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Estava com doze anos, mas, apesar da idade, não conseguia entender a razão
para a quantidade de aviões sobrevoando a cidade onde morava. Ela recebia vôos diários,
porém, naquele dia, os aviões eram diferentes e faziam percursos também diferentes, era
o dia era 31 de março de 1964. Eu não entendia os temores de meu pai, mais
especialmente seu medo de perder o emprego público. Quando tinha que tratar dos
acontecimentos que estavam mexendo com a sua rotina cotidiana baixava a voz. O rádio,
ele pouco ouvia no horário do meio-dia, uma vez que chegava sempre muito apressado e
preocupado em voltar dali a pouco mais de uma hora. No turno da noite aí, sim, ele ouvia o
programa de rádio, que se tinha transformado em “atividade” obrigatória para milhares de
brasileiros desde os anos quarenta.
Não obstante a idade, eu ainda não tinha começado o curso ginasial, fato que
só ocorreria no ano seguinte, na escola que era destinada aos filhos dos segmentos mais
pobres da sociedade, a Escola Industrial de Teresina. Geralmente, àquela época, os pais
eram semi-analfabetos e muito pobres, não possuíam assinatura de jornal; e mesmo que
tivessem acesso a esse meio de comunicação, dificilmente teriam condições de
dimensionar o que estava ocorrendo no País e relacionar o acontecimento com o meu
futuro e o futuro de dezenas de milhares de outros jovens da mesma idade espalhados
pelo Brasil afora. Demoraria ainda alguns anos para compreender o que se havia passado
naquele dia sombrio.
O movimento das tropas que davam sustentação ao golpe desferido contra a
experiência democrática vivida pela sociedade brasileira tinha começado naquele dia, mas
se estenderia até ao dia 2 de abril, quando as notícias transmitidas através do rádio davam
conta de que o presidente da República, o sr. João Goulart, tinha deixado o País rumo ao
Uruguai e os militares se preparavam para assumir o comando do Estado brasileiro.
Começava uma longa noite para as instituições democráticas, para os cidadãos que
ousavam discordar daqueles que se tinham assenhoreado do poder político nacional.
Em duas oportunidades, foi mencionada a palavra rádio. O rádio, no
mencionado período, apesar da existência da TV no Sul do País, ainda era o principal meio
f
alcides@ufpi.br e falcide@uol.com.br
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Veloso, que chegou à emissora na década de 1970, tem uma opinião diferente
sobre o programa mencionado. Defende que o mesmo não chegou a ser retirado do ar
porque “lá dentro a lei era severa”. Isso quer dizer que o proprietário da emissora tinha
AUTOCENSURA muito cuidado para não ser advertido pela Polícia Federal Mas confessa que “o diretor de
jornalismo era a pessoa mais controlada que tinha pela Polícia Federal”. A acrescenta que
“todos nós tínhamos carteira, fomos tirar carteira na Polícia Federal e eu ainda tenho a
minha guardada, o número parece que é 18”. Parece não haver dúvida sobre a tentativa de
a Polícia Federal controlar aqueles que trabalhavam nas emissoras de rádio espalhadas
pelo Brasil. Esse mesmo homem de rádio afirmou que a emissora em que trabalhava
recebia a visita de agentes da Polícia Federal no horário dos programas jornalísticos, para
avaliarem as notícias que deveriam ser lidas. Era uma forma de controle e também de
intimidação.
Por outro lado, Veloso chegou à emissora seis anos depois da implantação do
regime militar, um momento diferente daquele, talvez a censura fosse até mais
“cuidadosa”. O fato é que Francisco Figueiredo de Mesquita foi preso e o programa que
apresentava tirado do ar. Esse fato está relacionado ao tipo de programa. Voltado para
discutir alguns problemas sociais que atingiam à sociedade e que, na opinião do
apresentador, não recebiam a atenção dos governantes. E depois porque a emissora tinha
antecedentes que a desabonavam. Havia aderido à Rede da Legalidade em 1961, quando
o então governador do Rio Grande do Sul utilizou os microfones da Rádio Farroupilha para
assegurar a posse de João Goulart na vaga deixada pelo presidente Jânio Quadros.
Acrescente-se que o programa era levado ao ar de segunda a sábado, sempre às 12h40,
horário em que praticamente todos os que trabalhavam fora de casa tinham retornado para
o almoço.
Essas informações são corroboradas por outro homem de rádio, Joel Silva,
considerado por um diretor da Rádio Pioneira de Teresina como um ícone do Rádio no
Piauí. Na opinião de Joel Silva, todo o sistema foi submetido a uma ordem radical, as
emissoras tinham que se limitar a cumprir o que era determinado pelas Forças Armadas.
Os diretores tinham que observar as leis, os decretos.
Nós éramos cadastrados, não era só o registro, nós tínhamos que
fazer o cadastro na Polícia Federal para podermos exercer nossa
utilidade. Nossa dificuldade estava em cumprir um protocolo
rigoroso. A programação musical tinha que ser encaminhada para o
Departamento Cultural com 24 horas de antecedência, onde eram
feitas as devidas observações e era carimbada quando autorizada.
Então, eram essas as dificuldades do ponto de vista técnico. Do
ponto de vista ideológico nós não tínhamos uma posição assim
muita definida. O nosso foco era a comunicação. (SILVA, 2002).
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locutor. Todavia Veloso nos informa que durante algum tempo a emissora onde trabalhava
foi proibida de lançar mão dessa estratégia.
Teve um período no Regime Militar, que foi proibido. Três ou quatro
anos nós passamos sem poder botar nenhum telefonema no ar,
nem um programa musical nem jornalismo, de jeito nenhum. Depois
foi aberto para os programas só dia de domingo, programas de
variedades. Tinha o programa do Joel Silva, na Rádio Pioneira, e o
de Fernando Mendes, na Rádio Clube, que era Variedades
Fernando Mendes, era a manhã toda. Um na Rádio Pioneira, outro
na Rádio Clube, esses que botavam no ar pedidos de música. Não
falavam nada de política. (VELOSO, 2003).
Por sua vez, a Rádio Pioneira de Teresina era reconhecidamente a mais visada
– segundo atores sociais que trabalhavam na emissora – pelos militares, em virtude do
projeto de rádio que vinha desenvolvendo, no qual colocava os microfones a serviço da
comunidade, e também porque, mesmo sendo respeitado pelas “novas” autoridades, Dom
Avelar Brandão Vilela não era bem visto por elas. A ação social da arquidiocese
comandada pelo bispo, na educação, na saúde, junto aos trabalhadores rurais, colocava-o
na mira dos militares. Chegou-se a dizer que Dom Avelar Brandão Vilela era incentivador
das Ligas Camponesas no Piauí. Isso não é verdade, porém incentivou a atuação da Igreja
Católica na montagem de sindicatos rurais, desenvolvendo uma fórmula de afastar os
homens e mulheres da esfera de atuação do Partido Comunista ou de setores mais
radicalizados da sociedade brasileira. Desenvolveu atividade pastoral e social voltada para
os segmentos sociais menos assistidos pelo poder público. Esta preocupação revestiu-se
em projetos agrícolas, como aquele liderado pelo padre José Anchieta Cortez, localizado
na região sul do estado, chamada de Colônia do Gurguéia. Dom Avelar buscou apoio junto
ao governo federal e conseguiu que alguns instrumentos de infra-estrutura ali fossem
implantados, sendo implementado um programa de colonização. Os trabalhadores da zona
rural de Teresina também receberam a atenção de Dom Avelar. Os militares provavelmente
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Trabalhando como discotecária, Ana Maria Silva lembra, como fez Veloso, que
no início da década de 1970 não se podia abrir o microfone para o ouvinte e, quando isso
era feito, o ouvinte só podia pedir música. Era orientado “olha não pode falar nada a não
ser música”. Nessa época, os programas de disc-jóqueis tinham muita audiência por conta
disso, porque locutor não podia fazer outra coisa a não ser tocar música e, assim mesmo,
era censurado.
A escolha das músicas para serem rodadas nos programas tinha que ser
cuidadosa. Nem todas as canções da música popular brasileira podiam ser veiculadas.
Canções compostas por Chico Buarque de Holanda precisavam passar por uma seleção
criteriosa para não atrapalhar o programa. As músicas de protesto, quaisquer que fossem,
eram censuradas. Os responsáveis pelos programas de animação comunitária não podiam
utilizar canções que denotassem qualquer tipo de crítica, porque tinham o trabalho
censurado. A vivência de Ana Maria na Pioneira, como discotecária, permitiu que
aprendesse a lidar com os censores.
Eu vivi uma experiência muito forte que ainda hoje marca a minha
vida por conta de uma música que eu coloquei no ar. Não sei se eu
posso já falar assim agora, né? Foi uma música chamada Apesar
de Você, do Chico Buarque. Nessa época, quando eles
[representantes das empresas fonográficas] queriam jogar a música
no ar, mandavam não o LP, aquele disco grande, mas aquele
compacto simples, com uma única música de um lado e do outro.
Eles mandavam no afã de lançar a música logo. Antes a gente fazia
uma relação das músicas que seriam rodadas durante todo o mês e
mandava para a Polícia Federal que autorizava. Como eu era
programadora musical mandei a relação que seria rodada naquele
mês pra Polícia Federal. Veio o carimbo autorizando. Só eram
colocadas no ar as músicas autorizadas. Em qualquer programa,
durante toda a programação de rádio, em qualquer horário, tinha a
relação. A gente tinha que mandar a relação e eles carimbavam,
dando OK. Se viesse alguma observação dizendo ”Essa aqui não
pode ser tocada”, não era tocada. Chegou o disco Apesar de Você,
do Chico Buarque, e eu, no afã da Rádio Pioneira tocar antes das
outras emissoras (existia também essa concorrência), peguei o
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Pedro Mendes Ribeiro avalia que Dom Avelar Brandão Vilela foi um dos homens
mais visados pelos militares. “Sobretudo porque aventureiros e muitas pessoas
desqualificadas chamavam-no de comunista e chegaram até a pedir, a exigir a prisão de
Dom Avelar”. (RIBEIRO, 2002). Informações colhidas junto à Guarnição Federal, 2°
Batalhão de Construção, 25° Batalhão de Caçadores e 10ª Circunscrição Militar davam
conta de que os militares estavam recebendo solicitações no sentido de que Dom Avelar
fosse preso. Pedro Mendes Ribeiro, à época ocupando a direção de jornalismo da
emissora, juntou a equipe e foi ao Palácio prestar solidariedade ao bispo. “Quem fez o
discurso hipotecando solidariedade a Dom Avelar fui exatamente eu. Escrevi em nome de
todos os colegas. Ao responder o discurso, Dom Avelar pediu permissão para fazê-lo
sentado. Ele estava emocionado, não podia ficar de pé” (Id. Ibid.).
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Sob este aspecto, Deoclécio Dantas, que trabalhou na emissora entre 1964 e
1979, no período mais intenso da ditadura, avalia que os problemas criados pela censura
foram imensos:
A Rádio Pioneira era censurada diariamente. Eu, por exemplo, já
nesse tempo como diretor de jornalismo da emissora, recebia
diariamente uma visita do agente federal, que levava um livro com
um papel cortado, papel tipo ofício, mas cortado em faixas, aí dizia
lá: ‘De ordem superior, nada pode ser divulgado sobre o
pronunciamento de Dom Hélder Câmara feito em Recife. No outro
dia chegava outra censura: ‘De ordem superior, nada pode ser
divulgado sobre o surto de meningite em São Paulo’. Noutro dia
chegava outro edital: ‘De ordem superior nada pode ser divulgado
sobre o discurso do General Albuquerque Lima, feito em Recife’.
Certo dia chegou outro edital: ‘De ordem superior nada pode ser
divulgado a respeito da renúncia do governador do Paraná, seu
Aroldo Leão Pires’. Eu não sabia nem que o cara tinha renunciado.
Quer dizer, a censura terminava colocando a gente a par do fato
[...]. A Pioneira era muito patrulhada, era imensamente patrulhada.
(DANTAS, 2002).
Dom Avelar Brandão Vilela reagia a tais atitudes com um misto de habilidade e
indignação. Em resposta a um militar do Exército, que teria afirmado, sobre uma matéria
divulgada pela emissora, que Dom Avelar “não estava atento às necessidades de
preservação da ordem democrática", Dom Avelar teria respondido de forma diplomática,
mas também corajosa:
Muita gente possuía rádio, muita gente mesmo. Tinha casa que
existia em mais de uma dependência, assim como hoje a televisão
no quarto, na sala. Lá os locais eram ocupados pelo rádio. As
pessoas acompanhavam assim. Tinha até uma história de uma
gomadeira que ela só ia gomar nas casas se pudesse levar o rádio
dela. Era viciada em rádio. Chegou um dia em que ela disse assim:
“Eu tô notando que o som do meu rádio está fugindo”. Era o ladrão
que estava levando o rádio. (VELOSO, op. cit.).
Por fim, tenha esta história acontecido ou não, isso é o que menos importa,
tendo em vista que ela nos remete para um fato que pode ser constatado a qualquer
momento. Basta entrar em uma oficina mecânica, visitar uma construção civil ou tomar um
táxi, que as pessoas podem ser vistas, trabalhando e, sem nenhum impedimento, ouvindo
sua música preferida através das ondas do rádio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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