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Ď O que é?
Ď Auto da Feira
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0.o Ano
António Vilas-Boas
Manuel Vieira
ISBN 978-989-23-3234-5
Índice
O que é?
A. EDUCAÇÃO LITERÁRIA 2
1. Poesia trovadoresca 2
Cantigas de amigo 2
Cantigas de amor 3
Cantigas de escárnio e maldizer 3
2. Fernão Lopes, Crónicas de D. João I 4
3. Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira 4
Caracterização de personagens 4
Relações entre as personagens 5
A representação do quotidiano 5
Linguagem, estilo, estrutura 6
4. Luís de Camões, Rimas 6
Contextualização histórico-literária 6
A poesia lírica de Camões: os temas 7
A poesia lírica de Camões: linguagem, estilo e estrutura 8
5. Luís de Camões, Os Lusíadas 8
B. GRAMÁTICA 10
FONÉTICA E FONOLOGIA
1. Processos fonológicos de inserção, supressão
e alteração 10
ETIMOLOGIA
2. Étimo 12
3. Palavras convergentes e divergentes 12
GEOGRAFIA DO PORTUGUÊS NO MUNDO
4. Português europeu e não europeu
e crioulos de base portuguesa 12
SINTAXE
5. Funções sintáticas 13
6. A frase complexa: coordenação e subordinação 18
LEXICOLOGIA
7. Arcaísmos e neologismos 20
8. Campo lexical e campo semântico 20
9. Processos irregulares de formação de palavras 21
Auto da Feira 22
O que é?
Educação literária
1. Poesia trovadoresca
1.1 Quando se desenvolveu esta poesia?
A partir do final do século XII e até meados do século XIV.
1.2 Onde se desenvolveu?
No noroeste da Península Ibérica, na região que corresponde atualmente ao Minho e à Galiza.
1.3 Que géneros de cantigas a constituem?
Cantigas de amigo, cantigas de amor, cantigas de escárnio e maldizer.
1.4 Quem eram os trovadores e os jograis?
Os trovadores eram os autores desta poesia, as cantigas, nos seus vários géneros. Normalmente
eram nobres; escreviam a letra, por vezes a música; as cantigas eram cantadas pelos jograis,
homens de condição social mais baixa.
Cantigas de amigo
2
A.
1.11 O que é o refrão?
É um verso ou um conjunto variável de versos que se repete no final de cada estrofe ou cobla.
1.12 Qual é a função do paralelismo?
Intensifica a expressão das emoções através das repetições.
Cantigas de amor
3
O que é?
Educação
literária (cont.)
2. Fernão Lopes, Crónica de D. João I
2.1 Qual é o contexto histórico dos acontecimentos narrados na Crónica de D. João I de Fernão
Lopes?
D. Fernando faleceu em 1383, sem outro sucessor que a sua filha, Dona Beatriz, casada com o
rei de Castela, D. João I. Este entendeu ter, por isso, direito ao trono português. Invadiu Portugal
e cercou Lisboa – 1384. A cidade era defendida por outro pretendente ao trono, D. João, Mestre
de Avis, filho bastardo do rei D. Pedro I.
2.2 De que modo se verifica nesta crónica a afirmação da consciência coletiva?
Através de grandes movimentos de multidões, principalmente na capital, antes do cerco, em
apoio ao Mestre de Avis; durante o cerco, através da solidariedade entre todos nos momentos
difíceis que atravessavam.
2.3 Quais são os dois grandes tipos de personagens nela presentes?
Personagens coletivas e personagens individuais.
2.4 O que são atores coletivos?
Atores coletivos são as multidões, principalmente, que agem como um corpo só, seja no mo-
vimento coletivo para levar ao poder o Mestre de Avis e protegê-lo de qualquer perigo seja na
união demonstrada pelo povo durante o cerco de Lisboa.
2.5 O que são atores individuais?
Atores individuais são personalidades bem caracterizadas por Fernão Lopes fisicamente, mas,
acima de tudo, psicologicamente: o manhoso Álvaro Pais, o por vezes excessivamente hesitante
D. João I, a ambiciosa Leonor Teles, entre outros.
4
A.
3.3 Como é caracterizado Pero Marques?
Pero Marques é um lavrador rico, mas ingénuo e rude, que se exprime numa linguagem antiqua-
da e que desconhece as mais elementares regras de convívio social – como prova o facto de não
se saber sentar numa cadeira. Mais tarde, já casado com Inês, a sua ingenuidade é visível quando
carrega a mulher às costas para a levar a um encontro galante com um Ermitão – um antigo
pretendente.
3.4 Como é caracterizado o Escudeiro?
Brás da Mata, de seu nome, é o típico escudeiro bem falante e de boas maneiras que vê em Inês
uma forma de escapar à pobreza em que vive, mas que dissimula . Uma vez casado, revela-se um
tirano no modo como trata Inês, fechando-a em casa, e, além disso, um covarde pois foi morto ao
fugir de uma batalha.
A representação do quotidiano
5
O que é?
Educação
literária (cont.)
3.10 De que processo se serve Gil Vicente para criticar costumes e comportamentos morais
e sociais?
Serve-se do cómico (de caráter, de situação e de linguagem) de forma a provocar o riso nos
espetadores, expondo assim ao ridículo esses comportamentos e costumes.
Por exemplo, a leitura da carta, em que se anuncia a morte do Escudeiro às mãos de um
mouro pastor ao fugir do campo de batalha «pera a vila», provoca o riso na plateia acen-
tuando ainda mais a fraqueza de caráter desta personagem – cómico de caráter. O cómico
de situação está presente, por exemplo, quando Pero Marques se senta ao contrário numa
cadeira, objeto que desconhece. Já o cómico de linguagem transparece na fala antiquada
e rústica de Pedro Marques, ou em situações como a que ocorre entre os versos 78 e 81
(da página 157 do Manual) quando Inês utiliza o verbo «sair» no seu sentido habitual, mas
que Pedro Marques entende com o significado de defecar (que também possuia) – o que
provoca o riso nos espetadores.
6
A.
4.4 O que é o Classicismo?
Movimento cultural centrado principalmente na imitação / recuperação da arte em geral e da lite-
ratura em particular das duas grandes civilizações da Antiguidade: a grega e a romana. A imitação
passou pela arquitetura, pela escultura, pela literatura… Literariamente, recuperam-se o gosto
pela perfeição formal e por composições como a tragédia, a epopeia, a elegia, a écloga, etc.
4.5 O que é o Humanismo?
Movimento cultural caracterizado pelo grande interesse pela Antiguidade greco-romana. Os hu-
manistas acreditavam fortemente no progresso humano com o Homem como seu motor; esta-
vam muito marcados por uma conceção ética da vida: censuravam os males da sociedade, os
maus governantes, por um lado; por outro, apresentavam um programa ético: aconselhavam os
poderosos no sentido de reformas.
7
O que é?
Educação
literária (cont.)
4.12 O que é o tema da mudança?
O tema da mudança é um tema clássico e filosófico por excelência: tudo muda continuamente,
tudo se renova ciclicamente, um ano sucede ao outro, uma primavera virá depois da atual; con-
tudo, esta mudança não atinge o Poeta – que caminha inexoravelmente para o fim.
8
A.
5.4 Qual é a estrutura interna de Os Lusíadas?
O poema divide-se em quatro partes, seguindo, de modo geral, os modelos das epopeias da An-
tiguidade Clássica e das renascentistas:
Proposição
Canto I, estâncias 1-3
O Poeta indica o assunto que vai cantar: «o peito ilustre Lusitano», estância 3, verso 5, isto é,
os heróis Portugueses, a nobreza guerreira e os homens ilustres que se notabilizaram pela
grandiosidade dos seus feitos.
Invocação
Canto I, estâncias 4-5
O Poeta pede inspiração a musas nacionais, as Tágides, ninfas do Tejo, para cantar os feitos
do «peito ilustre Lusitano».
Dedicatória
Canto I, estâncias 6-18
O Poeta dedica o poema a D. Sebastião, que reinava em Portugal no ano da sua publicação –
1572.
Narração
Canto I, estâncias 19 e seguintes. Inicia-se in medias res, no meio da viagem, quando a armada
se encontrava já no oceano Índico.
5.5 Quais são os quatro planos de Os Lusíadas?
O plano da viagem, o dos deuses, o da História de Portugal e o das reflexões ou considerações
do Poeta. Frequentemente estes planos são interdependentes: numa mesma estância, pode-se
encontrar mais do que um.
5.6 Em que consiste a «sublimidade do canto» em Os Lusíadas?
Camões pede às Tágides, na Invocação, um canto marcado pela sublimidade, isto é, um canto de
estilo grandioso, um canto sublime, pois os feitos dos Portugueses são também grandiosos.
5.7 O que são as «reflexões do Poeta»?
São reflexões que surgem principalmente nos finais dos cantos. Nelas, o Poeta reflete sobre
assuntos tão variados como a fragilidade da vida humana, o poder corruptor do dinheiro, a ga-
nância, o mau governo, a ignorância da nobreza, o seu desinteresse pela cultura em geral e pela
Poesia em particular, etc. Por vezes, estas reflexões apresentam vincado caráter humanista, pois
Camões censura, por um lado, e aconselha a mudança de atitudes, por outro.
5.8 Como se concretiza a mitificação do herói em Os Lusíadas?
O herói, Vasco da Gama, é mitificado pois supera, pelos seus feitos, a condição humana. Momento
fulcral dessa mitificação ocorre quando Tethys desvenda a Vasco da Gama a Máquina do Mundo,
fazendo-o assumir o conhecimento total. A mitificação ocorre também aquando da união dos
Portugueses com as Ninfas, na Ilha dos Amores: através desta união eles transcendem, simboli-
camente, a condição humana, aproximando-se dos deuses. A mitificação do herói está anunciada
logo no início do poema, na estância 3, quando Camões apresenta os Portugueses como tendo
superado a Antiguidade – os heróis gregos e romanos.
9
O que é?
Gramática
FONÉTICA E FONOLOGIA
10
B.
A redução vocálica consiste no enfraquecimento de uma
O que é a redução vocálica? unidade vocálica em posição átona.
Ex.: casa > casinha
1.4 Os processos fonológicos verificam-se apenas na evolução da língua ao longo do tempo (dia-
cronia) ou também se verificam na atualidade, na língua que falamos (sincronia)?
Verificam-se em ambas as situações: através do tempo, na evolução da língua, e na atualidade.
Ex.: Tanto encontramos uma metátese na evolução de CONTRARIU para contrairo (português anti-
go) como na variação social, na atualidade, entre parteleira e prateleira.
11
O que é?
Gramática
(cont.)
ETIMOLOGIA
2. Étimo
12
B.
4.3 O que é um crioulo?
Um crioulo é uma língua que se forma em comunidades onde se falam várias línguas a partir do
contacto de uma língua autóctone com uma língua dominante (de colonização) devido à neces-
sidade de comunicação.
Ex.: o Kriolu ou Kauberdianu de Cabo Verde.
4.4 O que são crioulos de base portuguesa?
São crioulos em que a base lexical, isto é, as palavras utilizadas na comunicação, é portuguesa.
4.5 Qual é a distribuição geográfica dos principais crioulos de base portuguesa?
a) Em África, existem os crioulos da Alta Guiné (Kuaberdianu, de Cabo Verde) e os crioulos
do Golfo da Guiné (Forro ou Santomense, de S.Tomé).
b) Na Ásia, encontramos os crioulos indo-portugueses (Língua da Casa, em Damão, na Ín-
dia), malaio-portugueses (Papiá Kristang, na Malásia, e o português de Bidau, em Timor
Leste) e sino-portugueses (o macaísta ou patuá de Macau, em vias de desaparecimento).
c) Na América, existem o papiamento nas Antilhas e o Saramancano, no Suriname.
SINTAXE
5. Funções sintáticas
13
O que é?
Gramática
(cont.)
14
B.
5.6 Como distingo o complemento direto do complemento indireto?
a) Um complemento direto é selecionado por verbos transitivos diretos e por verbos transitivos
diretos e indiretos.
Exs.: O João viu um ovni. / O Pedro deu um livro à irmã.
5.7 Como sei se um pronome pessoal átono de 1.a pessoa (me/nos) ou de 2.a pessoa (te/vos)
desempenha a função sintática de complemento direto ou de complemento indireto?
É simples: basta substituí-los pelos pronomes de 3.a pessoa (o, a, os, as [complemento direto]
e lhe, lhes [complemento indireto]).
Se a frase ficar correta pela substituição com o, a, os, as, o pronome me, te, nos, vos
desempenhará a função sintática de complemento direto. Se, pelo contrário, ficar correta
ao ser substituída por lhe ou lhes, então desempenhará a função sintática de complemento
indireto.
Exs.: Ela viu-me no cinema.
É substituível por por lhe? Não, porque Ela viu-lhe no cinema é uma frase incorreta.
É substituível por o ou a? Sim, porque Ela viu-o(a) no cinema é uma frase correta.
Podemos, portanto, concluir que o pronome me na frase Ela viu-me no cinema desempenha a
função sintática de complemento direto.
15
O que é?
Gramática
(cont.)
a) O complemento direto é sempre substituível por um pronome pessoal átono o, a, os, as;
um complemento indireto, por um pronome pessoal lhe ou lhes; um complemento oblíquo
é substituível por um advérbio ou por um pronome precedido de preposição.
Assim, para identificar o complemento presente numa frase, substitui-o por o, a, os, as e por
lhe ou lhes.
Se a frase ficar correta com o, a, os, as, então o complemento é direto; se ficar correta com lhe
ou lhes é indireto; se ficar incorreta com direto e indireto, então o complemento é oblíquo.
Exs.: 1) Na frase O Pedro leu um livro, a expressão destacada desempenha a função de
complemento direto porque pode ser substituída pelo pronome átono o: O Pedro leu-o.
2) Na frase O João mora em Lisboa, a expressão destacada desempenha a função
sintática de complemento oblíquo porque não pode ser substituída por o, a, os, as
nem por lhe ou lhes, mas pode ser substituída por um advérbio.
• O João mora-a. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora-lhe. (frase gramaticalmente incorreta)
• O João mora lá. (frase correta)
5.10 Tanto o complemento oblíquo como o complemento indireto podem ser desempenhados
por uma expressão iniciada pela preposição a. Nesse caso, como os distingo?
16
B.
5.13 O que é o predicativo do sujeito?
É uma função sintática de uma palavra, uma expressão ou uma oração que indicam algo acerca
do sujeito (uma qualidade, um estado, uma localização).
Exs.: 1) Os meus amigos estão descontentes.
2) Brás da Mata é um escudeiro pouco escrupuloso.
3) Ele não é quem se pensa.
Basta saber que o predicativo do sujeito é desempenhado por verbos copulativos e que não é
substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Repara nas expressões destacadas nas frases dos exemplos.
Exs.: a) O Pedro ficou em casa.
A expressão «em casa» é predicativo do sujeito porque o verbo da frase é copulativo e
não pode ser substituído pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
b) O Pedro viu um lobo.
A expressão «um lobo» é complemento direto porque pode ser substituído pelo
pronome pessoal átono o.
5.16 Como distingo numa frase o complemento direto do predicativo do complemento direto?
a) Um complemento direto é sempre função sintática de verbos transitivos diretos, de verbos
transitivos diretos e indiretos e de verbos transitivos-predicativos.
Exs.: Ele achou um livro.
Ele vendeu o livro ao primo.
Ele acha a Maria bonita.
b) Um predicativo do complemento direto é função sintática apenas de verbos
transitivo-predicativos (achar, considerar, eleger…).
Exs.: Ele acha a Maria bonita.
Eles elegeram o Pedro deputado.
c) Um complemento direto é sempre substituível pelos pronomes pessoais átonos o, a, os, as.
Um predicativo do complemento direto nunca se pode substituir por estes pronomes.
Exs.: Ele achou o livro. / Ele achou-o.
Ele acha a Maria bonita. / Ele acha-a. (frase incompleta – Ele acha-a o quê?)
Ele acha-a bonita. (frase correta – «a» [complemento direto]; «bonita» [predicativo do
complemento direto].)
17
O que é?
Gramática
(cont.)
Coordenação
18
B.
Subordinação
19
O que é?
Gramática
(cont.)
LEXICOLOGIA
7. Arcaísmos e neologismos
20
B.
8.2 O que é um campo semântico de uma palavra?
Um campo semântico de uma palavra consiste no conjunto de significados que ela pode ter em
diversos contextos.
Exs.: campo semântico da palavra cabeça:
1) O ciclista vai na cabeça do pelotão. (à frente, na dianteira)
2) Já não tenho cabeça para decorar todos estes números. (capacidade)
3) Concentra-te: estás sempre com a cabeça noutro lado. (pensamento)
4) Na compra da casa, exigiram-me os juros à cabeça. (adiantados)
5) Não sei esses números de cabeça. (de cor/de memória)
21
Gil Vicente,
Auto da Feira
A crise do Papado: o saque de Roma, a questão
das indulgências, o anúncio da Reforma
A leitura do Auto da Feira pressupõe que conheças alguns factos relativos à história do cristianis-
mo, nomeadamente no século XVI, para melhor compreenderes a luta alegórica nele presente. Assim,
apresentamos-te as seguintes informações:
1. No século XVI, principalmente nas três primeiras décadas, aproximadamente, o Papado foi marcado
por grandes escândalos de natureza política, militar, financeira, etc., que provocaram a reação de
alguns teólogos contra essa situação. O mais famoso foi Martinho Lutero.
2. Uma das críticas mais contundentes que se fazia ao Papado romano tinha a ver com a chamada
questão das indulgências, que consistia, basicamente, no facto de o Papado perdoar pecados a quem
os podia remir com dinheiro. Esta situação era intolerável para Lutero e outros teólogos: consideravam
que o Papado pecava fortemente com estas práticas.
3. Mas com outras também: escândalos muito fortes, de natureza vária, como referido em 1.,
abalavam o Papado; mas mais grave ainda era o facto de vários Papas terem uma vida escandalosa
em nada condizente com os votos de castidade, pobreza e humildade a que se tinham submetido.
4. Devido ao seu poder político e militar, o Papado envolveu-se em várias guerras, que veio a perder,
e que terminaram com o famoso saque de Roma, em 1527: Roma foi invadida e saqueada por cristãos,
com o apoio de Lutero, o que marcou negativamente de forma indelével a cristandade desses tempos.
5. A partir daqui o caminho estava aberto para a cisão entre os cristãos, o que aconteceria pouco
depois com o aparecimento de vários movimentos reformistas e de protesto contra Roma, de natureza
religiosa ou teológica, como os luteranos, os calvinistas, os anglicanos, etc.: a Reforma Protestante.
6. Quando Roma entra em cena, no Auto da Feira, o público reconhece-a como a personagem
alegórica que é pecadora, habitual cliente do Diabo – como ela própria admite. Os seus erros – as
indulgências, por exemplo – são referidos no auto. E o público reconhecer-se-ia também, por certo, nas
admoestações e fortes censuras a ela dirigidas pelo Tempo e por Mercúrio. Afinal, a Reforma estava
perto…
22
Gil Vicente, Auto da Feira
1. Caracterização das personagens e relações entre as personagens
Define-se como «senhor / de muitas sabedorias, / e das moedas reitor,», vv. 162-164 (página 29). É, na
Mercúrio mitologia romana, o mensageiro dos deuses e o deus do comércio, o que faz dele um hábil negociador –
como também se define. Ridiculariza a astrologia, referindo os vários signos do Zodíaco e a sua inutilidade:
em nada influenciam a vida das pessoas.
O que o Tempo troca precisa de tempo para ser trocado: a paz, os remédios contra as adversidades
Tempo e a Fortuna, o temor de Deus, as virtudes – tudo se achará na tenda do Tempo.
É o anjo enviado por Deus a pedido do Tempo para o assessorar nas trocas dos «remédios» que se
Serafim
encontram na tenda.
Aparece com uma tendinha de vendedor ambulante, na qual põe à disposição dos compradores toda
a espécie de coisas vis e, por isso, não tem dúvidas de que não terá rival nas vendas. Ofende-se quando
Diabo o Serafim pretende expulsá-lo da feira porque, como diz, quem lhe compra fá-lo por livre vontade: ele não
força ninguém.
Personagem alegórica, atormentada pela falta de respeito de que é vítima, vem à feira comprar «paz,
Roma verdade e fé», mas falta-lhe «santa vida» para dar em troca. Ainda tenta comprá-las com «perdões»,
«estações» e «jubileus», mas é severamente repreendida pelo Serafim e por Mercúrio.
Evidenciam, em geral, um comportamento coletivo, na medida em que atuam como grupo: organizam-se
Nove moças para enganar o Serafim através da informação de Gilberto (vêm «folgar» e não feirar); resistem aos
e três avanços dos «compradores» Mateus e Vicente; recusam em coro comprar «virtudes» porque não
mancebos proporcionam bons casamentos; cantam em coro à Virgem.
Interessam-se por aquilo que as moças do lugar têm para «vender». Desenvolvem com elas diálogos
Vicente equívocos cheios de sugestões eróticas. De facto, vêm a «amores» e não às compras. Por isso se dirigem à
e Mateus Ribeira, a outra feira.
2. A representação do quotidiano
O Auto da Feira permite o conhecimento de aspetos da vida quotidiana do povo no século XVI, como, por exemplo:
a crença generalizada na astrologia – denunciada por Mercúrio no seu monólogo inicial;
a indicação de mercadorias procuradas por determinadas pessoas ou grupos sociais nas feiras: cartas de jogar,
espelhos, unguentos – não só para tratar da saúde, mas ainda com pretensos poderes mágicos –, joias, vestuário, etc.;
a feira como lugar de encontro para negociar, mas também para falar com os amigos, desabafar, falar do trabalho
rural, da vida familiar, procurar amores…
a ignorância religiosa/teológica das camadas populares.
A representação do quotidiano passa ainda pelo facto de o Auto da Feira mostrar como as tensões religiosas de índole
teológica que grassavam na Europa e conduziram à Reforma estavam bem presentes em Portugal, nomeadamente no
público cortesão – nobreza e clero – que assistia ao auto naquele dia de Natal de 1527…
23
Gil Vicente, Auto da Feira
3. A dimensão religiosa
Apesar da ignorância de natureza teológica que se verifica nos elementos populares presentes no Auto da Feira, este
revela modos de viver a prática religiosa por parte do povo:
a crença e o medo ao Diabo e ao Inferno;
o temor de Deus, da «ira do senhor dos céus», isto é, do castigo divino – típica da mentalidade medieval.
Mas o auto é ainda, e principalmente, lugar de crítica ao clero e ao Papado num tempo em que na Europa se anunciava
a Reforma. Essa necessidade de reforma, de mudança, de conversão por parte do cristianismo está bem presente no Auto
da Feira quando:
Mercúrio ataca «clérigos e frades» que só pensam em enriquecer, deixando de ter «ao céu respeito»;
o Tempo denuncia as dissensões e as guerras entre cristãos;
o Tempo lembra que por todo o lado se perdeu o «temor de Deus»;
o Serafim convoca para a feira os «papas adormidos»;
o Serafim insta a hierarquia cristã a mudar de roupa, usando as vestes simples dos primeiros «pastores» – modo
metafórico de apelar à reforma.
Contudo, é com a entrada em cena de Roma que a dimensão religiosa ocupa verdadeiramente o lugar central no
espetáculo – desde logo numa perspetiva de reforma. Roma apresenta-se como querendo trocar a mentira e o engano
outrora adquiridos ao Diabo, e em que tem vivido por «paz, verdade e fé» – num projeto de conversão. No diálogo com o
Serafim, a dimensão religiosa acentua-se quando:
o Serafim adverte Roma de que não respeita o «poder profundo» de Deus – daí as guerras em que se envolveu
e que perdeu;
Mercúrio acusa Roma de ser pecaminosa, referindo-se ao escandaloso pagamento dos pecados através das
indulgências, do dinheiro que tudo redime;
Mercúrio aconselha Roma a mudar de vida, apresentando Nossa Senhora como exemplo de virtude a seguir;
Mercúrio insta Roma a fazer um exame de consciência para verificar que o erro está nela e que não deve ser a
outrem atribuído,erro esse que consiste em ter-se esquecido de Deus, o «poder primeiro»: a ele deve regressar.
4. A representação alegórica
A representação no Auto da Feira é alegórica no sentido em que se trata de uma representação do mundo apresentada
através de uma série de figuras alegóricas relacionadas entre si. Este tipo de representação, típico do teatro medieval,
consiste em apresentar figuras ou personagens cuja natureza é simbólica ou metafórica: o espetador reconhecia
imediatamente a presença do Mal em palco logo que o Diabo entrava. No Auto da Feira lutam o Bem (alegorizado no
Tempo e no Anjo que o acompanha, o Serafim) e o Mal (alegorizado no Diabo).
A crise em que vivia o Papado está alegorizada em Roma, figura que se apresenta ligada ao Mal e a quem o Tempo
e Mercúrio avisam que tem de mudar em direção ao Bem.
24
Auto da Feira – Estrutura I
[…] Auto da Feira, cuja ação aparece disposta em forma de políptico1, construído a partir da alegoria de uma fei-
ra de virtudes, instalada em noite de Natal. Temos primeiro Mercúrio («reitor das moedas») que, num dos monólo-
gos mais desenvolvido das moralidades vicentinas, satiriza a astrologia e, através dela, a presunção humana, em ge-
ral; a feira, onde pontificam os convencionais mercadores do Bem (o Anjo) e do Mal (o Diabo), é primeiro visitada por Roma,
que a ela acorre em busca da «paz dos céus»; mas só a troco de «santa vida» (que não tem) esta lhe poderá ser dada;
vêm a seguir dois compadres e duas comadres, casados entre si, na disposição vã de se livrarem dos respetivos consortes.
E vem depois um grupo de pastores (rapazes e raparigas), em adequação à circunstância natalícia do auto: estes, porém,
não necessitam de comprar mercadorias e, por isso, revelam-se imunes aos oferecimentos que lhes fazem na tenda do Diabo;
mas também não lhes interessam os produtos do Serafim, uma vez que tudo aquilo de que necessitam lhes é gratuitamente
disponibilizado pela Virgem (patrona da feira).
José Augusto Cardoso Bernardes, «VICENTE (Gil)», in Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa,
Lisboa / São Paulo, Verbo, 2005, vol. V, colunas 816 e 817.
1
conjunto de quatro ou mais quadros independentes entre si, mas subordinados a um só tema
2.1 Roma
• o Tempo monta a sua tenda e anuncia os muitos produtos que vende; o Serafim vem ajudá-lo;
• o Diabo anuncia os produtos à venda na sua «tendinha»;
• Roma visita a Feira e é avisada de que tem de mudar de vida.
2. A Feira 2.2 Os dois casais
• dois casais visitam a feira com a intenção de se libertarem dos respetivos cônjuges.
2.3 Os pastores
• um grupo de pastores visita a feira com intenção de se divertir em dia de Nossa Senhora.
Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O autor representa o mundo sob
a forma duma feira em que os principais vendedores são um Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais
nem menos que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos,
Auto tendo em atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos
da Feira respetivos cônjuges, campónios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores
que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma
cantiga entoada pelas camponesas em louvor da Natividade.
I. S. R., «Auto da Feira», in Jacinto do Prado Coelho (Dir.), Dicionário de literatura, Porto, Figueirinhas, 1987, vol. I, p. 76.
(Texto adaptado)
O Auto da Feira é uma alegoria (ou seja, representação simbólica) do mundo e da luta incessante que nele
Auto
ocorre entre o Bem e o Mal. Essa luta é transmitida através de um espetáculo de figuras alegóricas, figuras
da Feira –
que se podem considerar uma espécie de metáforas ou mesmo de símbolos. Para a representação alegórica
uma alegoria,
desta luta são figuras centrais o Tempo e o Serafim (alegorias do Bem), o Diabo (alegoria do Mal) e Roma
um auto
(alegoria do Papado em forte crise – dominado pelo Mal). O espetador entendia deste modo o espetáculo do
alegórico
mundo que, de forma artística, indireta, metafórica, simbólica, isto é, alegórica, passava diante de si.
25
Gil Vicente, Auto da Feira
Nota
As informações sobre o vocabu-
Auto da Feira
lário e outros aspetos essenciais
à compreensão do texto, que apa- Gil Vicente, «Auto da Feira», in Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, 1988, pp. 265 a 299.
recem em notas, foram retira- (Apresentação e leitura de António José Saraiva)
das da edição referida, e ainda de
Auto da Feira de Gil Vicente, 4
Lisboa, Publicações Dom Quixo-
te, 1989. (Introdução e edição in- Figuras: Mercúrio1, Tempo, Serafim, Diabo, Roma, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca
terpretativa do Professor Luís F.
Lindley Cintra). Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto, Nabor, Mateus, Justina, Vicente,
Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda.
Monólogo de Mercúrio,
deus dos comerciantes (ou feirantes)
4
Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:
26
- Que se o céo fora quadrado, - E que mais quereis saber,
- não fora redondo, senhor. - desses temporais e disso,
- E se o sol fora azulado, - senão que, se quer chover,
- d’azul fora a sua cor, 80 está o céo pera isso,
45 e não fora assi dourado. - e a terra pera a receber?
- E porque está governado - A lua tem este jeito:
- per seus cursos naturais, - vê que clérigos e frades
- neste mundo onde morais - já não têm ao Céo respeito,
- nenhum homem aleijado, 85 mingua-lhes as santidades,
50 se for manco e corcovado, - e crece-lhes o proveito28.
- não corre por isso mais18.
Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus,
- E assi os corpos celestes Regina musicae, secundum Joannes Monteregio29:
- vos trazem tão compassados, - Mars, planeta dos soldados,
- que todos quantos nacestes, - faz nas guerras conteúdas30,
55 se nacestes e crecestes, - em que os reis são ocupados,
- primeiro fostes gerados. 90 que morrem de homens barbados
- E que fazem os poderes - mais que mulheres barbudas.
- dos sinos19 resplandecentes? - E quando Vénus declina31,
- Fazem que todalas gentes - e retrograda32 em seu cargo,
60 ou são homens ou mulheres - não se paga o desembargo
- ou crianças inocentes20. 95 no dia que s’ele assina,
- mas antes per tempo largo.
- E porque Saturno a nenhum
- influi21 vida contina22, Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricor-
- a morte de cada um nius positus in firmamento coeli33:
65 é aquela de que se fina23,
- e não d’outro mal nenhum. - E quanto ao Touro e Carneiro,
- Outrossi24 o terremoto, - são tão maus d’haver agora,
- que às vezes causa perigo, - que quando os põe no madeiro,
- faz fazer ao morto voto 100 chama o povo ao carniceiro
70 de não bulir mais consigo, - «senhor», c’os barretes fora34.
- cantá de seu próprio moto25. - Depois do povo agravado,
- que já mais fazer não pode,
- E a claridade encendida - invoca o sino do Bode,
- dos raios piramidais26 105 Capricórnio chamado,
- causa sempre nesta vida - porque Libra não lhe acode35.
75 que quando a vista é perdida,
- os olhos são por demais27.
Vocabulário
18
note-se a ironia presente em todos estes versos; 19 signos do Zodíaco – a astrologia, por associação; 20 a vacuidade da astrologia está bem presente nestes
versos; 21 dá; 22 eterna; 23 de que morre; 24 também; 25 de notar o tom jocoso destes versos [Lindley Cintra]: o cadáver enterrado move-se se houver um
terramoto e promete a si mesmo não se mexer mais… 26 a luz dos astros; 27 estes e outros versos de cariz irónico estão ao serviço da denúncia jocosa da as-
trologia; neste caso concreto podem significar uma verdade evidente, apresentada como chacota: quem é cego nada vê… 28 trata-se, nas palavras de Lindley
Cintra, «do primeiro ataque direto do autor ao clero corrupto da época»; note-se a antítese entre o que lhe falta, a santidade, e o que lhe sobra, o «proveito»,
a riqueza; 29 e quanto à estrela Marte [o planeta brilhante era considerado uma estrela], espelho da guerra [Marte era o deus da guerra], e a Vénus, rainha da
música, segundo João Monterregio, um célebre astrónomo alemão; 30 guerras contínuas; 31 quando o planeta Vénus desce, no seu movimento; o autor, neste
e noutros versos, estabelece associações de natureza astrológica entre movimentos dos astros e acontecimentos terrestres – sempre com intenção crítica e
de denúncia nos últimos; 32 recua; 33 e quanto ao Touro, Carneiro, Caranguejo e Capricórnio, [quatro importantes constelações para os astrólogos] postos no
firmamento do céu; 34 o conjunto dos versos 97 a 101 pode ser lido deste modo [Lindley Cintra]: como atualmente, «agora», é muito difícil conseguir comprar
carne de touro e de carneiro, quando o talhante as apresenta para venda, o povo tira o barrete em sinal de respeito; continua aqui a chacota a propósito das
crenças astrológicas – na referência às carnes de animais que deram nome a constelações que os astrólogos queriam influir sobre as pessoas, sobre o seu
destino… 35 a irrisão sobre as crenças astrológicas continua nestes versos: o povo «agravado», pobre, não consegue dinheiro, moeda, «Libra», nome de uma
constelação, para comprar a carne do «bode», chamado Capricórnio – nome de outra constelação 27
Gil Vicente, Auto da Feira
- ~ nao veleira
E faz que ua - Não, porque as constelações
- mui forte, muito segura, - não alcançam mais poderes,
- que inda que o mar não queira, - que fazer que os ladrões
130 e seja de cedro a madeira, 155 sejam filhos de mulheres,
- não preste sem pregadura44. - e os mesmos50 pais varões51.
- E aqui quero acabar.
- E pois vos disse até ’qui
- o que se pode alcançar,
160 quero-vos dizer de mi,
- e o que venho buscar.
Vocabulário
36
estes versos continuam a «jogar» com nomes de constelações, através de trocadilhos entre esses nomes e determinados alimentos – tudo
como forma de criticar a astrologia, de a ridicularizar: se não consegues comer touro ou comer carneiro, come peixe; 37 se não consegues ma-
tar a fome com peixe; 38 signo (do Zodíaco); 39 signo (do Zodíaco); 40 signo representado por um caranguejo, a forma da constelação; 41 e
se não conseguir peixe, coma caranguejo, encontra-o no Ribatejo; 42 seguem-se as maravilhas de Júpiter, rei dos reis, senhor das dominações;
43
note-se a jocosidade na referência a Júpiter e a quem acredita na astrologia – que diz ser ele poderosíssimo: o que o poder dele consegue é que
um cruzado, uma moeda, valha o mesmo de dia e de noite! A referência à influência de Júpiter está na expressão «faz percurso ordenado»: o curso
de Júpiter influenciaria os humanos – para os astrólogos; 44 não preste sem que os pregos preguem a madeira; 45 e quanto às doze casas do Zodíaco
segue-se a declaração/explicação da sua forma de trabalhar; 46 doze casas feitas de palha: regressa a chacota – sugestiva da vacuidade da crença
astrológica, de palha…; 47 signos; 48 grandezas; 49 têm pena; 50 os seus – dos ladrões; 51 as constelações mais não podem do que fazer que os ladrões
sejam filhos de homens e de mulheres: sempre a crítica à crença astrológica
28
- Eu são52 Mercúrio, senhor - E porquanto nunca vi 52
sou
- de muitas sabedorias, - na corte de Portugal 53
governador
54
- e das moedas reitor53, - feira em dia de Natal, negócios
55
~ feira aqui pagamentos
165 e deos das mercadorias: 175 ordeno ua
- nestas tenho meu vigor. - pera todos em geral.
- Todos tratos54 e contratos, - Faço mercador-mor
- valias, preços, avenças55, - ao Tempo, que aqui vem,
- carestias e baratos, - e assi o hei por bem.
170 ministro suas pretenças, 180 E não falte comprador,
- até as compras dos sapatos. - porque o Tempo tudo tem.
Educação literária
29
Gil Vicente, Auto da Feira
Vocabulário
1
em Anvers (Antuérpia, Flandres) e Medina del Campo (Castela) tinham lugar feiras muito importantes; os dois versos são perífrase de
Mercúrio; 2 o auto representou-se no dia de Natal de 1527; 3 o Tempo diz que só aceita trocas de bens, nunca dinheiro para adquirir algum
bem; 4 necessidade; 5 trata-se de uma «alusão direta» [Lindley Cintra] às guerras várias que iam decorrendo na Europa entre reinos cristãos,
das quais o mais famoso e traumatizante episódio foi o saque de Roma, em maio de 1527, no mesmo ano da primeira representação deste
auto; 6 os cristãos europeus andam em contínua guerra; 7 temor ao castigo de Deus; 8 muitas; 9 as «contas» referidas nestes versos são as
contas a dar a Deus à hora da morte – pelos muitos pecados cometidos; 10 as virtudes que indiquei antes; 11 com a mesma vontade com que
enviaste o Messias à Terra; o Tempo dirige-se a Deus, que enviou o seu filho Jesus, o Messias, para salvação do género humano; 12 lembra
ao teu anjo; 13 que me proteja; 14 diabo; 15 próprios; 16 os aconselham, aos «mais sabedores»
30
Entra um Serafim17 enviado por Deos a petição do Tempo, Entra um Diabo com ua ~ tendinha diante de si,
e diz: como bofolinheiro24, e diz:
Vocabulário
17
o anjo pedido («a petição») pelo Tempo a Deus; 18 neste verso e nos quatro anteriores, Gil Vicente faz uma forte crítica à igreja, num tempo em
que os cristãos se preparavam para a divisão entre católicos e protestantes, o tempo da Reforma; o Serafim invetiva os «papas adormidos», isto
é, o papado que não cumpria o seu dever, e pede que se vistam como os «antecessores», modo metafórico de lhes dizer que deveriam recuperar
as virtudes dos primeiros cristãos; 19 mudai a vida de luxo em que viveis; 20 os Papas; o «crucificado» é Jesus Cristo, fundador do cristianismo;
21
poderoso; 22 temei; 23 quantidade; 24 vendedor ambulante; 25 gabar; 26 quem me queira comprar do que vendo; 27 imposto; 28 negócios; 29 quero-me
apresentar; 30 impede; 31 falando com tua licença, isto é, permite-me que te diga
31
Gil Vicente, Auto da Feira
Vocabulário
32
a expressão «salvos rabos» está relacionada com «salvanor»: é uma
espécie de trocadilho; 33 moeda de fraco valor; 34 muito dinheiro;
35
têm parentesco comigo; 36 portanto; 37 impeças; 38 não tenho nada a
ver contigo; 39 condenar; 40 o sentido destes versos e dos anteriores é o
seguinte: sou um diabo, portanto não tenho vida, sou «cousa perdida»;
ninguém me impede nunca de ganhar a minha vida, como ninguém impede
quem é muito pobre de o fazer, quem não tem vida por ser assim pobre
[Lindley Cintra]; 41 mercadoria; 42 os homens maus são muito mais do que
os bons, como bem sabeis; 43 os homens maus; 44 porque; 45 o mercador
habilidoso; 46 enquanto mercador esperto, o Diabo, sabendo que os maus
são muito mais do que os bons, leva como mercadoria o que sabe que
venderá, dada a qualidade da clientela: patifarias, etc. – «ruim borcado»;
47
além disso; 48 como os bons são pobres, não têm dinheiro para gastar,
o Diabo nada de bom leva para a feira; 49 deve: uma vez que a grande
«glória» da vida é ter dinheiro e que os maus o têm, quem quiser ser rico
tem de ser mau; 50 a mentalidade; 51 expulseis; 52 quando as contas finais
da feira se fizerem, ver-se-á que foi o Diabo quem mais vendeu
32
130
Ser. Venderás muito perigo, 155 E se o que quer bispar63
-
que tens nas trevas escuras53. - há mister hipocresia64,
-
Dia. Eu vendo prefumaduras54, - e com ela quer caçar,
-
que, pondo-as no embigo, - tendo eu tanta em perfia65,
- se salvam as criaturas. - porque lh’a hei-de negar?
160 E se ~ua doce freira
135 Às vezes vendo virotes55, - vem à feira
- e trago d’Andaluzia - por66 comprar um inguento67,
- naipes56 com que os sacerdotes - com que voe do convento68,
- arreneguem cada dia, - senhor, inda que eu não queira
- e joguem até os pelotes. 165 lhe hei-de dar aviamento69.
140 Ser. Não venderás tu aqui isso,
- que esta feira é dos céos: - Mer. Alto, Tempo! aparelhar70,
- vai lá vender ao abisso57, - porque Roma vem à feira.
- logo58, da parte59 de Deos. - Dia. Quero-me eu concertar71,
- Dia. Senhor, apelo60 eu disso! - porque lhe sei a maneira
170 de seu vender e comprar…
145 Se eu fosse tão mao rapaz,
- que fizesse força61 a alguém,
- era isso muito bem;
- mas cada um veja o que faz,
- porque eu não forço ninguém.
150 Se me vem comprar qualquer Vocabulário
53
referências aos pecados e ao Inferno; 54 perfumes; 55 tipo de flecha
- clérigo, ou leigo, ou frade curta – por associação, a guerra; 56 cartas de jogar; nestes versos, o Diabo
- falsas manhas de viver, refere o vício do jogo por parte de sacerdotes que chegam ao ponto de
perder até a roupa («pelotes») no jogo e de blasfemarem contra Deus
- muito por sua vontade,
enquanto jogam («arreneguem»); 57 abismo, o Inferno; 58 já,
- senhor, que lhe hei-de fazer62? imediatamente; 59 por ordem de Deus; 60 o Diabo apela da decisão do
Serafim, isto é, protesta contra ela; 61 que obrigasse; 62 neste verso e
nos anteriores são apresentadas várias críticas a clientes do Diabo –
eclesiásticos e leigos; 63 ser bispo; 64 necessita de ser hipócrita;
65
em concorrência com ele: tanto tem hipocrisia o Diabo como que que
quer chegar a bispo; 66 para; 67 unguento, espécie de remédio – aqui
associado a bruxaria; 68 para escapar ao convento; 69 hei de satisfazê-la;
70
Mercúrio diz ao tempo para se preparar pois Roma vem à feira;
«aparelhar» tem valor imperativo – «Preparai-vos» [Lindley Cintra];
71
preparar; o Diabo diz que está habituado a negociar com Roma: crítica
ao Papado
Educação literária
33
Gil Vicente, Auto da Feira
6. Tem em atenção as palavras do Diabo nos vv. 120-121: «Toda a glória de viver / das gentes é ter
dinheiro,».
6.1 Apresenta uma opinião pessoal sobre a atualidade destas palavras, justificando.
7. Seleciona a opção correta. O Serafim, para se referir aos perigos do Diabo, usa, no v. 131, «que tens
nas trevas escuras.»,
a. uma personificação.
b. um pleonasmo.
c. uma hipérbole.
d. uma anáfora.
7.1 Justifica, explicitando a sua expressividade literária.
Nesta secção do auto verificaste que as personagens são o Tempo, o Serafim e o Diabo.
As duas últimas representam, respetivamente, o Bem e o Mal que sempre – no Tempo – coexis-
tiram e entre si lutaram – na natureza humana. Estas não são personagens que correspondam
a pessoas ou a classes sociais, mas sim metáforas do mundo, personagens alegóricas. O seu
conjunto forma uma alegoria, uma representação simbólica do mundo – na eterna luta entre o
Bem e o Mal. Deste modo, o Auto da Feira revela-se como um espetáculo no qual a representa-
ção alegórica assume especial significado.
34
Entra Roma, cantando: - E pois agora à Verdade
- Rom. Sobre mi armavam guerra1;
- chamam Maria Peçonha,
- ver quero eu quem a mi leva2.
- e parvoíce à vergonha,
- Três amigos que eu havia3,
- e aviso à ruindade23,
- sobre mi armam prefia4;
45 peitai24 a quem vo-la ponha,
5 ver quero eu quem a mi leva.
- a ruindade, digo eu.
- E aconselho-vos mui bem,
Fala
- porque quem bondade tem
- nunca o mundo será seu,
- Vejamos se nesta feira,
50 e mil canseiras lhe vêm.
- que Mercúrio aqui faz,
- acharei a vender paz,
- Vender-vos-ei nesta feira
- que me livre da canseira
- mentiras vinta três mil,
10 em que a fortuna me traz.
- todas de nova maneira,
- Se os meus5 me desbaratam6,
- cada ~ua tão sutil25,
- o meu socorro onde está?
55 que não vivais em canseira:
- Se os Cristãos mesmos7 me matam,
- mentiras pera senhores,
- a vida quem m’a dará,
- mentiras pera senhoras,
15 que todos me desacatam8?
- mentiras pera os amores,
- mentiras que a todas horas
- Pois s’eu aqui não achar
60 vos naçam delas favores.
- a paz firme e de verdade
- na santa feira a comprar,
- E como formos avindos26
- cant’a mi dá-me a vontade
- nos preços disto que digo,
20 que mourisco hei-de falar9.
- vender-vos-ei como amigo
- Dia. Senhora, se vos prouver,
- muitos enganos infindos27,
- eu vos darei bom recado10…
65 que aqui trago comigo.
- Rom. Não pareces tu azado11
- pera trazer a vender
25 o que eu trago no cuidado.
Vocabulário
1
lutavam por minha causa; 2 quero ver quem vence; 3 provavelmente os «três
- Dia. Não julgueis vós pola cor12, amigos» eram a França, os estados italianos e Carlos V, que se guerrearam
- porque em al13 vai14 o engano; entre si em lutas que incluíram o saque de Roma; 4 lutam por minha causa;
5
os cristãos: os «três amigos» eram todos cristãos; 6 destroem;
- ca15 dizem que sob mao pano 7
os próprios cristãos; 8 tratam mal, faltam-me ao respeito; 9 Roma ameaça
- está o bom bebedor16: passar a «falar» «mourisco» caso não consiga encontrar à venda a paz
30 nem vós digais mal do ano. na feira, isto é, Roma como que ameaça mudar de religião, de tal modo é
maltratada pelos cristãos, podendo até associar-se aos muçulmanos;
- 10
conselho; 11 apropriado; 12 o Diabo devia estar vestido de cor vermelha, a cor
Rom. Eu venho à feira dereita17 a ele associada; 13 nisso; 14 está; 15 porque; 16 equivalente ao ditado popular
«o hábito não faz o monge»: o Diabo quer dizer que, apesar de estar vestido
- comprar Paz, Verdade e Fé. de vermelho, isso nada de mau significa; 17 diretamente; 18 não serve para
- Dia. A verdade pera quê? nada – a verdade; 19 incomoda – a verdade; 20 bons motivos; 21 para aquilo de
que necessitais; 22 cuidados, preocupações; o que o Diabo está a dizer é que
- Cousa que não aproveita18, em tempos de mentira não vale a pena comprar a verdade; 23 nestes tempos,
35 e avorrece19, pera que é? chama-se à «verdade» «peçonha», isto é, veneno; chama-se à «vergonha»
«parvoíce», chama-se à ruindade «aviso», isto é, esperteza; 24 pagai; 25 subtil;
- Não trazeis bôs fundamentos20 26
logo que cheguemos a acordo nos preços; 27 infinitos
- pera o que haveis mister21;
- e a segundo são os tempos,
- assi hão-de ser os tentos22,
40 pera saberdes viver.
35
Gil Vicente, Auto da Feira
Educação literária
3. Atenta na série de perguntas ou interrogações feita por Roma entre os vv. 11-16.
3.1 Escolhe a opção correta. Com estas interrogações, Roma, refletindo sobre a sua relação com a cristandade,
a. espera efetivamente que lhe seja dada uma resposta.
b. interroga sabendo já a resposta, isto é, interroga para acentuar a má relação que tem com ela.
Acabas de identificar um recurso expressivo designado por interrogação retórica. Este tipo de inter-
rogação formula-se para causar um efeito retórico, isto é, um efeito persuasivo.
4. O Diabo propõe-se vender a Roma determinado tipo de mercadoria, nomeadamente a que apresenta entre os vv. 56-
-60.
4.1 Identifica o recurso expressivo que usa para o fazer.
4.2 Explica a sua expressividade literária.
7. Explica que tipo de relação se estabelece entre Roma e Mercúrio a partir do v. 131, justificando.
37
Gil Vicente, Auto da Feira
Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per - Den. Tens boa mulher de teu!
nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lourenço, e diz: - Não sei que tu hás, amigo…
- Ama. S’ela casara contigo,
- Ama. Compadre, vás tu à feira? 30 renegaras12 tu com’eu,
- Den. À feira, compadre. - e dixeras o que eu digo.
Ama. Assi, - Den. Pois, compadre, cant’à minha,
- ora vamos eu e ti - é tão mole e desatada13,
- ò longo desta ribeira. - que nunca dá peneirada14,
5 Den. Bofá1, vamos. 35 que não derrame a farinha.
- Ama. Folgo bem2
de3 te vir aqui achar4! - E não põe cousa a guardar,
- Den. Vás tu lá buscar alguém, - que a tope15 quando a cata16;
- ou esperas de comprar? - e por mais que homem se mata,
- de birra não quer falar.
- Ama. Isso te quero contar, 40 Trás d’~ua pulga andará
10 e iremos patorneando5, - três dias, e oito, e dez,
- e er6 também aguardando - sem lhe lembrar o que fez,
- polas moças do lugar. - nem tão-pouco o que fará,
- Compadre, enha7 mulher
- é muito destemperada8, - Pera que t’hei de falar?
15 e agora, se Deos quiser, 45 Quando ontem cheguei do mato17
- faço conta de a vender, - pôs ~ua enguia a assar,
- e dá-la-ei por quase nada. - e crua a leixou levar,
- por não dizer sape18 a um gato.
- Qu’eu quando casei com ela - Quant’a mansa, mansa é ela:
- diziam-me: – étega9 é; 50 dei-me logo conta disso!
20 e eu cuidei pola abofé10 - Ama. Juro-t’eu que mais val isso
- que mais cedo morresse ela, - cinquenta vezes qu’ela.
- e ela anda inda em pé.
- E porque era étega assim
- foi o que m’a mim danou: 1
pois sim; 2 estou contente; 3 por; 4 encontrar; 5 falando; 6 além disso; 7 minha;
8
25 avonda11 qu’ela engordou zanga-se facilmente, desbocada; 9 tuberculosa; 10 em boa fé; 11 tanto; 12 a criticaras,
lamentar-te-ias; 13 preguiçosa, desajeitada; 14 movimento para peneirar o grão moído;
- e fez-me étego a mim. 15
encontre; 16 procura; 17 do monte; 18 interjeição para enxotar gatos
38
- A minha te digo eu - Outro bem terás com ela:
- que se a visses assanhada19… 95 quando vieres da arada37,
55 parece demoninhada20… - comerás sardinha assada,
- ante S. Bertolameu21! - porqu’ela jenta a panela38.
- Den. Já siquer terá esprito22… - Então geme, pardeus, si,
- Mas renega da mulher - diz que lhe dói a moleira39.
- que ò tempo do mester 100 Den. Eu faria por maneira
60 não é cabra nem cabrito. - que esperasse ela por mi.
- Então tanto punho seco Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a
70 me chimpa nestes focinhos26! mansa, e vem dizendo a brava:
- Eu chamo pelos vezinhos,
- e ela nego dar-me em xeco27. 110 Bra. Pois casei má hora, e nela,
- Den. Isso é de coraçuda28! - e com tal marido, prima41…
- Não cures29 de a vender: - Comprarei cá ua~ gamela,
75 que se alguém te mal fizer - par’ò ter debaixo dela,
- já sequer tens quem te acuda. - e um grão penedo em cima.
115 Porque vai-se-me às figueiras,
- Mas a minha é tão cortês30 - e come verde e maduro;
- que se viesse ora à mão - e quantas uvas penduro
- que m’espancasse um rascão31, - jeita42 nas gorgomeleiras43:
80 não diria: – «Mal fazês.32» - parece negro monturo44.
- Mas antes s’assentaria33
- a olhar como eu bradava34.
- Todavia a mulher brava
- é, compadre, a que eu queria.
39
Gil Vicente, Auto da Feira
- Mar. Pois bom homem parece ele. 175 Dia. Mulheres, vós que quereis?
- Den. Aquela é a minha froxa47. - Nesta feira que buscais?
- Mar. Deu-t’ele a fraldilha roxa? - Mar. Queremo-la ver, nô mais,
- Bra. Milhor lh’esfole eu a pele, - pera ver em que tratais63,
145 que homem há i da puxa48! - e as cousas que vendeis.
- Ò diabo que o eu dou,
- que o leve em fatiota, 180 Tendes vós aqui anéis?
- e o ladrão que mo gabou! - Dia. Quejandos64? De que feição?
- E o frade que me casou - Mar. D’uns que fazem de latão.
150 inda o veja na picota49! - Dia. Pera as mãos, ou pera os péis?
- Mar. Não65… Jesu! Nome de Jesu!
- E rogo à Virgem da Estrela, 185 Deus e homem verdadeiro!
- e à santa Gerjalém50,
- e òs choros da Madanela, Foge o diabo66, e Marta diz:
- e à asninha51 de Belém,
155 que o veja eu ir à vela - Mar. Nunca eu vi bofalinheiro
- pera donde nunca vem. - tão prestes tomar o mu67!
Vocabulário - Branc’Anes, mana, crê tu
45
casar, fazer vida de marido; 46 quando bebe em demasia faz muito - que, como Jesu é Jesu,
barulho; 47 mansa; 48 forma eufemística para prostituta; 49 prisão (por
associação); 50 Jerusalém; 51 burrinha do presépio; 52 não sofras mais;
190 era este o diabo inteiro!
53
batido, agredido; 54 era só o que me faltava; 55 não a queres vender - Bra. Não é ele pau de boa lenha,
(entenda-se: se a quer vender, tem de sair de onde está escondido); - nem lenha de bom madeiro…
56
queres; 57 se ficar comigo; 58 deixar-me-á; 59 provavelmente:
desejemos-lhes infelicidades; 60 proponho; 61 outra vez; 62 quanto aquela
dará com certeza; 63 negociais; 64 de que tipo; 65 para os pés não, nem
pensar; Marta responde deste modo à pergunta trocista do Diabo; 66 pois
ouviu o nome de Jesus; 67 tão depressa ir embora; o «mu» é a cavalgadura
do negociante
40
- Mar. Bofá, nunqu’ele cá venha! - Bra. ~ pucarinha
Eu queria ua
- Bra. Viagem de João Moleiro, - pequenina pera mel.
195 que foi pola cal da azenha! - Ser. Esta feira é chamada
- Mar. Pasmada estou eu de Deos 235 das Virtudes em seus tratos79.
- fazer o demo merchante ! 68
- Mar. Das virtudes? E há ’qui patos?
- Mana, daqui por diante - Bra. Quereis feirar a cevada
- não caminhemos nós sós. - quatro pares de sapatos80?
- Ser. Oh piadoso Deos eterno!
200 Bra. S’eu soubera quem ele era, 240 Não comprareis pera os céos
- fizera-lhe bom partido69: - um pouco d’amor de Deos
- que me levara o marido, - que vos livre do inferno?
- e quanto tenho lhe dera, - Bra. Isso é falar per pincéos.81
- e o toucado e o vestido.
205 Inda que mais não levara - Ser. Esta feira não se fez
- desta feira, em extremo70 245 para as cousas que quereis.
- me alegrara e descansara, - Bra. Pois cant’a essas que vendeis,
- se o71 vira levar o demo, - daqui afirmo outra vez
- e que nunca mais tornara72. - que nunca as vendereis.
- Porque neste sigro82 em fundo
210 Porque, inda que era diabo, 250 todos somos negligentes:
- fizera serviço a Deos, - foi ar que deu polas gentes,
- e a mi mercê em cabo; - foi ar que deu polo mundo,
- e viera-me dos céos, - de que as almas são83 doentes.
- como vem a frol ao nabo73.
- E se o84 hão de correger85
Vão-se ao Tempo, e diz Marta: 255 quando for todo danado,
- muito cedo se há-de ver
215 Mar. Dizei, Senhores de bem, - que já ele não pode ser
- nesta tenda que vendeis? - mais torto nem aleijado.
- Ser. Esta tenda tudo tem. - Vamo-nos, Marta, à carreira,
- Vede vós o que quereis, 260 que as moças do lugar
- que tudo se fará bem. - virão cá fazer a feira.
- Que estes não sabem ganhar,
220 Conciência quereis comprar, - nem têm cousa que homem86 queira.
- de que vistais vossa alma?
- Mar. Tendes sombreiros de palma
- muito bons pera segar,
- e tapados pera a calma74?
225 Ser. Conciência digo eu,
- que vos leve ao paraíso. Vocabulário
- Bra. Não sabemos nós qu’é isso. 68
negociante; 69 boa proposta; 70 enfim; 71 ao marido; 72 regressasse;
73
- Dai-o ò decho75 por seu, far-me-ia um serviço tão natural – ao levar-me o marido – como é
natural que apareçam flores nas plantas; 74 Marta pergunta se há para
- que já não é tempo disso. venda chapéus de palma apropriados para proteger do calor («calma»
durante as ceifas («segar»); 75 diabo; 76 tipo de tecido; 77 escuro; 78 tipo
de lã; 79 negócios; 80 quereis trocar («feirar») por cevada quatro pares
230 Mar. Tendes vós aqui burel76, de sapatos; 81 isso é linguagem que não entendo; 82 neste mundo, neste
- do pardo77, de lã meirinha78? tempo, neste século; 83 estão; 84 ao mundo; 85 corrigir; 86 uma pessoa
41
Gil Vicente, Auto da Feira
Vocabulário
87
tipo de instrumento musical de percussão;
88
divertimentos; 89 costuma haver; 90 ainda por
cima; 91 sendo festa de Natal e estar aqui toda a
corte portuguesa – que assistia; 92 não teria vindo
Educação literária
2. Comprova, através de um exemplo significativo, que as palavras de Amâncio provocavam o riso nos espetadores
com base num contraste de ordem física que ele refere.
3. A comparação entre as duas mulheres constrói-se, nas palavras dos respetivos maridos, através de uma antítese.
3.1 Justifica esta afirmação.
Atenta no v. 95 e na palavra nele destacada: «quando vieres da arada,». Este verso refere-se, como
sabes, ao regresso do trabalho no campo, onde Denis, lavrador, arava os campos, trabalhava com o arado
lavrando as terras.
Associamos regresso da «arada» a regresso do trabalho, «arada» a trabalho; Amâncio usa aqui um
recurso expressivo chamado metonímia, que consiste numa associação entre duas realidades – sem que
uma seja parte da outra.
5. Tem em atenção toda esta secção do texto que inclui os diálogos entre maridos e entre mulheres.
5.1 Explica de que modo ela configura a vida quotidiana.
42
Vêm à feira nove moças dos montes, e três mancebos, todas
com cestos nas cabeças cobertos cantando, e como1 chegam, se
assentam por ordem a vender; e diz-lhe o
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Gil Vicente, Auto da Feira
Vocabulário
15
Justina mostra, através de algumas expressões cujo sentido é hoje difícil de entender, o seu desagrado pelas tentativas de
aproximação de Mateus; insulta-o mesmo chamando-lhe «rasca-piolhos»; 16 o mesmo se passa com Leonarda perante os
avanços («Minha vida Leonarda») de Vicente; 17 frequentador do Paço; 18 em hora má; 19 aborreceis; 20 tão depressa;
21
mexais (no cesto); 22 nada; 23 então; 24 como palaciana educada, como dama do paço real; 25 crias do coelho;
26
de coelho não; 27 ave de rapina
44
135 Tes. Pois si, vossa estrela vos er’ela…
- como aquilo é de rascão!
- Mat. Mas como isso é de donzela!
- Porém vá já como vai,
- e casemo-nos, senhora.
140 Tes. Pois casai co’ele, casai…
- Casar má-ora, meu pai,
- casar má-ora!
45
Gil Vicente, Auto da Feira
Vocabulário
33
trocam; 34 agora (porque vieram a pé à feira cansar-se?); 35 Nossa Senhora; 36 cantiga; (a fazer-lhe uma festa); 37 antes que
46
Educação literária
1. O conjunto de nove «moças dos montes, e três mancebos» que vem à feira pode ser considerado, pelos seus com-
portamentos, uma personagem coletiva.
1.1 Justifica esta afirmação.
2. Apresenta uma explicação plausível para o facto de ninguém querer responder às palavras do Serafim.
4. Explicita o tipo de religiosidade presente nas camadas populares representadas pelo variado conjunto de persona-
gens presente nesta secção final do auto. Na tua resposta, deves referir as perguntas que o Serafim faz a partir do
v. 167, o que lhe é respondido e a cantiga final.
47
Soluções
Educação literária Roma não corresponde a nenhuma personagem real, antes personifica,
ou simboliza, ou metaforiza – alegoricamente – a Cristandade em crise.
p. 29 2. Nestes versos, Roma critica, basicamente, os próprios cristãos, que
1. 1.1 Nestes versos, Mercúrio refere-se a quem acredita na astrolo- não se comportam como deveriam, digladiando-se entre si e provocan-
gia, os que pensam poder adivinhar o futuro a partir «dos céos», v. 17. do, por isso, sofrimento a Roma.
1.2 Ridiculariza-as através da apresentação de uma série de verda- 3. 3.1 b).
des evidentes pretensamente descobertas com a ajuda da astrologia, 4. 4.1 Trata-se da anáfora «mentiras», vv. 56-59; pode combinar-se
criando assim um forte efeito cómico. Por exemplo, saber que o «céo é ainda com a ocorrência de «mentiras», no v. 52. 4.2 Esta anáfora con-
redondo» e que «o sol» é «amarelo», vv. 38-39. tribui poderosamente para a crítica que recai sobre Roma: esta cidade,
2. 2.1 É uma pergunta cuja resposta (vv. 59-61) mostra a vacuidade alegoria do Papado, vive da e pela mentira.
da astrologia. Mais uma vez se reforça aqui a denúncia desta crença 5. 5.1 Roma admite ter sido compradora habitual das mercadorias dia-
através de um efeito cómico. bólicas, ao confessar, referindo-se a elas, «tudo isso feirei,», v. 67.
3. 3.1 É criticado o clero. 3.2 É criticado por não respeitar Deus (v. 84), 6. O Serafim adverte Roma no sentido de mudar de vida – vv. 113 e
por não levar uma vida santa (v. 85) e por viver na riqueza (v. 86). seguintes; ele diz a Roma que a sua vida não é exemplar, pois ofende a
Deus com o seu comportamento.
pp. 33-34
7. Roma passa a ser cliente de Mercúrio, que lhe vende várias merca-
1. 1.1 A primeira mercadoria que o Tempo apregoa são as «virtudes», v. 7. dorias que lhe permitirão mudar de vida; por outro lado, Roma pede-lhe
1.2 Ele não quer vender as «virtudes», mas sim trocá-las pelos seus auxílio para mudar, para se converter. Mercúrio aconselha-a a mudar de
opostos, que reinavam no mundo: a corrupção, o vício, os maus hábitos vida não culpando os outros pelo seu mal, mas verificando que a culpa
da Igreja, enfim, o quadro geral de comportamentos negativos daquele reside nela própria.
momento da história da Cristandade europeia. O que ele quer é uma 8. 8.1 Trata-se de um espetáculo alegórico no qual estas figuras são
transformação do mal para o bem, por isso pretende uma troca – quer alegorias respetivamente da corrupção reinante no Papado, do Mal e
uma mudança de comportamentos. do Bem; trata-se de uma alegoria da luta entre forças maléficas e be-
2. 2.1 Quando o Tempo refere a «Cristandade» designa-a por «toda néficas.
gastada / só em serviço da openião.», vv. 17-18. Ele está, com esta ex-
pressão, a referir-se às questões teológicas que abalavam os cristãos p. 42
europeus; eram fonte de muita divisão, de muitas opiniões diferentes 1. Amâncio acusa a mulher de ser «destemperada», isto é, desaforada,
– que desembocariam na Reforma protestante. ruim, de comer demasiado, sendo gorda.
3. 3.1 O Tempo dirige-se a Deus – «senhor Deos», v. 28. 3.2 Pede a 2. Trata-se de um cómico de situação, o contraste entre ele próprio,
Deus que lembre ao seu anjo da guarda para o proteger, isto é, para que que se diz tão magro que está tuberculoso, «étego», e a mulher, muito
o seu comércio de venda de virtudes corra bem. 3.3 Ele faz este pedido gorda.
pois teme nada vender, uma vez que os compradores só estão interes- 3. 3.1 A antítese é de natureza psicológica: a mulher de Amâncio é má,
sados nos produtos vendidos pelo Diabo – vv. 33-36. violenta, a mulher de Denis é pacífica, «mansa».
4. 4.1 O Serafim convoca para a feira elementos da Igreja institucional: 4. 4.1 No verso «e come verde e maduro;», v. 116, ocorrem duas me-
«igrejas», «mosteiros», padres e bispos («pastores de almas»), e até tonímias: através da referência à cor e ao estado, associamos, por con-
os próprios «papas». 4.2 O Serafim chama-os porque vivem uma vida tiguidade, ambas as palavras respetivamente a fruta verde e a fruta
nada consentânea com o exemplo dos primeiros cristãos, «os anteces- madura. 4.2 «Ele não vai à lavrada,», v. 125, este verso configura uma
sores», v. 41, que tinham levado uma vida de simplicidade, de honesti- metonímia do trabalho devido à palavra «lavrada».
dade e de virtude. 5. 5.1 A vida quotidiana está aqui representada na ida dos populares à
5. 5.1 O Diabo entra em cena vangloriando-se, gabando-se de vender feira, nos encontros que essa ida proporciona, nas conversas que ocor-
tudo o que quer: tem sempre quem se interesse pela sua mercadoria rem sobre a vida de cada um.
pecaminosa. 6. 6.1 As duas mulheres demonstraram grande ignorância e desinte-
6. 6.1 São palavras muito atuais num mundo como o nosso que dá mui- resse relativamente a questões religiosas; para elas o que conta é o
to valor ao dinheiro: valoriza-se quem é rico. E, em nome do dinheiro, clima de festa que a ida à romaria proporciona.
grassa a corrupção, como a imprensa nos mostra diariamente. (Outras
opiniões são possíveis.) p. 47
7. b). 7.1 Trata-se de um recurso expressivo que reforça a ideia da es- 1. 1.1 Este conjunto é, de facto, uma personagem coletiva, pois assume
curidão; como a cor preta está associada, na nossa cultura, ao subter- uma mesma preocupação geral: divertir-se na feira.
râneo, ao inferno, o recurso é expressivo pois aponta no sentido do mal 2. Ninguém responde ao Serafim pois ele apregoa mercadorias religio-
que emana do Demónio. sas e o que todos querem é divertir-se; não se interessam nem com-
8. O Diabo identifica alguns dos seus melhores fregueses: escanda- preendem esses assuntos de índole teológica.
losamente, são membros da Igreja – clérigos e frades; mas também 3. 3.1 Ambos estão interessados somente em divertir-se com as moças,
leigos – vv. 110 e seguintes; mais escandalosamente ainda, aponta can- o que era um dos motivos para frequentar as feiras, noutros tempos.
didatos a bispo como seu fregueses – vv. 155-165; e ainda freiras que 4. Apesar de o Serafim perguntar aos frequentadores de origem popu-
querem fugir do convento. lar da feira se querem comprar «virtudes», eles rejeitam tal possibilida-
de, afirmando – implicitamente – que não precisam de tal e comprazen-
p. 37
do-se na prática de uma religiosidade popular simples – vieram à feira
1. 1.1 Roma é uma personagem alegórica na medida em que, para o em louvor de Nossa Senhora. E é com cantigas populares em louvor da
espetador do auto, simboliza o Papado com todos os seus defeitos. Virgem que o auto termina.
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