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ENTRE PALAVRAS 10

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António Vilas-Boas
Manuel Vieira

ISBN 978-989-23-3234-5
Índice

O que é?
A. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 2

1. Poesia trovadoresca 2
Cantigas de amigo 2
Cantigas de amor 3
Cantigas de escárnio e maldizer 3
2. Fernão Lopes, Crónicas de D. João I 4
3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira 4
Caracterização de personagens 4
Relações entre as personagens 5
A representação do quotidiano 5
Linguagem, estilo, estrutura 6
4. Luís de Camões, Rimas 6
Contextualização histórico-literária 6
A poesia lírica de Camões: os temas 7
A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura 8
5. Luís de Camões, Os Lusíadas 8

B. GRAMÁTICA 10

FONÉTICA E FONOLOGIA
1. Processos fonológicos de inserção, supressão
e alteração 10
ETIMOLOGIA
2. Étimo 12
3. Palavras convergentes e divergentes 12
GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO
4. Português europeu e não europeu
e crioulos de base portuguesa 12
SINTAXE
5. Funções sintáticas 13
6. A frase complexa: coordenação e subordinação 18
LEXICOLOGIA
7. Arcaísmos e neologismos 20
8. Campo lexical e campo semântico 20
9. Processos irregulares de formação de palavras 21

Auto da Feira 22
O que é?

Educação literária
1. Poesia trovadoresca
1.1 Quando se desenvolveu esta poesia?
A partir do final do século XII e até meados do século XIV.
1.2 Onde se desenvolveu?
No noroeste da Península Ibérica, na região que corresponde atualmente ao Minho e à Galiza.
1.3 Que géneros de cantigas a constituem?
Cantigas de amigo, cantigas de amor, cantigas de escárnio e maldizer.
1.4 Quem eram os trovadores e os jograis?
Os trovadores eram os autores desta poesia, as cantigas, nos seus vários géneros. Normalmente
eram nobres; escreviam a letra, por vezes a música; as cantigas eram cantadas pelos jograis,
homens de condição social mais baixa.

Cantigas de amigo

1.5 O que é uma cantiga de amigo?


É uma composição poética dirigida a um amigo por um sujeito lírico ou poético feminino, a amiga.
1.6 Quais são os temas mais frequentes?
Os temas mais frequentes são os seguintes: a saudade, pois o amigo está longe; o sofrimento
por ciúme; as queixas por promessas não cumpridas; a felicidade e a certeza de se saber amada;
o encontro amoroso junto à fonte; o baile; a espera angustiada pelo regresso do amigo; a ida à
romaria para encontrar um namorado; a confissão destes amores à mãe, ou às amigas, ou à Na-
tureza, etc.
1.7 Como é representado o sentimento amoroso?
O sentimento amoroso é representado de modo muito variado. Toda a gama deste sentimento
surge nas cantigas de amigo, desde o início da paixão, com as suas esperanças e incertezas, até
aos encontros com o amigo, ao ciúme, à reconciliação, etc.
1.8 O que é a confidência amorosa?
É a confissão dos estados amorosos, quer felizes quer infelizes, pelo sujeito poético (a amiga
apaixonada) à sua mãe, às suas amigas e, até, à Natureza. A amiga conta, confessa, para desa-
bafar, para se libertar dos seus receios ou para partilhar as suas alegrias.
1.9 Qual é a relação da mulher com a Natureza?
A Natureza surge frequentemente nas cantigas de amigo como confidente da amiga apaixonada
que com ela desabafa sobre os seus problemas amorosos. Também pode ser local de encontro
com o «amigo».
1.10 O que é o paralelismo?
É a técnica de elaboração das cantigas de amigo que consiste, em primeiro lugar, na relação evi-
dente entre versos que se repetem, quer pelas mesmas palavras quer por palavras de sentido
idêntico, – e assim se relacionam entre si. A cantiga de amigo apresenta, por isso, uma estrutura
fortemente repetitiva. Em segundo lugar, o paralelismo implica a presença de um refrão.
O paralelismo pode ser perfeito ou imperfeito. Consulta o esquema do manual na página 58.

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A.
1.11 O que é o refrão?
É um verso ou um conjunto variável de versos que se repete no final de cada estrofe ou cobla.
1.12 Qual é a função do paralelismo?
Intensifica a expressão das emoções através das repetições.

Cantigas de amor

1.13 O que é uma cantiga de amor?


É uma composição poética dirigida a uma senhor, dama de condição superior, por um sujeito
lírico ou poético masculino.
1.14 Quais são os temas mais frequentes?
A coita de amor e o elogio de amor cortês.
1.15 O que é a coita de amor?
É a expressão de um sentimento amoroso doloroso provocado pela não correspondência, por
parte da senhor, ao amor confessado pelo homem apaixonado. Está, frequentemente, associa-
da à morte por amor.
1.16 O que é o elogio de amor cortês?
É um louvor de natureza física e psicológica à senhor: ela é uma mulher única, a mais perfeita
de todas em tudo.

Cantigas de escárnio e maldizer

1.17 O que é uma cantiga de escárnio?


É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica é feita indiretamente.
1.18 O que é uma cantiga de maldizer?
É uma cantiga de motivo satírico cuja crítica
é direta e clara.
1.19 Quais são os temas mais frequentes?
Parodiam o amor cortês, criticando as suas
convenções poéticas e criticam os costumes
– sempre através do riso. Relativamente à
paródia do amor cortês, encontramos a críti-
ca à expressão exagerada da coita de amor,
ao ridículo da morte de amor, ao ataque às
mulheres que, sendo velhas, querem ver a
sua beleza cantada… Costumes criticados
são muito variados: a infidelidade conjugal,
o mau trato dado aos animais, as mentiras
dos que pretendiam ter ido em peregrinação
à Terra Santa, freiras e frades que não cum-
priam os seus deveres, astrólogos mentiro-
sos, etc.
Missal Antigo do Lorvão,
século XV

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O que é?

Educação
literária (cont.)
2. Fernão Lopes, Crónica de D. João I
2.1 Qual é o contexto histórico dos acontecimentos narrados na Crónica de D. João I de Fernão
Lopes?
D. Fernando faleceu em 1383, sem outro sucessor que a sua filha, Dona Beatriz, casada com o
rei de Castela, D. João I. Este entendeu ter, por isso, direito ao trono português. Invadiu Portugal
e cercou Lisboa – 1384. A cidade era defendida por outro pretendente ao trono, D. João, Mestre
de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I.
2.2 De que modo se verifica nesta crónica a afirmação da consciência coletiva?
Através de grandes movimentos de multidões, principalmente na capital, antes do cerco, em
apoio ao Mestre de Avis; durante o cerco, através da solidariedade entre todos nos momentos
difíceis que atravessavam.
2.3 Quais são os dois grandes tipos de personagens nela presentes?
Personagens coletivas e personagens individuais.
2.4 O que são atores coletivos?
Atores coletivos são as multidões, principalmente, que agem como um corpo só, seja no mo-
vimento coletivo para levar ao poder o Mestre de Avis e protegê-lo de qualquer perigo seja na
união demonstrada pelo povo durante o cerco de Lisboa.
2.5 O que são atores individuais?
Atores individuais são personalidades bem caracterizadas por Fernão Lopes fisicamente, mas,
acima de tudo, psicologicamente: o manhoso Álvaro Pais, o por vezes excessivamente hesitante
D. João I, a ambiciosa Leonor Teles, entre outros.

3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira


Caracterização de personagens

3.1 Como é caracterizada Inês Pereira?


Podemos considerar três momentos na caracterização de Inês:
a) enquanto solteira, é uma burguesinha fantesiosa, que deseja sair do «ca-
tiveiro» materno
m através de um casamento que a faça ascender na escala
social;
socia
b) enquanto casada, é uma mulher arrependida pela prisão a que o
marido – o escudeiro galante e discreto com que sempre sonhara
– a submete de novo, enquanto parte para a guerra;
c) enquanto novamente livre, devido à morte pouco gloriosa
do Escudeiro, aceita casar com o antigo pretendente, Pero
Marques, que lhe permite todas as liberdades.

3.2 Como é caracterizada a Mãe de Inês Pereira?


A Mãe é a voz da experiência e da sensatez. Como todas as
mães, repreende a filha por não ser tão diligente quanto devia
nas tarefas domésticas, mas também lhe dá diversos conse-
lhos, nomeadamente quanto ao tipo de casamento que pre-
tende e ao comportamento que uma moça ajuizada deve ter.

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A.
3.3 Como é caracterizado Pero Marques?
Pero Marques é um lavrador rico, mas ingénuo e rude, que se exprime numa linguagem antiqua-
da e que desconhece as mais elementares regras de convívio social – como prova o facto de não
se saber sentar numa cadeira. Mais tarde, já casado com Inês, a sua ingenuidade é visível quando
carrega a mulher às costas para a levar a um encontro galante com um Ermitão – um antigo
pretendente.
3.4 Como é caracterizado o Escudeiro?
Brás da Mata, de seu nome, é o típico escudeiro bem falante e de boas maneiras que vê em Inês
uma forma de escapar à pobreza em que vive, mas que dissimula . Uma vez casado, revela-se um
tirano no modo como trata Inês, fechando-a em casa, e, além disso, um covarde pois foi morto ao
fugir de uma batalha.

Relações entre as personagens

3.5 Qual é a relação entre Inês e a Mãe?


A relação entre Inês e a Mãe exemplifica o típico conflito de gerações: a Mãe queixa-se da pregui-
ça da filha; a filha queixa-se da tirania da Mãe, que a obriga a permanecer em casa «como panela
sem asa que sempre está num lugar», ao mesmo tempo que ignora os seus conselhos.
3.6 Como evolui a relação entre Inês e o Escudeiro?
Inicialmente, Inês vê-o como o homem dos seus sonhos – discreto, avisado, tangedor de viola,
que a viria libertar do cativeiro materno, mas rapidamente muda de atitude ao ver-se de novo
presa em casa pelo marido, logo após o casamento. Aí passa a vê-lo como um marido covarde
e «rascão», forte com ela mas fraco com o mouro pastor que o matou quando se escapulia da
batalha em que participava.
3.7 Como evolui a relação entre Inês e Pero Marques?
Inicialmente, Inês vê-o como um pretendente rude, ingénuo e sem maneiras, de que zomba sem
piedade, em tudo oposto ao tipo de homem que tinha idealizado para marido. Posteriormente,
após a viuvez, aceita este «manso marido» porque lhe dá toda a liberdade que pretende, sem
deixar, no entanto, de se aproveitar da sua ingenuidade para o trair com o Ermitão («ermitano de
cupido») – um antigo pretendente.

A representação do quotidiano

3.8 Que representações da vida quotidiana se encontram na Farsa de Inês Pereira?


Na Farsa de Inês Pereira, podemos encontrar:
a) cenas da vida doméstica (a Mãe censura Inês pelo seu desleixo nas tarefas domésticas; Inês
queixa-se de falta de liberdade);
b) conselhos maternos (sobre a escolha dos namorados, sobre o casamento…);
c) a festa do casamento de Inês;
d) vida conjugal (a prepotência do marido escudeiro, que obriga Inês a obedecer-lhe e a fecha em
casa);
e) traição conjugal (Inês trai Pero Marques com o Ermitão).
3.9 O que pretende satirizar Gil Vicente com a Farsa de Inês Pereira?
Nesta farsa, Gil Vicente satiriza comportamentos morais e sociais, nomeadamente a ascensão
social da mulher através do casamento e o adultério feminino. O comportamento de Inês Pereira
exemplifica ambas as situações.

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O que é?

Educação
literária (cont.)
3.10 De que processo se serve Gil Vicente para criticar costumes e comportamentos morais
e sociais?
Serve-se do cómico (de caráter, de situação e de linguagem) de forma a provocar o riso nos
espetadores, expondo assim ao ridículo esses comportamentos e costumes.
Por exemplo, a leitura da carta, em que se anuncia a morte do Escudeiro às mãos de um
mouro pastor ao fugir do campo de batalha «pera a vila», provoca o riso na plateia acen-
tuando ainda mais a fraqueza de caráter desta personagem – cómico de caráter. O cómico
de situação está presente, por exemplo, quando Pero Marques se senta ao contrário numa
cadeira, objeto que desconhece. Já o cómico de linguagem transparece na fala antiquada
e rústica de Pedro Marques, ou em situações como a que ocorre entre os versos 78 e 81
(da página 157 do Manual) quando Inês utiliza o verbo «sair» no seu sentido habitual, mas
que Pedro Marques entende com o significado de defecar (que também possuia) – o que
provoca o riso nos espetadores.

Linguagem, estilo, estrutura

3.11 O que é a farsa?


Trata-se de um género pertencente ao modo dramático que apresenta normalmente o
tema do engano. Nela se representam cenas da vida profana, que tanto podem ser agressi-
vas, devido à sátira contundente que apresenta, como festivas, devido ao cómico hilariante.

3.12 Quais são as características da linguagem na Farsa de Inês Pereira?


Na Farsa de Inês Pereira, a maioria das personagens apresenta um registo linguístico ca-
racterístico da fala quotidiana do século XVI. Neste texto, encontram-se também marcas
da linguagem popular, especialmente através de provérbios e de palavras entretanto caí-
das em desuso – arcaísmos – como «asinha», «geitar», «muitieramá», etc., e outras que
constam sobretudo da linguagem antiquada de Pero Marques («pardelhas», «rebentinha»,
«chentar», «siquaes», etc.).

4. Luís de Camões, Rimas


Contextualização histórico-literária

4.1 Em que contexto histórico surge a obra de Luís de Camões?


No contexto histórico marcado principalmente pela Expansão Portuguesa em terras e mares do
Oriente – século XVI.
4.2 Qual é o contexto literário da sua obra?
A sua obra surge num contexto cultural marcado por três grandes movimentos – Renascimento,
Classicismo e Humanismo –, cuja natureza se interpenetra e funde em História, Estética, Ética e
Literatura.
4.3 O que é o Renascimento?
Movimento cultural marcado por características como:
a) a busca das fontes ou modelos culturais e literários greco-romanos – a partir de meados do
século XV;
b) a vontade de experimentar e de construir o conhecimento com base na experiência;
c) a dúvida em relação ao conhecimento fundado em textos de natureza religiosa;
d) o interesse por tudo o que é próprio do Homem e da sua natureza – em detrimento do divino;
e) a crença no Homem como motor do seu destino.

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A.
4.4 O que é o Classicismo?
Movimento cultural centrado principalmente na imitação / recuperação da arte em geral e da lite-
ratura em particular das duas grandes civilizações da Antiguidade: a grega e a romana. A imitação
passou pela arquitetura, pela escultura, pela literatura… Literariamente, recuperam-se o gosto
pela perfeição formal e por composições como a tragédia, a epopeia, a elegia, a écloga, etc.
4.5 O que é o Humanismo?
Movimento cultural caracterizado pelo grande interesse pela Antiguidade greco-romana. Os hu-
manistas acreditavam fortemente no progresso humano com o Homem como seu motor; esta-
vam muito marcados por uma conceção ética da vida: censuravam os males da sociedade, os
maus governantes, por um lado; por outro, apresentavam um programa ético: aconselhavam os
poderosos no sentido de reformas.

A poesia lírica de Camões: os temas

4.6 Como é representada a amada?


Sempre como bela, na tradição das cantigas de amor, sendo comparada com elementos da Na-
tureza, vencendo-os sempre. Normalmente assume um modelo «clássico», loura e branca, de
belos olhos, «presença suave» – o modelo petrarquista. Mas pode ser consolo do Poeta também
a mulher de pele escura, de olhos e cabelos pretos – sempre – mais bela do que a Natureza.
4.7 Como é representada a Natureza?
Frequentemente a Natureza é apresentada de modo subjetivo, isto é, o Poeta projeta nela os
seus estados de espírito. A Natureza apresenta-se também, frequentemente, como polo de com-
paração relativamente à amada – que a vence sempre. A Natureza pode ainda assumir a condi-
ção de testemunha da infelicidade do Poeta.

4.8 Que experiências amorosas confessa o Poeta?


Quase sempre a experiência amorosa se apresenta como negativa: o Poeta é um conhecedor
profundo da dor de amar. O Amor é fonte de desenganos, desilusões, sofrimento. Apesar disso, o
Poeta apaixona-se, enredado pelos olhos da amada; queixa-se da sua indiferença, principalmente
quando ama verdadeiramente, possuído de amor «puro e limpo».
4.9 Que tipo de reflexão faz sobre o Amor?
Tendencialmente negativa. Apesar de não poder fugir-lhe, de lhe estar «destinado», o Amor não
lhe dá as alegrias que gostaria de receber, por causa da indiferença da amada, apesar da certeza
do seu amor.
4.10 Como reflete sobre a vida pessoal?
Desde logo lamentando-se por não ter experimentado mais do que «breves enganos» no Amor;
mas também assumindo os erros pessoais e queixando-se da má sorte. O Poeta é um ser desi-
ludido com a vida, que vai envelhecendo já sem esperança, numa desistência contínua. Exprime,
por vezes, revolta contra esta situação.
4.11 O que é o tema do desconcerto?
O tema do desconcerto consiste na constatação de que o mundo não é um local justo, pois o
Poeta verifica que frequentemente quem é mau é recompensado e quem é bom é castigado.
Também na sua vida, amorosa até, o Poeta é marcado por este desconcerto.

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O que é?

Educação
literária (cont.)
4.12 O que é o tema da mudança?
O tema da mudança é um tema clássico e filosófico por excelência: tudo muda continuamente,
tudo se renova ciclicamente, um ano sucede ao outro, uma primavera virá depois da atual; con-
tudo, esta mudança não atinge o Poeta – que caminha inexoravelmente para o fim.

A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura

4.13 O que é a lírica tradicional?


É a lírica em que Camões segue a tradição poética peninsular que vem da Idade Média, da tra-
dição trovadoresca, com formas poéticas como o vilancete ou as trovas, com versos de redon-
dilha maior ou menor – sete e cinco sílabas métricas, respetivamente.
4.14 O que é a lírica de inspiração clássica?
É a lírica de versos decassílabos em que Camões adota formas poéticas recuperadas da Anti-
guidade, como a epopeia, a écloga, ou novas formas poéticas, como o soneto, vindo de Itália.
4.15 Quais são as principais marcas do discurso pessoal/subjetivo presentes na lírica camoniana?
A presença forte da subjetividade marca as composições poéticas de Camões: os seus estados
de alma podem influenciar a visão da paisagem, projetando-se nela, fundindo-se deste modo o
interior subjetivo e o exterior objetivo.
4.16 Quais são as características formais do soneto?
O soneto é uma composição poética de origem italiana, introduzida em Portugal por Sá de
Miranda, no século XVI. É composto por catorze versos divididos em duas quadras e dois
tercetos. O seu esquema rimático é, normalmente, abba abba cde edc / cdc dcd / cde cde.
O verso usado é o decassílabo.

5. Luís de Camões, Os Lusíadas


5.1 O que é um poema épico?
É uma narrativa em verso com origem na Antiguidade Clássica greco-romana na qual
se exaltavam os feitos gloriosos de um herói mitológico, como Aquiles, na Ilíada,
e Ulisses, na Odisseia – ambas de Homero – e Eneias, na Eneida de Virgílio. Durante
o Renascimento, vários poemas épicos foram criados na Europa à semelhança dos
Antigos, entre os quais se destaca Os Lusíadas de Camões. Este género literário
exalta feitos excecionais e imortaliza heróis. O estilo é elevado, adequado à subli-
midade do assunto. O herói, embora individual, simboliza o seu povo. O assunto
tem interesse universal.

5.2 Qual é a matéria épica de Os Lusíadas?


A matéria épica de Os Lusíadas é a narrativa da viagem de Vasco da Gama
e da História de Portugal.

5.3 Qual é a estrutura externa de Os Lusíadas?


A obra está dividida em dez cantos, cada um com um número variável de es-
tâncias ou estrofes. As estâncias são oitavas, apresentando o esquema rimático
abababcc, rima cruzada nos seis primeiros versos e emparelhada nos dois últi-
mos. Os versos são de dez sílabas métricas, acentuados na sexta e na décima
sílabas: versos decassilábicos heroicos.

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A.
5.4 Qual é a estrutura interna de Os Lusíadas?
O poema divide-se em quatro partes, seguindo, de modo geral, os modelos das epopeias da An-
tiguidade Clássica e das renascentistas:
Proposição
Canto I, estâncias 1-3
O Poeta indica o assunto que vai cantar: «o peito ilustre Lusitano», estância 3, verso 5, isto é,
os heróis Portugueses, a nobreza guerreira e os homens ilustres que se notabilizaram pela
grandiosidade dos seus feitos.
Invocação
Canto I, estâncias 4-5
O Poeta pede inspiração a musas nacionais, as Tágides, ninfas do Tejo, para cantar os feitos
do «peito ilustre Lusitano».
Dedicatória
Canto I, estâncias 6-18
O Poeta dedica o poema a D. Sebastião, que reinava em Portugal no ano da sua publicação –
1572.
Narração
Canto I, estâncias 19 e seguintes. Inicia-se in medias res, no meio da viagem, quando a armada
se encontrava já no oceano Índico.
5.5 Quais são os quatro planos de Os Lusíadas?
O plano da viagem, o dos deuses, o da História de Portugal e o das reflexões ou considerações
do Poeta. Frequentemente estes planos são interdependentes: numa mesma estância, pode-se
encontrar mais do que um.
5.6 Em que consiste a «sublimidade do canto» em Os Lusíadas?
Camões pede às Tágides, na Invocação, um canto marcado pela sublimidade, isto é, um canto de
estilo grandioso, um canto sublime, pois os feitos dos Portugueses são também grandiosos.
5.7 O que são as «reflexões do Poeta»?
São reflexões que surgem principalmente nos finais dos cantos. Nelas, o Poeta reflete sobre
assuntos tão variados como a fragilidade da vida humana, o poder corruptor do dinheiro, a ga-
nância, o mau governo, a ignorância da nobreza, o seu desinteresse pela cultura em geral e pela
Poesia em particular, etc. Por vezes, estas reflexões apresentam vincado caráter humanista, pois
Camões censura, por um lado, e aconselha a mudança de atitudes, por outro.
5.8 Como se concretiza a mitificação do herói em Os Lusíadas?
O herói, Vasco da Gama, é mitificado pois supera, pelos seus feitos, a condição humana. Momento
fulcral dessa mitificação ocorre quando Tethys desvenda a Vasco da Gama a Máquina do Mundo,
fazendo-o assumir o conhecimento total. A mitificação ocorre também aquando da união dos
Portugueses com as Ninfas, na Ilha dos Amores: através desta união eles transcendem, simboli-
camente, a condição humana, aproximando-se dos deuses. A mitificação do herói está anunciada
logo no início do poema, na estância 3, quando Camões apresenta os Portugueses como tendo
superado a Antiguidade – os heróis gregos e romanos.

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O que é?

Gramática
FONÉTICA E FONOLOGIA

1. Processos fonológicos de inserção, supressão e alteração

1.1 Quais são os processos fonológicos de inserção (+)?


Os processo fonológicos de inserção são a prótese, a epêntese e a paragoge.

A prótese consiste na adição de uma unidade fónica ou de um


O que é a prótese? conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra.
Ex.: SPIRITU- > espírito

A epêntese consiste na adição de uma ou mais unidades


O que é a epêntese? fónicas no interior de uma palavra.
Ex.: HUMILE > humilde

A paragoge consiste na adição de uma ou mais unidades


O que é a paragoge? fónicas no final de uma palavra.
ANTE > antes

1.2 Quais são os processos fonológicos de supressão (–)?


Os processo fonológicos de supressão são a aférese, a síncope e a apócope.

A aférese consiste na queda de uma unidade fónica ou de um


O que é a aférese? conjunto de unidades fónicas no início de uma palavra.
Ex.: ACUME- > gume

A síncope consiste na queda de uma unidade fónica ou de um


O que é a síncope? grupo de unidades fónicas no interior de uma palavra.
Ex.: OPERA- > obra

A apócope consiste na queda de uma unidade fónica ou de


O que é a apócope? um grupo de unidades fónicas no final de uma palavra.
Ex.: AMARE > amar

1.3 Quais são os processos fonológico de alteração (–


˜ )?
Os processo fonológicos de alteração são a sonorização, a palatalização, a redução vocálica,
a crase, a sinérese, a vocalização, a metátese, a assimilação e a dissimilação.

A sonorização consiste na passagem de uma consoante


surda, normalmente em posição intervocálica, a uma
O que é a sonorização?
consoante sonora.
Ex.: FOCU- > fogo

A palatalização consiste na passagem de sequências latinas


como li, ni, cl, pl, fl às consoantes palatais
O que é a palatalização?
/̒/(<lh>); /Ӷ/(<lh>); /̍/(<ch>) ou /t̍/.
Ex.: FILIU > filho; SENIORE > senhor; CLAVE > chave

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B.
A redução vocálica consiste no enfraquecimento de uma
O que é a redução vocálica? unidade vocálica em posição átona.
Ex.: casa > casinha

A crase consiste na contração de duas vogais numa só.


O que é a crase?
Ex.: PE(D)E- > pee > pé

A sinérese ocorre quando duas vogais contíguas, em hiato,


O que é a sinérese? dão lugar a um ditongo, por semivocalização de uma delas.
Ex.: LE(G)E- > lee > lei

A vocalização consiste na passagem de uma consoante a


O que é a vocalização? vogal.
Ex.: ACTU- > auto

A metátese consiste na transposição de segmentos ou


O que é a metátese? sílabas no interior de uma palavra.
Ex.: SEMPER > sempre

A assimilação é um processo fonológico de alteração em que


uma unidade fónica torna igual ou mais semelhante a si um
O que é a assimilação?
outro segmento contíguo ou não.
Ex.: IPSE > esse

A dissimilação é um processo fonológico de alteração em que


O que é a dissimilação? duas unidades fónicas iguais se tornam diferentes.
Ex.: CALAMELLU- > caramelo

1.4 Os processos fonológicos verificam-se apenas na evolução da língua ao longo do tempo (dia-
cronia) ou também se verificam na atualidade, na língua que falamos (sincronia)?
Verificam-se em ambas as situações: através do tempo, na evolução da língua, e na atualidade.
Ex.: Tanto encontramos uma metátese na evolução de CONTRARIU para contrairo (português anti-
go) como na variação social, na atualidade, entre parteleira e prateleira.

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O que é?

Gramática
(cont.)

ETIMOLOGIA

2. Étimo

2.1 O que é o étimo de uma palavra?


O étimo de uma palavra é a forma mais antiga de que essa palavra provém. Por exemplo, o étimo
da palavra portuguesa filho é a forma do latim vulgar FILIU-.
2.2 As palavras portuguesas provêm de que étimos?
As palavras portuguesas provêm de étimos de várias línguas, mas a grande maioria tem origem
em étimos latinos, visto que o português é uma língua românica ou novilatina, isto é, que tem
origem no latim.

3. Palavras convergentes e divergentes

3.1 O que são palavras convergentes?


Palavras convergentes são as que provêm de étimos diferentes aos quais corresponde apenas
uma palavra portuguesa.
Ex.:
SANU-
são (adjetivo)
são (verbo)
SUNT

3.2 O que são palavras divergentes?


Palavras divergentes são as que provêm do mesmo étimo, umas por via erudita e outras por via
popular, dando origem a mais do que uma palavra portuguesa.
Ex.:
solitário (forma erudita)
SOLITARIU-

solteiro (forma popular)

GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO

4. Português europeu e não europeu e crioulos de base portuguesa

4.1 O que é e onde se fala o português europeu?


O português europeu é a língua falada em Portugal continental e nos arquipélagos dos Açores e
da Madeira.
4.2 O que é o português não europeu?
O português não europeu é a língua falada fora da Europa, nos países africanos de língua oficial
portuguesa (PALOP), que compreende as variedades sul-americana (brasileira) e africana (anti-
gas colónias portuguesas), onde também se falam crioulos.

12
B.
4.3 O que é um crioulo?
Um crioulo é uma língua que se forma em comunidades onde se falam várias línguas a partir do
contacto de uma língua autóctone com uma língua dominante (de colonização) devido à neces-
sidade de comunicação.
Ex.: o Kriolu ou Kauberdianu de Cabo Verde.
4.4 O que são crioulos de base portuguesa?
São crioulos em que a base lexical, isto é, as palavras utilizadas na comunicação, é portuguesa.
4.5 Qual é a distribuição geográfica dos principais crioulos de base portuguesa?
a) Em África, existem os crioulos da Alta Guiné (Kuaberdianu, de Cabo Verde) e os crioulos
do Golfo da Guiné (Forro ou Santomense, de S.Tomé).
b) Na Ásia, encontramos os crioulos indo-portugueses (Língua da Casa, em Damão, na Ín-
dia), malaio-portugueses (Papiá Kristang, na Malásia, e o português de Bidau, em Timor
Leste) e sino-portugueses (o macaísta ou patuá de Macau, em vias de desaparecimento).
c) Na América, existem o papiamento nas Antilhas e o Saramancano, no Suriname.

SINTAXE

5. Funções sintáticas

5.1 O que é o sujeito?


É uma função sintática desempenhada por palavra (nome), expressão, oração que concordam
com o verbo da frase em que se encontram.
Exs.: • Maçãs não faltarão, na próxima primavera.
• Os meus primos ingleses visitam-nos, na próxima semana.
• Ir ao mar nesta altura é muito perigoso.

5.1.1 Quais são os tipos de sujeito?


O sujeito pode ser simples a) ou composto b).
Exs.: a) Os cães protegem os donos.
b) Os cães e os gatos são animais domésticos.
Quando não está expresso, o sujeito pode ser subentendido c) – quando pode ser recu-
perado através da conjugação verbal – e indeterminado d) – quando é substituível por
«alguém».
Exs.: c) O Pedro disse que [eles/elas] iam ao cinema.
d) Compra-se casas na baixa da cidade. / Alguém compra casas na baixa da cidade.

13
O que é?

Gramática
(cont.)

5.2 O que é o vocativo?


É uma função sintática desempenhada por uma palavra ou expressão e que serve para chamar
ou interpelar o interlocutor.
O vocativo distingue-se do sujeito, junto do qual se encontra normalmente, porque não concorda
com o verbo da frase em que se encontra.
Sempre que se encontrar junto do sujeito, o vocativo é isolado por vírgulas.
Exs.: 1) João, traz-me aquele livro, por favor.
2) Tu, meu amigo, não sabes o que perdeste.
3) Tu, Pedro, já viste bem este exercício?
5.3 O que é o predicado?
É uma função sintática desempenhada pelo verbo, expressando o que se diz acerca do sujeito.
No predicado, podem incluir-se outras funções sintáticas, consoante as propriedades de seleção
dos verbos principais e copulativos (complementos). Podem ainda existir funções sintáticas não
selecionadas pelos verbos (modificadores).
Exs.: 1) O João deu um presente ao irmão. (O predicado inclui dois complementos.)
2) O Pedro almoça na cantina ao meio-dia. (O predicado inclui dois modificadores.)
3) O João deu um presente ao irmão, hoje, de manhã. (O predicado inclui dois complemen-
tos e dois modificadores.)
4) O Francisco está doente. (O predicado inclui um predicativo do sujeito.)
5) O Manuel acha este filme um espanto. (O predicado inclui um complemento e um pre-
dicativo do complemento direto.)
6) O António canta. (O predicado é apenas constituído pelo verbo.)
5.4 O que é o complemento direto?
É uma função sintática de um verbo transitivo direto e/ou transitivo direto e indireto, que pode ser
desempenhada por:
• uma palavra substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as;
• uma expressão substituível pelos pronomes pessoais átonos -o, -a, -os, -as;
• pronomes pessoais (-me, -te, -o, -a, -nos, -vos, -os, -as);
• uma oração subordinada substantiva completiva.
Exs.: 1) Hoje comi marisco ao almoço. / Hoje comi-o ao almoço.
2) Inês Pereira recusa o primeiro namorado. – Inês Pereira recusa-o.
3) Ela viu-nos no cinema.
4) Inês Pereira afirma que só casará com um homem educado.
5.5 O que é o complemento indireto?
É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire-
tos. É desempenhada por:
• expressões iniciadas pela preposição a, substituíveis pelo pronome pessoal átono -lhe;
• pronomes pessoais (-me, -te, -lhe, -nos, -vos, -lhes);
• uma oração subordinada substantiva relativa.
Exs.: 1) A alcoviteira falou a Inês de Pero Marques. / A alcoviteira falou-lhe de Pero Marques.
2) O meu pai ofereceu-me um livro de poesia.
3) A minha prima deu o presente a quem o merecia.

14
B.
5.6 Como distingo o complemento direto do complemento indireto?

a) Um complemento direto é selecionado por verbos transitivos diretos e por verbos transitivos
diretos e indiretos.
Exs.: O João viu um ovni. / O Pedro deu um livro à irmã.

b) Um complemento indireto é selecionado por verbos transitivos indiretos e por verbos


transitivos diretos e indiretos.
Exs.: A Joana telefonou à mãe. / O Pedro deu um livro à irmã.

c) Um complemento direto é sempre desempenhado por palavra ou expressão substituível pelos


pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Ex.: O Pedro viu um ovni. / O Pedro viu-o.

d) Um complemento indireto é sempre desempenhado por uma palavra ou uma expressão


iniciada pela preposição a substituível pelos pronomes pessoais átonos lhe/lhes.
Ex.: O Pedro telefonou à irmã. / O Pedro telefonou-lhe.

5.7 Como sei se um pronome pessoal átono de 1.a pessoa (me/nos) ou de 2.a pessoa (te/vos)
desempenha a função sintática de complemento direto ou de complemento indireto?

É simples: basta substituí-los pelos pronomes de 3.a pessoa (o, a, os, as [complemento direto]
e lhe, lhes [complemento indireto]).
Se a frase ficar correta pela substituição com o, a, os, as, o pronome me, te, nos, vos
desempenhará a função sintática de complemento direto. Se, pelo contrário, ficar correta
ao ser substituída por lhe ou lhes, então desempenhará a função sintática de complemento
indireto.
Exs.: Ela viu-me no cinema.
É substituível por por lhe? Não, porque Ela viu-lhe no cinema é uma frase incorreta.
É substituível por o ou a? Sim, porque Ela viu-o(a) no cinema é uma frase correta.
Podemos, portanto, concluir que o pronome me na frase Ela viu-me no cinema desempenha a
função sintática de complemento direto.

5.8 O que é o complemento oblíquo?


É uma função sintática selecionada por verbos transitivos indiretos e transitivos diretos e indire-
tos. Pode ser desempenhada por:
a) uma palavra;
b) uma expressão substituível por um pronome pessoal precedido de preposição;
c) uma expressão substituível por um advérbio;
d) uma oração subordinada substantiva relativa.
Exs.: 1) O meu primo mora longe.
2) Inês Pereira gosta do Escudeiro. / Inês gosta dele.
3) Ela mora em Lisboa. / Ela mora lá.
4) Inês Pereira gosta de quem é educado e bem falante.

15
O que é?

Gramática
(cont.)

5.9 Como distingo um complemento direto, um complemento indireto


e um complemento oblíquo?

a) O complemento direto é sempre substituível por um pronome pessoal átono o, a, os, as;
um complemento indireto, por um pronome pessoal lhe ou lhes; um complemento oblíquo
é substituível por um advérbio ou por um pronome precedido de preposição.
Assim, para identificar o complemento presente numa frase, substitui-o por o, a, os, as e por
lhe ou lhes.
Se a frase ficar correta com o, a, os, as, então o complemento é direto; se ficar correta com lhe
ou lhes é indireto; se ficar incorreta com direto e indireto, então o complemento é oblíquo.
Exs.: 1) Na frase O Pedro leu um livro, a expressão destacada desempenha a função de
complemento direto porque pode ser substituída pelo pronome átono o: O Pedro leu-o.
2) Na frase O João mora em Lisboa, a expressão destacada desempenha a função
sintática de complemento oblíquo porque não pode ser substituída por o, a, os, as
nem por lhe ou lhes, mas pode ser substituída por um advérbio.
• O João mora-a. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora-lhe. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora lá. (frase correta)

5.10 Tanto o complemento oblíquo como o complemento indireto podem ser desempenhados
por uma expressão iniciada pela preposição a. Nesse caso, como os distingo?

Procedendo à substituição dessa expressão por lhe ou lhes.


Se a frase ficar correta, estaremos na presença de um complemento indireto; se ficar
incorreta, estaremos na presença de um complemento oblíquo.
Exs.: 1) A Joana telefonou à mãe. / A Joana telefonou-lhe. (frase correta – «à mãe» é
complemento indireto).
2) O Pedro vai a Lisboa. / O Pedro vai-lhe. (frase incorreta – «a Lisboa» é
complemento oblíquo).

5.11 O que é o complemento do nome?


É uma função sintática selecionada por um nome. O complemento do nome pode ser desem-
penhado por um adjetivo, uma expressão iniciada por uma preposição ou por uma oração.
Exs.: 1) A pesca desportiva faz-se sempre à linha.
2) A polícia procedeu à identificação do suspeito.
3) A suposição de que os alunos não estudam é abusiva.

5.12 O que é o complemento do adjetivo?


É uma função sintática selecionada por um adjetivo. Pode ser desempenhada por uma expres-
são iniciada por uma preposição ou por uma oração.
Exs.: 1) Inês não estava interessada em Pero Marques.
2) Inês estava interessada em casar com o Escudeiro.

16
B.
5.13 O que é o predicativo do sujeito?
É uma função sintática de uma palavra, uma expressão ou uma oração que indicam algo acerca
do sujeito (uma qualidade, um estado, uma localização).
Exs.: 1) Os meus amigos estão descontentes.
2) Brás da Mata é um escudeiro pouco escrupuloso.
3) Ele não é quem se pensa.

5.14 Como distingo um predicativo do sujeito de um complemento direto?

Basta saber que o predicativo do sujeito é desempenhado por verbos copulativos e que não é
substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Repara nas expressões destacadas nas frases dos exemplos.
Exs.: a) O Pedro ficou em casa.
A expressão «em casa» é predicativo do sujeito porque o verbo da frase é copulativo e
não pode ser substituído pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
b) O Pedro viu um lobo.
A expressão «um lobo» é complemento direto porque pode ser substituído pelo
pronome pessoal átono o.

5.15 O que é o predicativo do complemento direto?


É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração se-
lecionadas por um verbo transitivo-predicativo (achar, chamar, considerar, julgar, tratar, no-
mear…) que indicam algo acerca do complemento direto.
Exs.: 1) Ele acha a Inês bonita.
2) Eles consideram aquele aluno muito estudioso.
3) Elas consideram que fumar é prejudicial.

5.16 Como distingo numa frase o complemento direto do predicativo do complemento direto?
a) Um complemento direto é sempre função sintática de verbos transitivos diretos, de verbos
transitivos diretos e indiretos e de verbos transitivos-predicativos.
Exs.: Ele achou um livro.
Ele vendeu o livro ao primo.
Ele acha a Maria bonita.
b) Um predicativo do complemento direto é função sintática apenas de verbos
transitivo-predicativos (achar, considerar, eleger…).
Exs.: Ele acha a Maria bonita.
Eles elegeram o Pedro deputado.

c) Um complemento direto é sempre substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Um predicativo do complemento direto nunca se pode substituir por estes pronomes.
Exs.: Ele achou o livro. / Ele achou-o.
Ele acha a Maria bonita. / Ele acha-a. (frase incompleta – Ele acha-a o quê?)
Ele acha-a bonita. (frase correta – «a» [complemento direto]; «bonita» [predicativo do
complemento direto].)

17
O que é?

Gramática
(cont.)

5.17 O que é um modificador de grupo verbal?


É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não
selecionadas pelo verbo e que podem, por isso, ser omitidas sem que a frase fique gramatical-
mente incorreta.
Exs.: 1) Eles almoçam calmamente.
2) Eles trabalham em Paris.
3) Eles fazem surf sempre que podem.

5.18 O que é um modificador do nome?


É uma função sintática desempenhada por uma palavra, uma expressão ou uma oração não
selecionados pelo nome. Os modificadores do nome podem ser restritivos1 ou apositivos2.
1
São restritivos quando restringem ou limitam a referência do nome que modificam. Podem
ser desempenhados por uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva
relativa restritiva.
Exs.: 1) Vivo numa casa arrendada.
2) Vivo numa casa bastante espaçosa.
3) A casa que os meus primos compraram situa-se numa colina.
2
São apositivos quando não restringem nem limitam a referência do nome que modificam.
São sempre separados por vírgulas do nome que modificam. Podem ser desempenhados por
uma palavra, uma expressão ou uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa.
Exs.: 1) A ave, livre, voou para longe.
2) Gil Vicente, o maior dramaturgo português, escreveu diversos autos e farsas.
3) Os golfinhos, que são mamíferos, abundam na baía do Sado.

6. A frase complexa: coordenação e subordinação

Coordenação

6.1 O que são orações coordenadas?


São orações quase sempre ligadas por conjunções ou locuções coordenativas; são independen-
tes uma da outra.
6.1.1 Que tipos de orações coordenadas existem?
As orações coordenadas são as seguintes:
a) copulativas
Ex.: Eu brinco e tu lês.
b) adversativas
Ex.: Comprei o livro, mas não o li ainda.
c) disjuntivas
Ex.: Ou vou a Paris ou vou a Londres.
d) conclusivas
Ex.: Estou muito cansado, logo tenho de parar o trabalho.
d) explicativas
Ex.: Entrego-te o livro, pois não consigo ler mais esta história tenebrosa.

18
B.
Subordinação

6.2 O que são orações subordinadas?


São orações quase sempre iniciadas por conjunções ou locuções subordinativas e dependem de
uma oração subordinante ou de um elemento subordinante.
6.2.1 Que tipos de orações subordinadas existem?
Existem três tipos de orações subordinadas: adverbiais, adjetivas e substantivas.
• As adverbiais podem ser:
a) causais (Ex.: Vou almoçar porque tenho fome.);
b) temporais (Ex.: Vou ao cinema sempre que o filme é recomendado pela crítica.);
c) finais (Ex.: Falei alto para que me ouvisses.);
d) comparativas (Ex.: Esta cidade é mais bonita do que aquela [é].);
e) consecutivas (Ex.: É um país tão bonito que regressarei para o ano.);
f) concessivas (Ex.: Embora ele tenha esses defeitos, eu confio nele.);
g) condicionais (Ex.: Se vieres, ficarei contente.).
• As adjetivas podem ser:
a) relativas restritivas (Ex.: Eles ouviram o barulho que fizemos.);
b) explicativas (Ex.: Eles leram esses livros, que lhe tínhamos oferecido.).
• As substantivas podem ser:
a) relativas sem antecedente (Ex.: Quem jogar pode ganhar esse prémio.);
b) completivas (Ex.: Ele ontem afirmou perante todos que ia para França brevemente).

6.2.2 De que dependem as orações subordinadas?


As orações subordinadas ou dependem de uma oração subordinante ou de um elemento
subordinante.
• As adverbiais dependem das orações subordinantes.
Ex.: Nós fomos ver o filme porque o gabavam muito.
• As adjetivas dependem de um nome.
Ex.: Nós vimos ontem na estrada o carro que teve o acidente.
A subordinada só depende do elemento subordinante sublinhado.
• As substantivas dependem de um verbo.
Exs.: 1) Ela disse ontem no tribunal que desconhecia essa pessoa.
2) Eu sei bem quem escreveu esse livro.
3) Quem estudar tirará boas notas.

6.2.3 Quais são as funções sintáticas das orações subordinadas?


As orações subordinadas desempenham funções sintáticas – em relação à subordinante
ou a um elemento subordinante. Alguns exemplos:
• As adverbiais desempenham a função de modificador (de grupo verbal ou de frase).
Ex.: A minha prima faz os deveres quando chega a casa. (modificador de grupo verbal)
Ex.: Caso me saia a lotaria, farei grandes viagens. (modificador de frase)

19
O que é?

Gramática
(cont.)

• As adjetivas desempenham a função sintática de modificador do nome (restritivo e


apositivo).
Ex.: O livro que ele leu foi escrito por José Saramago. (modificador do nome restritivo)
As baleias, que são mamíferos, não aparecem na nossa costa. (modificador do
nome apositivo)
• As substantivas completivas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito e de
complemento (direto, indireto e oblíquo).
Exs.: 1) É evidente que este preço é absurdo. (sujeito)
(= isso é evidente.)
2) O João disse que vai brevemente a Londres. (complemento direto)
(= O João disse isso.)
• As substantivas relativas podem desempenhar as funções sintáticas de sujeito, comple-
mento (direto, indireto, oblíquo) e modificador.
Exs.: 1) Quem tudo quer tudo perde. (sujeito)
(= Ele tudo perde.)
2) Ela sabe quem escreveu esse livro. (complemento direto)
(= Ela sabe isso.)
3) Dei os livros a quem mos pediu. (complemento indireto)
(= Dei os livros ao Pedro.)

LEXICOLOGIA

7. Arcaísmos e neologismos

7.1 O que é um arcaísmo?


Um arcaísmo é uma palavra, uma expressão ou uma construção sintática que entrou em desuso
na língua.
Exs.: O advérbio asinha (depressa) deixou de se usar no século XVI. O pronome vós (segunda
pessoa do plural) já quase não se usa na comunicação atual, sendo substituído por vocês.
7.2 O que é um neologismo?
Um neologismo é uma palavra nova que, num determinado momento, se cria através de meca-
nismos já existentes na língua, nomeadamente os processos morfológicos e os processos irre-
gulares de formação de palavras.
Exs.: deslocalizar (palavra nova formada por derivação por prefixação); bullying (palavra nova
proveniente, por empréstimo, do inglês).

8. Campo lexical e campo semântico

8.1 O que é um campo lexical?


Um campo lexical consiste num conjunto de palavras de categorias lexicais diferentes (nomes,
adjetivos, verbos) que se podem associar pelo sentido a uma mesma área da realidade.
Ex.: campo lexical de escola: aula, aluno, professor, ensinar, aprender, aprovado, reprovado.

20
B.
8.2 O que é um campo semântico de uma palavra?
Um campo semântico de uma palavra consiste no conjunto de significados que ela pode ter em
diversos contextos.
Exs.: campo semântico da palavra cabeça:
1) O ciclista vai na cabeça do pelotão. (à frente, na dianteira)
2) Já não tenho cabeça para decorar todos estes números. (capacidade)
3) Concentra-te: estás sempre com a cabeça noutro lado. (pensamento)
4) Na compra da casa, exigiram-me os juros à cabeça. (adiantados)
5) Não sei esses números de cabeça. (de cor/de memória)

9. Processos irregulares de formação de palavras

9.1 O que é a extensão semântica?


É um processo irregular de palavras em que se atribui um significado diferente a palavras já
existentes na língua.
Exs.: 1) rato (animal roedor) / rato (periférico de computador)
2) janela (de uma casa) / janela (caixa de diálogo / informativa) de programa informático
9.2 O que é o empréstimo?
É um processo em que uma palavra de uma língua é adotada por outra.
Ex.: as palavras inglesas online e marketing foram adotadas pelos falantes do português e utili-
zadas na comunicação.

9.3 O que é a amálgama?


É um processo através do qual se forma uma nova palavra pela junção de partes de palavras
diferentes.
Ex.: A palavra informática resulta da junção dos elementos destacados das palavras infor-
mação+automática.
9.4 O que é a sigla?
É uma palavra que resulta das letras iniciais de um grupo de palavras. Essas iniciais são pronun-
ciadas separadamente.
Exs.: 1) PSP
2) GNR

9.5 O que é o acrónimo?


É um processo que dá origem a uma palavra formada por letra ou letras iniciais de um conjunto
de palavras, e que se pronuncia como uma palavra.
Exs.: 1) SIDA (Síndroma da Imuno-Deficiência Adquirida)
2) FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)
9.6 O que é a truncação?
É um processo que consiste na redução de palavras mais extensas delas resultando outras de
menor extensão.
Ex.: A palavra metro formou-se pela redução da palavra metropolitano.

21
Gil Vicente,
Auto da Feira
A crise do Papado: o saque de Roma, a questão
das indulgências, o anúncio da Reforma

A leitura do Auto da Feira pressupõe que conheças alguns factos relativos à história do cristianis-
mo, nomeadamente no século XVI, para melhor compreenderes a luta alegórica nele presente. Assim,
apresentamos-te as seguintes informações:

1. No século XVI, principalmente nas três primeiras décadas, aproximadamente, o Papado foi marcado
por grandes escândalos de natureza política, militar, financeira, etc., que provocaram a reação de
alguns teólogos contra essa situação. O mais famoso foi Martinho Lutero.

2. Uma das críticas mais contundentes que se fazia ao Papado romano tinha a ver com a chamada
questão das indulgências, que consistia, basicamente, no facto de o Papado perdoar pecados a quem
os podia remir com dinheiro. Esta situação era intolerável para Lutero e outros teólogos: consideravam
que o Papado pecava fortemente com estas práticas.

3. Mas com outras também: escândalos muito fortes, de natureza vária, como referido em 1.,
abalavam o Papado; mas mais grave ainda era o facto de vários Papas terem uma vida escandalosa
em nada condizente com os votos de castidade, pobreza e humildade a que se tinham submetido.

4. Devido ao seu poder político e militar, o Papado envolveu-se em várias guerras, que veio a perder,
e que terminaram com o famoso saque de Roma, em 1527: Roma foi invadida e saqueada por cristãos,
com o apoio de Lutero, o que marcou negativamente de forma indelével a cristandade desses tempos.

5. A partir daqui o caminho estava aberto para a cisão entre os cristãos, o que aconteceria pouco
depois com o aparecimento de vários movimentos reformistas e de protesto contra Roma, de natureza
religiosa ou teológica, como os luteranos, os calvinistas, os anglicanos, etc.: a Reforma Protestante.

6. Quando Roma entra em cena, no Auto da Feira, o público reconhece-a como a personagem
alegórica que é pecadora, habitual cliente do Diabo – como ela própria admite. Os seus erros – as
indulgências, por exemplo – são referidos no auto. E o público reconhecer-se-ia também, por certo, nas
admoestações e fortes censuras a ela dirigidas pelo Tempo e por Mercúrio. Afinal, a Reforma estava
perto…

22
Gil Vicente, Auto da Feira
1. Caracterização das personagens e relações entre as personagens
Define-se como «senhor / de muitas sabedorias, / e das moedas reitor,», vv. 162-164 (página 29). É, na
Mercúrio mitologia romana, o mensageiro dos deuses e o deus do comércio, o que faz dele um hábil negociador –
como também se define. Ridiculariza a astrologia, referindo os vários signos do Zodíaco e a sua inutilidade:
em nada influenciam a vida das pessoas.

O que o Tempo troca precisa de tempo para ser trocado: a paz, os remédios contra as adversidades
Tempo e a Fortuna, o temor de Deus, as virtudes – tudo se achará na tenda do Tempo.

É o anjo enviado por Deus a pedido do Tempo para o assessorar nas trocas dos «remédios» que se
Serafim
encontram na tenda.

Aparece com uma tendinha de vendedor ambulante, na qual põe à disposição dos compradores toda
a espécie de coisas vis e, por isso, não tem dúvidas de que não terá rival nas vendas. Ofende-se quando
Diabo o Serafim pretende expulsá-lo da feira porque, como diz, quem lhe compra fá-lo por livre vontade: ele não
força ninguém.

Personagem alegórica, atormentada pela falta de respeito de que é vítima, vem à feira comprar «paz,
Roma verdade e fé», mas falta-lhe «santa vida» para dar em troca. Ainda tenta comprá-las com «perdões»,
«estações» e «jubileus», mas é severamente repreendida pelo Serafim e por Mercúrio.

Vêm juntos à feira.


Denis Casado com Branca Anes, «a brava», Denis queixa-se dos maus tratos que ela lhe dá e, por isso, pretende
e Amâncio vendê-la na feira.
Casado com Marta Dias, «a mansa», Amâncio lamenta-se da mulher desajeitada que tem.

Mulheres dos anteriores, vêm juntas à feira.


Branca Anes Branca, casada com Amâncio, queixa-se de maus hábitos do marido.
e Marta Dias Ambas demonstram, falando com o Serafim, desinteresse pela transcendência religiosa, centrando-se nos
seus interesses materiais.

Evidenciam, em geral, um comportamento coletivo, na medida em que atuam como grupo: organizam-se
Nove moças para enganar o Serafim através da informação de Gilberto (vêm «folgar» e não feirar); resistem aos
e três avanços dos «compradores» Mateus e Vicente; recusam em coro comprar «virtudes» porque não
mancebos proporcionam bons casamentos; cantam em coro à Virgem.

Interessam-se por aquilo que as moças do lugar têm para «vender». Desenvolvem com elas diálogos
Vicente equívocos cheios de sugestões eróticas. De facto, vêm a «amores» e não às compras. Por isso se dirigem à
e Mateus Ribeira, a outra feira.

2. A representação do quotidiano
O Auto da Feira permite o conhecimento de aspetos da vida quotidiana do povo no século XVI, como, por exemplo:
a crença generalizada na astrologia – denunciada por Mercúrio no seu monólogo inicial;
a indicação de mercadorias procuradas por determinadas pessoas ou grupos sociais nas feiras: cartas de jogar,
espelhos, unguentos – não só para tratar da saúde, mas ainda com pretensos poderes mágicos –, joias, vestuário, etc.;
a feira como lugar de encontro para negociar, mas também para falar com os amigos, desabafar, falar do trabalho
rural, da vida familiar, procurar amores…
a ignorância religiosa/teológica das camadas populares.
A representação do quotidiano passa ainda pelo facto de o Auto da Feira mostrar como as tensões religiosas de índole
teológica que grassavam na Europa e conduziram à Reforma estavam bem presentes em Portugal, nomeadamente no
público cortesão – nobreza e clero – que assistia ao auto naquele dia de Natal de 1527…

23
Gil Vicente, Auto da Feira

3. A dimensão religiosa
Apesar da ignorância de natureza teológica que se verifica nos elementos populares presentes no Auto da Feira, este
revela modos de viver a prática religiosa por parte do povo:
a crença e o medo ao Diabo e ao Inferno;
o temor de Deus, da «ira do senhor dos céus», isto é, do castigo divino – típica da mentalidade medieval.

Mas o auto é ainda, e principalmente, lugar de crítica ao clero e ao Papado num tempo em que na Europa se anunciava
a Reforma. Essa necessidade de reforma, de mudança, de conversão por parte do cristianismo está bem presente no Auto
da Feira quando:
Mercúrio ataca «clérigos e frades» que só pensam em enriquecer, deixando de ter «ao céu respeito»;
o Tempo denuncia as dissensões e as guerras entre cristãos;
o Tempo lembra que por todo o lado se perdeu o «temor de Deus»;
o Serafim convoca para a feira os «papas adormidos»;
o Serafim insta a hierarquia cristã a mudar de roupa, usando as vestes simples dos primeiros «pastores» – modo
metafórico de apelar à reforma.

Contudo, é com a entrada em cena de Roma que a dimensão religiosa ocupa verdadeiramente o lugar central no
espetáculo – desde logo numa perspetiva de reforma. Roma apresenta-se como querendo trocar a mentira e o engano
outrora adquiridos ao Diabo, e em que tem vivido por «paz, verdade e fé» – num projeto de conversão. No diálogo com o
Serafim, a dimensão religiosa acentua-se quando:
o Serafim adverte Roma de que não respeita o «poder profundo» de Deus – daí as guerras em que se envolveu
e que perdeu;
Mercúrio acusa Roma de ser pecaminosa, referindo-se ao escandaloso pagamento dos pecados através das
indulgências, do dinheiro que tudo redime;
Mercúrio aconselha Roma a mudar de vida, apresentando Nossa Senhora como exemplo de virtude a seguir;
Mercúrio insta Roma a fazer um exame de consciência para verificar que o erro está nela e que não deve ser a
outrem atribuído,erro esse que consiste em ter-se esquecido de Deus, o «poder primeiro»: a ele deve regressar.

4. A representação alegórica
A representação no Auto da Feira é alegórica no sentido em que se trata de uma representação do mundo apresentada
através de uma série de figuras alegóricas relacionadas entre si. Este tipo de representação, típico do teatro medieval,
consiste em apresentar figuras ou personagens cuja natureza é simbólica ou metafórica: o espetador reconhecia
imediatamente a presença do Mal em palco logo que o Diabo entrava. No Auto da Feira lutam o Bem (alegorizado no
Tempo e no Anjo que o acompanha, o Serafim) e o Mal (alegorizado no Diabo).
A crise em que vivia o Papado está alegorizada em Roma, figura que se apresenta ligada ao Mal e a quem o Tempo
e Mercúrio avisam que tem de mudar em direção ao Bem.

24
Auto da Feira – Estrutura I
[…] Auto da Feira, cuja ação aparece disposta em forma de políptico1, construído a partir da alegoria de uma fei-
ra de virtudes, instalada em noite de Natal. Temos primeiro Mercúrio («reitor das moedas») que, num dos monólo-
gos mais desenvolvido das moralidades vicentinas, satiriza a astrologia e, através dela, a presunção humana, em ge-
ral; a feira, onde pontificam os convencionais mercadores do Bem (o Anjo) e do Mal (o Diabo), é primeiro visitada por Roma,
que a ela acorre em busca da «paz dos céus»; mas só a troco de «santa vida» (que não tem) esta lhe poderá ser dada;
vêm a seguir dois compadres e duas comadres, casados entre si, na disposição vã de se livrarem dos respetivos consortes.
E vem depois um grupo de pastores (rapazes e raparigas), em adequação à circunstância natalícia do auto: estes, porém,
não necessitam de comprar mercadorias e, por isso, revelam-se imunes aos oferecimentos que lhes fazem na tenda do Diabo;
mas também não lhes interessam os produtos do Serafim, uma vez que tudo aquilo de que necessitam lhes é gratuitamente
disponibilizado pela Virgem (patrona da feira).
José Augusto Cardoso Bernardes, «VICENTE (Gil)», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa,
Lisboa / São Paulo, Verbo, 2005, vol. V, colunas 816 e 817.

1
conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema

Auto da Feira – Estrutura II


Monólogo de Mercúrio:
1. Mercúrio • crítica satírica à astrologia e à presunção humana;
• anúncio de abertura de uma feira em dia de Natal.

2.1 Roma
• o Tempo monta a sua tenda e anuncia os muitos produtos que vende; o Serafim vem ajudá-lo;
• o Diabo anuncia os produtos à venda na sua «tendinha»;
• Roma visita a Feira e é avisada de que tem de mudar de vida.
2. A Feira 2.2 Os dois casais
• dois casais visitam a feira com a intenção de se libertarem dos respetivos cônjuges.
2.3 Os pastores
• um grupo de pastores visita a feira com intenção de se divertir em dia de Nossa Senhora.

Auto da Feira – Natureza da obra (um auto alegórico)


Em Gil Vicente, nomeadamente, a designação de Auto aplica-se indiscriminadamente a qualquer tipo de
composição dramática, independentemente do seu tema, da sua extensão e da sua estrutura.
Auto
José Augusto Cardoso Bernardes, «Auto», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa,
Lisboa / São Paulo, Verbo, 1995, vol. I, coluna 455.
(Texto adaptado)

Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O autor representa o mundo sob
a forma duma feira em que os principais vendedores são um Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais
nem menos que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos,
Auto tendo em atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos
da Feira respetivos cônjuges, campónios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores
que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma
cantiga entoada pelas camponesas em louvor da Natividade.
I. S. R., «Auto da Feira», in Jacinto do Prado Coelho (Dir.), Dicionário de literatura, Porto, Figueirinhas, 1987, vol. I, p. 76.
(Texto adaptado)

O Auto da Feira é uma alegoria (ou seja, representação simbólica) do mundo e da luta incessante que nele
Auto
ocorre entre o Bem e o Mal. Essa luta é transmitida através de um espetáculo de figuras alegóricas, figuras
da Feira –
que se podem considerar uma espécie de metáforas ou mesmo de símbolos. Para a representação alegórica
uma alegoria,
desta luta são figuras centrais o Tempo e o Serafim (alegorias do Bem), o Diabo (alegoria do Mal) e Roma
um auto
(alegoria do Papado em forte crise – dominado pelo Mal). O espetador entendia deste modo o espetáculo do
alegórico
mundo que, de forma artística, indireta, metafórica, simbólica, isto é, alegórica, passava diante de si.

25
Gil Vicente, Auto da Feira

Nota
As informações sobre o vocabu-
Auto da Feira
lário e outros aspetos essenciais
à compreensão do texto, que apa- Gil Vicente, «Auto da Feira», in Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, 1988, pp. 265 a 299.
recem em notas, foram retira- (Apresentação e leitura de António José Saraiva)
das da edição referida, e ainda de
Auto da Feira de Gil Vicente, 4
Lisboa, Publicações Dom Quixo-
te, 1989. (Introdução e edição in- Figuras: Mercúrio1, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca
terpretativa do Professor Luís F.
Lindley Cintra). Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto, Nabor, Mateus, Justina, Vicente,
Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda.

Monólogo de Mercúrio,
deus dos comerciantes (ou feirantes)
4
Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

- Mer. Pera que me conheçais, - e ao mundo e ao diabo.


- e entendais meus partidos2, - E que o sabem têm por fé.
- todos quantos aqui estais - E eles todos em cabo
- afinai bem os sentidos, - terão um cão polo rabo11,
5 mais que nunca, muito mais. 25 e não sabem cujo é12.
- Eu sou estrela do céo, - E cada um sabe o que monta13
- e despois vos direi qual, - nas estrelas que olhou;
- e quem me cá descendeo3, - e ao moço que mandou,
- e a quê 4,e todo o al5 - não lhe sabe tomar conta
10 que me a mi aconteceo. 30 d’um vintém que lh’entregou14.
1
Mercúrio é o astro da E porque a estronomia6
- - Porém15 quero-vos pregar,
mediação, o astro mensageiro
por excelência. No auto, é - anda agora mui maneira7, - sem mentiras nem cautelas,
enviado por Deus à Terra, - mal sabida e lisonjeira, - o que per curso d’estrelas
como mensageiro, mas
fundamentalmente na função
- eu, à honra8 deste dia9, - se poderá adivinhar,
de deus do comércio, hábil 15 vos direi a verdadeira. 35 pois no céo nasci com elas.
negociador; 2 intenções;
3
enviou, fez descer do Céu;
- Muitos presumem10 saber - E se Francisco de Melo16,
4
e com que fim; 5 e tudo o - as operações dos céos, - que sabe ciência avondo17,
resto; 6 deve ler-se aqui não a
astronomia, uma ciência, mas
- e que morte hão-de morrer, - diz que o céo é redondo,
a astrologia, uma crença sem - e o que há-de acontecer - e o sol sobre amarelo,
bases científicas; 7 anda na aos anjos e a Deos,
moda; 8 em honra; 9 o dia de
20 40 diz verdade, não lh’o escondo.
Natal; 10 pretendem; 11 terão
um cão atrás deles;
12
de quem é; 13 o que
interessa; 14 estes versos
constituem uma crítica
aos que pretendem ter
conhecimentos de astrologia
e que acreditam nesta crença;
a ironia está neles bem
presente, como nos que se
lhes seguem; 15 por isso;
16
matemático e astrólogo
muito conceituado que se
dedicava à astrologia, como
era comum na época;
17
sabe muita ciência

26
- Que se o céo fora quadrado, - E que mais quereis saber,
- não fora redondo, senhor. - desses temporais e disso,
- E se o sol fora azulado, - senão que, se quer chover,
- d’azul fora a sua cor, 80 está o céo pera isso,
45 e não fora assi dourado. - e a terra pera a receber?
- E porque está governado - A lua tem este jeito:
- per seus cursos naturais, - vê que clérigos e frades
- neste mundo onde morais - já não têm ao Céo respeito,
- nenhum homem aleijado, 85 mingua-lhes as santidades,
50 se for manco e corcovado, - e crece-lhes o proveito28.
- não corre por isso mais18.
Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus,
- E assi os corpos celestes Regina musicae, secundum Joannes Monteregio29:
- vos trazem tão compassados, - Mars, planeta dos soldados,
- que todos quantos nacestes, - faz nas guerras conteúdas30,
55 se nacestes e crecestes, - em que os reis são ocupados,
- primeiro fostes gerados. 90 que morrem de homens barbados
- E que fazem os poderes - mais que mulheres barbudas.
- dos sinos19 resplandecentes? - E quando Vénus declina31,
- Fazem que todalas gentes - e retrograda32 em seu cargo,
60 ou são homens ou mulheres - não se paga o desembargo
- ou crianças inocentes20. 95 no dia que s’ele assina,
- mas antes per tempo largo.
- E porque Saturno a nenhum
- influi21 vida contina22, Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricor-
- a morte de cada um nius positus in firmamento coeli33:
65 é aquela de que se fina23,
- e não d’outro mal nenhum. - E quanto ao Touro e Carneiro,
- Outrossi24 o terremoto, - são tão maus d’haver agora,
- que às vezes causa perigo, - que quando os põe no madeiro,
- faz fazer ao morto voto 100 chama o povo ao carniceiro
70 de não bulir mais consigo, - «senhor», c’os barretes fora34.
- cantá de seu próprio moto25. - Depois do povo agravado,
- que já mais fazer não pode,
- E a claridade encendida - invoca o sino do Bode,
- dos raios piramidais26 105 Capricórnio chamado,
- causa sempre nesta vida - porque Libra não lhe acode35.
75 que quando a vista é perdida,
- os olhos são por demais27.
Vocabulário
18
note-se a ironia presente em todos estes versos; 19 signos do Zodíaco – a astrologia, por associação; 20 a vacuidade da astrologia está bem presente nestes
versos; 21 dá; 22 eterna; 23 de que morre; 24 também; 25 de notar o tom jocoso destes versos [Lindley Cintra]: o cadáver enterrado move-se se houver um
terramoto e promete a si mesmo não se mexer mais… 26 a luz dos astros; 27 estes e outros versos de cariz irónico estão ao serviço da denúncia jocosa da as-
trologia; neste caso concreto podem significar uma verdade evidente, apresentada como chacota: quem é cego nada vê… 28 trata-se, nas palavras de Lindley
Cintra, «do primeiro ataque direto do autor ao clero corrupto da época»; note-se a antítese entre o que lhe falta, a santidade, e o que lhe sobra, o «proveito»,
a riqueza; 29 e quanto à estrela Marte [o planeta brilhante era considerado uma estrela], espelho da guerra [Marte era o deus da guerra], e a Vénus, rainha da
música, segundo João Monterregio, um célebre astrónomo alemão; 30 guerras contínuas; 31 quando o planeta Vénus desce, no seu movimento; o autor, neste
e noutros versos, estabelece associações de natureza astrológica entre movimentos dos astros e acontecimentos terrestres – sempre com intenção crítica e
de denúncia nos últimos; 32 recua; 33 e quanto ao Touro, Carneiro, Caranguejo e Capricórnio, [quatro importantes constelações para os astrólogos] postos no
firmamento do céu; 34 o conjunto dos versos 97 a 101 pode ser lido deste modo [Lindley Cintra]: como atualmente, «agora», é muito difícil conseguir comprar
carne de touro e de carneiro, quando o talhante as apresenta para venda, o povo tira o barrete em sinal de respeito; continua aqui a chacota a propósito das
crenças astrológicas – na referência às carnes de animais que deram nome a constelações que os astrólogos queriam influir sobre as pessoas, sobre o seu
destino… 35 a irrisão sobre as crenças astrológicas continua nestes versos: o povo «agravado», pobre, não consegue dinheiro, moeda, «Libra», nome de uma
constelação, para comprar a carne do «bode», chamado Capricórnio – nome de outra constelação 27
Gil Vicente, Auto da Feira

- E se este não hás tomado, Et quantum ad duodecim domus Zodiacus,


- nem touro, carneiro assi, sequitur declaratio operationem suam45.
- vai-te ao sino do pescado, - No Zodíaco acharão
110 chamado Piscis em latim, - doze moradas palhaças46,
- e serás remediado36. - onde os sinos47 estão
- E se piscis não tem ensejo37, 135 no inverno e no verão,
- porque pode não no haver, - dando a Deos infindas graças.
- vai-te ao sino38 do Cranguejo, - Escutai bem, não durmais,
115 Signum39 Cancer40, Ribatejo, - sabereis per conjeituras
- que está ali a quem no quer41. - que os corpos celestiais
140 não são menos nem são mais
Sequuntur mirabilia Jupiter, Rex regum, dominus - que suas mesmas granduras48.
dominantium42.
- Júpiter, rei das estrelas, - E os que se desvelaram,
- deos das pedras preciosas, - se das estrelas souberam,
- mui mais precioso qu’elas, - foi que a estrela que olharam,
120 pintor de todalas rosas, 145 está onde a puseram,
- rosa mais fermosa delas; - e faz o que lhe mandaram.
- é tão alto seu reinado, - E cuidam que Ursa maior,
- influência e senhoria, - Ursa minor e o Dragão,
- que faz per curso ordenado - e Lepus, que tem paixão49,
125 que tanto val um cruzado 150 porque um corregedor
- de noite como de dia43. - manda enforcar um ladrão?

- ~ nao veleira
E faz que ua - Não, porque as constelações
- mui forte, muito segura, - não alcançam mais poderes,
- que inda que o mar não queira, - que fazer que os ladrões
130 e seja de cedro a madeira, 155 sejam filhos de mulheres,
- não preste sem pregadura44. - e os mesmos50 pais varões51.
- E aqui quero acabar.
- E pois vos disse até ’qui
- o que se pode alcançar,
160 quero-vos dizer de mi,
- e o que venho buscar.

Vocabulário
36
estes versos continuam a «jogar» com nomes de constelações, através de trocadilhos entre esses nomes e determinados alimentos – tudo
como forma de criticar a astrologia, de a ridicularizar: se não consegues comer touro ou comer carneiro, come peixe; 37 se não consegues ma-
tar a fome com peixe; 38 signo (do Zodíaco); 39 signo (do Zodíaco); 40 signo representado por um caranguejo, a forma da constelação; 41 e
se não conseguir peixe, coma caranguejo, encontra-o no Ribatejo; 42 seguem-se as maravilhas de Júpiter, rei dos reis, senhor das dominações;
43
note-se a jocosidade na referência a Júpiter e a quem acredita na astrologia – que diz ser ele poderosíssimo: o que o poder dele consegue é que
um cruzado, uma moeda, valha o mesmo de dia e de noite! A referência à influência de Júpiter está na expressão «faz percurso ordenado»: o curso
de Júpiter influenciaria os humanos – para os astrólogos; 44 não preste sem que os pregos preguem a madeira; 45 e quanto às doze casas do Zodíaco
segue-se a declaração/explicação da sua forma de trabalhar; 46 doze casas feitas de palha: regressa a chacota – sugestiva da vacuidade da crença
astrológica, de palha…; 47 signos; 48 grandezas; 49 têm pena; 50 os seus – dos ladrões; 51 as constelações mais não podem do que fazer que os ladrões
sejam filhos de homens e de mulheres: sempre a crítica à crença astrológica

28
- Eu são52 Mercúrio, senhor - E porquanto nunca vi 52
sou
- de muitas sabedorias, - na corte de Portugal 53
governador
54
- e das moedas reitor53, - feira em dia de Natal, negócios
55
~ feira aqui pagamentos
165 e deos das mercadorias: 175 ordeno ua
- nestas tenho meu vigor. - pera todos em geral.
- Todos tratos54 e contratos, - Faço mercador-mor
- valias, preços, avenças55, - ao Tempo, que aqui vem,
- carestias e baratos, - e assi o hei por bem.
170 ministro suas pretenças, 180 E não falte comprador,
- até as compras dos sapatos. - porque o Tempo tudo tem.

Educação literária

1. Atenta no início do monólogo de Mercúrio.


1.1 Indica, justificando, a quem se refere Mercúrio entre os vv. 16-20.
1.2 Explica de que modo ele ridiculariza seguidamente – vv. 21-40 – essas
pessoas.

2. Tem em atenção a pergunta que Mercúrio faz nos vv. 57-58.


2.1 Explica a sua função.

3. Tem em atenção os vv. 82-86.


3.1 Identifica quem é criticado.
3.2 Explicita os motivos da crítica.

Tem em atenção os seguintes vv. 117-121:


«Júpiter, rei das estrelas,
deos das pedras preciosas,
mui mais precioso qu’elas,
pintor de todalas rosas,
rosa mais fermosa delas;»
Apresentam uma sucessão de atributos do planeta Júpiter sob a forma de metáforas:
 rei das estrelas, v. 117;
 deus das pedras preciosas, v. 118;
 pedra mais preciosa do que qualquer pedra preciosa, v. 119;
 pintor de todas as rosas, v. 120;
 rosa mais formosa do que qualquer rosa, v. 121.
Esta sucessão metáforas constitui um recurso expressivo chamado alegoria: Júpiter é
representado alegoricamente, através dos seus atributos metaforizados.

29
Gil Vicente, Auto da Feira

~ tenda com muitas cousas,


Entra o Tempo, e arma ua - Aqui achareis o temor de Deos7,
e diz: 20 que é já perdido em todos estados;
- aqui achareis as chaves dos Céos,
- Tem. Em nome daquele que rege nas praças - muito bem guarnecidas em cordões dourados.
- d’ Anvers e Medina as feiras que têm1, - E mais achareis
- começa-se a feira chamada das Graças, - soma8 de contas, todas de contar
- à honra da Virgem parida em Belém2. 25 quão poucas e poucos haveis de lograr
5 Quem quiser feirar, - as feiras mundanas; e mais contareis
- venha trocar, qu’eu não hei-de vender3. - as contas sem conto qu’estão por contar9.
- Todas virtudes qu’ houverem mister4,
- nesta minha tenda as podem achar, - E porque as virtudes, senhor Deos, que digo10,
- a troco de cousas que hão-de trazer. - se foram perdendo de dias em dias,
30 com a vontade que deste ò Messias11
10 Todos remédios especialmente - memoria o teu anjo12 que ande comigo13,
- contra fortunas ou adversidades - Senhor, porque temo
- aqui se vendem na tenda presente, - ser esta feira de maos compradores,
- conselhos maduros de sãs calidades. - porque agora os mais sabedores
- Aqui se acharão 35 fazem as compras na feira do Demo14,
15 a mercadoria d’amor e rezão, - e os mesmos15 diabos são seus corretores16.
- justiça e verdade, a paz desejada5,
- porque a Cristandade é toda gastada
- só em serviço da openião6.

Vocabulário
1
em Anvers (Antuérpia, Flandres) e Medina del Campo (Castela) tinham lugar feiras muito importantes; os dois versos são perífrase de
Mercúrio; 2 o auto representou-se no dia de Natal de 1527; 3 o Tempo diz que só aceita trocas de bens, nunca dinheiro para adquirir algum
bem; 4 necessidade; 5 trata-se de uma «alusão direta» [Lindley Cintra] às guerras várias que iam decorrendo na Europa entre reinos cristãos,
das quais o mais famoso e traumatizante episódio foi o saque de Roma, em maio de 1527, no mesmo ano da primeira representação deste
auto; 6 os cristãos europeus andam em contínua guerra; 7 temor ao castigo de Deus; 8 muitas; 9 as «contas» referidas nestes versos são as
contas a dar a Deus à hora da morte – pelos muitos pecados cometidos; 10 as virtudes que indiquei antes; 11 com a mesma vontade com que
enviaste o Messias à Terra; o Tempo dirige-se a Deus, que enviou o seu filho Jesus, o Messias, para salvação do género humano; 12 lembra
ao teu anjo; 13 que me proteja; 14 diabo; 15 próprios; 16 os aconselham, aos «mais sabedores»

30
Entra um Serafim17 enviado por Deos a petição do Tempo, Entra um Diabo com ua ~ tendinha diante de si,
e diz: como bofolinheiro24, e diz:

- Ser. À feira, à feira, igrejas, mosteiros, 55 Dia. Eu bem me posso gavar25,


- pastores das almas, Papas adormidos! - e cada vez que quiser,
- Comprai aqui panos, mudai os vestidos, - que na feira onde eu entrar
40 buscai as çamarras dos outros primeiros, - sempre tenho que vender ,
- os antecessores18. - e acho quem me comprar26.
- Feirai o carão que trazeis dourado19, 60 E mais vendo muito bem,
- ó presidentes do Crucificado20! - porque sei bem o que entendo;
- Lembrai-vos da vida dos santos pastores - e de tudo quanto vendo
45 do tempo passado. - não pago sisa27 a ninguém
- por tratos28 que ande fazendo.
- Ó Príncipes altos, império facundo21,
- guardai-vos22 da ira do Senhor dos Céos! 65 Quero-me fazer à vela29
- Comprai grande soma23 do temor de Deos - nesta santa feira nova.
- na feira da Virgem, Senhora do mundo, - Verei os que vêm a ela,
50 exemplo da paz, - e mais verei quem m’estrova30
- pastora dos anjos, luz das estrelas. - de ser eu o maior dela.
- À feira da Virgem, donas e donzelas, 70 Tem. És tu também mercador,
- porque este mercador sabei que aqui traz - que a tal feira t’ofereces?
- as cousas mais belas! - Dia. Eu não sei se me conheces?…
- Tem. Falando com salvanor31,
- tu diabo me pareces.

Vocabulário
17
o anjo pedido («a petição») pelo Tempo a Deus; 18 neste verso e nos quatro anteriores, Gil Vicente faz uma forte crítica à igreja, num tempo em
que os cristãos se preparavam para a divisão entre católicos e protestantes, o tempo da Reforma; o Serafim invetiva os «papas adormidos», isto
é, o papado que não cumpria o seu dever, e pede que se vistam como os «antecessores», modo metafórico de lhes dizer que deveriam recuperar
as virtudes dos primeiros cristãos; 19 mudai a vida de luxo em que viveis; 20 os Papas; o «crucificado» é Jesus Cristo, fundador do cristianismo;
21
poderoso; 22 temei; 23 quantidade; 24 vendedor ambulante; 25 gabar; 26 quem me queira comprar do que vendo; 27 imposto; 28 negócios; 29 quero-me
apresentar; 30 impede; 31 falando com tua licença, isto é, permite-me que te diga

31
Gil Vicente, Auto da Feira

75 Dia. Falando com salvos rabos32, - Dia. I há de homens ruins


- inda que me tens por vil, - mais mil vezes que não bôs,
- acharás homens cem mil - como vós mui bem sentis42.
- honrados, que são diabos,
- que eu não tenho nem ceitil33. 105 E estes43 hão-de comprar
80 E bem honrados, te digo, - disto que trago a vender,
- e homens de muita renda34, - que são artes de enganar,
- que tem dívedo35 comigo. - e cousas pera esquecer
- Pois36 não me tolhas37 a venda, - o que deviam lembrar.
- que não hei nada contigo38. 110 Que44 o sages mercador45
- há-de levar ao mercado
Tempo (ao Serafim): - o que lhe compram milhor;
- porque a ruim comprador
85 Tem. Senhor, em toda maneira
- levar-lhe ruim borcado46.
- acudi a este ladrão,
- que há-de danar39 a feira.
115 E mais47 as boas pessoas
- Dia. Ladrão? Pois haj’eu perdão,
- são todas pobres a eito;
- se vos meter em canseira!
- e eu por este respeito
90 Olhai cá, anjo de bem:
- nunca trato em cousas boas,
- eu, como cousa perdida,
- porque não trazem proveito48.
- nunca me tolhe ninguém
120 Toda a glória de viver
- que não ganhe minha vida,
- das gentes é ter dinheiro,
- como quem vida não tem40.
- e quem muito quiser ter
- cumpre-lhe49 de ser primeiro
95 Vendo dessa marmelada,
- o mais ruim que puder.
- e às vezes grãos torrados.
- Isto não releva nada;
125 E pois são desta maneira
- e em todolos mercados
- os contratos50 dos mortais,
- entra a minha quintalada41.
- não me lanceis51 vós da feira
100 Ser. Muito bem sabemos nós
- onde eu hei-de vender mais
- que vendes tu cousas vis…
- que todos, à derradeira52.

Vocabulário
32
a expressão «salvos rabos» está relacionada com «salvanor»: é uma
espécie de trocadilho; 33 moeda de fraco valor; 34 muito dinheiro;
35
têm parentesco comigo; 36 portanto; 37 impeças; 38 não tenho nada a
ver contigo; 39 condenar; 40 o sentido destes versos e dos anteriores é o
seguinte: sou um diabo, portanto não tenho vida, sou «cousa perdida»;
ninguém me impede nunca de ganhar a minha vida, como ninguém impede
quem é muito pobre de o fazer, quem não tem vida por ser assim pobre
[Lindley Cintra]; 41 mercadoria; 42 os homens maus são muito mais do que
os bons, como bem sabeis; 43 os homens maus; 44 porque; 45 o mercador
habilidoso; 46 enquanto mercador esperto, o Diabo, sabendo que os maus
são muito mais do que os bons, leva como mercadoria o que sabe que
venderá, dada a qualidade da clientela: patifarias, etc. – «ruim borcado»;
47
além disso; 48 como os bons são pobres, não têm dinheiro para gastar,
o Diabo nada de bom leva para a feira; 49 deve: uma vez que a grande
«glória» da vida é ter dinheiro e que os maus o têm, quem quiser ser rico
tem de ser mau; 50 a mentalidade; 51 expulseis; 52 quando as contas finais
da feira se fizerem, ver-se-á que foi o Diabo quem mais vendeu

32
130
Ser. Venderás muito perigo, 155 E se o que quer bispar63
-
que tens nas trevas escuras53. - há mister hipocresia64,
-
Dia. Eu vendo prefumaduras54, - e com ela quer caçar,
-
que, pondo-as no embigo, - tendo eu tanta em perfia65,
- se salvam as criaturas. - porque lh’a hei-de negar?
160 E se ~ua doce freira
135 Às vezes vendo virotes55, - vem à feira
- e trago d’Andaluzia - por66 comprar um inguento67,
- naipes56 com que os sacerdotes - com que voe do convento68,
- arreneguem cada dia, - senhor, inda que eu não queira
- e joguem até os pelotes. 165 lhe hei-de dar aviamento69.
140 Ser. Não venderás tu aqui isso,
- que esta feira é dos céos: - Mer. Alto, Tempo! aparelhar70,
- vai lá vender ao abisso57, - porque Roma vem à feira.
- logo58, da parte59 de Deos. - Dia. Quero-me eu concertar71,
- Dia. Senhor, apelo60 eu disso! - porque lhe sei a maneira
170 de seu vender e comprar…
145 Se eu fosse tão mao rapaz,
- que fizesse força61 a alguém,
- era isso muito bem;
- mas cada um veja o que faz,
- porque eu não forço ninguém.
150 Se me vem comprar qualquer Vocabulário
53
referências aos pecados e ao Inferno; 54 perfumes; 55 tipo de flecha
- clérigo, ou leigo, ou frade curta – por associação, a guerra; 56 cartas de jogar; nestes versos, o Diabo
- falsas manhas de viver, refere o vício do jogo por parte de sacerdotes que chegam ao ponto de
perder até a roupa («pelotes») no jogo e de blasfemarem contra Deus
- muito por sua vontade,
enquanto jogam («arreneguem»); 57 abismo, o Inferno; 58 já,
- senhor, que lhe hei-de fazer62? imediatamente; 59 por ordem de Deus; 60 o Diabo apela da decisão do
Serafim, isto é, protesta contra ela; 61 que obrigasse; 62 neste verso e
nos anteriores são apresentadas várias críticas a clientes do Diabo –
eclesiásticos e leigos; 63 ser bispo; 64 necessita de ser hipócrita;
65
em concorrência com ele: tanto tem hipocrisia o Diabo como que que
quer chegar a bispo; 66 para; 67 unguento, espécie de remédio – aqui
associado a bruxaria; 68 para escapar ao convento; 69 hei de satisfazê-la;
70
Mercúrio diz ao tempo para se preparar pois Roma vem à feira;
«aparelhar» tem valor imperativo – «Preparai-vos» [Lindley Cintra];
71
preparar; o Diabo diz que está habituado a negociar com Roma: crítica
ao Papado

Educação literária

1. O Tempo começa por anunciar determinado tipo de mercadoria na sua tenda.


1.1 Identifica a primeira mercadoria que o Tempo anuncia ter na sua tenda de feirante.
1.2 Apresenta uma justificação plausível, tendo em conta o sentido geral do auto, para o facto de o Tempo procla-
mar que na sua tenda essa mercadoria não pode ser comprada, mas somente trocada.

2. Atenta na referência à «Cristandade» presente no v. 17.


2.1 Explicita-a, tendo em consideração o ambiente de controvérsia religiosa presente na Europa da época.

33
Gil Vicente, Auto da Feira

3. Atenta nos vv. 28-36.


3.1 Indica a quem se dirige neles o Tempo.
3.2 Explicita o seu pedido.
3.3 Justifica-o.

4. O Serafim entra em cena e convoca para a feira determinadas pessoas.


4.1 Identifica-as.
4.2 Explica por que motivo é que o Serafim as chama.

5. Atenta na entrada do Diabo – vv. 55-64.


5.1 Explica por que razão ele entra em cena autoelogiando-se.

6. Tem em atenção as palavras do Diabo nos vv. 120-121: «Toda a glória de viver / das gentes é ter
dinheiro,».
6.1 Apresenta uma opinião pessoal sobre a atualidade destas palavras, justificando.

7. Seleciona a opção correta. O Serafim, para se referir aos perigos do Diabo, usa, no v. 131, «que tens
nas trevas escuras.»,
a. uma personificação.
b. um pleonasmo.
c. uma hipérbole.
d. uma anáfora.
7.1 Justifica, explicitando a sua expressividade literária.

8. Identifica, justificando, os alvos de crítica do Diabo apresentados entre os vv. 135-165.

Nesta secção do auto verificaste que as personagens são o Tempo, o Serafim e o Diabo.
As duas últimas representam, respetivamente, o Bem e o Mal que sempre – no Tempo – coexis-
tiram e entre si lutaram – na natureza humana. Estas não são personagens que correspondam
a pessoas ou a classes sociais, mas sim metáforas do mundo, personagens alegóricas. O seu
conjunto forma uma alegoria, uma representação simbólica do mundo – na eterna luta entre o
Bem e o Mal. Deste modo, o Auto da Feira revela-se como um espetáculo no qual a representa-
ção alegórica assume especial significado.

34
Entra Roma, cantando: - E pois agora à Verdade
- Rom. Sobre mi armavam guerra1;
- chamam Maria Peçonha,
- ver quero eu quem a mi leva2.
- e parvoíce à vergonha,
- Três amigos que eu havia3,
- e aviso à ruindade23,
- sobre mi armam prefia4;
45 peitai24 a quem vo-la ponha,
5 ver quero eu quem a mi leva.
- a ruindade, digo eu.
- E aconselho-vos mui bem,
Fala
- porque quem bondade tem
- nunca o mundo será seu,
- Vejamos se nesta feira,
50 e mil canseiras lhe vêm.
- que Mercúrio aqui faz,
- acharei a vender paz,
- Vender-vos-ei nesta feira
- que me livre da canseira
- mentiras vinta três mil,
10 em que a fortuna me traz.
- todas de nova maneira,
- Se os meus5 me desbaratam6,
- cada ~ua tão sutil25,
- o meu socorro onde está?
55 que não vivais em canseira:
- Se os Cristãos mesmos7 me matam,
- mentiras pera senhores,
- a vida quem m’a dará,
- mentiras pera senhoras,
15 que todos me desacatam8?
- mentiras pera os amores,
- mentiras que a todas horas
- Pois s’eu aqui não achar
60 vos naçam delas favores.
- a paz firme e de verdade
- na santa feira a comprar,
- E como formos avindos26
- cant’a mi dá-me a vontade
- nos preços disto que digo,
20 que mourisco hei-de falar9.
- vender-vos-ei como amigo
- Dia. Senhora, se vos prouver,
- muitos enganos infindos27,
- eu vos darei bom recado10…
65 que aqui trago comigo.
- Rom. Não pareces tu azado11
- pera trazer a vender
25 o que eu trago no cuidado.
Vocabulário
1
lutavam por minha causa; 2 quero ver quem vence; 3 provavelmente os «três
- Dia. Não julgueis vós pola cor12, amigos» eram a França, os estados italianos e Carlos V, que se guerrearam
- porque em al13 vai14 o engano; entre si em lutas que incluíram o saque de Roma; 4 lutam por minha causa;
5
os cristãos: os «três amigos» eram todos cristãos; 6 destroem;
- ca15 dizem que sob mao pano 7
os próprios cristãos; 8 tratam mal, faltam-me ao respeito; 9 Roma ameaça
- está o bom bebedor16: passar a «falar» «mourisco» caso não consiga encontrar à venda a paz
30 nem vós digais mal do ano. na feira, isto é, Roma como que ameaça mudar de religião, de tal modo é
maltratada pelos cristãos, podendo até associar-se aos muçulmanos;
- 10
conselho; 11 apropriado; 12 o Diabo devia estar vestido de cor vermelha, a cor
Rom. Eu venho à feira dereita17 a ele associada; 13 nisso; 14 está; 15 porque; 16 equivalente ao ditado popular
«o hábito não faz o monge»: o Diabo quer dizer que, apesar de estar vestido
- comprar Paz, Verdade e Fé. de vermelho, isso nada de mau significa; 17 diretamente; 18 não serve para
- Dia. A verdade pera quê? nada – a verdade; 19 incomoda – a verdade; 20 bons motivos; 21 para aquilo de
que necessitais; 22 cuidados, preocupações; o que o Diabo está a dizer é que
- Cousa que não aproveita18, em tempos de mentira não vale a pena comprar a verdade; 23 nestes tempos,
35 e avorrece19, pera que é? chama-se à «verdade» «peçonha», isto é, veneno; chama-se à «vergonha»
«parvoíce», chama-se à ruindade «aviso», isto é, esperteza; 24 pagai; 25 subtil;
- Não trazeis bôs fundamentos20 26
logo que cheguemos a acordo nos preços; 27 infinitos
- pera o que haveis mister21;
- e a segundo são os tempos,
- assi hão-de ser os tentos22,
40 pera saberdes viver.
35
Gil Vicente, Auto da Feira

- Rom. Tudo isso tu vendias, - Ser. Sinal é de boa feira


- e tudo isso feirei28, - virem a ela as donas tais33;
- tanto que inda venderei, - e pois vós sois a primeira,
- e outras sujas mercancias, - queremos ver que feirais
70 que por meu mal te comprei29. 95 segundo vossa maneira.

- Porque a troco do amor - Ca, se vós a paz quereis,


- de Deos, te comprei mentira, - senhora, sereis servida,
- e a troco do temor - e logo a levareis
- que tinha da sua ira, - a troco de santa vida.
75 me deste o seu desamor. 100 Mas não sei se a trazeis…
- E a troco da fama minha - Porque, Senhora, eu me fundo34
- e santas prosperidades, - que quem tem guerra com Deos,
- me deste mil torpidades30. - não pode ter paz c’o mundo;
- E quantas virtudes tinha - porque tudo vem dos céos,
80 te troquei polas maldades. 105 daquele poder profundo.

- E pois já sei o teu jeito, - Rom. A troco das estações


- quero ir ver que vai cá31. - não fareis algum partido,
- Dia. As cousas que vendem lá - e a troco de perdões,
- são de bem pouco proveito - que é tesouro concedido
85 a quem quer que as comprará… 110 pera quaisquer remissões35?
- Oh! vendei-me a paz dos céos,
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz: - pois tenho o poder36 na terra!
- Ser. Senhora, a quem Deos dá guerra,
- Rom. Tão honrados mercadores - grande guerra faz a Deos,
- não podem leixar32 de ter 115 que é certo que Deos não erra37.
- cousas de grandes primores;
- e quanto eu houver mister - Vede vós que Lhe fazeis,
90 deveis vós de ter, senhores. - vede como O estimais,
- vede bem se O temeis…
- Atentai com quem lutais,
Vocabulário 120 que temo que caireis38.
28
comprei; 29 Roma admite ter comprado tantas mentiras, enganos, etc.,
«sujas mercancias», ao Diabo, no passado, que até tem para vender;
- Rom. Assi que a paz não se dá
30
maldades, crimes; 31 o que mais se vende na feira; 32 deixar; - a troco de jubileus39?
33
senhoras tais como Roma; 34 baseio-me no facto de; 35 este verso e os
quatro anteriores revelam uma situação muito criticada na época e que foi
- Mer. Ó Roma, sempre vi lá
um dos motivos que conduziu à Reforma protestante: quem podia pagava, - que matas pecados cá,
remia os seus pecados com dinheiro e assim era absolvido, tendo, para 125 e leixas viver os teus40.
isso, de visitar igrejas («estações») e de obter indulgências («perdões»);
36
neste caso, o poder de perdoar os pecados recebendo dinheiro – de
quem podia pagar…; 37 o Serafim lembra a Roma que Deus não erra: por - Tu não te corras41 de mi:
isso, se Deus lhe levou a guerra, é porque Roma ofendeu a Deus, lhe levou
a guerra da ofensa, por exemplo, com as remissões de pecados pagas em - mas com teu poder facundo42
dinheiro; 38 porque temo que sereis vencida – por Deus; 39 Roma começa - assolves a todo o mundo43,
a perceber («assim» = portanto) que se quer a paz, dada por Deus, não
pode continuar com práticas como os «jubileus», momentos em que se
- e não te lembras de ti,
perdoavam os pecados a troco de generosas esmolas; 130 nem vês que te vás ao fundo.
40
Mercúrio ataca Roma sem respeito, tratando-a por tu, acusando-a de
matar pecados, isto é, de perdoar os pecados dos outros pecando ela
- Rom. Ó Mercúrio, valei-me ora,
mesma; 41 não te afastes; 42 enorme; 43 referência às absolvições dos - que vejo maus aparelhos44!
pecados por dinheiro, o que, para Mercúrio, é um pecado – conferir versos - Mer. Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora
seguintes; 44 maus presságios
- o cofre dos meus conselhos:
135 e podes-te ir muito embora.
36
- Um espelho i acharás, - Não culpes aos reis do mundo,
- que foi da Virgem sagrada. - que tudo te vem de cima, 45
Mercúrio aconselha Roma,
- Co’ele te toucarás, - polo que fazes cá em fundo: a Igreja, a ter uma vida santa como
a de Nossa Senhora; Roma deve
- porque vives mal toucada, - que, ofendendo a causa prima, ver-se ao espelho como Nossa
140 e não sintes como estás45: 150 se resulta o mal segundo47. Senhora se via; 46 o modo de viver;
47
Mercúrio adverte Roma no
- e acharás a maneira - E também o digo a vós, sentido de não culpar outros («aos
- como emendes a vida. - e a qualquer meu amigo, reis do mundo») pelo seu estado:
que não quer guerra consigo: se quer a paz, deve começar por
- E não digas mal da feira, -
deixar de ofender Deus («a causa
- porque tu serás perdida, - tenha sempre paz com Deos, prima» – «prima» = primeira);
48
145 se não mudas a carreira46. 155 e não temerá perigo. o Diabo, baseando-se num
ditado popular («exempro velho»),
- Dia. Prepósito, Frei Sueiro, pede a Roma que não atenda
- diz lá o exempro velho: aos conselhos de Mercúrio e lhe
compre a ele mercadoria.
- «dá-me tu a mi dinheiro,
- e dá ao demo o conselho48».

Educação literária

1. Roma é uma personagem alegórica.


1.1 Explica porquê.

2. Explicita, justificando, a crítica que Roma faz entre os vv. 1-20.

3. Atenta na série de perguntas ou interrogações feita por Roma entre os vv. 11-16.
3.1 Escolhe a opção correta. Com estas interrogações, Roma, refletindo sobre a sua relação com a cristandade,
a. espera efetivamente que lhe seja dada uma resposta.
b. interroga sabendo já a resposta, isto é, interroga para acentuar a má relação que tem com ela.

Acabas de identificar um recurso expressivo designado por interrogação retórica. Este tipo de inter-
rogação formula-se para causar um efeito retórico, isto é, um efeito persuasivo.

4. O Diabo propõe-se vender a Roma determinado tipo de mercadoria, nomeadamente a que apresenta entre os vv. 56-
-60.
4.1 Identifica o recurso expressivo que usa para o fazer.
4.2 Explica a sua expressividade literária.

5. Roma faz uma autocrítica entre os vv. 66-80.


5.1 Justifica esta afirmação recorrendo a elementos textuais pertinentes.

6. Explicita as advertências que o Serafim faz a Roma.

7. Explica que tipo de relação se estabelece entre Roma e Mercúrio a partir do v. 131, justificando.

8. A relação entre Roma, o Diabo e o Serafim configura uma representação alegórica.


8.1 Explica porquê.

37
Gil Vicente, Auto da Feira

Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per - Den. Tens boa mulher de teu!
nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lourenço, e diz: - Não sei que tu hás, amigo…
- Ama. S’ela casara contigo,
- Ama. Compadre, vás tu à feira? 30 renegaras12 tu com’eu,
- Den. À feira, compadre. - e dixeras o que eu digo.
Ama. Assi, - Den. Pois, compadre, cant’à minha,
- ora vamos eu e ti - é tão mole e desatada13,
- ò longo desta ribeira. - que nunca dá peneirada14,
5 Den. Bofá1, vamos. 35 que não derrame a farinha.
- Ama. Folgo bem2
de3 te vir aqui achar4! - E não põe cousa a guardar,
- Den. Vás tu lá buscar alguém, - que a tope15 quando a cata16;
- ou esperas de comprar? - e por mais que homem se mata,
- de birra não quer falar.
- Ama. Isso te quero contar, 40 Trás d’~ua pulga andará
10 e iremos patorneando5, - três dias, e oito, e dez,
- e er6 também aguardando - sem lhe lembrar o que fez,
- polas moças do lugar. - nem tão-pouco o que fará,
- Compadre, enha7 mulher
- é muito destemperada8, - Pera que t’hei de falar?
15 e agora, se Deos quiser, 45 Quando ontem cheguei do mato17
- faço conta de a vender, - pôs ~ua enguia a assar,
- e dá-la-ei por quase nada. - e crua a leixou levar,
- por não dizer sape18 a um gato.
- Qu’eu quando casei com ela - Quant’a mansa, mansa é ela:
- diziam-me: – étega9 é; 50 dei-me logo conta disso!
20 e eu cuidei pola abofé10 - Ama. Juro-t’eu que mais val isso
- que mais cedo morresse ela, - cinquenta vezes qu’ela.
- e ela anda inda em pé.
- E porque era étega assim
- foi o que m’a mim danou: 1
pois sim; 2 estou contente; 3 por; 4 encontrar; 5 falando; 6 além disso; 7 minha;
8
25 avonda11 qu’ela engordou zanga-se facilmente, desbocada; 9 tuberculosa; 10 em boa fé; 11 tanto; 12 a criticaras,
lamentar-te-ias; 13 preguiçosa, desajeitada; 14 movimento para peneirar o grão moído;
- e fez-me étego a mim. 15
encontre; 16 procura; 17 do monte; 18 interjeição para enxotar gatos
38
- A minha te digo eu - Outro bem terás com ela:
- que se a visses assanhada19… 95 quando vieres da arada37,
55 parece demoninhada20… - comerás sardinha assada,
- ante S. Bertolameu21! - porqu’ela jenta a panela38.
- Den. Já siquer terá esprito22… - Então geme, pardeus, si,
- Mas renega da mulher - diz que lhe dói a moleira39.
- que ò tempo do mester 100 Den. Eu faria por maneira
60 não é cabra nem cabrito. - que esperasse ela por mi.

- Ama. A minha tinh’eu em guarda - Ama. Que lhe havias de fazer?


- pera bem de minha prol, - Den. Amâncio Vaz, eu o sei bem…
- cuidando que era ourinol, - Ama. Denis Lourenço, ei-las cá vêm.
- e tornou-se-me bombarda23. 105 Vamo-nos nós esconder,
65 Folga tu que ess’outra tenhas, - vejamos que vêm catar40,
- porque a minha é tal perigo, - qu’elas ambas vêm à feira.
- que por nada que lhe digo24 - Mete-te nessa silveira,
- logo me salta nas grenhas25. - qu’eu daqui hei-de espreitar.

- Então tanto punho seco Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a
70 me chimpa nestes focinhos26! mansa, e vem dizendo a brava:
- Eu chamo pelos vezinhos,
- e ela nego dar-me em xeco27. 110 Bra. Pois casei má hora, e nela,
- Den. Isso é de coraçuda28! - e com tal marido, prima41…
- Não cures29 de a vender: - Comprarei cá ua~ gamela,
75 que se alguém te mal fizer - par’ò ter debaixo dela,
- já sequer tens quem te acuda. - e um grão penedo em cima.
115 Porque vai-se-me às figueiras,
- Mas a minha é tão cortês30 - e come verde e maduro;
- que se viesse ora à mão - e quantas uvas penduro
- que m’espancasse um rascão31, - jeita42 nas gorgomeleiras43:
80 não diria: – «Mal fazês.32» - parece negro monturo44.
- Mas antes s’assentaria33
- a olhar como eu bradava34.
- Todavia a mulher brava
- é, compadre, a que eu queria.

85 Ama. Pardeos! Tanto me farás,


- que feire35 a minha contêgo…
19
- Den. Se queres feirar comêgo, muito zangada; 20 que tem demónio; 21 São Bartolomeu – santo que
se festeja a 24 de agosto, dia em que, na crença popular, anda o diabo
- vejamos que me darás. à solta; 22 se calhar tem o diabo no corpo; 23 pensei que era mansa
- Ama. Mas antes m’hás-de tornar36, mas é brava; 24 qualquer coisita que lhe diga; 25 bate-me; 26 dá-me
tantos murros; 27 e ela não para de me bater; 28 corajosa, 29 trates;
90 pois te dou mulher tão forte, 30
sossegada, mansa; 31 patife; 32 fazeis mal; 33 ficaria quieta;
- que te castigue de sorte 34
gritava; 35 troque; 36 dar tornas, uma compensação; 37 do trabalho
no campo; 38 ela come a panela toda; 39 cabeça; 40 vejamos o que elas
- que não ouses de falar,
vêm buscar («catar») à feira; 41 forma de tratamento carinhosa,
- nem no mato, nem na corte. 42
deita, engole; 43 goelas; 44 monte de lixo

39
Gil Vicente, Auto da Feira

120 Vai-se-me às ameixieiras, - Den. Compadre, nô mais sofrer52!


- antes que sejam maduras. - Sai de lá desse silvado.
- Ele quebra as cereijeiras, - Ama. Pera eu ser arrepelado53
- ele vendima as parreiras, 160 não havi’eu mais mester54!
- e não sei que faz das uvas.
125 Ele não vai à lavrada, - Den. E não n’hás tu de vender55?
- ele todo dia come, - Ama. Tu dizes que qués56 feirar…
- ele toda a noite dorme, - Den. Não qu’ela se me tomar57,
- ele não faz nunca nada, - leixar-m’-á58 quando quiser!
e sempre me diz que há fome! 165 Mas dêmo-las à má estrea59;
- e voto60 que nos tornemos.
130 Jesu! Jesu! Posso-te dizer, - E er61 depois tornaremos
- e jurar e tresjurar, - com as cachopas d’aldea
- e provar e reprovar, - Entonces concertaremos.
- e andar e revolver,
- que é milhor pera beber, 170 Ama. Isso me parece a mi
135 que não pera maridar45. - muito milhor que eu ir lá.
- O demo que o fez marido! - Oh que couces que me dá,
- Que assi seco como é - quando me colhe sob si!
- beberá a torre da Sé: - Den. Cant’àquela si, dará62…
- então arma um arruído46
140 assi debaixo do pé!… [Diabo para as mulheres]

- Mar. Pois bom homem parece ele. 175 Dia. Mulheres, vós que quereis?
- Den. Aquela é a minha froxa47. - Nesta feira que buscais?
- Mar. Deu-t’ele a fraldilha roxa? - Mar. Queremo-la ver, nô mais,
- Bra. Milhor lh’esfole eu a pele, - pera ver em que tratais63,
145 que homem há i da puxa48! - e as cousas que vendeis.
- Ò diabo que o eu dou,
- que o leve em fatiota, 180 Tendes vós aqui anéis?
- e o ladrão que mo gabou! - Dia. Quejandos64? De que feição?
- E o frade que me casou - Mar. D’uns que fazem de latão.
150 inda o veja na picota49! - Dia. Pera as mãos, ou pera os péis?
- Mar. Não65… Jesu! Nome de Jesu!
- E rogo à Virgem da Estrela, 185 Deus e homem verdadeiro!
- e à santa Gerjalém50,
- e òs choros da Madanela, Foge o diabo66, e Marta diz:
- e à asninha51 de Belém,
155 que o veja eu ir à vela - Mar. Nunca eu vi bofalinheiro
- pera donde nunca vem. - tão prestes tomar o mu67!
Vocabulário - Branc’Anes, mana, crê tu
45
casar, fazer vida de marido; 46 quando bebe em demasia faz muito - que, como Jesu é Jesu,
barulho; 47 mansa; 48 forma eufemística para prostituta; 49 prisão (por
associação); 50 Jerusalém; 51 burrinha do presépio; 52 não sofras mais;
190 era este o diabo inteiro!
53
batido, agredido; 54 era só o que me faltava; 55 não a queres vender - Bra. Não é ele pau de boa lenha,
(entenda-se: se a quer vender, tem de sair de onde está escondido); - nem lenha de bom madeiro…
56
queres; 57 se ficar comigo; 58 deixar-me-á; 59 provavelmente:
desejemos-lhes infelicidades; 60 proponho; 61 outra vez; 62 quanto aquela
dará com certeza; 63 negociais; 64 de que tipo; 65 para os pés não, nem
pensar; Marta responde deste modo à pergunta trocista do Diabo; 66 pois
ouviu o nome de Jesus; 67 tão depressa ir embora; o «mu» é a cavalgadura
do negociante
40
- Mar. Bofá, nunqu’ele cá venha! - Bra. ~ pucarinha
Eu queria ua
- Bra. Viagem de João Moleiro, - pequenina pera mel.
195 que foi pola cal da azenha! - Ser. Esta feira é chamada
- Mar. Pasmada estou eu de Deos 235 das Virtudes em seus tratos79.
- fazer o demo merchante ! 68
- Mar. Das virtudes? E há ’qui patos?
- Mana, daqui por diante - Bra. Quereis feirar a cevada
- não caminhemos nós sós. - quatro pares de sapatos80?
- Ser. Oh piadoso Deos eterno!
200 Bra. S’eu soubera quem ele era, 240 Não comprareis pera os céos
- fizera-lhe bom partido69: - um pouco d’amor de Deos
- que me levara o marido, - que vos livre do inferno?
- e quanto tenho lhe dera, - Bra. Isso é falar per pincéos.81
- e o toucado e o vestido.
205 Inda que mais não levara - Ser. Esta feira não se fez
- desta feira, em extremo70 245 para as cousas que quereis.
- me alegrara e descansara, - Bra. Pois cant’a essas que vendeis,
- se o71 vira levar o demo, - daqui afirmo outra vez
- e que nunca mais tornara72. - que nunca as vendereis.
- Porque neste sigro82 em fundo
210 Porque, inda que era diabo, 250 todos somos negligentes:
- fizera serviço a Deos, - foi ar que deu polas gentes,
- e a mi mercê em cabo; - foi ar que deu polo mundo,
- e viera-me dos céos, - de que as almas são83 doentes.
- como vem a frol ao nabo73.
- E se o84 hão de correger85
Vão-se ao Tempo, e diz Marta: 255 quando for todo danado,
- muito cedo se há-de ver
215 Mar. Dizei, Senhores de bem, - que já ele não pode ser
- nesta tenda que vendeis? - mais torto nem aleijado.
- Ser. Esta tenda tudo tem. - Vamo-nos, Marta, à carreira,
- Vede vós o que quereis, 260 que as moças do lugar
- que tudo se fará bem. - virão cá fazer a feira.
- Que estes não sabem ganhar,
220 Conciência quereis comprar, - nem têm cousa que homem86 queira.
- de que vistais vossa alma?
- Mar. Tendes sombreiros de palma
- muito bons pera segar,
- e tapados pera a calma74?
225 Ser. Conciência digo eu,
- que vos leve ao paraíso. Vocabulário
- Bra. Não sabemos nós qu’é isso. 68
negociante; 69 boa proposta; 70 enfim; 71 ao marido; 72 regressasse;
73
- Dai-o ò decho75 por seu, far-me-ia um serviço tão natural – ao levar-me o marido – como é
natural que apareçam flores nas plantas; 74 Marta pergunta se há para
- que já não é tempo disso. venda chapéus de palma apropriados para proteger do calor («calma»
durante as ceifas («segar»); 75 diabo; 76 tipo de tecido; 77 escuro; 78 tipo
de lã; 79 negócios; 80 quereis trocar («feirar») por cevada quatro pares
230 Mar. Tendes vós aqui burel76, de sapatos; 81 isso é linguagem que não entendo; 82 neste mundo, neste
- do pardo77, de lã meirinha78? tempo, neste século; 83 estão; 84 ao mundo; 85 corrigir; 86 uma pessoa

41
Gil Vicente, Auto da Feira

- Mar. Eu não vejo aqui cantar,


265 nem gaita, nem tamboril87,
- e outros folgares88 mil,
- que nas feiras soem d’estar89.
- E mais90 feira de Natal,
- e mais de Nossa Senhora,
270 e estar todo Portugal91…
- Bra. S’eu soubera qu’ era tal,
- não estivera eu cá agora92.

Vocabulário
87
tipo de instrumento musical de percussão;
88
divertimentos; 89 costuma haver; 90 ainda por
cima; 91 sendo festa de Natal e estar aqui toda a
corte portuguesa – que assistia; 92 não teria vindo

Educação literária

1. Indica os vários defeitos que Amâncio aponta à sua mulher.

2. Comprova, através de um exemplo significativo, que as palavras de Amâncio provocavam o riso nos espetadores
com base num contraste de ordem física que ele refere.

3. A comparação entre as duas mulheres constrói-se, nas palavras dos respetivos maridos, através de uma antítese.
3.1 Justifica esta afirmação.

Atenta no v. 95 e na palavra nele destacada: «quando vieres da arada,». Este verso refere-se, como
sabes, ao regresso do trabalho no campo, onde Denis, lavrador, arava os campos, trabalhava com o arado
lavrando as terras.
Associamos regresso da «arada» a regresso do trabalho, «arada» a trabalho; Amâncio usa aqui um
recurso expressivo chamado metonímia, que consiste numa associação entre duas realidades – sem que
uma seja parte da outra.

4. Relê agora as palavras de Branca Anes, vv. 110-119.


4.1 Identifica duas metonímias que ocorrem no mesmo verso, justificando.
4.2 Identifica ainda, nas palavras posteriores de Branca, a metonímia através da qual ela acusa o marido de ser
preguiçoso, justificando.

5. Tem em atenção toda esta secção do texto que inclui os diálogos entre maridos e entre mulheres.
5.1 Explica de que modo ela configura a vida quotidiana.

6. Finalmente, as duas mulheres dirigem-se à tenda do Tempo.


6.1 Explicita, justificando, a relação de ambas com a religião cristã tendo em consideração a conversa que têm com
o Tempo e com o Serafim.

42
Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas
com cestos nas cabeças cobertos cantando, e como1 chegam, se
assentam por ordem a vender; e diz-lhe o

- Ser. Pois vindes vender à feira, - E há lá boas ladeiras,


- sabei que é feira dos céos; - como na serra d’Estrela?
- por tal vendei de maneira Ser. Si.
- que não ofendais a Deos, - Gil. E a Virgem que fazia ela?
5 roubando a gente estrangeira. - Ser. A Virgem olha as cordeiras,
- Tes. Responde-lhe, Leonarda, 40 e as cordeiras a ela.
- tu Justina, ou Juliana. - Gil. E os Santos de saúde
- Jul. Mas responda-lhe Giralda, - todos, a Deos louvores8?
- Tesaura, ou Merenciana. Ser. Si.
- Gil. E que léguas haverá
10 Mer. Responde-lhe, Teodora, - daqui à porta do Paraíso,
- porque creo que a ti crea2. 45 onde São Pedro está?
- Tes. Responda-lhe Dorotea,
- pois que3 mora - Nab. Lá vêm ò redor das vinhas
- junto c’o Juiz d’aldea4. - compradores a comprar,
15 Dor. Móneca responderá, - samica, ovos e galinhas.
- que falou já com senhor. - Dor. Não lh’hei-de vender as minhas,
- Mon. Responde-lhe tu, Nabor, 50 que as trago pera dar.
- contigo s’entenderá,
- ou Denisio, ou Gilberto, Vem dous compradores, um per nome Vicente, e ou-
20 qualquer de vós outros três. tro Mateus, e diz a Justina:
- e não vos embaraceis nem torveis5,
- porque é certo que - Mat. Vós rosa do amarelo,
- bem vos entendereis. - mana, tendes i queijadas9?
- Jus. Tenho vosso avô marmelo10,
[Gilberto para o Serafim] - Conhecei-lo?
55 Mat. Aqui estão, emborilhadas11!
- Gil. Estas cachopas não vêm - Jus. Estade, má ora, quêdo12,
25 à feira nego a folgar6, - pela vossa negra vida!
- e trazem de merendar - Mat. Menina, não hajais13 medo…
- nesses cestos que i têm. - Vós sois mais engrandecida14
60 que Branca de Figueiredo.
- Mas pois, quanto ao que entendo,
- sois, samica7, anjo de Deos,
30 quando partistes dos céos, Vocabulário
1
- que ficava Ele fazendo? quando; 2 dará atenção ao que responderás; 3 já que; 4 mora
próximo do juiz da aldeia – portanto terá experiência em saber
- Ser. Ficava vendo o seu gado. falar bem, pois ouve o juiz muitas vezes; 5 não vos atrapalheis;
- Gil. Santa Maria! Gado há lá? 6
a não ser divertir-se, somente a divertir-se; 7 talvez; 8 os santos
estão todos de saúde graças a Deus; 9 tipo de doce; 10 expressão
- Oh Jesu! como o terá
de desprezo para com Mateus; 11 embrulhadas; 12 quieto; Mateus
35 O Senhor gordo e guardado! deve ter tocado em Justina; 13 tenhais; 14 gorda

43
Gil Vicente, Auto da Feira

- Se trazeis ovos, meus olhos, - Vic. Senhora Móneca, trazeis


- não mos vendais a ninguém. 100 algum cabrito recente?
- Jus. Andar em burra e ter bem! - Mon. Não bofé, Senhor Vicente:
- Ouvide ora o rasca-piolhos - quisera ora trazer três,
65 azeite no micho, em que vem15! - de que vós foreis contente.
- Vic. Minha vida Leonarda, - Vic. Juro à santa cruz de palha
- traz caça pera vender? 105 que hei-de ver o que aqui está!
- Leo. Vossa vida negra e parda! - Mon. Não revolvais21 aramá,
- Não lhe abastará comer - que não trago nemigalha22!
70 da vaca com da mostarda16?
- Vic. Não me façais descortês,
- Vic. E a mesa de meu senhor - nem queirais ser tão garrida!
- irá sem ave de pena? 110 Mon. Pola vossa negra vida!
- Leo. Quem? E vós sois comprador? - Olhade como é cortês!
- Pois nem grande nem pequena - Oh! que lhe saia má saída!
75 não matou o caçador. - Mat. Giralda, eu achar-vos-ei
- Vic. Matais-me vós logo bem - dous pares de passarinhos?
- com dous olhinhos qu’eu digo… 115 Gir. Irei por eles aos ninhos,
- Leo. Mais vos mata a vós o trigo, - entonces23 os venderei:
- porque não vale a vintém, - comereis vós estorninhos?
80 e traz mau micho consigo.
- Mat. Respondeis como mulher
- Vic. Vós fazeis de mim rascão… - muito de sua vontade.
- Leo. Pàção17 vos fizestes vós; 120 Gir. Pois digo-vo-la verdade:
- porém bem vos vimos nós - pássaros hei-de vender?
- guardar bois no Alqueidão. - Olhai aquela piedade!
85 Mat. Que vindes vender à feira,
- Teodora, alma minha, - Vic. Senhora minha Juliana,
- minha alma, minha canseira? - peço-vos que me faleis
-
~ galinha?
Trazeis algua 125 discreta palenciana24,
- Teo. Som voss’alma galinheira? - e dizei-me que vendeis.
- Jul. Vendo favas de Viana.
90 Que má ora18 cá viestes - Vic. Tendes alguns laparinhos25?
- pera quem vos pôs no paço! Jul. Si, de porca.
- Mat. Senhora, eu que vos faço, - Vic. Nem coelhos26?
- que vos agastais19 tão prestes20? 130 Jul. Quereis comprar dous francelhos27,
- Dizei-me vós, Teodora, - pera caçardes ratinhos?
95 trazeis vós tal cousa e tal - Vic. Quero, polos Evangelhos!
- deste jeito, muit’embora?
- Mas lá dessoutro metal - Mat. Vós Tesaura, minha estrela,
- não falam à lavradora… - não viríeis cá em vão…

Vocabulário
15
Justina mostra, através de algumas expressões cujo sentido é hoje difícil de entender, o seu desagrado pelas tentativas de
aproximação de Mateus; insulta-o mesmo chamando-lhe «rasca-piolhos»; 16 o mesmo se passa com Leonarda perante os
avanços («Minha vida Leonarda») de Vicente; 17 frequentador do Paço; 18 em hora má; 19 aborreceis; 20 tão depressa;
21
mexais (no cesto); 22 nada; 23 então; 24 como palaciana educada, como dama do paço real; 25 crias do coelho;
26
de coelho não; 27 ave de rapina

44
135 Tes. Pois si, vossa estrela vos er’ela…
- como aquilo é de rascão!
- Mat. Mas como isso é de donzela!
- Porém vá já como vai,
- e casemo-nos, senhora.
140 Tes. Pois casai co’ele, casai…
- Casar má-ora, meu pai,
- casar má-ora!

- Mat. Porém trazeis algum pato?


- Tes. E quanto dareis por ele?
145 Hui! e ele revolve o fato28!
- Olho mau29 se meta nele!
- Mat. Não trazeis vós o qu’eu cato30.
- Vic. Merenciana deve ter
- neste cesto algum cabrito.
150 Mer. Não m’haveis de revolver31,
- senão pardeos que dê grito
- tamanho, que haveis de ver.

- Vic. Eu hei-de ver que trazeis.


- Mer. Se vós no cesto bulis32…
155 Vic. Senhora, que me fareis?
- Mer. Um «aque-delrei», ouvis?
- Não sejais vós descortês.

- Vic. Não quero senão amores,


- pois vosso, senhora, sô.
160 Mer. Amores de vosso avô,
Vocabulário
- o da ilha dos Açores… 28
remexe a roupa; 29 mau olhado;
- Andar, aramá vós só! 30
procuro; 31 de me mexer; 32 mexeis

45
Gil Vicente, Auto da Feira

- Mat. Vamo-nos daqui, Vicente.


Vic. Bofá vamos.
- Mat. Nunca vi tal feira.
165 Vic. Vamos comprar à ribeira,
- que anda lá a cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

- Ser. Vós outras quereis comprar


- das virtudes?
Todas Senhor não.
- Ser. Saibamos por que rezão.
170 Dor. Porque no nosso lugar
- não dão33 por virtudes pão.
- Nem casar não vejo eu
- por virtudes a ninguém… Alevantam-se todas, e ordenadas em
- Quem tiver muito de seu, folia cantaram a cantiga seguinte, com
175 e tão bons olhos com’eu, que se despediram.
- sem isso casará bem.
CANTIGA
- Ser. Pois porque viestes ora34 Primeiro coro
- cansar à feira de pé? - Blanca estais colorada,
- Teo. Porque nos dizem que é - Virgem sagrada.
180 feira de Nossa Senhora: - Em Belém vila do amor
- e vedes aqui porquê. 200 da rosa naceu a flor:
- E as graças que dizeis - Virgem sagrada.
- que tendes aqui na praça,
- se vós outros as vendeis, Segundo coro
185 a Virgem as dá de graça - Em Belém vila do amor
- aos bons, como sabeis. - naceo a rosa do rosal:
- Virgem sagrada.
- E porque a graça e alegria
- a madre da consolação35 Primeiro coro
- deu ao mundo neste dia, 205 Da rosa naceo a flor,
190 nós vimos com devação - pera nosso Salvador:
-
~ folia36.
a cantar-lhe ua - Virgem sagrada.
- E pois que já descansamos
- assi em boa maneira, Segundo coro
- moças, assi como estamos, - Naceo a rosa do rosal,
195 demos fim a esta feira, - Deus e homem natural:
- primeiro que37 nos partamos. 210 Virgem sagrada.

Vocabulário
33
trocam; 34 agora (porque vieram a pé à feira cansar-se?); 35 Nossa Senhora; 36 cantiga; (a fazer-lhe uma festa); 37 antes que

46
Educação literária

1. O conjunto de nove «moças dos montes, e três mancebos» que vem à feira pode ser considerado, pelos seus com-
portamentos, uma personagem coletiva.
1.1 Justifica esta afirmação.

2. Apresenta uma explicação plausível para o facto de ninguém querer responder às palavras do Serafim.

3. Tem em atenção a entrada em cena dos dois compradores Vicente e Mateus.


3.1 Explicita os motivos que permitem afirmar que as suas atitudes e palavras configuram comportamentos típicos
do quotidiano das feiras.

4. Explicita o tipo de religiosidade presente nas camadas populares representadas pelo variado conjunto de persona-
gens presente nesta secção final do auto. Na tua resposta, deves referir as perguntas que o Serafim faz a partir do
v. 167, o que lhe é respondido e a cantiga final.

47
Soluções
Educação literária Roma não corresponde a nenhuma personagem real, antes personifica,
ou simboliza, ou metaforiza – alegoricamente – a Cristandade em crise.
p. 29 2. Nestes versos, Roma critica, basicamente, os próprios cristãos, que
1. 1.1 Nestes versos, Mercúrio refere-se a quem acredita na astrolo- não se comportam como deveriam, digladiando-se entre si e provocan-
gia, os que pensam poder adivinhar o futuro a partir «dos céos», v. 17. do, por isso, sofrimento a Roma.
1.2 Ridiculariza-as através da apresentação de uma série de verda- 3. 3.1 b).
des evidentes pretensamente descobertas com a ajuda da astrologia, 4. 4.1 Trata-se da anáfora «mentiras», vv. 56-59; pode combinar-se
criando assim um forte efeito cómico. Por exemplo, saber que o «céo é ainda com a ocorrência de «mentiras», no v. 52. 4.2 Esta anáfora con-
redondo» e que «o sol» é «amarelo», vv. 38-39. tribui poderosamente para a crítica que recai sobre Roma: esta cidade,
2. 2.1 É uma pergunta cuja resposta (vv. 59-61) mostra a vacuidade alegoria do Papado, vive da e pela mentira.
da astrologia. Mais uma vez se reforça aqui a denúncia desta crença 5. 5.1 Roma admite ter sido compradora habitual das mercadorias dia-
através de um efeito cómico. bólicas, ao confessar, referindo-se a elas, «tudo isso feirei,», v. 67.
3. 3.1 É criticado o clero. 3.2 É criticado por não respeitar Deus (v. 84), 6. O Serafim adverte Roma no sentido de mudar de vida – vv. 113 e
por não levar uma vida santa (v. 85) e por viver na riqueza (v. 86). seguintes; ele diz a Roma que a sua vida não é exemplar, pois ofende a
Deus com o seu comportamento.
pp. 33-34
7. Roma passa a ser cliente de Mercúrio, que lhe vende várias merca-
1. 1.1 A primeira mercadoria que o Tempo apregoa são as «virtudes», v. 7. dorias que lhe permitirão mudar de vida; por outro lado, Roma pede-lhe
1.2 Ele não quer vender as «virtudes», mas sim trocá-las pelos seus auxílio para mudar, para se converter. Mercúrio aconselha-a a mudar de
opostos, que reinavam no mundo: a corrupção, o vício, os maus hábitos vida não culpando os outros pelo seu mal, mas verificando que a culpa
da Igreja, enfim, o quadro geral de comportamentos negativos daquele reside nela própria.
momento da história da Cristandade europeia. O que ele quer é uma 8. 8.1 Trata-se de um espetáculo alegórico no qual estas figuras são
transformação do mal para o bem, por isso pretende uma troca – quer alegorias respetivamente da corrupção reinante no Papado, do Mal e
uma mudança de comportamentos. do Bem; trata-se de uma alegoria da luta entre forças maléficas e be-
2. 2.1 Quando o Tempo refere a «Cristandade» designa-a por «toda néficas.
gastada / só em serviço da openião.», vv. 17-18. Ele está, com esta ex-
pressão, a referir-se às questões teológicas que abalavam os cristãos p. 42
europeus; eram fonte de muita divisão, de muitas opiniões diferentes 1. Amâncio acusa a mulher de ser «destemperada», isto é, desaforada,
– que desembocariam na Reforma protestante. ruim, de comer demasiado, sendo gorda.
3. 3.1 O Tempo dirige-se a Deus – «senhor Deos», v. 28. 3.2 Pede a 2. Trata-se de um cómico de situação, o contraste entre ele próprio,
Deus que lembre ao seu anjo da guarda para o proteger, isto é, para que que se diz tão magro que está tuberculoso, «étego», e a mulher, muito
o seu comércio de venda de virtudes corra bem. 3.3 Ele faz este pedido gorda.
pois teme nada vender, uma vez que os compradores só estão interes- 3. 3.1 A antítese é de natureza psicológica: a mulher de Amâncio é má,
sados nos produtos vendidos pelo Diabo – vv. 33-36. violenta, a mulher de Denis é pacífica, «mansa».
4. 4.1 O Serafim convoca para a feira elementos da Igreja institucional: 4. 4.1 No verso «e come verde e maduro;», v. 116, ocorrem duas me-
«igrejas», «mosteiros», padres e bispos («pastores de almas»), e até tonímias: através da referência à cor e ao estado, associamos, por con-
os próprios «papas». 4.2 O Serafim chama-os porque vivem uma vida tiguidade, ambas as palavras respetivamente a fruta verde e a fruta
nada consentânea com o exemplo dos primeiros cristãos, «os anteces- madura. 4.2 «Ele não vai à lavrada,», v. 125, este verso configura uma
sores», v. 41, que tinham levado uma vida de simplicidade, de honesti- metonímia do trabalho devido à palavra «lavrada».
dade e de virtude. 5. 5.1 A vida quotidiana está aqui representada na ida dos populares à
5. 5.1 O Diabo entra em cena vangloriando-se, gabando-se de vender feira, nos encontros que essa ida proporciona, nas conversas que ocor-
tudo o que quer: tem sempre quem se interesse pela sua mercadoria rem sobre a vida de cada um.
pecaminosa. 6. 6.1 As duas mulheres demonstraram grande ignorância e desinte-
6. 6.1 São palavras muito atuais num mundo como o nosso que dá mui- resse relativamente a questões religiosas; para elas o que conta é o
to valor ao dinheiro: valoriza-se quem é rico. E, em nome do dinheiro, clima de festa que a ida à romaria proporciona.
grassa a corrupção, como a imprensa nos mostra diariamente. (Outras
opiniões são possíveis.) p. 47
7. b). 7.1 Trata-se de um recurso expressivo que reforça a ideia da es- 1. 1.1 Este conjunto é, de facto, uma personagem coletiva, pois assume
curidão; como a cor preta está associada, na nossa cultura, ao subter- uma mesma preocupação geral: divertir-se na feira.
râneo, ao inferno, o recurso é expressivo pois aponta no sentido do mal 2. Ninguém responde ao Serafim pois ele apregoa mercadorias religio-
que emana do Demónio. sas e o que todos querem é divertir-se; não se interessam nem com-
8. O Diabo identifica alguns dos seus melhores fregueses: escanda- preendem esses assuntos de índole teológica.
losamente, são membros da Igreja – clérigos e frades; mas também 3. 3.1 Ambos estão interessados somente em divertir-se com as moças,
leigos – vv. 110 e seguintes; mais escandalosamente ainda, aponta can- o que era um dos motivos para frequentar as feiras, noutros tempos.
didatos a bispo como seu fregueses – vv. 155-165; e ainda freiras que 4. Apesar de o Serafim perguntar aos frequentadores de origem popu-
querem fugir do convento. lar da feira se querem comprar «virtudes», eles rejeitam tal possibilida-
de, afirmando – implicitamente – que não precisam de tal e comprazen-
p. 37
do-se na prática de uma religiosidade popular simples – vieram à feira
1. 1.1 Roma é uma personagem alegórica na medida em que, para o em louvor de Nossa Senhora. E é com cantigas populares em louvor da
espetador do auto, simboliza o Papado com todos os seus defeitos. Virgem que o auto termina.

48

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