante. E com ela a retórica militar da ‘guerra’ ao crime e da ‘reconquista’ do
espaço público, que assimila os delinqüentes (reais ou imaginários), sem-teto, mendigos e
outros marginais a invasores”.
A estreita colaboração entre a gestão policial e judiciária da pobreza, por meio da
Operação Choque de Ordem, da SEOP, e os processos gentrificatórios no centro do Rio de
Janeiro conforma o que o geógrafo Neil Smith cunhou como o anti-urbanismo da cidade
revanchista. Em suas palavras (SMITH, 2012, p. 326), “A cidade revanchista augura uma
feroz reação contra as minorias, a classe trabalhadora, as pessoas em situação de rua, os
desempregados, as mulheres, os homossexuais e as lésbicas, os imigrantes”. Mais do que uma
ação no espaço segregado, a cidade revanchista expressa uma reação hierarquizada e
disruptiva contra a parcela mais vulnerável de seus habitantes.
Na próxima seção, esmiuçaremos um encontro ocorrido entre as forças policiais e o
poder judiciário da cidade revanchista contra um de seus habitantes, Rafael Braga Vieira,
negro, em situação de rua, reincidente egresso do sistema prisional e condenado por crime de
perigo abstrato, preso no final da tarde de 20 de junho de 2013, dia em que a cidade
testemunhava a maior manifestação popular ocorrida no Rio de Janeiro desde a transição
democrática na década de 1980.

2. “Morador de rua”, reincidente e condenado por crime de perigo abstrato


Só por volta das dez horas da noite de 20 de junho Rafael foi encaminhado à 5ª Delegacia de
Polícia na Avenida Gomes Freire para prestar depoimento, após orientação da Chefa da

6
Em 2009, o então secretário da Secretaria Especial de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, recebeu da comunicação social o
apelido de ‘xerife’. Incensado pela imprensa como o responsável pela Operação Choque de Ordem e homem de confiança
do prefeito, foi apresentado à população carioca em generosos perfis em jornais e revistas. Ver, por exemplo, o texto "Quem
é Rodrigo Bethlem, o xerife do Rio", publicado no Jornal do Brasil e disponível em:
<http://www.jb.com.br/rio/noticias/2009/02/28/quem-e-rodrigo-bethlem-o-xerife-do-rio/>.

5
Polícia Civil, Marta Rocha. Junto com Rafael, mais três manifestantes aguardavam a oitiva
policial. Já no início da madrugada do dia 21 de junho de 2013, o delegado adjunto Leonardo
Affonso D. dos Santos inquiriu Rafael sobre o porte de coquetel molotov, o uso de drogas, os
dois processos que constavam em seus Antecedentes Criminais e um contato familiar para
comunicar a prisão em flagrante. Rafael foi reticente. Negou o uso de drogas, disse que saíra
da cadeia havia dois meses, após responder e obter liberdade condicional por dois roubos
cometidos, e que não tinha nenhum familiar a quem comunicar a prisão. Sobre o coquetel
molotov, preferiu não se pronunciar, reservando-se o direito de somente se expressar em
juízo. Após a oitiva, Rafael foi enquadrado em flagrante no Inciso III do Artigo 16 da Lei nº
10.826 de 2003, sendo tal flagrante convertido em prisão preventiva em 24 de junho. O
referido inciso versa sobre “possuir, deter, fabricar ou empregar artefato explosivo ou
incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.7
Ato contínuo à oitiva de Rafael, a Polícia Civil também solicitou que uma equipe do
Esquadrão Antibomba da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) arrecadasse o
Material na 5ª Delegacia de acordo com a Correspondência Interna nº 096605/1005/2013.
Emitido um mês após a prisão de Rafael, em 22 de julho de 2013, o laudo elaborado por
técnicos em explosivos e desativação de artefatos explosivos constatou e concluiu que:

Esses engenhos submetidos a exames foram confeccionados em garrafas plásticas, ou seja,


com mínima possibilidade de quebra que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo
inflamável e contato com a chama ignitora […] Pode ser utlizado com eficácia na prática de
crimes como arma de coação, intimidação ou ser acionado e lançado contra populares ou
forças policiais, apresentando, contudo, ínfima possibilidade de funcionar como coquetel
molotov. 8

Cinco dias antes da conclusão do laudo técnico, entretanto, o Desembargador Carlos Eduardo
Roboredo, da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
havia negado seguimento, por deficiência de instrução, a um pedido de Habeas Corpus em
favor de Rafael.9 Um segundo pedido de Habeas Corpus também foi negado, no dia 18 de
julho de 2013, pelo mesmo Desembargador, por idêntico motivo: deficiência de instrução na
inicial. Nas palavras do Relator, “No caso dos autos, a inicial não se fez acompanhar de nada,
rigorosamente nada, em termos de documentação relevante, capaz de bem retratar a hipótese
deduzida”. 10 No caso do pedido de Habeas Corpus, a hipótese deduzida contestava a

7
BRASIL, Casa Civil da Presidência da República, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Lei 10.826. Dispõe sobre registro,
posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá
outras providências.
8
RIO DE JANEIRO, Secretaria de Estado de Segurança, Laudo Técnico Número 267/EA/2013, 2013, p. 1–2.
9
ROBOREDO, Carlos Eduardo, Habeas Corpus no: 0038863-69.2013.8.19.0000. Processo no 0212057-10.2013 (I), 2013.
10
Ibid., p. 11.

6
pressuposição de que os materiais de limpeza portados por Rafael fossem considerados
coquetel molotov. E, por isso, pedia-se que fosse “revogada a prisão preventiva decretada”.
No dia 25 de setembro de 2013 o Promotor de Justiça Felipe Rafael Ibeas, do
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, apresentou suas alegações finais no
processo, argumentando que:

Finda a instrução criminal, entende o Ministério Público estarem sobejamente comprovadas a


materialidade e a autoria delitivas, formando-se o contexto probatório que impõe a condenação
do acusado. […] Conhecendo-se a violência que campeou nos recentes protestos realizados no
Rio de Janeiro, é evidente que o réu pretendia fazer uso nocivo dos frascos incendiários. […]
No que toca ao pleito libertário (fls.93/96), não merece ser acolhido, na medida em que o fato
narrado na denúncia, evidententemente, constitui crime, conforme acima aduzido, sendo
relevante notar que o réu é portador de péssimos antecedentes, estando inclusive comprovada
nos autos a sua reincidência. […] Assim sendo, entende o Ministério Público que o
denunciado deverá ser condenado a pena privativa de liberdade sensivelmente majorada, a ser
cumprida em regime inicial fechado, razão pela qual a manutenção da prisão preventiva se
revela absolutamente imperativa. 11

As alegações finais da defesa foram apresentadas depois, pelo Defensor Público Gustavo
Allemand Fernandes da Costa, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, no dia 9
de outubro de 2013. É nesse documento que, pela primeira vez no processo, são citadas
informações a respeito da profissão de Rafael – catador de latinhas –, e a condição de
morador de rua é explicitada como justificativa para inocentá-lo. De acordo com o defensor,

O acusado […] nega a imputação que lhe é endereçada, esclarecendo que apenas portava uma
garrafa de ‘PINHO SOL’ e outra de ‘água sanitária’, todas fechadas e sem qualquer pavio ou
‘mecha ignotora’. [...] Para jogar uma ‘pá de cal’ na questão, o acusado é reconhecidamente
morador de rua e catador de latinhas, afastando-o completamente do cenário de protestos que
12
havia no dia em tela, retirando, assim, a plausibilidade da conduta a ele atribuída.

Sobre o suposto coquetel molotov, o defensor afirmou: “recipientes de plástico não se


estilhaçam ao serem lançados, logo são inservíveis para a confecção de coquetéis molotov”.13
Em sua linha argumentativa, também expõe o papel ambíguo desempenhado por policiais em
alguns processos criminais: “não se pode olvidar do já comprovado comportamento policial
durante tais episódios populares, forjando provas, alterando a verdade dos fatos e
incriminando inocentes”.14 A defesa continuou, apresentando uma longa explanação jurídica
contra os crimes de perigo abstrato, categoria na qual se enquadra a imputação a Rafael. Para
concluir, o defensor afirmou:
11
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Acusação: Alegações Finais. Processo no 0212057-
10.2013.8.19.0001, 2013, p. 98–99.
12
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, Defesa: Alegações Finais. Processo no 0212057-
10.2013.8.19.0001, 2013, p. 102-3.
13
Ibid.
14
Ibid., p. 104.

7
Nos autos, não consta qualquer demonstração de perigo ao mundo real, pois andar com
produtos de limpeza nunca foi e nunca será crime, sob pena de inviabilizar a vida moderna; se
esta linha prosperar, podemos dizer que portar canetas é crime de perigo, pois uma pode levar
a morte se inserida em determinada parte do corpo humano”.15

No dia 2 de dezembro de 2013, o juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de


Janeiro Guilherme Schilling Pollo Duarte expediu a sentença de condenação de Rafael Braga
Vieira.16 A pena foi fixada em cinco anos de reclusão e dez dias de multa, sendo cada dia de
multa equivalente a 1/30 de salário mínimo nacional, devido à situação econômica do réu.
Após a condenação, Rafael foi transferido do presídio de Japeri, onde cumpria a pena
cautelar, para o presídio Elisabeth Sá Rego.
Na próxima seção, utilizaremos a Análise de Discurso Crítica para analisar a parte dos
autos do processo disponível na Internet para livre consulta. Nosso objetivo é discutir alguns
potenciais sentidos dos textos que nos permitam compreender possíveis motivações da
condenação de Rafael Braga Vieira, jovem, negro, em situação de rua e única pessoa
condenada em primeira instância no contexto das Jornadas de Junho em todo o Brasil.

3. O Caso Rafael Braga Vieira nos autos do processo: análise discursiva crítica
Nesta seção, procederemos à análise de quatro documentos que compõem os autos do
Processo 0212057-10.2013.8.19.0001, movido pelo Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro contra Rafael Braga Vieira. São eles: (1) a Decisão que comunica a prisão de Rafael
em 24 de junho de 2013; (2) a Decisão que recebe a denúncia do Ministério Público contra
Rafael em 28 de junho de 2013; (3) a Decisão que indefere o pedido de revogação da prisão
preventiva de Rafael em 27 de setembro de 2013; (4) a Sentença que condena Rafael e dosa
sua pena em 2 de dezembro de 2013.
Esses documentos correspondem aos principais movimentos do processo ao longo do
ano de 2013, mapeando-se desde o registro de prisão até a condenação, e considerados os
dados do processo disponíveis na Internet para livre consulta – não estão disponíveis para
consulta nos dados do processo as alegações de acusação e defesa, o laudo pericial que
citamos na seção anterior, os depoimentos das duas testemunhas e o de Rafael, os pedidos de

15
Ibid., p. 109.
16
No Código do Processo Penal brasileiro, após as alegações finais da defesa e acusação é agendada uma audiência, em que
o juiz do Tribunal de Justiça, com base nos autos, ou seja, em todos os documentos que compõem o processo penal –
boletins de ocorrência elaborados nas delegacias, pronunciamentos da acusação e defesa, laudos técnicos, testemunhos e
provas materiais, por exemplo –,pronuncia-se sobre o caso. Ao juiz, cabe a absolvição ou a condenação do réu.

8
habeas corpus. 17 Dos dados de livre acesso, excluímos apenas os movimentos do tipo
“Despacho de mero expediente” e “Audiência Instrução e Julgamento”, porque esses
documentos não produzem dados úteis para análise, sendo apenas intimações e registros de
presenças em tribunal.
Os documentos serão analisados respeitando-se sua ordem cronológica, e foram feitos
cortes eliminando remissões a números de páginas do processo e referências a números de
leis e incisos. A categoria analítica mais pertinente na análise foi a pressuposição.
Consideramos, com Fairclough (2003, p. 56), que o implícito “é uma propriedade marcante
de textos, e uma propriedade de considerável importância social”. Todo texto se constrói na
relação com aspectos sociais da esfera da atividade humana de que participa (BAKHTIN,
1997), o que inclui a situação de interlocução que potencia; e uma vez que nenhuma interação
social pode se realizar sem uma base de conhecimento partilhado, o estudo do que se deixa
pressuposto em um texto pode sinalizar o tipo de interpretação esperado, o universo de
sentidos que é tomado como partilhado para a interpretação, e que permite que uma boa parte
dos sentidos do texto seja deixada no nível do não dito, mas passível de interpretação por
pressuposição. Assim é que Fairclough (2003, p. 57) chama atenção para o fato de que “a
capacidade de se exercer poder social, dominação e hegemonia inclui a capacidade de moldar
significativamente esse conhecimento partilhado, o que faz do implícito e da pressuposição
uma questão importante no que se refere à ideologia”.
O mesmo autor distingue três tipos principais de pressupostos: os existenciais, sobre o
que existe; os proposicionais, sobre o que é ou pode ser ou será o caso; os valorativos, sobre o
que é bom/ruim ou desejável/indesejável. Todos esses tipos de pressupostos podem ser
‘engatilhados’ por traços linguísticos, e Fairclough elenca alguns exemplos: pressupostos
existenciais podem ser engatilhados por marcas de referência definida, como artigos
definidos e pronomes demonstrativos; pressupostos proposicionais (factuais) podem ser
marcados por verbos como entender, lembrar, esquecer, que pressupõem a verdade dos fatos
representados como entendidos, lembrados, esquecidos; pressupostos valorativos também
podem ser engatilhados por verbos – por exemplo, ajudar ou atrapalhar – que presumem algo
desejável ou indesejável. Textos também incluem, é claro, avaliações explícitas, mas boa
parte da avaliação costuma ser deixada implícita (MARTIN; WHITE, 2005), e esse é

17
O processo está disponível em
<http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/consultaMov.do?v=2&numProcesso=2013.001.185124-
5&acessoIP=internet&tipoUsuario>. O acesso ao processo eletrônico completo exige “senha provisória ou estar autenticado
no Portal de Serviços”. Para esta análise, consideramos apenas dados de livre consulta.

9
especialmente o caso no tipo de textos que tomamos aqui como dados. Nesses textos, a
interpretação depende amplamente do reconhecimento do sistema de valores que os sustenta.
O primeiro documento, intitulado “Decisão – Homologada a Prisão em Flagrante”, é
reproduzido a seguir nos quatro excertos numerados de (1) a (4), que correspondem aos
quatro movimentos retóricos identificados no texto. Segundo Ramalho e Resende (2011, p.
170), movimentos retóricos podem ser entendidos como “movimentos discursivos em
gêneros, com um propósito particular pontual, que servem aos propósitos globais do gênero”.
Em textos, esses movimentos são distribuídos de acordo com as diferentes funções retóricas a
serem desempenhadas. Em termos da coesão no primeiro documento (HALLIDAY, 2004), a
organização dos movimentos retóricos faz-se acompanhar de indícios coesivos, como, por
exemplo, “Logo”, que prenuncia o encerramento do primeiro movimento; “Registre-se”, que
organiza a mudança de assunto para o segundo; “O fato ocorreu enquanto”, que permite a
introdução da narrativa no terceiro movimento, e “Portanto”, que inicia o movimento
conclusivo, cujo encerramento vem marcado com “Por fim” (veja nos excertos de (1) a (4)).
Assim, nosso primeiro documento cumpre quatro movimentos retóricos: a breve
descrição da prisão de Rafael Braga Vieira “em flagrante”, com a afirmação da existência de
provas e indícios; a desqualificação de Rafael com base em seus antecedentes criminais; a
narrativa do fato; a conclusão por sua prisão preventiva. Nos trechos reproduzidos a seguir,
foram omitidas apenas as informações relativas aos números de páginas do processo e as
referências a leis e incisos do Código Penal. Vejamos o primeiro movimento:

(1) Trata-se de comunicação da prisão do nacional RAFAEL BRAGA VIEIRA, [...] foi preso em
flagrante na posse de dois artefatos incendiários semelhantes a ‘coquetéis Molotov’, logo após sair
de um estabelecimento comercial que estava com a porta arrombada, e situado em frente à
Delegacia da Criança e Adolescente Vítima - DCAV. Registre-se, inicialmente, que o indiciado
encontra-se preso por força de regular flagrante delito, de modo que não há que se falar em
relaxamento da prisão. De outra parte, há prova da materialidade mínima e indícios suficientes da
autoria, segundo se extrai dos depoimentos colhidos em sede inquisitorial, estando presentes os
requisitos autorizadores da prisão preventiva. Ao indiciado é imputada a conduta delituosa de
posse ilegal de artefato explosivo ou incendiário, cuja pena máxima prevista é superior a 6 anos.
Logo, presente o requisito exigido para a decretação da prisão preventiva, [...].

Esse primeiro trecho do documento é, conforme o movimento retórico realizado, bastante


descritivo, cumprindo os requisitos formais do gênero discursivo materializado nesse texto. O
que importa ressaltar aqui é, apenas, a construção do pressuposto do crime, uma vez que se
fala em flagrante em duas oportunidades – “preso em flagrante” e “regular flagrante delito” –,
o que só se pode conceber ao lado do pressuposto proposicional que traz para o nível do
factual o suposto material explosivo. Esse pressuposto proposicional ativa-se em “na posse
de dois artefatos incendiários semelhantes a ‘coquetéis Molotov’” e em “posse ilegal de

10
artefato explosivo ou incendiário”, uma vez que não se pode assumir posse de artefatos
incendiários se a factualidade desses artefatos como tal fosse, em algum momento, posta em
dúvida. A materialidade do crime e os indícios de autoria são já aqui afirmados com base em
“depoimentos colhidos”. Sabemos, com base no documento de Alegação Final do Ministério
Público, que não está entre os documentos de acesso livre ao processo na Internet, que Rafael
Braga Vieira negou a posse de artefatos incendiários, embora assumisse a posse das garrafas
plásticas contendo material de limpeza. Entretanto, desde o início do processo movido contra
ele, a materialidade dos artefatos incendiários é tomada como certa.
Isso pode parecer banal, mas já veremos que o pressuposto de “conduta delituosa” por
parte de Rafael nesse caso específico jamais foi posto em dúvida nos autos do processo
movido contra ele. E note-se desde já que, nesse primeiro e curto excerto, a posse de artefato
incendiário e o flagrante, que pressupõem o delito, são repetidos ambos duas vezes.
O segundo movimento retórico do texto presta-se a desqualificar Rafael Braga Vieira
com base em seus antecedentes criminais:

(2) Registre-se que a FAC do indiciado [...] informa a existência de outros apontamentos, notadamente
a prática de dois crimes de roubo, ambos com condenação pretérita e transitada em julgado em seu
desfavor [...].

Nesse trecho, não há pressuposições formalmente engatilhadas a analisar, mas devemos


registrar que há avaliação evocada, nos termos de Martin e White (2005). Os autores mostram
que em textos as instâncias de avaliação não se dão sempre por meio dos processos
relacionais, que ligam claramente, no sistema de transitividade, uma entidade e suas
qualidades. Ao contrário, avaliações podem ser evocadas, por exemplo, no léxico. É esse o
caso da avaliação de Rafael, que aqui se deixa implícita na lexicalização do campo da culpa –
“crimes de roubo”, “condenação pretérita”, “transitada em julgado em seu desfavor”. Embora
Rafael já tenha cumprido suas condenações e já tenha sido liberado pela justiça, há
criminalidade suposta a ele relacionada. Posto logo após “Ao indiciado é imputada a conduta
delituosa de posse ilegal de artefato explosivo ou incendiário”, e com a introdução por
“Registre-se”, que no plano da coesão realça a suposta relevância da informação no que
concerne a essa nova acusação, isso conduz à presunção de sua culpa.
A seguir, há uma virada no texto, que passa a narrar “O fato”:

(3) O fato ocorreu enquanto centenas de milhares de pessoas reuniam-se, pacificamente, para
reivindicar a melhoria dos serviços públicos. Naquele mesmo episódio verificou-se a presença de
uma minoria, quase inexpressiva - se comparada com o restante de manifestantes - imbuída única e
exclusivamente na realização de atos de vandalismo, tendentes a descreditar e desmerecer um
debate democrático. A utilização do material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de

11
pessoas, é capaz de comprometer e criar risco considerável à incolumidade dos demais
participantes, mormente em se considerando que ali participavam famílias inteiras, incluindo
crianças e idosos. Atente-se que a Constituição da República garante a todos os cidadãos o direito
de reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de
autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local.

A narrativa do fato é rica em avaliação e argumentação. O primeiro aspecto marcante é a


retomada, no campo da justiça, do discurso maniqueísta, que contrapunha ‘manifestantes
pacíficos’ e ‘manifestantes violentos’ e foi amplamente divulgado na mídia conservadora.
Aqui, temos a contraposição de “centenas de milhares de pessoas reuniam-se, pacificamente,
para reivindicar a melhoria dos serviços públicos” e “uma minoria, quase inexpressiva (...)
imbuída única e exclusivamente na realização de atos de vandalismo, tendentes a
desacreditar o debate democrático”. São três as oposições aí construídas: entre muitos
(“centenas de milhares de pessoas”) e poucos (“uma minoria inexpressiva”), entre ordeiros
(“pacificamente”) e vândalos (“atos de vandalismo”), entre democráticos (“reuniam-se (...)
para reivindicar”) e antidemocráticos (“tendentes a desacreditar e desmerecer o debate
democrático”). Embora não se traga à superfície do explícito o pertencimento de Rafael a
nenhum dos dois grupos – o dos bons ou o dos maus, conforme o discurso maniqueísta
preconiza –, a justaposição com os excertos anteriores não parece deixar dúvida: se não há
dúvida de que ele estava de “posse ilegal de artefato explosivo”, como sugere o “flagrante”
duas vezes repetido, e sua culpa já é de saída pressuposta, considerados seus antecedentes
criminais, então não é difícil supor que ele pertença ao grupo dos vândalos, dos desordeiros,
dos antidemocráticos. Assim, a avaliação negativa de Rafael continua sendo propagada,
mesmo sem ser diretamente afirmada.
Nesse excerto também se encontra o pressuposto existencial de “material
incendiário”, ativado no uso do artigo definido (“do material incendiário”). Note-se, para
além disso, que inclusive a escolha do tempo verbal nessa oração – presente do indicativo –
atualiza certeza quanto ao potencial incendiário do material, mesmo antes de realizada
qualquer perícia: “A utilização do material incendiário (...) é capaz de comprometer”. Causa
estranhamento que tenha sido feita a escolha pelo indicativo, em lugar de um modo
hipotético, por exemplo com ‘seria’ ou ‘poderia ser’, uma vez que aquele “material
incendiário” – e o referente só pode ser aquele “material” específico, por força do artigo
definido que pré-modifica “material” na oração – não foi ‘utilizado’.
Ainda, a avaliação continua evocada, especialmente em “risco considerável à
incolumidade dos demais participantes, mormente em se considerando que ali participavam
famílias inteiras, incluindo crianças e idosos”. Se em “risco considerável” e “incolumidade”

12
a avaliação se dá no léxico, em “ali participavam famílias inteiras” é mais implícita, evocada
nos sentidos culturalmente partilhados de que famílias, crianças e idosos devem ser
protegidos. Outro pressuposto deve ser também analisado nessa oração: aquele ativado por
“demais participantes” – por força dessa referência, somos obrigados/as a crer que Rafael
Braga Vieira seria um participante da manifestação, ao contrário do que ele próprio teria
afirmado em juízo.
No próximo movimento retórico, o último deste primeiro documento, trata-se de
concluir que estariam atendidas as condições para a prisão preventiva de Rafael:

(4) Portanto, presentes o fumus comissi delicti, decorrente dos indícios da participação do acusado no
fato descrito na denúncia, e o periculum in libertatis,18 decorrente da necessidade de se resguardar
a futura instrução criminal e a ordem pública, bem como para assegurar a aplicação de eventual
sanção penal. Por fim, cabe ressaltar que diante das circunstâncias do caso, acima demonstradas, a
substituição da prisão preventiva por outras medidas cautelares não atenderia as finalidades da lei,
sendo a medida não apenas necessária, mas também a única adequada ao caso vertente. Desta
forma, CONVERTO a prisão em flagrante de RAFAEL BRAGA VIEIRA em prisão preventiva
[...].

Conforme a advogada Juliana Zanuzzo dos Santos (2011), “Pode-se entender por Fumus
Comissi Delicti a comprovação da existência de um crime e indícios suficientes de autoria. É
a fumaça da prática de um fato punível”. No Direito aplicado no Brasil, a comprovação de
existência de um crime requer elementos concretos, mas a comprovação de autoria atua com
a “suficiência de indícios”.19 No caso em tela, isso significa que a consideração das garrafas
que Rafael trazia como “material incendiário” é fundamental para a existência de “flagrante”
e para a prisão preventiva, porque isso pode ser – como foi – considerado elemento concreto
para a existência de um crime, cuja autoria estaria suficientemente indicada “segundo se
extrai dos depoimentos” (trecho do excerto (1)). Assim, o pressuposto de existência de
“material explosivo” na posse de Rafael, o pressuposto proposicional de que seria este um
caso de “atos de vandalismo” e o pressuposto avaliativo de periculosidade de Rafael como
suposto participante da manifestação, tudo isso é fundamental para que se aceite tratar-se de
uma prisão em flagrante, passível de ser convertida em prisão preventiva, ato que este
primeiro documento de fato realiza.
O segundo documento é datado de 28 de junho de 2013, portanto quatro dias após o
primeiro. Trata-se de documento intitulado “Decisão – Recebida a Denúncia”, em que a
denúncia contra Rafael Braga Vieira, por parte do Ministério Público do Estado do Rio de
Janeiro, é recebida. O documento é curto, e por isso não iremos segmentá-los em excertos

18
Termo jurídico utilizado quando se considera que a liberdade do/a acusado/a seria um risco à sociedade.
19
Disponível em <http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121923880/o-que-se-entende-por-fumus-commissi-delicti>.

13
para a análise. Os cortes indicados no texto a seguir, em (5), referem-se apenas às referências
a leis, artigos e incisos do Código Penal, e à expedição de mandato de citação.

(5) I) Do exame dos autos, verifica-se que a denúncia oferecida pelo Ministério Público
preenche os pressupostos legais para o seu recebimento, [...]. A denúncia contém a
exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado, a
classificação do crime e rol de testemunhas. Os pressupostos processuais e as condições
para o exercício da ação penal estão presentes. Há justa causa para a deflagração da ação
penal, consubstanciada na materialidade delitiva e nos indícios de autoria, que exsurgem do
teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas na sede policial. Impõe-se, portanto,
admitir-se a instauração da ação penal. Pelo exposto, RECEBO A DENÚNCIA oferecida
pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em face de RAFAEL BRAGA
VIEIRA, [...]. II) Atenda-se a diligência requerida pelo Ministério Público, [...]. III) A
prisão em flagrante já foi convertida em prisão preventiva, [...]. Assim sendo, mantenho o
segregamento cautelar do denunciado.

Nesse texto, importa destacar pressupostos existenciais que, em conformidade com o


que discutimos para o excerto (4) do primeiro texto, dizem respeito aos requisitos para a
comprovação da existência de um crime e de indícios suficientes de autoria – ou, nos termos
do próprio texto, ao preenchimento dos “pressupostos legais” pela “denúncia oferecida pelo
Ministério Público”. Por mapeamento simples de artigos definidos no texto, elencamos “a
exposição do fato criminoso”, “a classificação do crime”, “na materialidade delitiva”. Em
todos esses casos, constrói-se o pressuposto de existência de crime no caso das garrafas
recolhidas com Rafael Braga Vieira. Pressuposta a existência de um crime, com base em
elementos concretos (as garrafas tomadas como “material incendiário”, ainda que não se
tenha laudo técnico em 28 de junho de 2013), restaria a autoria, para a qual, como vimos,
consideram-se suficientes os “indícios de autoria”. Uma vez que se tomam as garrafas
plásticas, por pressuposição, como “material incendiário” – como vimos no primeiro texto – e
que se toma por pressuposta a existência de crime, fica fácil aceitar a autoria, uma vez que
Rafael assume a posse das garrafas – que, no entanto, nega serem coqueteis molotov.
Esse segundo documento nos esclarece que haveria “justa causa para a deflagração da
ação penal”, que esta causa estaria “consubstanciada na materialidade delitiva e nos indícios
de autoria” e que essa materialidade e esses indícios “exsurgem do teor dos depoimentos
prestados pelas testemunhas na sede policial”. Assim, por relação lógica, temos que todo o
processo contra Rafael baseia-se em testemunhos que contrariam sua própria versão dos
fatos. Ressalte-se que a versão de Rafael, até aqui, sequer é mencionada nos dados do
processo.
Logo voltaremos a isso, mas antes vejamos mais um documento. O terceiro
documento, publicado em 27 de setembro de 2013, dois meses após o acolhimento da

14
denúncia, intitula-se “Decisão – Decisão ou Despacho – Não Concessão”, é referente ao
indeferimento de pedido de revogação da prisão preventiva pela Defesa de Rafael, assim
chamado ‘pleito libertário’. Vejamos o texto reproduzido a seguir em (6) – novamente, os
cortes referem-se apenas a números de páginas no processo e dados do Código Penal:

(6) 1) Trata-se de pedido de revogação da prisão preventiva formulado pela Defesa Técnica do
acusado RAFAEL BRAGA VIEIRA, [...]. Instado a se manifestar o Ministério Público apresentou
alegações finais pugnando pela condenação do acusado nos termos da denúncia e pela manutenção
da prisão preventiva, [...]. Realmente, conforme bem salientou o Dr. Promotor de Justiça, constata-
se que continuam presentes os requisitos autorizadores da prisão preventiva. Ressalte-se que a
Defesa não logrou êxito em comprovar qualquer alteração na situação fático-jurídica que pudesse
ensejar a modificação da decisão que converteu a prisão em flagrante em preventiva. [...]. Por estes
motivos, e por aqueles expendidos pelo douto Promotor de Justiça, que com a devida vênia ficam
fazendo parte integrante desta decisão, INDEFIRO o pleito libertário. 2) Intime-se a Defesa para
oferecer alegações finais no prazo legal.

O pleito libertário apresentado pela Defesa foi anexado ao processo em 23 de setembro de


2013, mesma data em que o juiz despachou solicitação à Promotoria que se manifestasse
sobre o pleito concomitantemente com suas Alegações Finais. As Alegações Finais do
Ministério Público foram encaminhadas em 25 de setembro, e essa Decisão do juiz, contrária
ao pleito libertário, foi divulgada dois dias depois. Ressalte-se que entre a prisão preventiva
de Rafael e o pleito libertário foi divulgado o laudo técnico que analisou as garrafas,
divulgado em 22 de julho de 2013. Lembremos que a prisão preventiva de Rafael Braga
Vieira só foi possível porque se pressupôs que as garrafas que trazia consigo seriam
“artefatos incendiários”, o que foi tomado como prova da materialidade delitiva, e que Rafael
seria participante na manifestação, pressupostamente parte “de uma minoria (...) imbuída
única e exclusivamente na realização de atos de vandalismo” (excerto (4)).
O Laudo Técnico 267/EA/2013, expedido por comissão composta por membros do
Esquadrão Antibomba, concluiu, como vimos na seção anterior, que os materiais examinados
“foram confeccionados em garrafas plásticas, ou seja, com mínima possibilidade de quebra
que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo inflamável e contato com a chama
ignitora”, e que por isso apresentariam “ínfima possibilidade de funcionar como ‘coquetel
molotov’”.
Apesar disso, o terceiro documento, reproduzido em (6), afirma que “continuam
presentes os requisitos autorizadores da prisão preventiva” (quais sejam, como vimos,
materialidade delitiva e indícios de autoria) e que não haveria “qualquer alteração na situação
fático-jurídica”, em consonância com as Alegações Finais do Ministério Público, segundo a

15
qual a versão de Rafael dos fatos é desqualificada como “pueril versão defensiva” e
“absolutamente isolada nos autos”.
Em seu depoimento sobre os fatos, Rafael afirmou que as garrafas de produtos de
limpeza em seu poder estavam lacradas e que não havia, portanto, mechas ignitoras. 20 Em
entrevista ao deputado Marcelo Freixo, do Rio de Janeiro, também negou participação nas
manifestações, negando conhecimento sobre o que é ‘coquetel molotov’. 21 Rafael ainda
afirmou, na entrevista, abuso policial, uma vez que, segundo ele, foi abordado com violência
e o material que trazia foi adulterado, tendo sido introduzidas mechas ignitoras (pavios). Nos
autos, entretanto, sua voz não encontrou eco, já que não houve qualquer investigação para
apurar as denúncias de tortura contra ele. Assim, temos que todo o processo contra Rafael
baseia-se em dados materiais frágeis, desacreditados inclusive no laudo técnico, e em
testemunhos que contrariam sua própria versão dos fatos, que sequer é mencionada.
Já vimos, na seção anterior, que as únicas duas testemunhas arroladas no processo
foram dois policiais, que faziam parte do grupo que abordou Rafael no dia 20 de junho.
Também já sabemos que, segundo a narrativa dos fatos por Rafael, a abordagem dos policiais
foi violenta, ou seja, ilegal. O antropólogo Roberto Kant de Lima realizou pesquisa sobre o
sistema judicial na cidade do Rio de Janeiro. A respeito do papel da polícia naquele sistema
judicial, o pesquisador concluiu:

A polícia justifica a aplicação de sua ética em substituição à lei quando considera que a
aplicação da lei, em si, é ineficaz para “fazer justiça”. Então, para fazer justiça, desobedece à
lei. Esta atitude é obviamente relacionada ao papel não-oficial que a instituição desempenha
no sistema judicial. (…) à polícia é atribuída, além da função de auxiliar o Judiciário na
apuração – inquisitorial e administrativa – de fatos, a de vigilância da população. Suas tarefas,
portanto, implicam necessariamente discricionaridade na aplicação da lei, uma vez que se
destinam tanto a prevenir futuros comportamentos, com base em suposições dos agentes
policiais sobre a potencialidade da periculosidade dos cidadãos, como a realizar investigações
inquisitoriais discricionárias. (KANT DE LIMA, 1989, s/p)

O desenrolar dos fatos nesse processo leva a crer que Rafael Braga Vieira foi
considerado culpado antes de ser julgado. Não há o benefício da dúvida para Rafael, assim
como não há uma investigação para apurar as denúncias de tortura contra ele. Como já

20
O depoimento de Rafael Braga Vieira não está disponível para consulta, e não conseguimos acesso a ele. Entretanto, é
citado nas Alegações Finais da Defensoria, e por isso conhecemos ao menos parte do conteúdo desse depoimento registrado
por escrito: “que os fatos não ocorreram na forma descrita na inicial; que trabalha como catador de lixo e dormia há
aproximadamente 1 (um) mês no estabelecimento desativado; que foi pego com 2 garrafas de plástico lacradas: uma de
pinho sol e outra de água sanitária; que não tinha pano nas garrafas; que estavam bem lacradas; que quando chegou à
delegacia, a garrafa de "pinho sol" estava aberta e com menos líquido em seu interior".
21
Não tivemos, contudo, como saber se isso também foi dito no depoimento. A entrevista concedida por Rafael Braga Vieira
ao deputado Marcelo Freixo está disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ftjGNczaoNI>. A entrevista foi
realizada na penitenciária Milton Dias Moreira, em Japeri, em 12 de dezembro de 2013, ou seja, onze dias após sua
condenação.

16
veremos, há, ao contrário, a pressuposição, na sentença do juiz, de que policiais são, sempre,
pessoas idôneas, cujos testemunhos são, portanto, de saída confiáveis.
Nosso quarto documento é a peça central do Processo: a Sentença publicada em 2 de
dezembro de 2013. O documento, intitulado “Sentença – Julgado procedente o pedido”,
condena Rafael Braga Vieira e dosa sua pena. No texto, reproduzido a seguir nos excertos de
(7) a (14), foram omitidas apenas as referências a leis e incisos e aos números de páginas do
Processo (exceto no excerto (8), em que os números de páginas foram mantidos). O texto foi
segmentado em excertos conforme os oito movimentos retóricos que identificamos: narrativa
dos fatos inicialmente apurados; descrição do processo e suas partes; versão dos fatos
considerada para a decisão; avaliação positiva das testemunhas e de seus testemunhos;
desqualificação da versão de Rafael; referência ao laudo técnico; condenação e dosagem da
pena; afirmação da reincidência e manutenção da prisão cautelar. O texto da sentença repete
literalmente partes dos documentos já analisados, e nesses casos nos limitaremos a referir as
análises já apresentadas.
Vejamos como se constrói a narrativa dos fatos apurados na fase inicial do Processo:

(7) Processo n.º. 0212057-10.2013.8.19.0001 Acusado: RAFAEL BRAGA VIEIRA SENTENÇA O


Ministério Público ofertou denúncia em face de RAFAEL BRAGA VIEIRA, imputando-lhe a
prática do seguinte fato: No dia 21 de junho de 2013, em horário não determinado, em frente à
Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV), na cidade do Rio de Janeiro/RJ, o
denunciado, com consciência e vontade, portava 02 (dois) frascos contendo substância inflamável
com pedaços de pano presos em seu bocal, conhecidos como ‘coquetel Molotov’, sem autorização
e em desacordo com determinação legal e regulamentar. Consta dos autos que no dia das
manifestações em prol das melhorias dos serviços públicos, policiais civis que estavam de
prontidão na DCAV viram o denunciado, o qual carregava uma mochila, entrar em um
estabelecimento comercial localizado em frente à referida Delegacia e que instantes depois o
acusado saiu do referido estabelecimento portando 02 (dois) artefatos incendiários em suas mãos.
Assim, os agentes da lei abordaram o acusado, que apenas disse que estaria participando das
manifestações.[...]

Como já vimos nas análises do primeiro e do terceiro documentos, é sabido – com base nas
Alegações Finais do Ministério Público e nas Alegações Finais da Defensoria, ambas
ausentes do processo de acesso livre na Internet, mas que conseguimos obter em cópia – que
Rafael Braga Vieira negou a posse de artefatos incendiários, embora assumisse a posse de
duas garrafas plásticas contendo material de limpeza. Entretanto, pela narrativa da fase inicial
do Processo na Sentença, dá-se a entender que Rafael levaria, “com consciência e vontade”,
não as garrafas plástica que ele assume que portava, mas “substância inflamável com pedaços
de pano presos em seu bocal, conhecidos como ‘coquetel Molotov’”, sentido retomado
adiante no mesmo excerto como “02 (dois) artefatos incendiários”.

17
Já vimos que a materialidade dos artefatos incendiários ser tomada como certa foi
peça fundamental em todo o processo, possibilitando a prisão preventiva com base nessa
‘prova’ da materialidade do delito ao lado dos depoimentos das testemunhas, que
possibilitaram o indício de autoria. Nesse excerto, assim como no primeiro texto analisado, é
de se notar o pressuposto proposicional que traz para o nível do factual o suposto material
explosivo, uma vez que não se pode assumir que se portem artefatos incendiários (“portava”,
“portando”) se a factualidade desses artefatos, tal como descritos nos depoimentos, fosse
posta em dúvida.
Também devemos ressaltar que os depoimentos dos policiais, nesse excerto, sequer
são referidos como depoimentos, uma vez que não há qualquer processo verbal – ou verbo
dicendi – no trecho: não se informa que ‘os policiais disseram/ afirmaram/ asseveraram que
viram’, mas apenas que eles “viram”, o que acarreta a representação do testemunho não no
mundo do dizer, mas no mundo da experiência sensível, o que garante muito mais valor de
verdade para essa representação. Além disso, “policiais civis” se retoma, ao final do trecho,
por “agentes da lei”, o que resulta avaliação positiva desses atores sociais representados.
Por fim, sabemos, com base na entrevista concedida por Rafael Braga Vieira ao
deputado Marcelo Freixo, que Rafael nega participação nas manifestações. Entretanto, como
não temos acesso à totalidade dos documentos que compõem os autos do processo, não temos
como saber se essa negativa está presente no processo e é ignorada aqui, ou se a negativa de
participação nas manifestações não se faz presente nos autos, e por isso não seria contraposta
ao que se atribui ao testemunho dos policiais.
Essas incertezas em que esbarramos no exercício de análise, quando tentamos nos
mover no terreno movediço que é o processo contra Rafael, mostram a opacidade da
produção de documentos no caso. Em pesquisa sobre a produção de documentos, pela polícia
civil, a respeito de mortes de pessoas em situação de rua no Distrito Federal, Silva e Melo (no
prelo) concluíram que a “produção da indiferença” (ou o que chamaram de “opacidade”) nas
narrativas institucionais da polícia nesses casos parece ser pragmática: quanto mais
econômica e fragmentada for a narrativa escrita, mais ela vai despistar o real sentido da ação
descrita, e menos a instituição poderá ser implicada em futuras investigações.
O segundo movimento retórico realizado na Sentença é uma descrição das partes do
Processo e seus respectivos documentos. Vejamos o trecho em (8) – pelas características
próprias desse esforço retórico, decidimos, neste caso, manter as informações sobre os
números das páginas dos documentos referidos no processo:

18
(8) A inicial veio instruída com o flagrante nº 096717-1005/2013 (fls. 02D/35). Auto de Apreensão às
fls. 21. FAC às fls. 29/35. Decisão de recebimento da denúncia, às fls. 50/51. Resposta à
Acusação, às fls. 56/57. Laudo Técnico às fls. 70/72.Audiência de instrução e julgamento realizada
nos moldes das assentadas de fls. 79 e 87/88, oportunidade em que foram ouvidas duas testemunha
da denúncia, seguindo-se o interrogatório do acusado (mídia de fls. 89/90). Em alegações finais, o
Ministério Público requereu a condenação do réu nos termos da denúncia (fls. 99/103). A Defesa,
por sua vez (fls. 101/109), pleiteou a absolvição do acusado por atipicidade da conduta. Vieram-
me, então, conclusos os presentes autos. É o relatório.

Já se vê que o trecho é bastante descritivo do Processo como documentação, sendo pouco


produtivo para análise de pressupostos presentes. É, em todo caso, relevante notar, aqui, os
textos cuja existência nos autos é referida pelo juiz. Mais adiante, será útil comparar os textos
reconhecidos aqui – laudo técnico, depoimentos de testemunhas, depoimento de Rafael Braga
Vieira, Alegações Finais do Ministério Público, Alegações Finais da Defensoria – e aqueles
que se escolhe referir, e, entre esses últimos, os modos de referência eleitos para cada caso.

(9) DECIDO. Trata-se de ação penal na qual se imputa ao acusado a prática de porte de aparato
incendiário ou explosivo, já que nos termos da denúncia foi detido em um dia de manifestações
populares em prol das melhorias dos serviços públicos, na posse de dois artefatos incendiários em
suas mãos, contendo substância inflamável com pedaços de panos presos em seu bocal, na forma
de ‘coquetel molotov’. Finda a instrução criminal, e diante do substrato probatório carreado nos
autos, fiquei convencido de que a imputação veiculada na denúncia mereceintegral acolhimento.
Com efeito, em se tratando de prisão em flagrante de características bastante comuns, a aferição da
materialidade e autoria do delito não demandam maiores indagações. A materialidaderestou
comprovada de forma inequívoca pelo Registro de Ocorrência [...], pelo auto de apreensão [...],
pelo laudo técnico de exame do material acostado [...], e pelo relato das testemunhas, em Juízo,
descrevendo e pormenorizando toda a dinâmica delitiva. A autoria, por sua vez, pôde ser haurida
do seguro reconhecimento do acusado em Juízo, pelos dois policiais civis que efetuaram a prisão,
bem como da versão apresentada pelo réu em seu interrogatório, indicando que era realmente ele
quem portava as garrafas, não deixando a menor dúvida, em face da clareza e segurança das
provas, de que foi o réu quem praticou o crime, nos termos da denúncia.

Nesse terceiro movimento retórico da Sentença, o que se realiza é a seleção por uma das
versões dos fatos disponíveis nos autos: aqui o juiz se manifesta sobre aquilo de que está
“convencido”. Desse trecho, queremos chamar atenção para o pressuposto proposicional
relativo à factualidade do crime, com a retomada também do pressuposto relativo ao
conteúdo das garrafas, e para a modalidade epistêmica alta muitas vezes reificada.
Quanto ao pressuposto de factualidade do crime, constrói-se aqui por meio de duas
estratégias textuais: pelo uso de estruturas definidas, como já vimos nos casos de documentos
anteriores, e pela estrutura coesiva. No primeiro caso, devemos notar a utilização de “na
posse de dois artefatos incendiários em suas mãos”, em que a materialidade dos artefatos
incendiários é novamente tomada como certa. Essa factualidade é a base graças à qual se
torna possível a referência definida a delito e crime – “da materialidade e autoria do delito”,
“praticou o crime”.

19
No caso das estruturas coesivas, há dois aspectos a mencionar, um dizendo respeito à
coesão por conjunção e o outro às retomadas anafóricas. A coesão por conjunção é relevante
para a construção do pressuposto especialmente pelo uso de “já que”, na primeira oração do
trecho: “se imputa ao acusado a prática de porte de aparato incendiário ou explosivo, já que
(...) foi detido em um dia de manifestações populares em prol das melhorias dos serviços
públicos, na posse de dois artefatos incendiários”. Aqui se retoma, por relação lógica, o
pressuposto de que Rafael Braga Vieira necessariamente seria parte da já referida “minoria”
de ‘vândalos antidemocráticos’ nas manifestações. Ainda em termos de pressuposição, no
que se refere à anáfora, note-se a estrutura de retomadas referentes a “aparato incendiário ou
explosivo” – esta expressão, utilizada na construção textual da acusação inicial, vai sendo
retomada ao longo de todo o trecho: “dois artefatos incendiários”, “substância inflamável
com pedaços de panos presos em seu bocal” e “coquetel molotov”, em referência às
alegações da denúncia; “material acostado”, em referência ao laudo técnico da perícia; e
finalmente “as garrafas”, no depoimento do próprio Rafael. Esta última referência é o que nos
interessa aqui: referindo-se essa construção à autoria de um ato delituoso já tomado como
fato, a estrutura textual “bem como da versão apresentada pelo réu em seu interrogatório,
indicando que era realmente ele quem portava as garrafas” traz para a boca de Rafael Braga
Vieira as palavras da acusação, especialmente porque retoma as referências anteriores ao
suposto material incendiário no próprio depoimento de Rafael, inclusive com o recurso do
conector aditivo “bem como” e do fortalecedor “era realmente ele”. Sabe-se que em seu
depoimento Rafael assumiu o porte de garrafas, sim, mas garrafas contendo material de
limpeza, não “coquetel molotov” como as retomadas coesivas nesse trecho dão a entender.
O mesmo excerto também é rico em estruturas de modalidade epistêmica alta, que
trazem toda a representação do obscuro caso da acusação a Rafael Braga Vieira para o nível
do certo, do seguro, do inequívoco. Isso ora se texturiza por simples escolha de adjetivos, ora
por estruturas frasais, ora nos recursos coesivos: “diante do substrato probatório carreado nos
autos”, “fiquei convencido”, “merece integral acolhimento”, “Com efeito”, “prisão em
flagrante de características bastante comuns”, “a aferição da materialidade e autoria do delito
não demandam maiores indagações”, “A materialidade restou comprovada de forma
inequívoca”, “pormenorizando toda a dinâmica delitiva”, “seguro reconhecimento”, “não
deixando a menor dúvida”, “em face da clareza e segurança das provas”. Assim, em que pese
a opacidade dos documentos e a fragilidade das provas produzidas no processo, a referência
ao caso nesse trecho da sentença leva a crer que estaríamos diante de um caso simples,
cristalino, ou seja, diante de uma condenação de justiça clara, sem risco de erros.

20
No quarto movimento retórico da Sentença, o esforço discursivo volta-se à avaliação positiva
das testemunhas e de seus testemunhos.

(10) Em princípio, ressalte-se que as testemunhas são pessoas idôneas, isentas e não têm qualquer
interesse pessoal em incriminar o réu. Nessa perspectiva, o policial civil EDUARDO NOGUEIRA
VIEITOS, narrou em Juízo [...], a dinâmica dos fatos de forma coesa e firme, tal como se extrai do
excerto abaixo destacado: “(...) que são verdadeiros os fatos narrados; que o depoente é policial
civil lotado na DECAV; que gostaria de retificar, apenas, que o local indicado na denúncia não era
propriamente um estabelecimento comercial, e sim uma loja abandonada; que a porta do
estabelecimento estava arrombada; que observou quando o réu ora presente entrou naquela loja
com uma mochila e em seguida saiu com dois frascos em suas mãos; que em virtude das
manifestações havia muita gente na rua, mas o réu era o único com frascos na mão; que naquela
data a DECAV foi atingida por uma granada de gás lacrimogêneo lançada pela própria PMERJ;
que dessa forma, fica claro que a Polícia Militar precisou intervir naquela manifestação; que o réu
não soube explicar o que estava fazendo com os frascos em suas mãos; (...) que a loja indicada na
denúncia já estava abandonada antes da data dos fatos e foi arrombada aproximadamente duas
semanas antes dos fatos; que as duas garrafas encontradas com o réu tinham um estopim no
gargalo, qual seja, um pano do tipo flanela, alaranjado; que ambas as garrafas eram de plástico;
que em toda rua, e precisamente no local da prisão havia uma grande concentração de pessoas e
um ‘corre-corre’; que o incendiamento daqueles artefatos seria capaz de colocar em risco as
demais pessoas; (...)” Corroborando a narrativa em destaque, temos o depoimento do também
policial civil ERICK DUARTE CORREIA [...]. Esta testemunha narrou os fatos de forma idêntica
a de seu colega da corporação, acrescentando, ainda, que os aparatos encontrados com o réu
aparentavam ser garrafas de ‘coquetel molotov’.

Nesse trecho, a avaliação positiva das testemunhas é dada logo ao início do excerto, por meio
do processo relacional que liga, em instância avaliativa explícita, “testemunhas” e “pessoas
idôneas, isentas”, e também por meio da perífrase “não têm qualquer interesse pessoal em
incriminar o réu”, que reifica o sentido de “isentas”, atuando como reforçador. A estrutura
coesiva que inicia o trecho – “Em princípio, ressalte-se que” – sinaliza alguma expectativa
em contrário: o juiz vê a necessidade de expressar esse juízo sobre as testemunhas no
contexto da sentença. Conhecendo-se os autos do processo, é possível inferir que se trate,
aqui, de resposta velada às Alegações Finais da Defensoria; embora o juiz não refira o texto,
em suas alegações finais o defensor público afirmou o seguinte: “não se pode olvidar do já
comprovado comportamento policial durante tais episódios populares [as manifestações de
rua], forjando provas, alterando a verdade dos fatos e incriminando inocentes”. Mesmo
sabendo que, segundo Rafael, a abordagem foi violenta e os materiais adulterados, e que
muitos casos de abuso policial foram denunciados no contexto das Jornadas de Junho, o juiz
afirma isenção das duas únicas testemunhas no caso contra Rafael. Chama atenção, nesse
aspecto, a ausência das vozes da defensoria e do próprio Rafael.
O conteúdo dos testemunhos também é avaliado: explicitamente no caso do primeiro
testemunho (“de forma coesa e firme”), e em avaliação evocada no caso do segundo (“Esta
testemunha narrou os fatos de forma idêntica a de seu colega da corporação”). Note-se que as

21
referências ao confuso contexto em que Rafael foi preso (“que em virtude das manifestações
havia muita gente na rua, mas o réu era o único com frascos na mão; que naquela data a
DECAV foi atingida por uma granada de gás lacrimogêneo lançada pela própria PMERJ; que
dessa forma, fica claro que a Polícia Militar precisou intervir naquela manifestação” e “que
em toda rua, e precisamente no local da prisão havia uma grande concentração de pessoas e
um ‘corre-corre’”) não são, como poderiam ser, levantadas para colocar em dúvida a certeza
desses testemunhos quanto ao ocorrido. É curioso que com tanta confusão os dois policiais
tenham depoimentos idênticos, e que em situação tão conturbada possam afirmar que Rafael
seria o único na multidão com garrafas na mão.
Ainda sobre a articulação intertextual dos dois testemunhos no texto da Sentença,
chamamos atenção para as referências às garrafas. A primeira testemunha, conforme o
registro de seu depoimento retomado pelo juiz em discurso direto, afirmou “que o
incendiamento daqueles artefatos seria capaz de colocar em risco as demais pessoas”, e é
curioso que essa afirmação tenha sido feita assim, em modo realis (“seria”, e não “poderia
ser”) antes mesmo de qualquer perícia. A segunda testemunha, após narrar os fatos “de forma
idêntica a de seu colega da corporação”, fez um acréscimo sobre as garrafas: “que os aparatos
encontrados com o réu aparentavam ser garrafas de ‘coquetel molotov’”. Conforme a perícia
técnica, garrafas de ‘coquetel molotov’ precisam ser de material quebrável, para que possa
haver espalhamento da explosão. Essa afirmação equivocada da testemunha a respeito da
aparência (“aparentavam ser”) dos “aparatos” poderia, então, ter sido cotejada com a perícia
técnica e com a descrição do contexto turbulento da prisão, e isso poderia ser suficiente para
colocar em dúvida, senão os testemunhos, ao menos sua “forma coesa e firme”.
Em movimento retórico próximo, o juiz fará referência ao texto da perícia. Antes,
porém, ele dedica o próximo esforço discursivo à desqualificação da versão dos fatos
apresentada por Rafael Braga Vieira:

(11) A negativa dos fatos, pelo acusado, quando de seu interrogatório [...], mostrou-se dissociada dos
demais elementos de prova, e evidenciam unicamente uma tentativa desesperada de esquivar-se
das imputações formuladas pelo Parquet, numa clara manifestação do exercício da autodefesa.
Atente-se que o réu declarou uma versão pueril e inverossímil, no sentido de que teria encontrado
as duas garrafas lacradas – uma segundo ele contendo ‘Pinho Sol’ e a outra ‘água sanitária’ –
ambas em uma loja abandonada, e resolveu tirá-las dali. Vale destacar que as circunstâncias em
que ocorreu a prisão, ou seja, enquanto ocorria uma enorme manifestação popular, com
concentração aproximada de 300 mil pessoas na Avenida Presidente Vargas, conforme
amplamente divulgado na mídia, e no mesmo dia em que ocorreu confronto com as Forças
Policiais, deixam claro que o intento do réu não seria outro senão o de proceder ao incêndio de
qualquer objeto ou pessoas.

22
Nesse trecho da Sentença, o que chama atenção é o esforço avaliativo, realizado
explicitamente na alta densidade de adjetivos e advérbios de emprego valorativo, se
comparados este e os trechos anteriores do texto – “desesperada”, “clara”, “pueril”,
“inverossímil”, “enorme”, “unicamente” e “amplamente” – e, mais que isso, as relações
intertextuais que esse excerto manifesta com as alegações finais de acusação. O texto da
sentença parece retextualizar alguns trechos do texto da acusação:

Sentença Alegações Finais do Ministério Público


teria encontrado as duas garrafas lacradas – uma segundo ao argumento de que encontrou duas garrafas lacradas, uma
ele contendo 'Pinho Sol' e a outra 'água sanitária' – ambas de "Pinho Sol" e outra de "água sanitária", e resolveu retirá-
em uma loja abandonada, e resolveu tirá-las dali. las da loja abandonada (...)
A negativa dos fatos, pelo acusado, quando de seu A pueril versão defendiva restou absolutamente isolada nos
interrogatório [...], mostrou-se dissociada dos demais autos. (...) Merece registro que as explicações do réu em
elementos de prova (...) Atente-se que o réu declarou uma juízo mostraram-se desarrazoadas.
versão pueril e inverossímil
Vale destacar que as circunstâncias em que ocorreu a prisão Conhecendo-se a violência que campeou nos recentes
(...) deixam claro que o intento do réu não seria outro senão protestos realizados na cidade do Rio de Janeiro, é evidente
o de proceder ao incêndio de qualquer objeto ou pessoas que o réu pretendia fazer uso nocivo dos frascos
incendiários

Observando os trechos dos dois textos organizados no quadro, podemos perceber não apenas
a reorganização frasal das ideias, por exemplo quando “versão pueril e inverossímil” substitui
“A pueril versão” e “explicações (...) desarrazoadas”, ou quando “e resolveu retirá-las da loja
abandonada” torna-se “ambas em uma loja abandonada, e resolveu tirá-las dali”, mas também
a reprodução de relações de sentido entre ideias – especialmente a falaciosa relação de
sentido segundo a qual o contexto turbulento da manifestação seria suficiente para se ter a
certeza de que as garrafas de produtos de limpeza trazidas por Rafael não poderiam ser senão
“coquetel molotov”. Nesse caso, a relação que, no texto de acusação, se realiza com “é
evidente que” vai realizar-se, no texto do juiz, com “deixam claro que”. Tanto “evidente”
quanto “claro” contrariam a opacidade das provas nesse confuso caso judicial que não tem
nada de claro nem de evidente.
Note-se, ainda, que ao qualificar de “coeso e firme” o depoimento da testemunha, o
juiz traz para a Sentença, em discurso direto, o registro formal do depoimento, mas o mesmo
não se verifica para a voz de Rafael, que é apenas referida em relato narrativo de ato de fala
(“A negativa dos fatos, pelo acusado, quando de seu interrogatório”), inclusive avaliativo (“o
réu declarou uma versão pueril e inverossímil”), ou em discurso indireto (“segundo ele”).
No próximo movimento retórico identificado, o juiz volta-se para a articulação
intertextual do laudo técnico que avaliou as garrafas conforme entregues à justiça pelos
policiais:

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(12) O laudo técnico nº 267/13, tendo como objeto o exame do material [...] atesta que uma das garrafas
tinha 'mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov'. No mesmo documento o Perito
prossegue informando em sua conclusão (item 04) que 'o etanol encontrado dentro de uma das
garrafas pode ser utilizado como combustível em incêndios, com capacidade para causar danos
materiais, lesões corporais e o evento morte', delineando assim a potencialidade lesiva de ao menos
um dos artefatos. Assim, comprovados os fatos típicos, não havendo causas excludentes de
ilicitude ou culpabilidade, impõe-se o decreto condenatório na forma da denúncia.

Nesse trecho da Sentença, o juiz continua estabelecendo relações intertextuais com os


documentos dos autos, mas dessa vez focaliza o laudo pericial. Ao fazê-lo, opera uma seleção
do conteúdo do laudo, e escolhe deixar de lado a descrição do “frasco (...) contendo em seu
interior 600 (seiscentos) ml de um líquido na cor branca, não inflamável, identificado como
água sanitária” e a consideração de que “A água sanitária (...) é um produto não inflamável
utilizado em limpeza domiciliar”.
O laudo pericial, atestando a opacidade dos documentos desse caso judicial, é
contraditório. Mesmo constatando que uma das garrafas continha apenas água sanitária,
material nomeadamente não inflamável, o mesmo laudo afirma em seguida que “Esses
engenhos foram confeccionados com intenção de funcionar como ‘coquetéis molotov’”, o
que incorre em duas inadequações: pretender, pela apreciação de um objeto, concluir sobre
intenções, especialmente em uma situação policial em que há denúncia de adulteração de
provas; e pretender que se produza intencionalmente um artefato incendiário à base de
produto que se reconhece não inflamável.
Em seguida, o laudo chega finalmente ao trecho selecionado para figurar na Sentença,
em que o perito afirma que os “engenhos” tendo sido “confeccionados em garrafas plásticas”,
com “mínima possibilidade da quebra que possibilitaria o espalhamento do seu conteúdo
inflamável” (mas o mesmo laudo, linhas antes, havia concluído que um dos “engenhos” não
continha material inflamável!), teriam “mínima aptidão para funcionar como ‘coquetel
molotov’”, e conclui: “apresentando ínfima possibilidade de funcionar como ‘coquetel
molotov’”.
Mas assim como a acusação, o juiz também interpreta “mínima aptidão” e “ínfima
possibilidade” como uma afirmativa, e não como uma negação de que as garrafas seriam
‘coquetel molotov’. Aqui novamente, como para o trecho anterior, a Sentença retoma
conclusão idêntica à da acusação a respeito desse laudo inconclusivo: o que no texto da
acusação aparece como “o laudo pericial (...) asseverou a potencialidade lesiva dos objetos
encontrados em poder do acusado”, no texto do juiz apresenta-se como “delineando assim a
potencialidade lesiva de ao menos um dos artefatos”. A defesa apresentou outra interpretação,

24
mas que foi sumariamente ignorada pelo juiz. A respeito do laudo técnico, diz o defensor
público em suas alegações finais:

Somente com este panorama se deflui as seguintes inexoráveis conclusões: a) água sanitária
não é substancia apta a incendiar ou causar explosão; b) em que pese a base alcoolica do
desinfetante, este é de difícil combustão, não se prestando à fabricação de Coquetel Molotov;
c) álcool "de cozinha" é mais barato e mais eficiente; d) recipientes de plástico não se
estilhaçam ao serem lançados, logo são inservíveis para a confecção de coquetéis molotov.
Importanbte notar que tais conclusões lógicas independem de haver ou não pano na boca das
garrafas (o que o réu nega).

Essas conclusões, entretanto, não são sequer mencionadas pelo juiz, assim como a acusação
por parte de Rafael de que as garrafas teriam sido adulteradas antes de serem entregues à
perícia. Segundo Rafael, em seu depoimento, conforme registrado nos autos e mencionado
nas alegações finais da defesa, “os fatos não ocorreram na forma descrita na inicial; (...) foi
pego com 2 garrafas de plástico lacradas: uma de pinho sol e outra de água sanitária; (...) não
tinha pano nas garrafas, que estavam bem lacradas; (...) quando chegou à delegacia, a
gararafa de ‘pinho sol’ estava aberta e com menos líquido em seu interior”.
Assim, quando afirma que não haveria “causas excludentes de ilicitude ou
culpabilidade”, o juiz decide ignorar toda a argumentação da defesa de Rafael, assim como
seu testemunho, o que parece decorrer da avaliação de idoneidade das testemunhas
explicitamente expressa e reificada três vezes, conforme vimos na análise do excerto (10),
bem como da desqualificação de Rafael, em vários textos dos autos e também nesta Sentença.
Devemos notar, ainda, que mesmo o juiz põe em dúvida a perícia técnica, ao afirmar,
na Sentença, que estaria comprovada a “potencialidade lesiva de ao menos um dos artefatos”.
Considerando que a perícia afirmara que uma das garrafas continha apenas líquido não
inflamável, o juiz afirmar que “ao menos” uma das garrafas teria potencial lesivo pode ser
interpretado de duas formas: ou se coloca em dúvida a perícia feita ou se realiza estratégia
argumentativa em desfavor de Rafael. A perícia também é posta em dúvida na reiteração de
“coquetel molotov” diversas vezes na Sentença, mesmo que os especialistas do Esquadrão
Antibomba tenham concluído a “ínfima possibilidade” de as garrafas funcionarem “como
‘coquetel molotov’”. O termo aparece em quatro dos oito trechos em que segmentamos o
texto da Sentença: “conhecidos como ‘coquetel Molotov’” (excerto (7)) “na forma de
‘coquetel molotov’” (9) “os aparatos encontrados com o réu aparentavam ser garrafas de
‘coquetel molotov’” (10) e “uma das garrafas tinha ‘mínima aptidão para funcionar como
coquetel molotov’” (12). É curioso que nas quatro menções ao termo haja mitigadores,
elementos textuais que realizam modalidade epistêmica baixa, pondo em dúvida, mesmo que

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implicitamente, a identificação entre as garrafas e ‘coquetel molotov’ – “conhecidos como”,
“na forma de”, “aparentavam ser”, “funcionar como”. Isso é curioso precisamente porque,
embora Rafael tenha sido condenado justamente por portar ‘coquetel molotov’ no contexto
turbulento de uma manifestação de rua – o que nesse contexto é interpretado como “claro (...)
intento” de “proceder ao incêndio de qualquer objeto ou pessoas” –, não há engajamento com
essa suposta verdade, em termos de modalidade epistêmica, no texto da sentença.
O próximo trecho da sentença, reproduzido a seguir em (13), traz a conclusão do juiz
e dosa a pena:

(13) CONCLUSÃO Isso posto, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal para CONDENAR
o réu RAFAEL BRAGA VIEIRA, [...], passo a dosar a pena: O acusado deve ser considerado
reincidente, fato que será relevado na fase subsequente. Mais uma vez o fato ocorreu enquanto
centenas de milhares de pessoas reuniam-se, pacificamente, para reinvidicar a melhoria dos
serviços públicos. Naquele mesmo episódio verificou-se a presença da minoria, quase inexpressiva
- se comparada com o restante de manifestantes - imbuída única e exclusivamente na realização de
atos de vandalismo, tendentes a descreditar e desmerecer um debate democrático. A utilização do
material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar
risco considerável à incolumidade dos demais participantes, mormente em se considerando que ali
participavam famílias inteiras, incluindo crianças e idosos. Por tal razão, diante das peculiares
circunstâncias do fato, e da culpabilidade exacerbada, fixo a pena-base pouco acima de seu
mínimo legal, ou seja, em 4 (quatro) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa.

Este excerto da Sentença retoma, literalmente, trechos inteiros do primeiro documento


analisado, o primeiro documento dos autos, intitulado “Decisão – Homologada a Prisão em
Flagrante”, aqui reproduzido como excerto (3) e já analisado. A repetição literal vai de “O
fato” até “idosos”, e a presença dessa repetição nos autos do processo é sinalizada pelo juiz
ao introduzir o trecho com “Mais uma vez”. Note-se que o documento aqui repetido, como
vimos, é o primeiro documento dos autos do processo eletrônico, um documento publicado
em 24 de junho de 2013, apenas quatro dias após a prisão de Rafael Braga Vieira. A
retomada literal daquele texto nessa Sentença, de 2 de dezembro de 2013, quase seis meses
depois, e depois de tramitado todo o processo, pode ser interpretada como um indicativo de
que Rafael foi condenado antes de ser julgado.
Como vimos para o excerto (3), a narrativa do fato é rica em avaliação e
argumentação. Conforme Thompson (2014), quando evocada, isto é, quando não é
explicitamente inscrita em forma linguística avaliativa como a oração relacional, mas
delineada em estruturas de outros tipos, a avaliação torna-se “coercitiva”, no sentido de que a
gramática do texto impõe sobre o/a interlocutor/a uma avaliação pronta, pressuposta, na base
da qual ele/a deve interpretar o texto, a fim de compreender seus sentidos. Neste trecho da
Sentença, o juiz não afirma ‘Rafael é um vândalo’, e nem mesmo afirma ‘Rafael é parte da

26
inexpressiva minoria antidemocrática presente nas manifestações’, em estruturas de oração
relacional, o que seria claramente avaliativo. Ao contrário, ao repetir nesse contexto jurídico
o discurso maniqueísta muitas vezes veiculado na mídia conservadora a respeito dos
protestos, separando bons e maus em termos de democráticos e antidemocráticos, de
pacíficos e vândalos, o juiz evoca sentidos avaliativos, que pelo contexto da sentença serão
necessariamente mapeados para a avaliação negativa de Rafael.
Vimos, quando da análise do excerto (3), que a divisão maniqueísta dá-se nesse texto
em três oposições: entre “centenas de milhares de pessoas” e “minoria, quase inexpressiva”,
entre “reuniam-se, pacificamente” e “imbuída única e exclusivamente na realização de atos
de vandalismo”, e entre “para reinvidicar a melhoria dos serviços públicos” e “tendentes a
descreditar e desmerecer um debate democrático”. Rafael Braga Vieira é negativamente
posicionado em cada uma das oposições: ele é implicitamente avaliado como parte da
minoria violenta e antidemocrática. Sua culpa já é subentendida, considerados seus
antecedentes criminais (“reincidente”), o pressuposto de que suas garrafas não poderiam ser
senão “[d]o material incendiário” (...) “capaz de comprometer e criar risco considerável à
incolumidade dos demais participantes”. E essa culpa ainda é exacerbada (“culpabilidade
exacerbada”) pela referência, encaixada no trecho, a “famílias inteiras, incluindo crianças e
idosos”, em retomada de “demais participantes”. A avaliação continua evocada: em “risco
considerável” e “incolumidade” na própria seleção lexical, e em “ali participavam famílias
inteiras” é evocada nos sentidos culturalmente partilhados, como já vimos para o excerto (3).
Assim, tomado como culpado desde o início do processo, avaliado implicitamente
como vândalo, violento e antidemocrático, completamente silenciado no texto da Sentença,
na qual sua voz sequer ecoa, Rafael tem pena fixada acima do mínimo legal. No próximo
excerto, o último do texto sentencial, essa pena é majorada. Os recortes feitos no excerto (14)
referem-se aos números de páginas do processo e às referências a artigos do Código Penal.

(14) Tal como se afere da FAC [...] e do Histórico Penal [...], percebe-se que o réu ostenta duas
condenações pretéritas transitadas em julgado em seu desfavor, com data anterior à prática deste
fato, configurando-se assim o instituto da reincidência [...]. Dessa feita, elevo a reprimenda em 1
(um) ano, chegando à pena de 5 (cinco) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, que torno
definitiva à míngua de qualquer outra circunstância que enseje a sua modificação. Deixo de
proceder à substituição e suspensão da pena, eis que ausentes os requisitos objetivos previstos [...].
Fixo o regime fechado para o cumprimento da pena, em razão da reincidência, e por entender este
julgador ser o regime adequado para garantir o caráter repressivo e preventivo, geral e especial da
reprimenda, destacando que os regimes anteriormente impostos não permitiram ao réu atingir tal
compreensão. Haja vista a situação econômica do réu, fixo o valor de cada dia-multa em 1/30 (um
trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo do fato. Condeno o réu ao pagamento das custas
processuais, [...]. O réu vem respondendo ao processo preso, não havendo nenhuma razão para
colocá-lo em liberdade, principalmente agora que foi condenado, motivo por que mantenho sua
prisão cautelar. Urge destacar que o réu foi preso em flagrante por este novo crime enquanto

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encontrava-se evadido do regime prisional [...]. Ainda verifica-se a prática anterior de dois crimes
de roubo, ambos com condenação transitada em julgado em seu desfavor, impondo-se a
segregação cautelar para a garantia da ordem pública e para assegurar a aplicação da lei penal.
Expeça-se carta de execução de sentença provisória [...]. [...], determino a destruição dos artefatos
apreendidos. Oficie-se. Após, dê-se baixa e arquive-se. P.R.I. Rio de Janeiro, 02 de dezembro de
2013. GUILHERME SCHILLING POLLO DUARTE Juiz de Direito

Este excerto é bastante protocolar, realizando movimento retórico típico no gênero e de forma
formulaica. A observar, apenas a altíssima densidade lexical nos campos da reincidência (“o
réu ostenta duas condenações pretéritas”, “transitadas em julgado em seu desfavor”, “o
instituto da reincidência”, “em razão da reincidência”, “prática anterior de dois crimes de
roubo”, “condenação transitada em julgado em seu desfavor”) e da condenação
(“reprimenda”, “pena”, “reclusão”, “pena”, “regime fechado”, “pena”, “regime”,
“reprimenda”, “preso”, “condenado”, “prisão cautelar”, “preso em flagrante por este novo
crime”, “evadido do regime prisional”, “segregação cautelar”) – o que, sendo característica
típica do gênero realizado, não deixa de ser também avaliativo de Rafael Braga Vieira nesse
contexto, contribuindo, ao lado do excerto anterior, para sua avaliação como ‘perigoso’.
Além da hiperlexicalização desses campos, ainda precisamos chamar atenção, nesse
trecho final da Sentença, para três aspectos: a referência à “situação econômica do réu”, a
ênfase na “garantia da ordem pública” e o “instituto da reincidência” como justificativa
reiterada para a prisão de Rafael. A seguir, ainda discutiremos brevemente cada um desses
temas.
Entre os documentos do Processo acessíveis pela Internet, o texto dessa Sentença é o
único que faz menção à “situação econômica do réu”, já que o juiz preferiu silenciar as vozes
de Rafael e de sua defesa no caso. Considerado todo o processo movido contra Rafael Braga
Vieira, embora tenha privilegiado a identificação do réu e sua avaliação pessoal, em
detrimento da descrição minuciosa do suposto crime envolvendo explosivos; embora tenha se
baseado na reincidência e em supostos “péssimos antecedentes” (nas palavras das alegações
finais da acusação) para privá-lo de liberdade, a grande maioria dos documentos produzidos
não é explícita sobre os pertencimentos identitários que informaram muitos dos debates sobre
o caso Rafael Braga Vieira. Foi através do trabalho de jornalistas e advogados ativistas que o
pertencimento étnico-racial e a situação de rua passaram a ocupar relevância no contexto
posterior à prisão.
A interseção entre ambos os pertencimentos – ser negro e estar em situação de rua –
representa uma posição altamente vulnerável na cidade revanchista, sobretudo quando
indivíduos negros e em situação de rua têm um encontro com representantes das forças

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policiais. É interessante notar que, não sendo fato recente em nossa história, tal
vulnerabilidade sempre esteve relacionada a certa ideia de ‘ordem pública’ (no texto da
Sentença, em estrutura coesiva de finalidade, “impondo-se a segregação cautelar para a
garantia da ordem pública”) em que o encarceramento de alguns, mesmo na base de
documentos opacos, pouco seguros, justifica-se pela segurança de outros – ainda que possa
ser uma injustiça – e em que alguns grupos sociais são de saídaculpados, por serem
considerados perigosos. Assim, como vimos, os argumentos para o estabelecimento da
sentença que condenou Rafael giraram em torno da garantia da ‘ordem pública’, dos ‘atos de
vandalismos’ de ‘uma minoria inexpressiva’ nas manifestações, da reincidência de Rafael.
Com base nisso, e tomando como claras e transparentes provas na verdade bastante opacas, o
juiz responsável acreditou que era necessário impor “a segregação cautelar para a garantia da
ordem pública”.
Embora a concepção de ordem pública seja bastante explícita, é interessante
compreender como, no imaginário brasileiro, tal conceito foi sendo forjado como
componente de um contexto social mais amplo que informava as incipientes relações de
trabalho capitalistas depois do ingresso de milhares de trabalhadoras e trabalhadores negros
recém-libertos no mercado pós-abolição. Esse novo contexto, tal como na cidade revanchista,
baseou-se na produção de um discurso que opunha a ‘ameaça perene’ da alteridade negra e
pobre à ‘outra’ parcela da população carioca; ou seja, vistos como os ‘outros’ de uma
sociedade rigidamente hierarquizada, herdeira de relações paternalistas e coloniais, negros/as
e pobres foram identificados/as como pessoas pouco confiáveis, resistentes ao trabalho
assalariado e de quem se deveria desconfiar. A isso, o historiador Sidney Chalhoub (1996, p.
24) chama “teoria da suspeição generalizada”, que, em suas palavras, “é, de fato, a essência
da expressão ‘classes perigosas’”:

Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato suficiente para torná-lo um
malfeitor em potencial teve enormes consequências para a história subsequente de nosso país.
Este é, por exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de atuação da polícia nas
grandes cidades brasileiras desde pelo menos as primeiras décadas do século XX. A polícia
age a partir do pressuposto da suspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é
suspeito de alguma coisa até prova em contrário e, é lógico, alguns cidadãos são mais
suspeitos do que outros. (Chalhoub, 1996, p. 24)

Assim, a ‘manutenção da ordem pública’ dependente da ‘suspeição generalizada’, pela


invenção do malfeitor potencial, é tributo e consequência da atividade de gestão policial da
pobreza no cotidiano da cidade. No caso da população em situação de rua, há nexo entre a
‘gestão policial da pobreza’ – outro nome para ‘manutenção da ordem pública’ –, a

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‘suspeição generalizada’ e o encarceramento em massa. Por exemplo, em relatório recente
sobre os presos e presas provisórios na cidade de São Paulo, o Instituto Terra, Trabalho e
Cidadania divulgou que quase a totalidade da população em situação de rua que participou da
pesquisa desenvolvida no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros já havia sido alvo de
abordagens policiais antes da detenção: “97,2% das pessoas em situação de rua já haviam
sido abordadas pela polícia” (Cerneka et al., 2012, p. 41). Além disso, o mesmo relatório
apontou que presos e presas em detenção provisória são, em sua maioria, jovens com 18 a 25
anos, pardos e “com expressiva incidência de situação de rua e históricos variados de rechaço
pelo sistema de educação pública” (p. 8). Diante desse quadro, a pesquisa concluiu, para o
contexto paulistano, que “a prisão provisória tem sido utilizada (...) como instrumento
político de gestão populacional (...) voltado ao controle de uma camada específica da
população” (p. 94). Não nos parece que o caso carioca seja muito distinto, especialmente
quando consideramos o já comentado Choque de Ordem da SEOP.
Além da sobrerrepresentação da população em situação de rua em unidades prisionais,
estudiosos/as têm apontado a existência de um círculo vicioso de encarceramento e
reencarceramento (ver, por exemplo, Kussel, 2005 e Kellen, 2010). Tais estudos sugerem que
o tempo na prisão impacta em várias áreas da vida, erodindo a empregabilidade e
enfraquecendo laços com comunidades externas à prisão, o que torna o retorno ao sistema
prisional uma constante, depois de cumprida a primeira pena. Ademais, muitas pessoas
acabam em situação de rua justamente a seguir ao encarceramento, reforçando a lógica
excludente do sistema, como observa Wacquant (2001, p. 94-5):

Máquina varredora da precariedade, a instituição carcerária não se contenta em recolher e


armazenar os (sub)proletários tidos como inúteis, indesejáveis ou perigosos, e,assim, ocultar a
miséria e neutralizar seus efeitos mais disruptivos: esquece-se frequentemente que ela própria
contribui ativamente para estender e perenizar a insegurança e o desamparo sociais que a
alimentam e lhe servem de caução. Instituição total concebida para os pobres, meio
criminógeno e desculturalizante moldado pelo imperativo (e o fantasma) da segurança, a
prisão não pode senão empobrecer aqueles que lhe são confiados e seus próximos,
despojando-os um pouco mais dos magros recursos de que dispõem quando nela ingressam,
obliterando sob a etiqueta infamante de “penitenciário” todos os atributos suscetíveis de lhes
conferir uma identidade social reconhecida (como filho, marido, pai, assalariado ou
desempregado, doente, marselhês ou madrilenho etc.), e lançando-os na espiral irreversível da
pauperização penal, face oculta da “política social” do Estado para com os mais pobres, que
vem em seguida naturalizar o discurso inesgotável sobre a “reincidência” e sobre a
necessidade de endurecer os regimes de detenção.

Essa lógica excludente, entretanto, está intimamente relacionada à questão do preconceito


racial. Como observa Angela Davis, a democracia em que vivemos em muitos países é uma
promessa que ainda não cumpriu os principais objetivos a que se propôs, por isso ela a

30
adjetiva como a “democracia da abolição”, um tipo peculiar de democracia que, embora se
baseie formalmente em ideias abstratas de igualdade, é sustentada por uma forte assimetria
racial, que continua a reproduzir ativamente a herança da escravidão, como racismo
institucional:

O sistema penitenciário continua a pôr em prática esse terrível legado. Ele se tornou um
receptáculo para todos aqueles indivíduos que carregam a herança do fracasso em criar a
democracia da abolição logo depois do período da escravidão. E essa herança não nasceu
apenas com os prisioneiros negros, asiáticos e brancos pobres. Além disso, seu uso como
receptáculo para pessoas consideradas detrito da sociedade está em ascensão em todo o mundo
(DAVIS, 2009, p. 87).

O caso de Rafael Braga Vieira, negro, jovem, em situação de rua, condenado por um crime de
perigo abstrato, expõe concretamente o fato de que a gestão policial e judiciária da pobreza é
a regra e não a exceção na cidade revanchista. Mas não é apenas isso. A gestão policial da
pobreza e o encarceramento – ambos informados pelos velhos cânones da ‘suspeição
generalizada’ e do conceito arbitrário de ‘classes perigosas’ – não constituem apenas limites
das atuações policiais, uma violação de direitos, mas representam a continuidade das práticas
punitivas e repressivas que a democracia da abolição instituiu para substituir as políticas de
educação, trabalho, renda e moradia. Nas palavras de Angela Davis (2009, p. 139), “Em vez
de tratar dos problemas que afligem tantas comunidades – pobreza, falta de moradia, de saúde
e de educação –, nosso sistema joga as pessoas que sofrem desses problemas na prisão”. O
caso de Rafael Braga Vieira, visto assim, é apenas mais um exemplo, mas que se tornou
notável pelo contexto das Jornadas de Junho, por ter sido ele, até hoje, o único condenado
em primeira instância no contexto dessas manifestações.

Epílogo: 2014
No dia 26 de agosto de 2014, mais de um ano após a prisão de Rafael, o Desembargador
Carlos Eduardo Roboredo deu provimento parcial à apelação criminal apresentada por
advogados do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que pedia, entre outras
coisas, a absolvição por atipicidade da conduta, a redução da pena-base ao mínimo legal, a
realização de uma nova perícia e a substituição de uma pena privativa de liberdade por
restritiva de direito.22 Após a refutação sistemática de cada pedido, o Desembargador acatou
apenas a redução de pena, reestipulando-a assim em quatro anos e oito meses, e dez dias de
multa.

22
ROBOREDO, Carlos Eduardo, Apelação criminal defensiva (Acórdão Processo no 0212057-10.2013), 2014.

31
O DDH protocolou requerimento para que Rafael Braga Vieira pudesse assistir à
sessão de julgamento do Recurso de Apelação e para que a mídia pudesse transmiti-la, mas,
devido à repercussão do caso,23 o Relator preferiu se antecipar a qualquer mobilização social
e, em 20 de agosto de 2014, solicitou ao Colegiado do Tribunal de Justiça a restrição parcial
da publicidade dos atos processuais durante o julgamento plenário, permitindo, na sala de
audiência, apenas a presença dos advogados de acusação e defesa e das testemunhas
envolvidas. Para o Desembargador, a realização do novo julgamento, sem a presença da
sociedade civil e jornalistas, justificava-se:

em virtude da repercussão que o caso presente teve na mídia, envolvendo, direta ou


indiretamente, manifestações que resultaram em confronto violento, sendo concretamente
possível, pelas paixões que a espécie tende a despertar, a realização de práticas inconvenientes
durante a sessão de julgamento, capazes de gerar instabilidade ou intranquilidade nos
trabalhos. Tanto isso é real que foram endereçados, sem precedentes no cotidiano deste Órgão,
mais de 50 (cinquenta) e-mails à Secretaria desta Câmara, todos protestando pela absolvição
do Apelante, documentos que faço anexar ao presente. 24

O caso de Rafael recebeu ampla divulgação na mídia tradicional e nas redes sociais.
Seu caso também foi considerado emblemático por diversas organizações de Direitos
Humanos, que o incluíram em relatórios sobre as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil – os
mesmos relatórios que, como vimos anteriormente, foram apresentados à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da OEA (AMNISTY INTERNATIONAL, 2014;
CONECTAS, 2014). Várias organizações também publicaram manifestos e mobilizaram atos
em prol da libertação de Rafael.25
Rafael Braga Vieira segue preso, mas em 10 de outubro de 2014 conquistou sua
primeira vitória na justiça brasileira: a juíza Ana Paula Filgueiras Massa Ramos, do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, concedeu-lhe o benefício do Trabalho Extramuros. Rafael
passou, desde então, a trabalhar como auxiliar de serviços gerais em um escritório de
advocacia, deixando a unidade prisional às 7h para trabalhar, e podendo retornar até as 20h.
Esse foi seu primeiro registro de trabalho formal.
Cerca de um mês depois, em novembro, segundo informe do DDH, Rafael recebeu
uma “absurda sanção disciplinar do Instituto Penal Francisco Spargoli”. 26 A história é a

23
Sobre isso, veja, por exemplo, o texto de Marcelo Elizardo, intitulado"Ativistas fazem vigília contra a condenação de
morador de rua", publicado no Portal de Notícias G1 e disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2014/08/ativistas-fazem-vigilia-contra-condenacao-de-morador-de-rua.html>.
24
ROBOREDO, Carlos Eduardo, Apelação criminal defensiva (Acórdão Processo no 0212057-10.2013), 2014, p. 292.
25
Ver, por exemplo, o abaixo-assinado, "Liberdade para Rafael: Manifesto das organizações de direitos humanos e
movimentos pela libertação do jovem Rafael Braga Vieira", promovido pela Conectas Direitos Humanos e disponível em:
<http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/16985-liberdade-para-rafael>.
26
Divulgado em 19 de novembro de 2014 e disponível em <http://ddh.org.br/rafael-braga-recebe-absurda-sancao-
disciplinar-do-instituto-penal-francisco-spargoli/>.

32
seguinte: voltando do trabalho dentro do horário previsto, Rafael “foi fotografado em frente
ao muro do presídio, onde havia a seguinte pichação: ‘Você só olha da esquerda p/ a direita, o
Estado te esmaga de cima para baixo’”, e a fotografia foi publicada no perfil do DDH na rede
social Facebook. Segundo o mesmo informe, a direção da unidade prisional, tendo acesso à
postagem, decidiu instaurar um procedimento disciplinar contra Rafael, do que resultou a
penalidade de suspensão cautelar de dez dias de trabalho. A decisão do subdiretor do
presídio, conforme divulgado pelo DDH em citação direta, foi que o caso configuraria um
“desvio de conduta do interno, já que o referido deveria estar mais preocupado em retornar à
Unidade do que estimular outros a fazerem críticas ao Estado”. O DDH irá recorrer da
decisão por considerar que faz um “curioso juízo de valor sobre o simples ato de ser interno e
posar para uma foto junto a uma mensagem”. Em seu texto, o DDH ainda argumenta que, a
liberdade de expressão de Rafael não tendo sido “suprimida junto com sua liberdade de ir e
vir”, a penalidade constitui “clara criminalização de suas opiniões”.
Quanto à condenação de Rafael Braga Vieira em primeira instância, o DDH apelou
para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça, as cortes superiores
do poder judiciário brasileiro. Ao STF, interpôs recurso pelo reconhecimento de violações
aos direitos constitucionais de Rafael na condução do processo movido contra ele,
especialmente nos princípios referentes “a legalidade, a lesividade, a dignidade da pessoa
humana, a proporcionalidade e a ampla defesa”. Ao STJ, interpôs recurso questionando “a
forma como o processo foi conduzido”, com foco nas contradições do laudo técnico tomado
como prova de materialidade delitiva contra Rafael.27 Concomitantemente à ação jurídica do
DDH, há movimentação da sociedade civil por justiça a Rafael Braga Vieira, na forma da
“Campanha Nacional pela Liberdade de Rafael Braga”.28

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Brasil, 2014.

27
Disponível em <http://ddh.org.br/ddh-ingressa-com-recursos-em-cortes-superiores-em-favor-de-rafael-braga-vieira/>.
28
A campanha, que concentra sua ação virtual no Facebook, tem na rede social sua página principal, por meio da qual são
convocadas manifestações presenciais. Disponível em <https://www.facebook.com/liberdaderafaelbragavieira>.

33
CERNEKA, Heidi Ann et al, Tecer justiça: presos e presas provisórios da cidade de São
Paulo, São Paulo: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania: Pastoral Carcerária Nacional, 2012,
p. 41.

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