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Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia

LIBERDADE E NÃO-LIBERDADE EM O CAPITAL DE KARL MARX

Carlos Prado 1

RESUMO:
O objetivo central do presente artigo é analisar a problemática em torno da liberdade em O Capital de Karl
Marx. A exposição dialética nos revela que sob o modo de produção capitalista o homem aparece como “livre” e
“não-livre” ao mesmo tempo. A positividade da liberdade do capital se revela mediante a análise do mercado e a
circulação de mercadoria que exigem relações entre homens formalmente livres e iguais. Por outro lado, a
negatividade da liberdade se expressa no domínio do capital sob as relações de produção, no fetichismo, na
autocracia do capital sob o trabalho. Liberdade e não-liberdade coexistem no interior das relações capitalistas,
uma aparece como pressuposto da outra.

Palavras-chave: Dialética, Modo de Exposição, Capital, Liberdade.

ABSTRACT:
The main objective of this article is to analyze the issues surrounding liberty from “The Capital” by Karl Marx.
The exposition method reveals that under the capitalist mode of production liberty is contradictory, the man
appears as “free” and “non-free” at the same time. The positivity liberty in capital is revealed by analyzing the
market and the movement of goods that require relationship between men formally free and equal. Moreover, the
negativity liberty is expressed in the capital area under the relations of production, fetishism, the autocracy of
capital under Labour. Liberty and unliberty coexist in capitalist relations, appears as a prerequisite for another.

Key words: Dialectic, Exposition Method, Capital, Liberty.

Introdução

2
O objetivo do presente trabalho é compreender a questão filosófica da liberdade a
partir da análise de O Capital de Marx. Buscaremos analisar como o conceito de liberdade é
exposta ao longo da obra. A compreensão sistemática de O Capital só pode ser alcançada
mediante uma análise de seu método expositivo. A exposição desenvolvida por Marx é
completamente estranha ao método aplicado pelos economistas clássicos. O Capital não deve
ser compreendido como uma obra de Economia Política, mas sim, como uma obra filosófica,
à luz da filosofia de Hegel e da tradição dialética, nascida entre os filósofos gregos da
antiguidade.
Acerca do movimento expositivo de O Capital, Marx (1982, p. 15) afirma que “o
curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo corresponde ao
processo histórico efetivo”. O método de avançar do abstrato para o concreto, ou seja, de

1
Mestre em Filosofia e professor da Uniderp Anhanguera.
2
O presente artigo é um resumo da minha dissertação de Mestrado.
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tratar o concreto, a totalidade histórica, a partir de suas determinações mais abstratas e


simples, era para Marx, o método expositivo correto. O movimento pode ser denominado
como do abstrato ao concreto, da aparência à essência. Assim, o conceito de capital é
desenvolvido a partir de suas formas mais simples e aparentes, avançando para as formas mais
complexas e concretas.
O movimento dialético toma a princípio, o aparente como verdadeiro, toma as
formas e categorias da sociedade capitalista como elas aparecem à consciência imediata.
Partindo dessas formas abstratas, Marx inicia o processo negativo, ultrapassando a aparência e
desvelando a realidade que se esconde por trás das formas mistificadoras. O percurso de O
Capital pode ser compreendido como um caminho no qual Marx vai desmistificando vários
mitos e ilusões da sociedade burguesa, combatendo a Economia Política e revelando as
contradições imanentes ao capital. Superando as formas aparentes e abstratas, a exposição
segue crescendo em determinação e revelando os pressupostos históricos, sociais, políticos e
econômicos da sociedade produtora de mercadorias.
A ordem do discurso em O Capital é rigorosa e bem delimitada, constituindo um
todo articulado que ao mesmo tempo em que desenvolve o conceito de capital, traz a sua
negatividade. A exposição dialética parte das formas aparentes, apenas para abandoná-las em
seguida. Afirma-se num primeiro momento, apenas para negar num segundo e, assim,
progredir na superação das ilusões, desmistificando e revelando suas contradições do capital.
O presente texto se apóia teoricamente na interpretação que Benoit desenvolve sobre
o modo de exposição de O Capital. 3 Segundo ele, o método dialético de Marx é o próprio
modo de exposição.
A dialética é o instrumento metodológico que permite a Marx tentar superar a forma
analítica de sua pesquisa, ou seja, a dialética é o método através do qual Marx
procura reconstruir a totalidade viva do real. Isto é, a dialética seria o logos que
procura reconstruir a totalidade viva do real como esta se apresentar antes e aquém
da ruptura analítica de um sujeito que, por abstrações perceptivas, se aproximou de
partes desta totalidade, a dividindo e a recortando. Aqui estaria a necessidade da
dialética em Marx: como e enquanto modo de exposição: a dialética seria o retorno
sintético do analítico ou a reconstrução correta do universal.” (BENOIT, 2003).

Benoit destaca que Marx, utiliza-se da dialética, para reconstruir uma totalidade
concreta e viva do real. Dessa forma, o modo de exposição de O Capital rompe com o método
da Economia Política, pois esta se fundamenta no método empírico-indutivo. A Economia
encontra suas bases fundamentais na consciência empírica, individual, que se constrói a partir

3
Utilizamos como referência, principalmente os textos “Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital” e
“Sobre a crítica (dialética) de O Capital”.
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dos dados dos sentidos. Por sua vez, Marx busca construir uma unidade entre a forma de
representação lógica e histórica. Não se trata apenas de uma forma lógica, como a
representação neokantiana ou neopositivista, tampouco se trata de uma forma histórica, como
o historicismo. Trata-se de uma forma expositiva que busca a unidade entre o tempo lógico e
histórico, uma estrutura sincrônica e diacrônica. Unidade contraditória entre o ser e o devir
que compreende uma representação concreta do real, ultrapassando as formas abstratas e
empíricas mediante o movimento de negação.
A dialética enquanto modo de exposição busca construir a relação contraditória entre
o lógico e o histórico. Segundo Benoit (2003): “trata-se de discursar num logos que vai ao
mesmo tempo superando a própria gramática geral da realidade, que vai dissolvendo as
categorias que utiliza, que vai negando dialeticamente a morfologia e a própria sintaxe do
modo de produção existente”. A dialética de O Capital é um modo de exposição do real que
reconstrói a própria realidade em logos contraditório. Trata-se de uma exposição que se
constrói pela desconstrução negativa.
O modo de produção capitalista se organizou sob a bandeira da liberdade e da
igualdade. O capitalismo teria produzido um enorme progresso nas relações jurídico-sociais
estabelecidas entre os homens. A liberdade conquistada pelo capital desenvolveu a liberdade
civil e a igualdade jurídica entre os cidadãos, acabou com os privilégios legais classe,
declarando todos os homens iguais perante a lei. Sob o modo de produção capitalista, os
indivíduos aparecem como independentes e autônomos entre si, são postos como iguais e não
divididos em classes antagônicas.
Presos a essas concepções, os filósofos e economistas burgueses e conservadores,
afirmam que a sociedade capitalista e a República democrática são garantidoras da liberdade
civil dos indivíduos, bem como da igualdade jurídica entre os cidadãos. Mas ao contrário do
que afirmavam os filósofos iluministas, os racionalistas ou os economistas ingleses, Marx
revela que na sociedade capitalista a liberdade não é apenas positiva, mas também negativa.
Trata-se de uma liberdade contraditória, na qual os indivíduos aparecem como livres e não-
livres ao mesmo tempo. Negando as formas aparentes e fantasmagóricas, Marx expõe ao
longo da obra, não apenas as contradições do capital, mas também revela, de maneira
dialética, as contradições da liberdade burguesa.
O presente artigo tem como hipótese central a afirmação de que o conceito de
liberdade em O Capital de Marx, só pode ser apresentado como uma teoria positivo-negativa
da liberdade. Marx se esforça por demonstrar os limites da liberdade burguesa, ressaltando

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que sob o modo de produção capitalista a liberdade é contraditória. O homem “é” e “não-é”
livre.
Seguindo a exposição da obra e o desenvolvimento das contradições do capital, a
presente pesquisa buscará desenvolver o conceito de liberdade, revelando suas contradições,
sua positividade e sua negatividade, demonstrando que o modo de produção capitalista não é
apenas o reino da liberdade, mas também não é o reino do absoluto e incondicional domínio
do capital sob o trabalhador. Buscaremos demonstrar um conceito dialético de liberdade, no
qual a liberdade e a não-liberdade são os pressupostos da produção de mercadorias.

A liberdade na esfera da circulação de mercadorias

A exposição se inicia com a análise da esfera da circulação simples de mercadorias


(seções I e II – capítulos I ao IV). Trata-se do nível mais imediato e abstrato da sociedade
capitalista. O importante a se destacar é que nesse nível da exposição, as classes sociais estão
ocultadas e aparecem na forma de proprietários livres, autônomos, independentes e iguais que
se encontram no mercado e trocam mercadorias equivalentes. As determinações históricas da
produção capitalista ainda não aparecem, estão apenas pressupostas. Na esfera da circulação,
reina a liberdade e igualdade entre os produtores de mercadorias. No entanto, as contradições
já aparecem, pois se trata de uma liberdade que pressupõe a não-liberdade, que por sua vez, já
se revela na análise do fetiche da mercadoria, no processo de troca e no enigma da mais-valia.
Marx discute no primeiro capítulo de O Capital a teoria do valor. A igualdade que as
mercadorias expressam em seus valores de troca é reflexo da igualdade dos trabalhos que a
produziram. No mercado, as mercadorias que foram produzidas por trabalhos simples são
legitimamente trocadas por mercadorias que foram fabricadas por trabalhos complexos. O
trabalho mais simples, braçal ou manual é equiparado ao trabalho mais complexo, qualificado
e técnico. A lei do valor trata de equiparar as mercadorias distintas e reduzi-las a uma unidade
comum. Esse elemento unificador é o igual trabalho humano abstrato. 4
Na sociedade regida pela lei do valor, o processo que transforma o trabalho privado
em trabalho social é o mesmo em que o trabalho concreto transforma-se em trabalho abstrato.
Esse processo que iguala os trabalhos e as mercadorias enquanto valores, por conseguinte,

4
“A simplicidade indiferenciada do trabalho é, em primeiro lugar, igualdade dos trabalhos de diferentes
indivíduos, relacionamento recíproco de seus trabalhos como iguais, e isso mediante uma redução de fato de
todos os trabalhos a um trabalho de igual tipo. O trabalho de qualquer indivíduo, enquanto se apresente valores
de troca, possui esse caráter social de igualdade, e só se apresenta no valor de troca enquanto se relacione como
igual com o trabalho de todos os outros indivíduos” (MARX, 1982, p. 34 – grifos do autor).
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iguala também os produtores de mercadorias. Portanto, a igualdade jurídica entre os


produtores de mercadorias se fundamenta na unidade determinada por meio da lei do valor, se
fundamenta no caráter abstrato do trabalho que reduz todas as diferenças dos múltiplos
trabalhos concretos a uma unidade comum. Se a substancia do valor é o trabalho abstrato,
indiferenciado, simples dispêndio fisiológico, a grandeza do valor é o tempo de trabalho, ou
melhor, um tempo médio, denominado de “trabalho socialmente necessário”.
Diante da lei do valor o produtor de mercadorias e o trabalho concreto, possuidores
de múltiplas determinações são apagados e reduzidos a uma determinação econômica e
quantitativa, a uma média social. A lei do valor carrega em si um princípio de igualdade, pois,
ela iguala, apaga e esconde toda a multiplicidade, criando uma média social, que transforma a
diferença em igualdade.
A sociedade capitalista tem suas relações sociais edificadas a partir dessa igualdade
abstrata produzida pela lei do valor. A igualdade entre os trabalhos produz a igualdade entre
as mercadorias, que por sua vez, produz a igualdade entre os seus produtores. No mercado,
não são apenas os trabalhos e as mercadorias são igualadas, mas também os seus produtores.
Entre eles também se constitui uma igualdade jurídica. “A igualdade dos produtores
mercantis, enquanto organizadores de unidades econômicas individuais e contratantes de
relações de troca, expressa-se na igualdade entre os produtos do trabalho como valores”
(RUBIN, 1980, p. 84 – grifos nossos).
A própria imposição da lei do valor que reduz a multiplicidade à unidade, permitiu
que se estabelecesse a igualdade jurídica entre todos os agentes econômicos. Na sociedade
capitalista, a igualdade mercantil, estabelecida na base da produção capitalista foi reproduzida
na esfera política mediante a constituição da igualdade jurídica entre os agentes econômicos.
A transformação da igualdade mercantil, em igualdade política, não ocorreu de maneira
automática, ela foi conquistada mediante um processo de lutas sociais, com as revoluções
burguesas e as lutas do proletariado. Assim, diante de inúmeras revoluções, a condição de
igual também pôde ser ampliada a todos os agentes da produção capitalista.
A lei do valor não é apenas um princípio que regula o processo de troca de
mercadorias, ela aparece como o fundamento da circulação de mercadorias e de toda a
organização da produção e reprodução da sociedade capitalista, ultrapassando os limites da
esfera estritamente econômica. A lei do valor não surge com o capital, mas é somente na
sociedade capitalista que ela se encontra plenamente desenvolvida. E é essa lei que também
aparece como o fundamento da organização política burguesa. O Estado moderno capitalista

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democrático se organizou sob a bandeira da liberdade e da igualdade. Liberdade e igualdade


jurídica e abstrata que encontram o seu fundamento na lei do valor, na troca e circulação das
mercadorias. Para o desenvolvimento da produção capitalista, a burguesia necessitava e
construiu um Estado onde predominasse a igualdade e a liberdade individual.
Antes de investigar como as mercadorias circulam no mercado e como elas são
trocadas, Marx analisa o que ele denominou de fetiche da mercadoria. A teoria do fetiche é
sem dúvida um dos principais temas tratados por Marx em O Capital. Trata-se, pois, de uma
problemática de extrema importância para a compreensão não apenas da mercadoria em si,
mas para o entendimento de toda dinâmica da sociedade capitalista e também da própria
liberdade na sociedade burguesa.
Segundo Marx (1983, p. 71), o fetiche “não é mais nada que determinada relação
social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas”. O fetiche provoca uma inversão, na qual as relações sociais entre
homens determinados são apagadas e em seu lugar aparece uma relação entre coisas. Não são
mais os homens que se relacionam entre si na esfera do mercado, mas as mercadorias por eles
produzidas. Por conseguinte, o intercambio de mercadorias reflete uma relação social entre os
produtos, entre as mercadorias e não entre homens. Na sociedade capitalista não ocorrem
relações sociais entre produtores e relações materiais entre as coisas, mas, o contrário, pois o
fetiche produz relações sociais entre coisas e relações materiais entre as pessoas. 5
O fetiche da mercadoria reproduz a dramática história do criador que perde o
domínio sobre a criatura que ele mesmo criou. Como num passe de mágica a criatura criada
pelas mãos dos homens ganha poderes enigmáticos e passa a dominar o seu criador. Quando
valores de uso são transformados em mercadorias, o criador perde a autoridade que por ele era
exercida, o produtor perde o controle sobre a mercadoria por ele mesmo produzida.
O grande mérito de Marx foi demonstrar como as relações sociais de produção são
encobertas por relações meramente materiais, por conseguinte, a subjetividade e a liberdade
dos homens é reduzida e submetida aos desejos e vontades da mercadoria. Marx demonstra
que concomitante a liberdade jurídica imposta pelo capital paira a não-liberdade. Pois, o
fetiche da mercadoria transforma os homens em servos, não de senhores, reis ou deuses
mitológicos, mas, dos produtos que eles mesmos criaram. A não-liberdade dos agentes

5
“Marx não mostrou apenas que as relações humanas eram encobertas por relações entre coisas, mas também
que, na economia mercantil, as relações sociais de produção assumem inevitavelmente a forma de coisas e não
podem se expressar senão através de coisas. A estrutura da economia mercantil leva as coisas a desempenharem
um papel social particular e extremamente importante e, portanto, a adquirir propriedades sociais específicas”
(RUBIN, 1980, p. 20).
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econômicos se revela diante do processo de reificação, os produtores de mercadorias


aparecem simplesmente como servos e escravos submetidos aos ditames das criaturas criadas
por eles próprios, ou seja, servos das mercadorias.
No segundo capítulo de O Capital, Marx analisa o processo de troca de mercadorias.
Apesar dos poderes fantásticos e enigmáticos que os produtos do trabalho adquirem ao
tornarem-se mercadorias, elas não podem caminhar sozinhas até o mercado e, portanto, são
dependentes da vontade dos homens, aqueles que são os seus legítimos possuidores. A
princípio, a troca de mercadorias é uma relação social determinada pela livre vontade dos
homens, os seus produtores. “As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem
resistência ao homem” (MARX, 1983, p. 79). A primeira vista, a troca aparece como um
processo, no qual homens conscientes, juridicamente livres, iguais e proprietários de
mercadorias se relacionam no mercado em busca da satisfação de suas necessidades.
É no processo de troca que a lei do valor efetivamente iguala os trabalhos e as
mercadorias enquanto valores e, é a partir desse processo que se estabelece a igualdade entre
os produtores das mercadorias. O processo de troca só pode se concretizar de acordo com o
livre consentimento de ambos contratantes. Nenhum guardião se apropria da mercadoria
alheia se não mediante a vontade livre da outra parte. Essa relação de troca estabelece,
portanto, uma “relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvido legalmente ou não, é
uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica.” (MARX, 1983, p. 79). O
processo de troca no qual se relacionam as mercadorias e os seus guardiões é também uma
relação jurídica que, por sua vez, seja legalizada ou apenas formalizada se orienta pelos
princípios da liberdade e igualdade. Essa igualdade jurídica, só se realiza mediante a
igualação social do trabalho que, por sua vez, também só se realiza por meio da igualdade das
mercadorias enquanto valores que mudam de mãos no mercado.

A relação jurídica que emerge do processo de troca é uma relação na qual os


guardiões das mercadorias se reconhecem como livres e iguais entre si. Sobre esse processo,
Rubin (1980, p. 102) afirma que: “O ato de troca é um ato de igualação. Esta igualação das
mercadorias trocadas reflete as características sociais básicas da economia mercantil: a
igualdade dos produtores de mercadorias”. Sob o modo de produção capitalista, as
mercadorias só podem circular mediante um processo social que coloca os contratantes na
condição de iguais e livres. Iguais por que só se trocam mercadorias que possuem o igual

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valor e nenhum agente da troca obtém privilégios. 6 Os indivíduos são livres por que só são
trocadas mercadorias de acordo com sua vontade.
Contudo, Marx afirma que as relações de troca não se encerram com essas
determinações, a troca de mercadorias não é puramente um processo determinado pela
igualdade e liberdade dos agentes econômicos. Marx revela que essa relação jurídica reflete
uma relação econômica e já no primeiro parágrafo do segundo capítulo, o movimento
dialético negativo é lançado. “O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por
meio da relação econômica mesma” (MARX, 1983 p. 79). Ao revelar que o conteúdo do
processo de troca de mercadorias é um conteúdo econômico, Marx revela que o intercâmbio
de mercadorias não seria determinado apenas pela livre vontade ou pela necessidade dos
homens, mas, em última instância, pela própria necessidade da mercadoria.
O conteúdo das trocas seria uma relação econômica que está além da subjetividade,
dos desejos e da consciência dos guardiões das mercadorias. A troca de mercadorias não é
uma necessidade imanente do homem que para satisfazer suas necessidades se desloca até o
mercado, aliena uma mercadoria em troca de outra, mas pelo contrário, esse intercâmbio é
determinado pela própria necessidade da mercadoria em realizar-se como valor de troca. Marx
demonstra que nesse processo os homens são livres e iguais para trocarem suas mercadorias,
mas essa liberdade dos agentes da produção é fundada na não-liberdade, pois o processo de
troca representa não a realização das vontades e necessidades dos homens, mas, a realização
das vontades e necessidades das próprias mercadorias.
Aqui se revela o quanto à liberdade é contraditória sob o modo de produção
capitalista. Por um lado, o homem aparece como livre, pois as relações de troca são reguladas
pela liberdade e igualdade jurídica entre os contratantes. Por outro lado, a liberdade é negada.
Pois, o homem produtor de mercadorias se torna submisso aos desejos e vontades da sua
criação. O mérito de Marx foi ter penetrado a fundo nas relações econômicas de troca,
ultrapassado a superfície das relações burguesa, revelando que a liberdade dos homens sob o
modo de produção capitalista anda de mãos dadas com a não-liberdade.
A exposição de O Capital prossegue com a investigação da transformação do
dinheiro em capital. Tal processo é o pressuposto da produção e circulação de mercadorias no

6
“Não estamos nos referindo a igualdade de possuírem iguais meios de produção materiais, mas à sua igualdade
enquanto produtores mercantis autônomos, independentes uns dos outros. [...] Marx não está tratando de um
postulado ético de igualdade, mas da igualdade dos produtores mercantis enquanto fato social básico da
economia mercantil. Repetimos: não da igualdade no sentido de igual distribuição de bens materiais, mas no
sentido de independência e autonomia entre os agentes econômicos que organizam a produção” (RUBIN, 1980,
p. 102 - 103).
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mercado capitalista. Não obstante, o surgimento do capital exige que se transforme também a
forma de circulação de mercadorias. Enquanto o dinheiro funciona como dinheiro, as
mercadorias circulam na forma M – D – M, todavia, essa forma de circulação não possibilita a
transformação do dinheiro em capital. Para tanto, é preciso que as mercadorias circulem sob
uma forma mais desenvolvida, que é a circulação capitalista de mercadorias, D – M – D. 7
O processo de circulação simples de mercadorias (M – D – M) se caracteriza pela
transformação de mercadoria em dinheiro e, posteriormente, transformação de dinheiro em
mercadoria. O processo começa com a venda e termina com a compra, resume-se em vender
para comprar. Já o processo de circulação capitalista de mercadorias (D – M –D) se
caracteriza pela transformação de dinheiro em mercadoria e, posteriormente, transformação
de mercadoria em dinheiro. O processo começa com a compra e termina com a venda,
resume-se em comprar para vender. O dinheiro é o ponto de partida e o ponto de chegada do
movimento, enquanto que a mercadoria é o mediador do processo. A finalidade é o dinheiro.
Todavia, é preciso deixar claro que não se troca dinheiro por dinheiro. Pois, “o mesmo pelo
mesmo, parece uma operação tão sem finalidade quanto insossa” (MARX, 1983, p. 128).
Se ao final do processo se retira da circulação mais dinheiro do que foi adiantado
inicialmente, então a forma completa do processo é D – M – D`, em que, D` = D + ΔD.
Portanto, o resultado do processo é igual à soma de dinheiro que foi originalmente adiantado
mais um acréscimo. “Esse incremento, ou o excedente sobre o valor original, chamo de –
mais valia” (MARX, 1983, p. 128). O dinheiro que foi adiantado no início do processo sofreu
uma alteração quantitativa, pois ele se valorizou, foi acrescida uma mais-valia. É esse
movimento que incrementa ou aumenta a grandeza do dinheiro que o transforma em capital.
A única razão de ser da circulação capitalista é a expansão do valor e essa razão é
personificada pelo capitalista que tem sede e paixão pelo enriquecimento, ele é a
personificação do capital e, por isso, possui um ardor insaciável pela permanente expansão e
valorização do valor. “Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro
torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de
retorno do dinheiro” (MARX, 1983, p. 129). Aqui, é determinado historicamente o
surgimento da classe capitalista, como a classe que personifica a vontade do capital. Portanto,
o capitalista é tão livre como qualquer possuidor de mercadorias, ou seja, ele só é livre na

7
“O circuito D-M-D oculta, portanto, sob as formas de dinheiro e mercadoria, relações de produção mais
desenvolvidas, e constitui dentro da circulação simples nada mais do que um reflexo de um movimento superior”
(MARX, 1982, p. 91).
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medida em que atua em função do capital. Sua subjetividade é determinada antes de tudo, pela
lógica da circulação capitalista, pela lógica do lucro.
Após desvendar a fórmula geral do capital D – M – D`, a exposição avança e Marx
busca compreender de que maneira a grandeza do valor se eleva, ou seja, a grande questão em
pauta é de onde surge a mais-valia? Marx afirma que o possuidor do dinheiro precisa
encontrar na esfera da circulação uma mercadoria que seja em seu próprio consumo fonte de
valor. “E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica – a
capacidade de trabalho ou força de trabalho” (MARX, 1983, p. 139). A única mercadoria
disponível no mercado que é capaz de criar valor e aumentar a sua grandeza, possibilitando
que dinheiro seja transformado em capital é a capacidade de trabalho ou força de trabalho.
Para que o capitalista encontre força de trabalho disponível no mercado é preciso que
algumas condições sejam estabelecidas. “Para que seu possuidor venda-a como mercadoria,
ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprietário [freier Eigentümer] de sua
capacidade de trabalho, de sua pessoa” (MARX, 1983, p. 139). Qualquer vendedor de
mercadorias para que possa ofertá-las no mercado, precisa antes possuí-las. Um escravo, por
exemplo, não é livre proprietário de si mesmo, não é dono da sua força de trabalho e,
portanto, não poderia ofertar sua força de trabalho. A venda da força de trabalho só pode ser
realizada por homens livres.
A relação que se estabelece no mercado entre o comprador da força de trabalho e o
seu vendedor é uma relação jurídica, na qual ambos se reconhecem como iguais e não há
privilégios para nenhuma parte. O intercâmbio entre capital e trabalho é uma relação situada
na esfera da circulação, pois, trata-se de uma relação entre dinheiro e mercadoria. 8
Pressupostas estas condições fundamentais, Marx afirma que a venda da força de
trabalho só pode se concretizar porque o trabalhador que a aliena no mercado é livre. Mas,
“livre no duplo sentido [frei in dem Doppelsinn] de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua
força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras
mercadorias para vender, solto e solteiro, livres de todas as coisas necessárias à realização da
sua força de trabalho” (1983, p. 140). A transformação do dinheiro em capital exige em
primeiro lugar que o vendedor da força de trabalho seja livre proprietário de si mesmo, mas,
ironicamente, acrescenta Marx, que o vendedor da força de trabalho também deve ser livre
das condições de produção, ou melhor, alienado delas.

8
“O intercâmbio entre a força de trabalho e o capital permanece no âmbito da circulação mercantil simples
porque, para o trabalhador, o objetivo desse intercâmbio não é o valor como tal, mas sim a satisfação de suas
necessidades imediatas” (ROSDOLSKY, 2001, p. 176).
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Essa passagem é de extrema importância para a questão que estamos desenvolvendo.


Marx coloca que a liberdade na sociedade capitalista é determinada em dois sentidos. O
vendedor da força de trabalho é livre proprietário de si mesmo, pois é único proprietário da
sua capacidade de trabalho. Não obstante, é livre das condições necessárias a realização da
sua força de trabalho, pois se encontra desprovido dos meios de produção. Essa dupla
liberdade do trabalho significa que, por um lado, ele deve ser não-propriedade e por outro
lado, não-proprietário.
A liberdade sob o capitalismo é uma liberdade contraditória. O trabalhador é não-
propriedade e este é um aspecto positivo da liberdade, por sua vez, o fato de também ser não-
proprietário, representa um aspecto negativo. Pois o trabalhador, uma vez desprovido das
condições materiais para o trabalho, deve se deslocar até o mercado para vender sua própria
pele e se submeter no interior da produção aos ditames do capitalista. O fato de ser não-
proprietário é uma condição para a sua liberdade, pois assim, ele é livre para se movimentar
no mercado, mas em contrapartida, esta é uma condição para a sua não-liberdade.
Um julgamento da sociedade capitalista que tome como referência apenas a esfera de
intercâmbio de mercadoria só pode ser um julgamento que resulte na afirmação de que a
sociedade capitalista é essencialmente livre. Segundo Marx (1983, p. 145): “A esfera da
circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra
e venda da força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem.
O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Na esfera da
circulação reina a liberdade porque o contrato que se estabelece entre vendedor e comprador
da mercadoria força de trabalho é resultado de um comum acordo, da livre-vontade de ambos
os contratantes. Trata-se de uma relação fundamentada na igualdade porque ambos
envolvidos no intercâmbio se reconhecem apenas como independentes e autônomos
proprietários de mercadorias que trocam equivalentes. A relação de troca se fundamenta na
propriedade, pois, ambos contratantes são possuidores de uma mercadoria sem valor de uso
para si próprio, mas com valor de uso social.
As condições reais do intercâmbio de mercadoria produzem uma relação formal de
liberdade e igualdade entre os contratantes. Ao contrário da Economia Política, a análise de
Marx penetra a fundo no processo de circulação de mercadorias e revela as contradições desse
processo, mostrando que a não-liberdade é pressuposto da liberdade e vice-versa. Se para os
economistas o modo de produção capitalista é determinado apenas pela liberdade e
subjetividade dos homens, Marx demonstra que ao mesmo tempo em que o homem é livre

Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 122 | P á g i n a


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para realizar trocas no mercado, ele também é não-livre diante da mercadoria e de sua coerção
econômica.

A não-liberdade na esfera da produção

A esfera da produção (seções III a VI – capítulos V a XX) é o segundo momento


fundamental da exposição de O Capital. Somente agora, ao adentrarmos nessa esfera
produtiva é que se revelará o grande enigma da sociedade burguesa. É no interior da fábrica
que os mistérios que envolvem a produção da mais-valia serão finalmente desvendados. Marx
vai além da aparência do mercado, além da circulação de mercadorias, ultrapassa os gigantes
muros que cercam as indústrias, para então, revelar os segredos guardados pelo capital.
As relações baseadas na igualdade, liberdade e independência entre os contratantes,
característica da esfera da circulação, não se repetem nas relações sociais rígidas e
disciplinadas que são estabelecidas no interior da fábrica. Na esfera da produção, a luta de
classes é posta e no lugar da livre vontade de ambos, prevalecem os ditames do capitalista.
Marx caracterizou as relações estabelecidas na produção como “despotismo de fábrica”,
fundamentada numa “autocracia do capital”. Nesse sentido, ao contrário da esfera de
circulação que aparece como a esfera da liberdade, na esfera produtiva parece reinar a não-
liberdade, a ditadura do capital sob o trabalhador. Não obstante, se trata de uma não-liberdade
que tem como pressuposto a liberdade, pois o operário só entra na fábrica como trabalhador
livre, como não-propriedade.
Marx destaca que na sociedade capitalista o processo de trabalho adquire duas
particularidades que a diferenciam dos modos de produção anteriores. Em primeiro lugar, “O
trabalhador trabalha sob o controle do capitalista a quem pertence seu trabalho.” (MARX,
1983, p.154). Quando Marx afirma que o trabalhador está ‘sob o controle do capitalista’,
deixa claro que no chão da fábrica os agentes econômicos não são mais tratados como agentes
independentes. Na fábrica se encontram de um lado, o proprietário dos meios de produção e,
do lado oposto, o operário, o não proprietário. O patrão encarna a figura de um senhor
autoritário, enquanto que o operário é apenas o seu subordinado que deve cumprir ordens e
aceitar os ditames do capitalista. A liberdade e a igualdade jurídica continuam sendo o
pressuposto em que se fundamenta todo o processo, mas ao contrário da esfera do mercado,
no interior da fábrica não existe espaço para a autonomia de ambos.

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A segunda peculiaridade do processo de trabalho evidenciada na sociedade


capitalista por Marx (1983 p.154 é que “o produto é propriedade do capitalista e não do
produtor direto, do trabalhador.” As leis econômicas que regulam a sociedade capitalista
possibilitam que o capitalista se aproprie ao final do processo do produto produzido pelo
operário. Quando o capitalista compra a força de trabalho do operário a ele pertence a sua
utilização, ou seja, o trabalho. Essa é uma lei que equivale para qualquer mercadoria e a força
de trabalho não é uma exceção. Constitui-se uma premissa fundamental da produção
capitalista, que a utilização do valor de uso da mercadoria força de trabalho pertença ao seu
comprador, ao capitalista. Sob as leis do mercado não resta ao trabalhador qualquer petição.
Ao operário não cabe reivindicar qualquer direito sobre o produto produzido por ele próprio.
O possuidor do dinheiro compra a força de trabalho e ganha o direito sobre o valor de uso
dessa peculiar mercadoria.
Marx apresenta o intercâmbio entre capital e trabalho como resultado de uma relação
jurídica baseada na igualdade apenas inicialmente, pois, essa é uma exigência da exposição
dialética; afirmar para negar. A igualdade é aceita apenas a princípio e da afirmação surge à
negação. Ao desvelar o segredo da mais-valia, Marx afirma, com sua peculiar ironia, que a
“grande sorte” do capitalista é que a força de trabalho que ele comprou no mercado é capaz de
produzir mais valor do que ela custou. A mais-valia só pode surgir a partir do desrespeito a
troca de equivalentes e da igualdade que regula as relações econômicas. O intercâmbio entre
capital e trabalho não uma troca de equivalentes, pois, o capitalista paga por 6 horas, mas
recebe o dobro. Portanto, o capitalista se apropria de 6h de trabalho sem equivalência. Por trás
da troca de equivalentes se esconde uma apropriação sem equivalência. Da igualdade não
pode surgir mais dinheiro, da troca entre equivalente não pode surgir mais-valia.
A primeira vista, o processo de trabalho tem a finalidade de produzir valores de uso
que deverão satisfazer necessidades humanas, todavia, para o capitalista só lhe interessa
produzir valores de uso na medida em que estas mercadorias tenham valor de troca e possam
com facilidade encontrar compradores na esfera do mercado. Por conseguinte, o capitalista
tem o objetivo de ao final do processo retirar do mercado mais dinheiro do que inicialmente
foi adiantado. O objetivo do capitalista ao reunir os dois fatores da produção em sua fábrica
particular é, em última instância, produzir mais-valia.
O que Marx denomina de mais-valia absoluta consiste na extração de mais-trabalho
mediante o prolongamento da jornada de trabalho excedente. Quanto mais o capitalista
consome a força de trabalho do operário para além da jornada necessária, maior é a grandeza

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da mais-valia absoluta que ele consegue acumular. “A variação da jornada de trabalho se


move, portanto, dentro de barreiras físicas e sociais. Ambas as barreiras são de natureza muito
elástica e permitem as maiores variações” (MARX, 1983, p.188). Suponde-se que o
trabalhador precise trabalhar no mínimo 6 horas para reproduzir seus meios de subsistência, a
jornada de trabalho poderá variar entre 7 e 18 horas. Existem jornadas com as mais variadas
durações, mas de qualquer forma, sua duração flutua dentro desses limites físicos e morais.
A vontade do capitalista é de desrespeitar e ignorar todos esses limites que tendem a
freiar e limitar a valorização do seu capital adiantado. Se o objetivo último do capitalista,
enquanto personificação do capital é valorizar ao máximo o seu capital, produzindo a maior
grandeza possível de mais-valia, então, o seu objetivo último é consumir a força de trabalho
do operário pelo maior tempo possível. “O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à
maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho
vivo chupa”. (MARX, 1983, p. 189).
Marx afirma que apenas a sociedade pode impor limites a duração da jornada de
trabalho, quer dizer que apenas a luta de classes pode cerceá-la. Marx (OC Ia, p.215; MEW
23, p. 286.) deixa claro que “O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é o
resultado de uma luta multissecular entre capitalista e trabalhador.” A luta pela
regulamentação da duração da jornada de trabalho é um combate no qual se colocam frente a
frente a classe operária e a classe capitalista. É o confronto entre essas duas classes que
legaliza a duração da jornada de trabalho. Somente no século XIX, diante da luta dos
trabalhadores, o Estado foi obrigado a limitar a jornada de trabalho.
Marx (1983, p. 221) afirma que a legislação apesar de diminuir a duração da jornada
de trabalho não limitava a “liberdade do capital [die Freiheit des Kapitals] na extração da
força de trabalho dos adultos, ou como eles denominavam, “a liberdade do trabalho” [die
Freiheit der Arbeit].” Essa passagem é fundamental, pois, Marx fala claramente em liberdade
do capital, ora, como vimos no interior da fábrica, o trabalhador é submetido a uma
exploração que não reconhece limites. Na fábrica reina a liberdade, mas trata-se da liberdade
do capital, que para o trabalhador se traduz em não-liberdade, exploração, opressão e mais-
trabalho. As relações entre indivíduos livres, independentes e autônomos que predominava na
esfera da circulação são substituídas pela opressão ao trabalhador e pela liberdade restrita ao
capital. A evolução que os agentes econômicos sofrem ao serem deslocados da esfera do
mercado para a esfera da produção, evidencia a não-liberdade e o surgimento de relações
sociais fundamentadas na coerção de uma classe sobre outra.

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Assim como o capital é impulsionado a prolongar a jornada de trabalho, ele também


tem uma tendência constante em aumentar a força produtiva para reduzir o tempo de trabalho
necessário na produção de mercadorias, e assim, diminuir a parte da jornada em que o
trabalhador produz seus meios de subsistência, ou seja, reduzir o tempo em que o operário
trabalho para si mesmo e aumentar o tempo em que fornece trabalho gratuito ao capitalista.
Marx analisa minuciosamente os métodos de produção da mais-valia relativa. O processo
histórico do desenvolvimento das forças produtivas é traçado a partir da cooperação.
Na produção capitalista, a cooperação surge com a qualidade da direção do capital,
que comanda todo o processo e subordina a cooperação dos trabalhadores a produzirem. A
relação cooperada exercida pelos próprios trabalhadores não estabelece uma relação livre e
igual entre eles, pois, os trabalhadores não estabelecem relação entre si, mas com o capital. O
capital não produz uma associação espontânea, livre e igual entre os trabalhadores. Pelo
contrário, se trata de uma cooperação que se fundamenta em bases coercitivas, não em uma
coerção violenta e explícita, mas uma coerção extra-econômica que se processa de modo
invisível para a consciência imediata.
A manufatura se caracteriza como um processo no qual a produção de mercadorias se
baseia numa organizada divisão do trabalho. A produção de uma mercadoria passa a percorrer
fases interligadas, numa seqüência de processo gradativos, realizada por cada trabalhador
parcial. A divisão do trabalho transforma o trabalhador artesão, autônomo e independente que
conhecia e dominava sua atividade laboriosa em um trabalhador parcial, unilateral e marcado
pela depreciação de sua subjetividade concreta. A divisão do trabalho não separa, isola e
divide apenas as operações, os diferentes momentos do processo produtivo, mas também
divide os próprios trabalhadores que desenvolvem cada uma dessas funções unilaterais e
específicas. Com o exame da mais-valia relativa, percebe-se que a graduação hierárquica,
surgida no interior da divisão do trabalho manufatureiro, acaba por dividir também os
trabalhadores. No interior da fábrica nem os próprios trabalhadores são iguais entre si. Tal
desigualdade é mais uma forma de coerção capitalista que rompe com a unidade dos
trabalhadores.
Marx avança para a sua forma mais desenvolvida, a maquinaria e a grande indústria.
A principal transformação que a introdução da máquina acarretou no processo produtivo foi à
substituição de operações que anteriormente eram executadas de forma braçal pelos operários,
por um sistema mecanizado. Com a introdução da máquina no processo produtivo, a
ferramenta deixa de ser operada manualmente pelo homem e é transferida para um

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mecanismo próprio. Se a produção capitalista, ganha em eficiência e produtividade, o


trabalhador perde em subjetividade, tornando-se completamente dependente da máquina,
consolidando o poder do capital sobre a classe trabalhadora.
Ao invés de libertar o trabalhador, a máquina apenas aperfeiçoa e eleva as condições
degradantes do trabalho. 9 No interior da fábrica e em meio às monstruosas máquinas, a
liberdade se torna cada vez mais restrita a esfera do mercado. A utilização da força de
trabalho feminina e infantil pelo capital contradiz todos os pressupostos fundamentais da
esfera abstrata do mercado. Marx (1984 p. 23) destaca que: “Com base no intercâmbio de
mercadorias, o pressuposto inicial era que capitalista e trabalhador se confrontariam como
pessoas livres [als freie Personen], [...] Mas, agora, o capital compra menores ou
semidependentes.” E acrescenta: “O trabalhador vendia anteriormente sua própria força de
trabalho, da qual dispunha como pessoal formalmente livre [freie Person verfügte]. Agora
vende mulher e filho. Torna-se mercador de escravos.”
Diante desse processo de opressão e exploração aberta, até mesmo a relação jurídica
entre comprador e vendedor de mercadorias perde toda sua base. Marx (1984, p. 24) deixa
claro que “a transação toda perde até mesmo a aparência de um contrato entre duas pessoas
livres [freien Personen].” De homem livre na esfera do mercado, ao adentrar a esfera da
produção o homem transforma-se em escravo do capital. Em meio ao barulho atordoante das
máquinas, a liberdade e a igualdade formal desaparecem, dando lugar a opressão e
exploração. Todas as formas abstratas de liberdade que igualavam trabalhador e capitalista e
encobriam a luta de classes desaparecem na fábrica e dá lugar a autocracia capitalista que
controla de maneira absoluta o processo produtivo. Marx (1984, p.100) exclama que “Essas
são as belezas da “livre” produção capitalista.” O que a produção de mercadorias produz em
seu interior, na esfera obscura da produção, é a plena liberdade para capital sugar mais-
trabalho da classe operária e a igualdade entre os múltiplos capitais para explorarem e
oprimirem o trabalhador, impondo e ditando as leis da valorização do capital.
Ao desvelar a mais-valia, Marx demonstrou que a produção capitalista, divide a
jornada de trabalho em trabalho necessário e excedente. Contudo, a consciência imediata e
adormecida, presa as aparências e ilusões fantasmagóricas não reconhece a exploração e não
equivalência estabelecida nas relações entre trabalho e capital. Para a compreensão dessa

9
“A aplicação capitalista da maquinaria se revela, na verdade, como o contrário exato do que diz a apologia
burguesa: em lugar de tornar o trabalhador mais independente e atenuar sua exploração, serve para confiscar uma
parte crescente de seu tempo de trabalho na forma de mais-trabalho, de modo a perpetuar e fortalecer o poderio
do capital que lhe é hostil.” (ROSDOLSKY, 2001, p.206).
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problemática é fundamental a investigação em torno da forma salário. Marx identifica que é o


fetiche da forma salário que encobre a dualidade da jornada de trabalho, esconde e apaga as
horas de trabalho gratuito fornecidas pelo trabalhador ao capitalista.
A categoria salário é um dos principais alicerces de sustentação das relações de
produção capitalista. Consiste em um importante pilar da exploração ao trabalhador, pois é
sobre sua base que se levanta um mundo encantado de aparências e ilusões. O salário
enquanto mediação monetária desperta no trabalhador a ilusão de que o pagamento que ele
recebe é o quantum determinante pago por toda sua jornada de trabalho. O salário aparece
nessa relação como a categoria que determina o respeito à troca de equivalentes, na qual os
dois valores se defrontam e se equivalem. “A forma salário extingue, portanto, todo vestígio
da divisão da jornada de trabalho em trabalho necessário e mais-trabalho, em trabalho pago e
trabalho não pago. Todo trabalho aparece como trabalho pago.” (MARX, 1984, p.130).
O salário é o contrato que media a relação entre o trabalhador e o capitalista, criando
a ilusão de que a lei da troca de equivalentes é respeitada, ou seja, é o salário que mistifica a
relação capital-trabalho e dá legitimidade à troca sem equivalente estabelecida entre os
agentes econômicos. Está legitimidade se constrói mediante a aparência de que o salário é o
equivalente ao trabalho despendido pelo operário, aparência que oculta à extração de mais-
valia, a apropriação de trabalho não pago. Com essa mistificação, os princípios de liberdade e
igualdade da sociedade burguesa se realizam na própria forma do salário.

Liberdade jurídica como condição para a acumulação

O capítulo sobre a reprodução simples abre a última parte de O Capital.


Didaticamente ele funciona como uma introdução a sétima seção, sobre a acumulação do
Capital. Na esfera da acumulação (seção VII – capítulos XXI a XV) a exposição avança
significativamente e as formas abstratas vão dando lugar a formas mais concretas da produção
capitalista que agora será analisada em sua conexão constante, como produção e reprodução
permanente. 10
O fluxo permanente do ciclo de circulação de mercadorias transforma capital em
mais-valia acumulada, batizada pelo economista político, de renda. Todavia, o que os

10
“[...] Somente agora se vai analisar o processo de produção do capital no seu movimento total (ainda que de
forma purificada) que constitui o ciclo de circulação do capital. Primeiramente, se toma esse ciclo enquanto
reprodução simples (isto é abstraindo a acumulação). Já aqui se manifesta uma grande transformação em todo o
processo.” (BENOIT, 1996, p. 36).
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economistas denominam de renda não é outra coisa senão, trabalho alheio não-pago. Para o
burguês, a mais-valia que ele recebe é a renda obtida por seu primeiro capital, ou seja, pelo
capital que ele conseguiu por meio de seu próprio trabalho, por meio de seu esforço e
virtuosismo. Para o capitalista o fluxo constante da produção de mercadoria transforma seu
capital adiantado em mais-valia acumulada, produzindo um incremento em seu capital global.
Mas, que transformações esse processo de reprodução simples produzem para o
trabalhador? Marx enfatiza (1984, p. 156) que “o trabalhador sai do processo sempre como
nele entrou – fonte pessoal de riqueza, mas despojado de todos os meios para tornar essa
riqueza realidade para si.” Marx enfatiza que sob o modo de produção capitalista, o
trabalhador no chão da fábrica não produz apenas valores de uso, mas produz capital e,
inconscientemente, reproduz uma relação social que o explora. Uma relação que gira em torno
da manutenção da classe trabalhadora enquanto classe trabalhadora livre, desprovida dos
meios de produção e vendedora da força de trabalho. 11
A ilusão de que a reprodução capitalista pode produzir o trabalhador como não-
trabalhador e o capitalista como não-capitalista só é verdadeira se tomamos o trabalhador
isolado ou o capitalista isolado. Quando se considera o capitalista e o trabalhador
individualmente, é claro que eles podem sair do processo de produção de maneira diferente da
qual entraram, pois a liberdade jurídica permite esses movimentos. Mas, considerando as
classes em seu conjunto, essa aspiração não passa de ilusão, pois a separação do trabalhador
das condições de trabalho é uma condição determinante do modo de produção capitalista.
“O escravo romano estava preso por correntes a seu proprietário, o trabalhador
assalariado o está por fios invisíveis. A aparência de que é independente é mantida pela
mudança contínua dos patrões individuais e pela fictio júris do contrato.” (MARX, 1984, p.
158). As relações de produção capitalistas são edificadas sobre os alicerces da liberdade,
paraíso dos direitos, da igualdade e da independência. No entanto, a reprodução simples
revela que fios invisíveis, não prendem o operário a determinado capitalista, mas prende a
classe trabalhadora à classe capitalista da mesma forma que as correntes prendiam o escravo
antigo ao seu senhor. O que parece tornar a não-liberdade imperceptível é a liberdade jurídica
que reina na esfera da troca de mercadorias. O trabalhador não está preso por correntes, ele é
juridicamente livre, por isso ele pode se movimentar pela esfera do mercado, não está preso a
nenhum capitalista individual, mas a classe capitalista em sua totalidade.

11
“Tragicamente o próprio trabalhador produz, sem saber e sem intenção, sua própria escravidão ao produzir ele
mesmo os meios de produção que nas mãos do capitalista servirão como capital, como novos meios de
exploração do operário.” (ANTUNES, 2005, p. 418).
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No segundo capítulo da seção sobre a acumulação de capital, a reprodução é tomada


em sua escala ampliada e revela como as leis de propriedade da produção de mercadorias se
transformam em leis de apropriação capitalista sem equivalentes. A lei da propriedade
capitalista converte-se inexoravelmente em lei de apropriação capitalista. Partindo do
processo em seu fluxo constante e considerando as classes em sua totalidade, se revela que a
cada ano a nova massa de trabalhadores contratados pelo capitalista é paga com a massa de
mais-valia apropriada no ano anterior e produzida pela própria classe trabalhadora. 12 Dessa
maneira, não existe troca entre capitalista e trabalhador. “O intercâmbio de equivalentes, que
apareceu como a operação original, se torceu de tal modo que se troca apenas na aparência
[...]” (MARX, 1984, p. 166). A parte da mais-valia apropriada pelo capitalista ao se
transformar em capital variável e comprar nova força de trabalho apenas repassa ao
trabalhador uma parte de trabalho alheio não-pago, sem equivalente, apropriado em períodos
anteriores. Não existe nenhum intercâmbio, existe apenas circulação de mercadorias e valores.
Essa relação é encoberta e mistificada pela mediação do dinheiro como meio de pagamento
que encobre a extração de trabalho alheio não-pago.
Segundo Marx (1984, p. 166): “A propriedade aparece agora do lado do capitalista,
como direito de apropriar-se de trabalho alheio não-pago ou de seu produto: do lado do
trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto.” A lei da
propriedade capitalista com a transformação da mais-valia em capital pela reprodução em
escala ampliada converte o intercâmbio de equivalente em intercâmbio sem equivalentes e,
converte a propriedade capitalista em direito de apropriação capitalista.
No capítulo sobre a lei geral da acumulação capitalista, Marx revela as tendências
imanentes da sociedade produtora de mercadorias. Marx investiga a sorte da classe
trabalhadora a partir de duas hipóteses: Primeiramente, partindo do pressuposto que a
acumulação do capital se desenvolva mediante composição orgânica constante e
posteriormente, partindo do pressuposto que a acumulação do capital se desenvolva mediante
composição orgânica em elevação.
Se a composição do capital é dada e permanece fixa, logo a demanda de trabalho e o
fundo de subsistência dos trabalhadores crescem a mesma medida em que cresce o capital.
Devido a essa ampliação do capital, Marx (1984, p. 188) destaca que “as necessidades da

12
“No decorrer do processo da acumulação capitalista, desta maneira, fica claro que a classe capitalista passa a
pagar a classe trabalhadora com o próprio trabalho desta. A troca de equivalentes entre proprietários, lei em que
se embasa o direito de propriedade do modo de produção capitalista, teria validade, assim, somente em termos de
uma remota acumulação originária que antecedera todo o processo.” (BENOIT, 1996, p. 37).
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acumulação do capital podem superar o crescimento da força de trabalho ou do número de


trabalhadores, a demanda de trabalhadores pode se tornar maior que a sua oferta e por isso os
salário se elevam.” Permanecendo a composição orgânica do capital inalterada, com o
crescimento da acumulação se elevam também os salários dos trabalhadores, todavia, a
produtividade do trabalho não aumenta e esse processo pode provocar uma queda na taxa de
mais-valia. A partir do momento em que a elevação dos salários representa uma ameaça para
o processo de acumulação, naturalmente o valor da força de trabalho é rebaixado ao nível da
necessidade de valorização do capital. A lei de acumulação capitalista assegura ao capital a
sua reprodução sempre em escala ampliada e a sua acumulação crescente. Por mecanismos
próprios regula todo decréscimo na parcela de trabalho não-pago apropriada pelo capitalista e
toda elevação dos salários a um grau que não afete diretamente o processo de acumulação.
A elevação salarial pode significar para os trabalhadores uma maior liberdade na
esfera do mercado, já que aumenta o seu poder de compra. Contudo, tal processo é muito
aparente, já que a diminuição da taxa de exploração jamais pode ultrapassar os limites
impostos pelo próprio capital. É importante ressaltar que são as mesmas relações jurídicas que
garantem a liberdade e igualdade no mercado, garantem ao capital o direito de aumentar e
rebaixar os salários ou contratar e demitir trabalhadores. O capitalista é livre para demitir
operários e rebaixar seus salários de acordo com as exigências que o mercado e a
concorrência lhe impõem. Afinal, se o trabalhador não é preso ao capitalista, o capitalista
também não está preso ao trabalhador e pode desfazer dele assim que for preciso. Trata-se,
pois de uma relação baseada na liberdade jurídica entre os contratantes.
Todavia, o processo de acumulação capitalista em escala ampliada exige que a
composição orgânica do capital seja acrescida. O crescente aumento da produtividade social
se torna a principal alavanca da acumulação. A lei geral da acumulação capitalista reproduz
uma elevação na parcela aplicada ao componente constante do capital e um rebaixamento na
parcela aplicada ao componente variável. Com o crescimento da mais-valia aplicada em
capital constante decresce a aplicação em capital variável, por conseguinte, o capitalista
demitirá trabalhadores, já que com o desenvolvimento da técnica, as máquinas poderão
substituí-los. Mais uma vez, aparecem as leis fundadas na liberdade do mercado garantindo a
demissão dos operários e o rebaixamento de seus salários. Todo o processo de exploração do
capital sobre os trabalhadores é acobertado e garantido pelas relações jurídicas baseadas na
liberdade e igualdade jurídica. A liberdade aparece como pressuposto para a não-liberdade.

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Marx ainda destaca que a reprodução capitalista não apenas aumenta a produção de
riquezas e capitais, mas também trata de concentrar esse capital adicional nas mãos de poucos
capitalistas. O processo de acumulação se desenvolve concentrando e centralizando capital. O
processo de concentração capital é inerente ao acréscimo da massa global de capital
produzido, já a centralização de capital não depende de nenhum acréscimo de capital já que se
caracteriza exclusivamente pela redistribuição do capital já existente de modo mais
concentrado. As leis do mercado baseadas na liberdade se constituem na voracidade
individual de cada capitalista por mais capital. Cada capitalista privado, servindo de sua
liberdade busca aniquilar capitalistas rivais. O processo de centralização “Termina sempre
com a ruína de muitos capitalistas menores, cujos capitais em parte se transferem para a mão
do vencedor” (MARX, 1984, p. 197). A avidez da concorrência capitalista é imperdoável com
os pequenos capitais e sempre termina com a destruição destes.
Capitalistas menores, derrotados pela concorrência são arrastados para as fileiras
proletárias. Todo esse processo é sustentado pela liberdade jurídica, a centralização é
resultado da mais pura liberdade mercantil garantida aos capitalistas individuais. Capitais
privados são livres para concorrer entre si na busca de maiores fatias de mais-valia. É a
liberdade formal do mercado que assegura a livre movimentação dos capitais na esfera do
mercado. A livre concorrência é mais uma forma de manifestação da liberdade burguesa.
A reprodução em escala ampliada, a concentração e a centralização do capital
produzem o crescimento da massa de capital global, por outro lado, no sentido inverso ela
reduz o componente variável do capital e produz, portanto, o crescimento absoluto da
população trabalhadora que não encontra espaço nas fábricas. O aumento dos operários é mais
acelerado do que o do capital variável. Portanto, Marx (1984, p. 199) destaca que “a
acumulação capitalista produz constantemente [...] uma população trabalhadora adicional
relativamente supérflua ou subsidiária.” Esses trabalhadores que a produção capitalista não
absorve na produção, Marx denomina de superpopulação relativa ou exército de reserva. 13
O capital age de maneira a impedir que a absorção de trabalhadores seja capaz de
elevar os salários, seu impulso é justamente na direção contrária, ele age em função de liberar
mais trabalhadores, aumentar progressivamente a superpopulação relativa, reduzir os salários,
aumentar a pressão sobre os trabalhadores empregados, elevando o sobretrabalho sobre estes.

13
“Marx concebe o exército industrial de reserva como o resultado de um processo dialético de criação e
supressão simultâneas do trabalho necessário por parte do capital; há também a circunstância de que, nos
Grundrisse, ele equipara o exército industrial de reserva à “esfera da pobreza”, enquanto que em O Capital esta
esfera, habitada por pessoas em situação de miséria e integrantes do lumpemproletariado, constitui “o resíduo
mais baixo da superpopulação relativa.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 212 - 213).
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A parcela da população empregada é pressionada constantemente pela parcela desempregada


e essa coação impulsiona o valor da força de trabalho para baixo. Marx (1984, p. 206) afirma
que: “O movimento da demanda e oferta de trabalho completa, nessa base, o despotismo do
capital.” A lei da oferta e procura é a primeira lei da livre esfera do mercado, contudo, Marx
deixa claro que esta lei é a base para o despotismo do capital, ou seja, para a não-liberdade.
Para Marx, as leis que regem o mercado, fundamentadas na liberdade e igualdade são na
realidade leis despóticas que se voltam contra os trabalhadores, sustentando a acumulação
capitalista. Se por um lado, essas leis garantem a liberdade jurídica do trabalhador, por outro
lado, lhe transformam em miseráveis, em homens não-livres.
A lei da oferta e da procura aparece agora como um mecanismo de coerção
econômica tão importante como a própria coerção extra-econômica do Estado. Nesse grau de
desenvolvimento do capitalismo, as leis baseadas na liberdade do mercado se transformam em
leis despóticas, em leis que produzem a não-liberdade, necessárias para substituir o
despotismo do Estado. Sob esse cenário do capital já desenvolvido, suas próprias leis
econômicas são capazes de submeter os trabalhadores a maior exploração possível. Com a
ação despótica das leis do mercado sobre a classe trabalhadora, a ação despótica do Estado
aparece apenas superficialmente, assim, a liberdade é mais uma vez evidenciada.
O caminho dialético percorrido pela exposição de O Capital avança do abstrato ao
concreto. É o caminho que se inicia pelas formas mais aparentes e avança para o fundamento
original da sociedade capitalista. Partindo do abstrato, o movimento negativo de superação
dialética avança para o começo, o princípio histórico originário que está posto sob as
contradições da produção capitalista. Somente agora será revelado o pressuposto de tudo
aquilo que já foi posto pela exposição, será revelada a gênese do capital.
Já estava posto desde o capítulo IV que o capitalista aparece em um pólo da
sociedade como o proprietário dos meios de produção e o trabalhador no pólo oposto, como o
desprovido de qualquer condição de trabalho. A produção capitalista coloca de um lado,
proprietários dos meios de produção e do outro lado, proprietários apenas da força de
trabalho. “A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo
histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ele aparece como “primitivo”
porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde.”
(MARX, 1984, p. 262). Nesse momento da exposição, o interesse de Marx é demonstrar
historicamente, por um lado, como o trabalhador foi separado das condições objetivas de
trabalho e tornou-se trabalhador assalariado livre e, por outro lado, como o capitalista se

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apropriou do capital e decretou a propriedade privada dos meios de produção. O objetivo é


demonstrar que esse antagonismo fundamental que sustenta a sociedade capitalista é resultado
de um processo histórico determinado.
Segundo Marx (1984, p. 263) “grandes massas humanas são arrancadas súbita e
violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como
proletários livres como os pássaros.” E retornando ao capítulo IV, Marx acrescenta que desse
processo surgiram “Trabalhadores livres [Freie Arbeiter] no duplo sentido.” O trabalhador
tornou-se livre, mas alienado. Tornou-se livre para ir até o mercado e vender sua própria pele.
O capital surgiu na medida em que libertou o trabalhador de suas antigas amarras feudais.
Somente quando o trabalhador tornou-se livre juridicamente é que o capital pôde se
desenvolver. A origem do capital é ao mesmo tempo a gênese da liberdade. O capital surge
libertando o trabalhador e forjando novas leis econômicas baseadas na individualidade. Não
obstante, por trás da liberdade jurídica conquistada pelo trabalhador se esconde um processo
histórico marcado pelo uso da violência, pela não-liberdade.
A última afirmativa da concepção econômica burguesa é desvendada pela
acumulação originária do Capital. Marx elucida a violência como ponto de partida da gênese
do capital. O processo de separação do trabalhador das condições objetivas do trabalho tem na
experiência inglesa do final do século XV, o seu exemplo clássico. Marx descreve o processo
de expropriação do trabalhador do campo de sua base fundiária em seis momentos distintos
que completam a separação do trabalhador as condições de trabalho. São eles; Licenciamento
das Hostes feudais; Reforma Protestante; Restauração dos Stuarts; Revolução Gloriosa; Lei
do cercamento da terra comunal; Clareamento do Estado e a Formação das reservas de caça
da Escócia. Em suma, Marx enfatiza (1984, p. 275) que todos esses processos históricos
“conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram a base fundiária ao capital
e criaram para a indústria urbana a oferta de um proletariado livre como pássaros.” Todos
esses processos separaram os trabalhadores das condições de trabalho, criaram o trabalhador
livre e assalariado e, por fim, concentrou a propriedade privada, forjando as condições para o
início do ciclo de produção capitalista.
Ao investigar a Legislação Sanguinária, Marx revela a violência da classe capitalista
sobre a classe trabalhadora. Trata-se de leis com o objetivo de disciplinar e enquadrar o
trabalhador expropriado as novas relações de produção. São leis para silenciar o trabalhador
diante da nova ordem que está se edificando e ganhando determinações concretas. A não-
liberdade e a violência foram os métodos utilizados para a expropriação do trabalhador de sua

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base fundiária e para impedir o seu retorno aos campos. A violência brutal cumpriu um papel
decisivo para o capital, no sentido em que enquadrou e disciplinou o trabalhador expulso de
sua terra e o fez “aceitar” as novas relações sociais de trabalho.
Diante desse processo não apenas o trabalhador se torna mercadoria, mas na medida
em que aliena sua força de trabalho no mercado, também os meios de produção e o fundo de
consumo do trabalhador são convertidos em mercadorias. A separação entre o trabalhador e as
condições de trabalho criou uma massa de clientes para o mercado capitalista e os reuniram
nas cidades num grande mercado abastecido pelo capital industrial. A expropriação do povo
do campo criou o trabalhador assalariado para abastecer a indústria e o mercado interno que
consome as mercadorias produzidas por essas mesmas indústrias.
Resta-nos saber agora como se originou o arrendatário e o industrial capitalista?
Afinal o processo de expropriações da base fundiária cria diretamente apenas grandes
proprietários de terra. A gênese do capitalista industrial 14, abstraindo alguns casos em que
mestres corporativos, artesãos independentes e trabalhadores assalariados se transformaram
em pequenos capitalistas, esse se forjou de maneira brusca, impulsionado principalmente pela
expansão colonial. Com o processo de acumulação em desenvolvimento, a expansão do
capital para além do velho continente tornou-se rapidamente uma condição. A colonização
das terras americanas se constituiu em um momento decisivo para o processo de acumulação
primitiva. O sistema colonial impulsionou de maneira crucial a acumulação capitalista
mediante a fomentação do comércio, da navegação e das incontáveis riquezas minerais e
vegetais roubadas e trazidas da América, da África e da Ásia para o velho continente.
Todos esses são momentos fundamentais da acumulação primitiva e se baseiam na
mais brutal violência, que é orquestrada pelo poder do Estado que age em função da
acumulação do capital. Marx (1984, p. 286) argumenta que: “A violência é a parteira da velha
sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica.” Marx
caracteriza a violência como potência econômica porque ela é a expressão das contradições
entre as classes em luta. 15
No último item do capítulo sobre a acumulação primitiva Marx investiga a tendência
histórica da acumulação capitalista e tenta traçar o ‘destino’ da sociedade produtora de
mercadorias. Segundo Marx as contradições da produção capitalista não seriam resolvidas no

14
Na nota 238, Marx declara que: “Industrial está aqui em oposição a agrícola. Em sentido “categórico”, o
arrendatário é um capitalista industrial, tal como o fabricante.” (1984, p. 284).
15
“A violência é uma potência econômica, justamente porque essa violência nada mais é do que a expressão e o
desenvolvimento das contradições econômicas historicamente postas pelas classes em luta.” (BENOIT, 1996, p.
38).
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interior da própria produção capitalista, assim, a luta de classes se tornaria cada vez mais
violente e desembocaria em uma revolução operária, que constituiria uma forma superior de
organização das relações sociais de trabalho.
Marx afirma que a sociedade que surge da superação do capitalismo parte da negação
da propriedade capitalista e restabelece “a propriedade individual sobre o fundamento
conquistado na era capitalista: a cooperação e propriedade comum da terra e dos meios de
produção produzidos pelo próprio trabalho.” (1984 p. 294). Marx não nega ou descarta o
avanço técnico que a produção capitalista foi capaz de produzir. Todavia, todas as maravilhas
que os avanços das forças produtivas produzidas sob o comando do capital, deverão ser
aplicadas sob novas formas de relações sociais de trabalho.
As contradições entre a classe capitalista e a classe trabalhadora se tornam tão
insustentáveis que a violência entre elas eclode em um novo processo de expropriação.
Porém, trata-se agora, da expropriação da propriedade capitalista. Esse é o momento sintético
de toda a exposição, momento no qual as contradições que se forjaram da luta de classes são
resolvidas diante da negação das duas classes antagônicas e pelo restabelecimento da unidade
entre o trabalhador e as condições de trabalho.
Por conseguinte, devemos ressaltar que se Marx aposta na luta de classes e no
proletariado como agente revolucionário, porque foi sob a ordem capitalista que ele se tornou
livre. A luta entre capitalistas e proletários é resultado da liberdade jurídica, da liberdade
abstrata e formal que possibilitou a igualdade política entre os agentes econômicos,
possibilitando a organização política da classe operária. Esse é o aspecto positivo da liberdade
burguesa, a igualdade e liberdade de organização sindical, partidária e etc. Marx enfatiza que
a liberdade burguesa é formal e abstrata, mas ele não nega totalmente essa liberdade, ele a
compreende como um grande avanço nas relações jurídicas, possibilitando a transformação
histórica.

Conclusão

Marx diz que o proletário é preso por fios invisíveis, o que fez a exposição dialética,
foi tornar esses fios visíveis e por às claras todos os mecanismos de dominação e exploração
que se desenvolvem na relação capital-trabalho. No Livro Primeiro de O Capital, Marx
desenvolveu minuciosamente as contradições e antagonismos inerentes ao processo de
produção do capital. A exposição caminhou passo a passo superando e ultrapassando as

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formas mistificadoras da sociedade burguesa. A cada nível que a exposição alcançava, a


consciência do leitor se elevava, não se deixando mais se enganar por formas aparentes.
Se a Economia Política trata a sociedade capitalista fundada em relações orientadas
pela liberdade, o esforço de Marx é em ir além e revelar as contradições dessa liberdade
burguesa, evidenciando que a não-liberdade coexiste com a liberdade e que nas relações
capitalistas, uma aparece como pressuposto da outra. Na sociedade capitalista o homem “é” e
“não-é” livre, ao mesmo tempo. Como afirma Fausto (2002, p. 127):
“Todos são livres, mas essa liberdade se inverte em não-liberdade. Nenhum é
plenamente livre, embora essa não-liberdade tenha sentidos muito diferentes,
conforme se considere o trabalhador ou o capitalista. A exprime a forma, E exprime
o conteúdo. Todos são livres, mas também não o são.”

Para Marx a questão em torno da liberdade na sociedade capitalista aparece


entrelaçada em contradições. Vimos que para ele, o homem é livre em duplo sentido; primeiro
por não ser propriedade e, por conseguinte, por não ser proprietário. O primeiro é o aspecto
positivo da liberdade, o segundo é o aspecto negativo. As contradições da liberdade sob o
capitalismo se desenvolvem a partir dessa concepção fundamental.
A conclusão de que o homem “é” e “não-é” livre na sociedade burguesa é a
conclusão lógica da dialética expositiva de O Capital. Sua exposição busca desvelar a unidade
contraditória entre o lógico e o histórico, superando o empirismo e a exposição meramente
analítica, evidenciando a contradição de cada categoria da sociedade capitalista. Sobre essa
importante questão, Benoit (2003) afirma que:
Essa unidade entre o lógico e o histórico é, por excelência, contraditória, pois, é
pensar que as categorias lógicas podem transformar-se, negar-se a si próprias, serem
postas em devir (permanente) e conservarem, ainda assim, um valor de verdade. Isto
significa dar “vida” às categorias lógicas, e mostrar que o tempo conceitual não é
incompatível com o tempo histórico. Significa que algo pode ser e não ser ao
mesmo tempo e na mesma relação A e não-A. Mas, aqui, justamente, nos
encontramos com a dialética: trata-se de pensar a identidade do não-idêntico.
(BENOIT, 2003 – grifos nossos).

Ao dar “vida” às categorias lógicas a dialética revela que essas categorias podem ser
e não-ser ao mesmo tempo. Ao pensar a identidade do não-idêntico, Marx demonstra que a
categoria liberdade pode negar-se e ainda conservar um valor de verdade. Marx desenvolve as
contradições da liberdade burguesa, demonstrando seus limites. A liberdade é positiva na
medida em que o trabalhador não está preso a um senhor ou a terra, se encontra juridicamente
livre e igual ao capitalista. Os homens se relacionam no mercado como livres e iguais, trocam
mercadorias de acordo com sua livre vontade e necessidade. Tal liberdade econômica
transformou-se em liberdade política e possibilitou aos trabalhadores a organização partidária,

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o sufrágio universal e a democracia. Esses são aspectos positivos da liberdade burguesa.


Trata-se de uma liberdade positiva que reconhece formalmente capitalista e trabalhador como
persona, como pessoas livres e iguais.
Por outro lado, a negatividade da liberdade se expressa a partir da própria forma
mercadoria que domina a produção e o próprio homem. Tal processo de negatividade da
subjetividade dos homens fica muito bem expresso na passagem sobre o fetichismo da
mercadoria. Assim, a sociedade capitalista parece dominada pelas coisas que ganham vida,
enquanto os homens se transformam em coisas. Os homens aparecem como personificações
de agentes econômicos, perdendo sua subjetividade para as mercadorias e o capital que os
domina de maneira quase imperceptível.
A liberdade jurídica é condição necessária para a não-liberdade do trabalhador, pois é
pressuposto para que ele se desloque até o mercado e venda sua força de trabalho ao
capitalista. Não obstante, essa liberdade não é totalmente negada por Marx. Pois, uma vez
livre juridicamente, o trabalhador pode desenvolver sua subjetividade quando se encontra fora
da fábrica e longe dos olhares e ditames que dominam a produção.
Um dos principais aspectos da sociedade capitalista é que a liberdade jurídica que
reconhece capitalista e trabalhador formalmente como livres e iguais trouxe dinâmica para a
luta de classes na medida em que o trabalhador livre se organizou e conquistou direitos
políticos. Fundamentada na lei do valor e no mercado, as relações jurídicas capitalistas
igualou os agentes da produção diante da lei. A partir de então, a política não é mais o
domínio exclusivo da classe dominante, ela tornou-se o terreno para o qual a classe operária é
arrastada por suas próprias condições materiais. A política é a esfera onde a classe capitalista
e operária se enfrentam condicionadas por seus interesses econômicos. É a partir dessa
liberdade jurídica, ainda que limitada e contraditória que Marx pensa a possibilidade de
transformação histórica.
Em O Capital, Marx não está preocupado em desenvolver um conceito positivo de
liberdade, em expor o que seria uma liberdade verdadeira. O objetivo de Marx parece ser
apenas o de determinar o presente, expor a crítica à sociedade do capital, desmistificando-a e
negando-a. Sua preocupação não é a de escrever sobre o futuro ou sobre uma forma ideal de
liberdade que se construiria para além da sociedade capitalista. Portanto, sua preocupação
fundamental parece ser a de desmistificar a liberdade burguesa, revelando relações despóticas
baseadas na liberdade jurídica dos indivíduos.

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Ao analisar a liberdade na sociedade capitalista, Marx demonstra muito bem que essa
liberdade é limitada, assim como o domínio do capital sob o trabalhador também apresenta
limites. É essa contradição entre liberdade e não-liberdade que domina a sociedade capitalista.
O capitalismo não é o reino da liberdade como afirmam os liberais, presos as aparências do
mercado, mas tampouco é o reino do absoluto domínio do capital sob os homens. O
capitalismo é constituído sob contradições que se forjam a partir da própria mercadoria, a
contradição entre liberdade e não-liberdade é apenas mais uma.

BIBLIOGRAFIA

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