Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Carlos Prado 1
RESUMO:
O objetivo central do presente artigo é analisar a problemática em torno da liberdade em O Capital de Karl
Marx. A exposição dialética nos revela que sob o modo de produção capitalista o homem aparece como “livre” e
“não-livre” ao mesmo tempo. A positividade da liberdade do capital se revela mediante a análise do mercado e a
circulação de mercadoria que exigem relações entre homens formalmente livres e iguais. Por outro lado, a
negatividade da liberdade se expressa no domínio do capital sob as relações de produção, no fetichismo, na
autocracia do capital sob o trabalho. Liberdade e não-liberdade coexistem no interior das relações capitalistas,
uma aparece como pressuposto da outra.
ABSTRACT:
The main objective of this article is to analyze the issues surrounding liberty from “The Capital” by Karl Marx.
The exposition method reveals that under the capitalist mode of production liberty is contradictory, the man
appears as “free” and “non-free” at the same time. The positivity liberty in capital is revealed by analyzing the
market and the movement of goods that require relationship between men formally free and equal. Moreover, the
negativity liberty is expressed in the capital area under the relations of production, fetishism, the autocracy of
capital under Labour. Liberty and unliberty coexist in capitalist relations, appears as a prerequisite for another.
Introdução
2
O objetivo do presente trabalho é compreender a questão filosófica da liberdade a
partir da análise de O Capital de Marx. Buscaremos analisar como o conceito de liberdade é
exposta ao longo da obra. A compreensão sistemática de O Capital só pode ser alcançada
mediante uma análise de seu método expositivo. A exposição desenvolvida por Marx é
completamente estranha ao método aplicado pelos economistas clássicos. O Capital não deve
ser compreendido como uma obra de Economia Política, mas sim, como uma obra filosófica,
à luz da filosofia de Hegel e da tradição dialética, nascida entre os filósofos gregos da
antiguidade.
Acerca do movimento expositivo de O Capital, Marx (1982, p. 15) afirma que “o
curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo corresponde ao
processo histórico efetivo”. O método de avançar do abstrato para o concreto, ou seja, de
1
Mestre em Filosofia e professor da Uniderp Anhanguera.
2
O presente artigo é um resumo da minha dissertação de Mestrado.
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 112 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
Benoit destaca que Marx, utiliza-se da dialética, para reconstruir uma totalidade
concreta e viva do real. Dessa forma, o modo de exposição de O Capital rompe com o método
da Economia Política, pois esta se fundamenta no método empírico-indutivo. A Economia
encontra suas bases fundamentais na consciência empírica, individual, que se constrói a partir
3
Utilizamos como referência, principalmente os textos “Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital” e
“Sobre a crítica (dialética) de O Capital”.
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 113 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
dos dados dos sentidos. Por sua vez, Marx busca construir uma unidade entre a forma de
representação lógica e histórica. Não se trata apenas de uma forma lógica, como a
representação neokantiana ou neopositivista, tampouco se trata de uma forma histórica, como
o historicismo. Trata-se de uma forma expositiva que busca a unidade entre o tempo lógico e
histórico, uma estrutura sincrônica e diacrônica. Unidade contraditória entre o ser e o devir
que compreende uma representação concreta do real, ultrapassando as formas abstratas e
empíricas mediante o movimento de negação.
A dialética enquanto modo de exposição busca construir a relação contraditória entre
o lógico e o histórico. Segundo Benoit (2003): “trata-se de discursar num logos que vai ao
mesmo tempo superando a própria gramática geral da realidade, que vai dissolvendo as
categorias que utiliza, que vai negando dialeticamente a morfologia e a própria sintaxe do
modo de produção existente”. A dialética de O Capital é um modo de exposição do real que
reconstrói a própria realidade em logos contraditório. Trata-se de uma exposição que se
constrói pela desconstrução negativa.
O modo de produção capitalista se organizou sob a bandeira da liberdade e da
igualdade. O capitalismo teria produzido um enorme progresso nas relações jurídico-sociais
estabelecidas entre os homens. A liberdade conquistada pelo capital desenvolveu a liberdade
civil e a igualdade jurídica entre os cidadãos, acabou com os privilégios legais classe,
declarando todos os homens iguais perante a lei. Sob o modo de produção capitalista, os
indivíduos aparecem como independentes e autônomos entre si, são postos como iguais e não
divididos em classes antagônicas.
Presos a essas concepções, os filósofos e economistas burgueses e conservadores,
afirmam que a sociedade capitalista e a República democrática são garantidoras da liberdade
civil dos indivíduos, bem como da igualdade jurídica entre os cidadãos. Mas ao contrário do
que afirmavam os filósofos iluministas, os racionalistas ou os economistas ingleses, Marx
revela que na sociedade capitalista a liberdade não é apenas positiva, mas também negativa.
Trata-se de uma liberdade contraditória, na qual os indivíduos aparecem como livres e não-
livres ao mesmo tempo. Negando as formas aparentes e fantasmagóricas, Marx expõe ao
longo da obra, não apenas as contradições do capital, mas também revela, de maneira
dialética, as contradições da liberdade burguesa.
O presente artigo tem como hipótese central a afirmação de que o conceito de
liberdade em O Capital de Marx, só pode ser apresentado como uma teoria positivo-negativa
da liberdade. Marx se esforça por demonstrar os limites da liberdade burguesa, ressaltando
que sob o modo de produção capitalista a liberdade é contraditória. O homem “é” e “não-é”
livre.
Seguindo a exposição da obra e o desenvolvimento das contradições do capital, a
presente pesquisa buscará desenvolver o conceito de liberdade, revelando suas contradições,
sua positividade e sua negatividade, demonstrando que o modo de produção capitalista não é
apenas o reino da liberdade, mas também não é o reino do absoluto e incondicional domínio
do capital sob o trabalhador. Buscaremos demonstrar um conceito dialético de liberdade, no
qual a liberdade e a não-liberdade são os pressupostos da produção de mercadorias.
4
“A simplicidade indiferenciada do trabalho é, em primeiro lugar, igualdade dos trabalhos de diferentes
indivíduos, relacionamento recíproco de seus trabalhos como iguais, e isso mediante uma redução de fato de
todos os trabalhos a um trabalho de igual tipo. O trabalho de qualquer indivíduo, enquanto se apresente valores
de troca, possui esse caráter social de igualdade, e só se apresenta no valor de troca enquanto se relacione como
igual com o trabalho de todos os outros indivíduos” (MARX, 1982, p. 34 – grifos do autor).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 115 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
5
“Marx não mostrou apenas que as relações humanas eram encobertas por relações entre coisas, mas também
que, na economia mercantil, as relações sociais de produção assumem inevitavelmente a forma de coisas e não
podem se expressar senão através de coisas. A estrutura da economia mercantil leva as coisas a desempenharem
um papel social particular e extremamente importante e, portanto, a adquirir propriedades sociais específicas”
(RUBIN, 1980, p. 20).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 117 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
valor e nenhum agente da troca obtém privilégios. 6 Os indivíduos são livres por que só são
trocadas mercadorias de acordo com sua vontade.
Contudo, Marx afirma que as relações de troca não se encerram com essas
determinações, a troca de mercadorias não é puramente um processo determinado pela
igualdade e liberdade dos agentes econômicos. Marx revela que essa relação jurídica reflete
uma relação econômica e já no primeiro parágrafo do segundo capítulo, o movimento
dialético negativo é lançado. “O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por
meio da relação econômica mesma” (MARX, 1983 p. 79). Ao revelar que o conteúdo do
processo de troca de mercadorias é um conteúdo econômico, Marx revela que o intercâmbio
de mercadorias não seria determinado apenas pela livre vontade ou pela necessidade dos
homens, mas, em última instância, pela própria necessidade da mercadoria.
O conteúdo das trocas seria uma relação econômica que está além da subjetividade,
dos desejos e da consciência dos guardiões das mercadorias. A troca de mercadorias não é
uma necessidade imanente do homem que para satisfazer suas necessidades se desloca até o
mercado, aliena uma mercadoria em troca de outra, mas pelo contrário, esse intercâmbio é
determinado pela própria necessidade da mercadoria em realizar-se como valor de troca. Marx
demonstra que nesse processo os homens são livres e iguais para trocarem suas mercadorias,
mas essa liberdade dos agentes da produção é fundada na não-liberdade, pois o processo de
troca representa não a realização das vontades e necessidades dos homens, mas, a realização
das vontades e necessidades das próprias mercadorias.
Aqui se revela o quanto à liberdade é contraditória sob o modo de produção
capitalista. Por um lado, o homem aparece como livre, pois as relações de troca são reguladas
pela liberdade e igualdade jurídica entre os contratantes. Por outro lado, a liberdade é negada.
Pois, o homem produtor de mercadorias se torna submisso aos desejos e vontades da sua
criação. O mérito de Marx foi ter penetrado a fundo nas relações econômicas de troca,
ultrapassado a superfície das relações burguesa, revelando que a liberdade dos homens sob o
modo de produção capitalista anda de mãos dadas com a não-liberdade.
A exposição de O Capital prossegue com a investigação da transformação do
dinheiro em capital. Tal processo é o pressuposto da produção e circulação de mercadorias no
6
“Não estamos nos referindo a igualdade de possuírem iguais meios de produção materiais, mas à sua igualdade
enquanto produtores mercantis autônomos, independentes uns dos outros. [...] Marx não está tratando de um
postulado ético de igualdade, mas da igualdade dos produtores mercantis enquanto fato social básico da
economia mercantil. Repetimos: não da igualdade no sentido de igual distribuição de bens materiais, mas no
sentido de independência e autonomia entre os agentes econômicos que organizam a produção” (RUBIN, 1980,
p. 102 - 103).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 119 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
mercado capitalista. Não obstante, o surgimento do capital exige que se transforme também a
forma de circulação de mercadorias. Enquanto o dinheiro funciona como dinheiro, as
mercadorias circulam na forma M – D – M, todavia, essa forma de circulação não possibilita a
transformação do dinheiro em capital. Para tanto, é preciso que as mercadorias circulem sob
uma forma mais desenvolvida, que é a circulação capitalista de mercadorias, D – M – D. 7
O processo de circulação simples de mercadorias (M – D – M) se caracteriza pela
transformação de mercadoria em dinheiro e, posteriormente, transformação de dinheiro em
mercadoria. O processo começa com a venda e termina com a compra, resume-se em vender
para comprar. Já o processo de circulação capitalista de mercadorias (D – M –D) se
caracteriza pela transformação de dinheiro em mercadoria e, posteriormente, transformação
de mercadoria em dinheiro. O processo começa com a compra e termina com a venda,
resume-se em comprar para vender. O dinheiro é o ponto de partida e o ponto de chegada do
movimento, enquanto que a mercadoria é o mediador do processo. A finalidade é o dinheiro.
Todavia, é preciso deixar claro que não se troca dinheiro por dinheiro. Pois, “o mesmo pelo
mesmo, parece uma operação tão sem finalidade quanto insossa” (MARX, 1983, p. 128).
Se ao final do processo se retira da circulação mais dinheiro do que foi adiantado
inicialmente, então a forma completa do processo é D – M – D`, em que, D` = D + ΔD.
Portanto, o resultado do processo é igual à soma de dinheiro que foi originalmente adiantado
mais um acréscimo. “Esse incremento, ou o excedente sobre o valor original, chamo de –
mais valia” (MARX, 1983, p. 128). O dinheiro que foi adiantado no início do processo sofreu
uma alteração quantitativa, pois ele se valorizou, foi acrescida uma mais-valia. É esse
movimento que incrementa ou aumenta a grandeza do dinheiro que o transforma em capital.
A única razão de ser da circulação capitalista é a expansão do valor e essa razão é
personificada pelo capitalista que tem sede e paixão pelo enriquecimento, ele é a
personificação do capital e, por isso, possui um ardor insaciável pela permanente expansão e
valorização do valor. “Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro
torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de
retorno do dinheiro” (MARX, 1983, p. 129). Aqui, é determinado historicamente o
surgimento da classe capitalista, como a classe que personifica a vontade do capital. Portanto,
o capitalista é tão livre como qualquer possuidor de mercadorias, ou seja, ele só é livre na
7
“O circuito D-M-D oculta, portanto, sob as formas de dinheiro e mercadoria, relações de produção mais
desenvolvidas, e constitui dentro da circulação simples nada mais do que um reflexo de um movimento superior”
(MARX, 1982, p. 91).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 120 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
medida em que atua em função do capital. Sua subjetividade é determinada antes de tudo, pela
lógica da circulação capitalista, pela lógica do lucro.
Após desvendar a fórmula geral do capital D – M – D`, a exposição avança e Marx
busca compreender de que maneira a grandeza do valor se eleva, ou seja, a grande questão em
pauta é de onde surge a mais-valia? Marx afirma que o possuidor do dinheiro precisa
encontrar na esfera da circulação uma mercadoria que seja em seu próprio consumo fonte de
valor. “E o possuidor de dinheiro encontra no mercado tal mercadoria específica – a
capacidade de trabalho ou força de trabalho” (MARX, 1983, p. 139). A única mercadoria
disponível no mercado que é capaz de criar valor e aumentar a sua grandeza, possibilitando
que dinheiro seja transformado em capital é a capacidade de trabalho ou força de trabalho.
Para que o capitalista encontre força de trabalho disponível no mercado é preciso que
algumas condições sejam estabelecidas. “Para que seu possuidor venda-a como mercadoria,
ele deve poder dispor dela, ser, portanto, livre proprietário [freier Eigentümer] de sua
capacidade de trabalho, de sua pessoa” (MARX, 1983, p. 139). Qualquer vendedor de
mercadorias para que possa ofertá-las no mercado, precisa antes possuí-las. Um escravo, por
exemplo, não é livre proprietário de si mesmo, não é dono da sua força de trabalho e,
portanto, não poderia ofertar sua força de trabalho. A venda da força de trabalho só pode ser
realizada por homens livres.
A relação que se estabelece no mercado entre o comprador da força de trabalho e o
seu vendedor é uma relação jurídica, na qual ambos se reconhecem como iguais e não há
privilégios para nenhuma parte. O intercâmbio entre capital e trabalho é uma relação situada
na esfera da circulação, pois, trata-se de uma relação entre dinheiro e mercadoria. 8
Pressupostas estas condições fundamentais, Marx afirma que a venda da força de
trabalho só pode se concretizar porque o trabalhador que a aliena no mercado é livre. Mas,
“livre no duplo sentido [frei in dem Doppelsinn] de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua
força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras
mercadorias para vender, solto e solteiro, livres de todas as coisas necessárias à realização da
sua força de trabalho” (1983, p. 140). A transformação do dinheiro em capital exige em
primeiro lugar que o vendedor da força de trabalho seja livre proprietário de si mesmo, mas,
ironicamente, acrescenta Marx, que o vendedor da força de trabalho também deve ser livre
das condições de produção, ou melhor, alienado delas.
8
“O intercâmbio entre a força de trabalho e o capital permanece no âmbito da circulação mercantil simples
porque, para o trabalhador, o objetivo desse intercâmbio não é o valor como tal, mas sim a satisfação de suas
necessidades imediatas” (ROSDOLSKY, 2001, p. 176).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 121 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
para realizar trocas no mercado, ele também é não-livre diante da mercadoria e de sua coerção
econômica.
9
“A aplicação capitalista da maquinaria se revela, na verdade, como o contrário exato do que diz a apologia
burguesa: em lugar de tornar o trabalhador mais independente e atenuar sua exploração, serve para confiscar uma
parte crescente de seu tempo de trabalho na forma de mais-trabalho, de modo a perpetuar e fortalecer o poderio
do capital que lhe é hostil.” (ROSDOLSKY, 2001, p.206).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 127 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
10
“[...] Somente agora se vai analisar o processo de produção do capital no seu movimento total (ainda que de
forma purificada) que constitui o ciclo de circulação do capital. Primeiramente, se toma esse ciclo enquanto
reprodução simples (isto é abstraindo a acumulação). Já aqui se manifesta uma grande transformação em todo o
processo.” (BENOIT, 1996, p. 36).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 128 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
economistas denominam de renda não é outra coisa senão, trabalho alheio não-pago. Para o
burguês, a mais-valia que ele recebe é a renda obtida por seu primeiro capital, ou seja, pelo
capital que ele conseguiu por meio de seu próprio trabalho, por meio de seu esforço e
virtuosismo. Para o capitalista o fluxo constante da produção de mercadoria transforma seu
capital adiantado em mais-valia acumulada, produzindo um incremento em seu capital global.
Mas, que transformações esse processo de reprodução simples produzem para o
trabalhador? Marx enfatiza (1984, p. 156) que “o trabalhador sai do processo sempre como
nele entrou – fonte pessoal de riqueza, mas despojado de todos os meios para tornar essa
riqueza realidade para si.” Marx enfatiza que sob o modo de produção capitalista, o
trabalhador no chão da fábrica não produz apenas valores de uso, mas produz capital e,
inconscientemente, reproduz uma relação social que o explora. Uma relação que gira em torno
da manutenção da classe trabalhadora enquanto classe trabalhadora livre, desprovida dos
meios de produção e vendedora da força de trabalho. 11
A ilusão de que a reprodução capitalista pode produzir o trabalhador como não-
trabalhador e o capitalista como não-capitalista só é verdadeira se tomamos o trabalhador
isolado ou o capitalista isolado. Quando se considera o capitalista e o trabalhador
individualmente, é claro que eles podem sair do processo de produção de maneira diferente da
qual entraram, pois a liberdade jurídica permite esses movimentos. Mas, considerando as
classes em seu conjunto, essa aspiração não passa de ilusão, pois a separação do trabalhador
das condições de trabalho é uma condição determinante do modo de produção capitalista.
“O escravo romano estava preso por correntes a seu proprietário, o trabalhador
assalariado o está por fios invisíveis. A aparência de que é independente é mantida pela
mudança contínua dos patrões individuais e pela fictio júris do contrato.” (MARX, 1984, p.
158). As relações de produção capitalistas são edificadas sobre os alicerces da liberdade,
paraíso dos direitos, da igualdade e da independência. No entanto, a reprodução simples
revela que fios invisíveis, não prendem o operário a determinado capitalista, mas prende a
classe trabalhadora à classe capitalista da mesma forma que as correntes prendiam o escravo
antigo ao seu senhor. O que parece tornar a não-liberdade imperceptível é a liberdade jurídica
que reina na esfera da troca de mercadorias. O trabalhador não está preso por correntes, ele é
juridicamente livre, por isso ele pode se movimentar pela esfera do mercado, não está preso a
nenhum capitalista individual, mas a classe capitalista em sua totalidade.
11
“Tragicamente o próprio trabalhador produz, sem saber e sem intenção, sua própria escravidão ao produzir ele
mesmo os meios de produção que nas mãos do capitalista servirão como capital, como novos meios de
exploração do operário.” (ANTUNES, 2005, p. 418).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 129 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
12
“No decorrer do processo da acumulação capitalista, desta maneira, fica claro que a classe capitalista passa a
pagar a classe trabalhadora com o próprio trabalho desta. A troca de equivalentes entre proprietários, lei em que
se embasa o direito de propriedade do modo de produção capitalista, teria validade, assim, somente em termos de
uma remota acumulação originária que antecedera todo o processo.” (BENOIT, 1996, p. 37).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 130 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
Marx ainda destaca que a reprodução capitalista não apenas aumenta a produção de
riquezas e capitais, mas também trata de concentrar esse capital adicional nas mãos de poucos
capitalistas. O processo de acumulação se desenvolve concentrando e centralizando capital. O
processo de concentração capital é inerente ao acréscimo da massa global de capital
produzido, já a centralização de capital não depende de nenhum acréscimo de capital já que se
caracteriza exclusivamente pela redistribuição do capital já existente de modo mais
concentrado. As leis do mercado baseadas na liberdade se constituem na voracidade
individual de cada capitalista por mais capital. Cada capitalista privado, servindo de sua
liberdade busca aniquilar capitalistas rivais. O processo de centralização “Termina sempre
com a ruína de muitos capitalistas menores, cujos capitais em parte se transferem para a mão
do vencedor” (MARX, 1984, p. 197). A avidez da concorrência capitalista é imperdoável com
os pequenos capitais e sempre termina com a destruição destes.
Capitalistas menores, derrotados pela concorrência são arrastados para as fileiras
proletárias. Todo esse processo é sustentado pela liberdade jurídica, a centralização é
resultado da mais pura liberdade mercantil garantida aos capitalistas individuais. Capitais
privados são livres para concorrer entre si na busca de maiores fatias de mais-valia. É a
liberdade formal do mercado que assegura a livre movimentação dos capitais na esfera do
mercado. A livre concorrência é mais uma forma de manifestação da liberdade burguesa.
A reprodução em escala ampliada, a concentração e a centralização do capital
produzem o crescimento da massa de capital global, por outro lado, no sentido inverso ela
reduz o componente variável do capital e produz, portanto, o crescimento absoluto da
população trabalhadora que não encontra espaço nas fábricas. O aumento dos operários é mais
acelerado do que o do capital variável. Portanto, Marx (1984, p. 199) destaca que “a
acumulação capitalista produz constantemente [...] uma população trabalhadora adicional
relativamente supérflua ou subsidiária.” Esses trabalhadores que a produção capitalista não
absorve na produção, Marx denomina de superpopulação relativa ou exército de reserva. 13
O capital age de maneira a impedir que a absorção de trabalhadores seja capaz de
elevar os salários, seu impulso é justamente na direção contrária, ele age em função de liberar
mais trabalhadores, aumentar progressivamente a superpopulação relativa, reduzir os salários,
aumentar a pressão sobre os trabalhadores empregados, elevando o sobretrabalho sobre estes.
13
“Marx concebe o exército industrial de reserva como o resultado de um processo dialético de criação e
supressão simultâneas do trabalho necessário por parte do capital; há também a circunstância de que, nos
Grundrisse, ele equipara o exército industrial de reserva à “esfera da pobreza”, enquanto que em O Capital esta
esfera, habitada por pessoas em situação de miséria e integrantes do lumpemproletariado, constitui “o resíduo
mais baixo da superpopulação relativa.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 212 - 213).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 132 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
base fundiária e para impedir o seu retorno aos campos. A violência brutal cumpriu um papel
decisivo para o capital, no sentido em que enquadrou e disciplinou o trabalhador expulso de
sua terra e o fez “aceitar” as novas relações sociais de trabalho.
Diante desse processo não apenas o trabalhador se torna mercadoria, mas na medida
em que aliena sua força de trabalho no mercado, também os meios de produção e o fundo de
consumo do trabalhador são convertidos em mercadorias. A separação entre o trabalhador e as
condições de trabalho criou uma massa de clientes para o mercado capitalista e os reuniram
nas cidades num grande mercado abastecido pelo capital industrial. A expropriação do povo
do campo criou o trabalhador assalariado para abastecer a indústria e o mercado interno que
consome as mercadorias produzidas por essas mesmas indústrias.
Resta-nos saber agora como se originou o arrendatário e o industrial capitalista?
Afinal o processo de expropriações da base fundiária cria diretamente apenas grandes
proprietários de terra. A gênese do capitalista industrial 14, abstraindo alguns casos em que
mestres corporativos, artesãos independentes e trabalhadores assalariados se transformaram
em pequenos capitalistas, esse se forjou de maneira brusca, impulsionado principalmente pela
expansão colonial. Com o processo de acumulação em desenvolvimento, a expansão do
capital para além do velho continente tornou-se rapidamente uma condição. A colonização
das terras americanas se constituiu em um momento decisivo para o processo de acumulação
primitiva. O sistema colonial impulsionou de maneira crucial a acumulação capitalista
mediante a fomentação do comércio, da navegação e das incontáveis riquezas minerais e
vegetais roubadas e trazidas da América, da África e da Ásia para o velho continente.
Todos esses são momentos fundamentais da acumulação primitiva e se baseiam na
mais brutal violência, que é orquestrada pelo poder do Estado que age em função da
acumulação do capital. Marx (1984, p. 286) argumenta que: “A violência é a parteira da velha
sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica.” Marx
caracteriza a violência como potência econômica porque ela é a expressão das contradições
entre as classes em luta. 15
No último item do capítulo sobre a acumulação primitiva Marx investiga a tendência
histórica da acumulação capitalista e tenta traçar o ‘destino’ da sociedade produtora de
mercadorias. Segundo Marx as contradições da produção capitalista não seriam resolvidas no
14
Na nota 238, Marx declara que: “Industrial está aqui em oposição a agrícola. Em sentido “categórico”, o
arrendatário é um capitalista industrial, tal como o fabricante.” (1984, p. 284).
15
“A violência é uma potência econômica, justamente porque essa violência nada mais é do que a expressão e o
desenvolvimento das contradições econômicas historicamente postas pelas classes em luta.” (BENOIT, 1996, p.
38).
Volume 03 - Número 07 - Ano 2011 | ISSN 1984-9052 135 | P á g i n a
Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia
interior da própria produção capitalista, assim, a luta de classes se tornaria cada vez mais
violente e desembocaria em uma revolução operária, que constituiria uma forma superior de
organização das relações sociais de trabalho.
Marx afirma que a sociedade que surge da superação do capitalismo parte da negação
da propriedade capitalista e restabelece “a propriedade individual sobre o fundamento
conquistado na era capitalista: a cooperação e propriedade comum da terra e dos meios de
produção produzidos pelo próprio trabalho.” (1984 p. 294). Marx não nega ou descarta o
avanço técnico que a produção capitalista foi capaz de produzir. Todavia, todas as maravilhas
que os avanços das forças produtivas produzidas sob o comando do capital, deverão ser
aplicadas sob novas formas de relações sociais de trabalho.
As contradições entre a classe capitalista e a classe trabalhadora se tornam tão
insustentáveis que a violência entre elas eclode em um novo processo de expropriação.
Porém, trata-se agora, da expropriação da propriedade capitalista. Esse é o momento sintético
de toda a exposição, momento no qual as contradições que se forjaram da luta de classes são
resolvidas diante da negação das duas classes antagônicas e pelo restabelecimento da unidade
entre o trabalhador e as condições de trabalho.
Por conseguinte, devemos ressaltar que se Marx aposta na luta de classes e no
proletariado como agente revolucionário, porque foi sob a ordem capitalista que ele se tornou
livre. A luta entre capitalistas e proletários é resultado da liberdade jurídica, da liberdade
abstrata e formal que possibilitou a igualdade política entre os agentes econômicos,
possibilitando a organização política da classe operária. Esse é o aspecto positivo da liberdade
burguesa, a igualdade e liberdade de organização sindical, partidária e etc. Marx enfatiza que
a liberdade burguesa é formal e abstrata, mas ele não nega totalmente essa liberdade, ele a
compreende como um grande avanço nas relações jurídicas, possibilitando a transformação
histórica.
Conclusão
Marx diz que o proletário é preso por fios invisíveis, o que fez a exposição dialética,
foi tornar esses fios visíveis e por às claras todos os mecanismos de dominação e exploração
que se desenvolvem na relação capital-trabalho. No Livro Primeiro de O Capital, Marx
desenvolveu minuciosamente as contradições e antagonismos inerentes ao processo de
produção do capital. A exposição caminhou passo a passo superando e ultrapassando as
Ao dar “vida” às categorias lógicas a dialética revela que essas categorias podem ser
e não-ser ao mesmo tempo. Ao pensar a identidade do não-idêntico, Marx demonstra que a
categoria liberdade pode negar-se e ainda conservar um valor de verdade. Marx desenvolve as
contradições da liberdade burguesa, demonstrando seus limites. A liberdade é positiva na
medida em que o trabalhador não está preso a um senhor ou a terra, se encontra juridicamente
livre e igual ao capitalista. Os homens se relacionam no mercado como livres e iguais, trocam
mercadorias de acordo com sua livre vontade e necessidade. Tal liberdade econômica
transformou-se em liberdade política e possibilitou aos trabalhadores a organização partidária,
Ao analisar a liberdade na sociedade capitalista, Marx demonstra muito bem que essa
liberdade é limitada, assim como o domínio do capital sob o trabalhador também apresenta
limites. É essa contradição entre liberdade e não-liberdade que domina a sociedade capitalista.
O capitalismo não é o reino da liberdade como afirmam os liberais, presos as aparências do
mercado, mas tampouco é o reino do absoluto domínio do capital sob os homens. O
capitalismo é constituído sob contradições que se forjam a partir da própria mercadoria, a
contradição entre liberdade e não-liberdade é apenas mais uma.
BIBLIOGRAFIA
BENOIT, Hector. Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital. In: NAVARRO, Caio
et. ali. Marxismo e Ciências Humanas. São Paulo: FAPESP/Cemarx/IFCH-UNICAMP, 2003.
______. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, n° 03. São Paulo:
Xamã, 1996, p. 14 – 44.
______. Marx: Lógica e Política. Tomo III. São Paulo: Editora 34, 2002.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Régis Barbosa e Flávio
R. Kothe. Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. Tradução de José Amaral Filho. São Paulo:
Brasiliense, 1980.