Você está na página 1de 8

Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

Licenciado sob uma Licença


Creative Commons

O ETHOS DA FÉ NA OBRA “TEMOR E TREMOR”: A POSSIBILIDADE


DE UMA CONTRIBUIÇÃO DE KIERKEGAARD À TEOLOGIA E ÀS
CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Carlos Eduardo Cavalcanti Alves
Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
cecavalcanti@yahoo.com.br

ST 18 – TEOLOGIA SISTEMÁTICA: QUESTÕES EMERGENTES

Resumo: O interesse acadêmico em âmbito nacional no pensamento de Soren Aabye


Kierkegaard (1813-1855), filósofo e teólogo dinamarquês, evidencia-se em pesquisas
principalmente nas áreas de Filosofia, Ciências da Religião, Psicologia e Teologia,
situação ocorrida também na Europa e nos Estados Unidos desde o início do século XX
- a exemplo de Karl Barth, na Teologia, e Adorno, na Filosofia. Pela grande abrangência
de sua obra, é possível ir além da designação de “pai do existencialismo” e identificar
temas relacionados à religião, em particular ao cristianismo, e a questões ético-
existenciais de cunho religioso, entre outras, angústia, moral, ética e fé. O presente
trabalho objetiva identificar, à luz das Ciências da Religião, a relação dialética entre fé
e moral na obra Temor e tremor, escrita em 1843 por Kierkegaard sob o pseudônimo
Johannes de Silentio, com o subtítulo Lírica Dialética. Baseado no relato bíblico do
sacrifício de Isaque pedido por Deus a Abraão, expõe a inadequação da razão,
incluindo o sistema de Hegel, para a compreensão do fenômeno religioso enquanto
relacionamento de fé com o divino, assim como argumenta sobre a ineficácia da moral
como referência para sua avaliação. Espera-se, a partir dos três problemas morais
apresentados na obra em questão, inferir a experiência de fé como experiência
religiosa, o confronto entre o herói trágico e o cavaleiro da fé e a existencialidade da fé
na forma de paixão, angústia e amor a Deus. Além disso, espera-se conceber a
identificação de um possível ethos da fé na existência, para a construção de futuras
reflexões sobre experiência religiosa à luz da obra do pensador dinamarquês.

Palavras-chave: Angústia. Ética. Fé. Moral.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


Introdução

A presente comunicação pretende abordar a dialética entre fé e moral, a partir do


caso bíblico relatado na obra Temor e tremor, escrita em 1843 por Soren Aabye
Kierkegaard (1813-1855), sob o pseudônimo Johannes de Silentio, com o subtítulo
Lírica Dialética. Tem como objetivo destacar a relação da existência na fé com a
moralidade, para a identificação de um possível ethos da fé como derivação da
subjetividade humana quando em ação diante da divindade, a partir dos três problemas
morais expostos na seção “Problemata” da obra. Com isso objetiva-se também, em
posteriores trabalhos, verificar a extensão desse agir ao campo religioso em geral,
estabelecendo-se conexões com os desafios epistemológicos a propósito da
experiência do divino.
Criado em um ambiente petista, o pensador dinamarquês graduou-se e obteve o
título de Magister em Teologia; porém nunca assim se definiu, tampouco o fez como
filósofo. Foi influenciado por Friedrich H. Jacobi e Friedrich Schleiermacher, contudo
cultivando postura crítica em relação a eles (Gouvêa, 2000, pp. 13-24). Segundo Olson
(2001, pp. 587-592), Kierkegaard era um cristão devoto, um profeta do cristianismo
cultural subjugado pela modernidade.
Kierkegaard opunha-se à continuidade perfeita entre o divino e o humano na
religião natural do iluminismo, no romantismo e, mais diretamente, em Hegel. Para o
sistema hegeliano, o cristianismo é a religião absoluta, em que o Absoluto imanente
está em autorrealização e satisfação através do desenvolvimento da humanidade. A
razão, portanto, corresponde ao real, em cuja dialética os paradoxos da religião são
superados pela síntese – a mediação, resultado da dialética entre determinação e
contradição. Para Kierkegaard tratava-se de um ataque direto e danoso ao cristianismo
primitivo, que não poderia ser definido como filosofia ou religião ética. Em sua
“antifilosofia” defende a diferença qualitativa infinita entre Deus e o humano, com quem
este se relaciona pelo salto da fé e uma preocupação suprema. Para ele verdade é
subjetividade: incerteza objetiva no processo de apropriação da interioridade mais
apaixonada. Assim, a verdade objetiva torna-se um paradoxo. Diante da exigência
divina de perfeição, a fraqueza humana implica em uma experiência da crise e na
questão pessoal da salvação como situação diante de Deus, singularidade que
possibilita a fé – intuição objetiva e ato de escolha (Le Blanc, 2003, pp. 17-30).
Simpatizou-se com as objeções de Kant à comprovação racional da ortodoxia cristã,
porém não com a proposta da razão prática centrada na moral e na ética, bem como da
posição periférica da historicidade bíblica (Gardiner, 2001, pp. 9-48). Adotou o método
socrático da comunicação indireta, isto é, instigação da autocrítica e autopercepção sob
o ponto de vista imaginativo do indivíduo, respeitando sua liberdade e autonomia.

1. A obra

Baseado no relato bíblico do sacrifício de Isaque pedido por Deus a Abraão, seu
pai (capítulo 22 do livro de Gênesis), defende a inadequação da razão, incluindo o
sistema de Hegel, para a compreensão do relacionamento de fé com Deus, bem como
analisa a ineficácia da moral como referência para sua avaliação.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


No prólogo do livro ironiza as certezas que superaram a fé, por cuja “inteligência”
esta teria sido substituída pela objetividade científica. Ressaltando o papel importante
da dúvida, questiona a fé como conceito a partir do qual se constrói a razão. A seguir,
em “Atmosfera” e “Elogio a Abraão”, passa a descrever poeticamente a cena bíblica
como evento: acontecimento passível de outros desfechos, não fosse a profunda fé do
patriarca, que a vive como marco fundamental da sua história com Deus agindo em
total obediência. Na “Efusão Preliminar”, partindo para a dialética, critica a visão cristã
do acontecimento, amenizadora da angustiosa e terrível situação sob o eufemismo
“prova”, e aprofunda seu elogio à grandiosidade do personagem bíblico que crê na
impossibilidade, no absurdo. Na “Problemata” explicita os três problemas morais
decorrentes da atitude de Abraão – suspensão teleológica da moral, dever absoluto
para com Deus e silêncio perante os seus -, concluindo, no epílogo da obra, que a mais
elevada paixão do homem é a fé.

2. Fé e moral em Temor e tremor

Na seção “Problemata” inicia sua argumentação pela defesa da diferença entre


as leis do mundo social, em que nem sempre dedicação e esforço são recompensados
com sucesso e facilidades, e o mundo do espírito, no qual inexiste o acaso: somente
quem trabalha, sofre, angustia-se, empunha a faca como Abraão tem sua recompensa.
O mundo do espírito padece pela falta de reflexão, que exemplifica a superficialidade no
entendimento da história de Abraão. Omite-se a angústia, incomparavelmente maior
que a do jovem rico perante Jesus. Nada se aproveita das pregações sobre o tema, na
irrelevância de se apenas identificar Isaque como o “melhor” que Abraão daria a Deus.
A situação torna-se tragicômica: sermões sem sentido e uma vida que deste carece,
diante da contradição do iminente assassinato de Isaque e do discurso religioso do
elogio. Como este se justifica se a atitude do Patriarca perde-se no contexto histórico
da Antiguidade? Não seria melhor o esquecimento em vez de tanto prestígio? A fé é
que garante sentido ao gesto de Abraão, que foi além do amor ao filho. Sua dialética
requer paixão, insondável pela filosofia e a teologia. Mais fácil é superar o sistema de
Hegel do que o paradoxo de Abraão. O amor de Deus é confortante e toda alegria
produzida por ela que não considere o elevadíssimo movimento da fé é desgraçada. A
diligência do herói trágico a caminho de Moriá, o autor, confessa, teria. Daria tudo por
perdido, uma vez que Deus pede seu amado filho. Mas isso não seria fé, somente
movimento infinito de resignação, porque aquela acredita no absurdo do abandono do
finito para recebê-lo de volta, em um duplo movimento de sublime dialética além de
qualquer razão, como sua superação e, nunca, negação. Não um salto incapacitante,
mas o que parte do trampolim da resignação infinita para alcançar o estágio superior, a
própria fé, onde também há esperança e o amor que se reflete em Deus. Querer
superar a fé é enganosamente substituí-la por uma regra, que nega seu paradoxo – é
vinho transformado em água. O homem de fé não se encontra com facilidade, embora
possa externamente ser confundido com seu oposto, o burguês. É interessado pelo
mundo, atento ao cotidiano, sem ser poeta ou gênio. Contudo, tudo realiza em função
do absurdo. Sua resignação infinita é sucedida pela experiência prazerosa do finito.
Como cavaleiro do infinito e da fé, assemelha-se ao bailarino que salta e retorna ao
solo firmando-se de novo, ainda que com dificuldade, em êxtase. Também a um jovem

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


que tem amor vital por uma princesa e, diante da impossibilidade, mantêm-se calmo em
sua resignação infinita, cônscio de seu amor eterno sem apelar à mediação hegeliana
ou ao desejo de mudança interior. Crê na possibilidade do impossível, mas com o
movimento da infinita resignação basta-se a si mesmo, em repouso e paz no meio da
dor. Não há nesse movimento necessidade, pois no mundo do espírito conhece-se a si
próprio e seu valor eterno, para alcançar a vida no mundo pela fé. Semelhantemente ao
jovem apaixonado, o cavaleiro da fé age. Entretanto seu próximo movimento é crer no
absurdo, não alcançado pela razão, de que tudo é possível para Deus. Convicção é
outra coisa, posto não ver impossibilidade nem ter resignação. É instinto do coração em
vez da firmeza da fé como paradoxo da vida. Contudo resignação não leva à fé, mas à
consciência eterna. É renúncia, ao contrário da fé, que paradoxalmente volta-se à
temporalidade e recebe o finito. Aquela opõe-se à existência na dor; esta entra em
harmonia com ela na alegria. Questionável é a depreciação contemporânea de algo tão
grandioso, a qual não fazem jus a ironia e o humor, restritos à resignação infinita. A
maior de todas as coisas, a fé, entretanto, é entre o crente e o ser eterno. Ela começa
justamente onde acaba a razão.
Kierkegaard coloca o problema “há uma suspensão teleológica da moralidade?”
declarando: a fé começa onde acaba a razão. Aborda a moralidade como instância
presente no geral, como telos de tudo o que é exterior. A individualidade não sobrepuja
o geral, mas subordina-se a ele. O indivíduo tem-no como telos. Nisso acerta Hegel na
“Filosofia do Direito”, mas erra ao não identificar o paradoxo da fé, que leva o indivíduo
que está no geral a superá-lo. Caso contrário Abraão não passaria de um assassino. A
moral, portanto, não é o estágio maior da existência. Tentar explicar a fé como
prerrogativa do cristianismo é tolice que sempre acha quem a admire, pois aquela é um
paradoxo que está acima do geral, em relação absoluta com o absoluto e sem qualquer
mediação, já que é possuída pelo indivíduo. O absurdo de se estar acima do geral
requer a suspensão teleológica da moral, sem qualquer analogia com dilemas trágicos
ou religiosos. Uma crise religiosa não justificaria o sacrifício de Isaque, haja vista a
situação permitir apenas a ação do crente ou do assassino. Moralmente, o amor do pai
pelo filho pode ser conservado em situações trágicas ou religiosas. O sacrifício
mitológico de Ifigênia e da filha de Jefté, e a morte do filho de Brutus, autoridade de
Estado acima de qualquer suspeita, que cumpre sentença contra seu próprio filho, são
admirados por sua nobreza. Mas, como admirar Abraão, que não age para salvar seu
povo ou aplacar a ira divina contra os seus? Sua expressão moral está em amar o filho
apenas; entretanto seu amor a Deus vence a tentação de se limitar à moralidade, e
essa é a prova. A comparação do evento bíblico com o paganismo é inócua, porque
para esta moral e divindade são uma só coisa, enquanto para o patriarca em silêncio
não há mediação; caso contrário, não seria o tão admirado pai da fé. Nem com o herói
trágico, que renuncia ao finito pelo mais certo, o infinito, uma vez que a situação de
Abraão seria de crise religiosa e, neste caso, de dúvida. O cavaleiro da fé, portanto,
está em oposição ao geral, consistindo no paradoxo de se assim estar na relação com
o absoluto como indivíduo. Esse paradoxo escapa ao resultado da ação, cujo valor está
em seu princípio e desenvolvimento. Não se prova, assim, o direito de Abraão agir
frente ao geral. Despreza-se, por outro lado, a humanidade do herói da fé: o desespero
e a angústia, levianamente esquecidos como se não fossem inerentes ao humano.
Humanidade da virgem Maria, diferenciada em sua sofrida obediência diante do
extraordinário. Não se tratam de simples heróis, haja vista não vencerem a tribulação,

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


antes a sofrerem, pelos quais não devemos chorar, mas antes por nós mesmos. Seu
caminho é solitário e incompreensível, e sua fé um milagre possível, posto que é
paixão.
Sobre o segundo problema, “há um dever absoluto para com Deus?”, o autor
identifica a moralidade com o divino, por ser o geral: é dever para com Deus, embora
não seja relação com Ele, por exemplo, quando se ama o próximo. Fosse isso amor a
Deus seria como amar o distante, uma abstração, em vez do próximo. Os conceitos da
filosofia de Hegel, das Aeussere (manifestação, o exterior) e Innere (o íntimo), em
mútua determinação não se aplicam à fé. Se nada houvesse de incomensurável no
mundo, a Ideia hegeliana seria verdade. Contudo, o paradoxo da fé coloca o interior
acima do exterior. Na moral seria isto pecado; na fé uma interioridade superior é
exercida, jamais o “imediato” da filosofia, já superada pela resignação infinita da
ignorância socrática. A fé dá-se no infinito para, então, dar-se no absurdo. A relação do
indivíduo com o geral, por sua vez, é através do absoluto. Entretanto, o dever de amar
a Deus é absoluto, acima da moral, que não é abolida, contudo relativizada. O indivíduo
incompreendido e sozinho está no paradoxo da fé: somente como tal pode carregar o
sublime egoísmo de agir por amor a si e tudo abandonar, por amor a Deus. Outro
exemplo bíblico do dever absoluto para com Deus, minimizado pela hermenêutica que
desconsidera a contextualização imediata, é a passagem de Lucas 14.26, em que
Jesus contrapõe o seguimento dele à submissão aos afetos mais profundos do ser
humano. Deve-se reconhecer essa realidade do cristianismo, ainda que não se tenha
coragem, ou melhor, orgulho de agir dessa forma. Na fé, a coragem é humildade, de
amar sempre em vez de desprezar, mas amar a Deus mais do que tudo. Como Abraão,
cujo sacrifício está precisamente em abrir mão do filho amado, em paradoxo com seu
amor a Deus. Não há algo mais terrível do que existir como indivíduo, nem maior,
constatação desprezada pela igreja em sua similaridade com o Estado. É grandeza
viver em temor e tremor, renunciar ao geral para se tornar indivíduo: daquele
reconhecendo a importância e a beleza; como este enfrentando o espinhoso caminho
de quem esperou setenta anos por um filho para ser provado. Sem fazê-lo para salvar
outrem por admirável nobreza, porém tão somente para ser tentado. O cavaleiro da fé
não tem a ajuda de quem quer que seja. Sua terrível loucura é, na verdade, paixão que
não deixa de considerar a moral de seu amor de pai. O herói trágico converte o dever
em desejo ou renuncia a este, encontrando repouso; o cavaleiro da fé renuncia a
ambos – resigna-se diante do desejo e toma o dever absoluto para com Deus, contudo
sem sair de sua realidade. O herói trágico encontra apoio no geral para superar a
moral; o cavaleiro da fé está só. Não se confunde com o sectário, por este ser uma
caricatura do herói trágico, juntando apoio disperso, negando a angústia e impondo
domínio. O cavaleiro da fé em sua solidão a ninguém guia, nem se deixa guiar pelo
desejo ou pelo outro; entretanto está cônscio da grandeza disponível a todos. Ou há um
dever absoluto para com Deus ou Abraão está perdido ou, ainda, a fé é algo que todos
possuem.
O silêncio de Abraão suscita o último problema: “pode moralmente justificar-se o
silêncio de Abraão perante Sara, Eliezer e Isaque?”. Kierkegaard relembra que a
moralidade é o geral e ratifica que o indivíduo é oculto, ser imediatamente sensível e
psíquico que deve se libertar para o geral, senão pecará. Tal situação também
evidencia o paradoxo, visto Abraão estar acima do geral e oculto, fato negado por
Hegel quando classifica a fé como primeiro imediato, na verdade o imediato último. A

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


primeira imediatidade é estética, não inclui a fé. A categoria “o interessante” presente
na estética e na ética, em Sócrates envolto em dor e sofrimento, não tem lugar no
sistema hegeliano. Na Poética de Aristóteles, a tragédia grega contém a coisa oculta,
que será reconhecimento que suspende a ação dramática e mostra sua origem.
Entretanto na atual época de “reflexão”, situações como a de um filho que mata um pai
sem saber que o fez seriam impensáveis, pois o destino está na consciência do próprio
drama. Se há sentido no oculto, apresenta-se o herói trágico; se não há, trata-se do
cômico. Em ambos fica claro não haver relação com o paradoxo. No caso de dois
jovens que se amam, porém a adolescente está prometida a outro, pela estética seus
sentimentos seriam descobertos ao acaso, os dois explicam-se e se unem, sendo
resolutos heróis independentemente do momento em que assim façam. Na ética, por
outro lado, o oculto não é recompensado, antes exigida a manifestação responsável
diante da realidade. A manifestação estética, voltando à personagem Ifigênia, salva o
pai Agamenon pela revelação de um servo à mãe, Clytemnestra. Na ética, o pai-herói
deve se manifestar, ainda que sobre as lágrimas da filha, atingindo o geral. O silêncio,
dessa forma, é demoníaco e divino, quando unido conscientemente à divindade.
Retomando a Poética, há uma passagem em que um noivo recusa-se a casar diante da
predição de catástrofe contra ele, feita na última hora, a propósito das núpcias. Que
deveria fazer? Calar-se, na estética, em favor da felicidade efêmera ao apostar na
demora do acontecimento é inadmissível, pois esta seria transformada na ira de quem
não foi avisada da desgraça. Calar-se, na estética, e aguardar a punição divina a
qualquer momento é igualmente danoso, porque se aniquilaria e ofenderia o amor da
noiva. Ao falar está eticamente justificado, mas desdenhando o próprio amor. O aspecto
demoníaco do silêncio está, por exemplo, na figura do deus mitológico Tritão. Supõe
uma situação em que este, ao seduzir Inês para levá-la ao fundo do oceano, é vencido
por sua inocência e volta atrás, sob o pretexto de apenas ter-lhe mostrado o esplendor
das águas. Seu desespero é que ela está perdida para ele, pois é apenas um tritão. Se
decide casar-se com ela, está no paradoxo do pecado e, assim, acima do geral, em
relação absoluta com o demoníaco - a não ser que creia em virtude do absurdo, após o
movimento infinito do arrependimento, a mais alta expressão da ética. Caso contrário
engana-se a si e a jovem. Tal reflexão requer o “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates e
Pitágoras, a fim de descobrir-se pela profunda angústia. Nos tempos modernos, porém,
julga-se ter alcançado o ponto mais alto sem se ter obtido o conhecimento das coisas
mais simples, presentes no poder do espírito. Outro exemplo pode ser obtido na história
vetero-testamentária de Tobias. Sara, com quem deseja se casar, teve sete esposos
mortos ainda nas núpcias. Sua infelicidade não se deu no amor, mas antes dele. Agora
Tobias, ao deitar-se com ela, convida-a a suplicar a piedade do Senhor e celebra seu
casamento. Neste drama Sara é a heroína, pois aceitou receber seu noivo e foi
corajosa mesmo na angústia. Fosse um homem no lugar de Sara, o paradoxo
demoníaco teria lugar, pois não haveria compaixão, nem deveria ser objeto dela. Mas
Sara é objeto de compaixão sem ter pecado, e este é seu martírio, porque aqui há a
dupla dialética do querer e, em seguida, do não-querer. Em Fausto, falta a Goethe
profundidade quanto à dúvida, sobre a qual seus contemporâneos, segundo
Kierkegaard, sequer conseguem esboçar. Supondo esse personagem um simpático
incrédulo, mesmo julgando-se um conquistador, prefere ficar em silêncio com suas
dúvidas ao invés de provocar confusão ao falar. Recusa-se também a expressar seu
amor a Margarida. É uma figura ideal se comparada aos presunçosos de rasa

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


qualidade. Falar a verdade é exigência do geral contra um possível orgulho, mas
decidindo se calar entra como indivíduo em relação absoluta com o absoluto, sem mais
duvidar. O Novo Testamento ratifica isso, inclusive com ironia, rancorosamente tratada
por Hegel. Exemplo é o mandamento de esconder os sinais físicos do jejum, em que a
subjetividade engana a realidade e desmonta a ideia de comunidade. Toda esta
argumentação mostra como é impossível compreender Abraão diante dos estágios
estético e ético e seus movimentos. Seu caso assemelha-se ao paradoxo do pecado,
mesmo assim este não o explica. O patriarca desprezou a mais alta instância moral
para ele, a família, ao se calar. A estética exige o silêncio para salvar alguém e nunca
admite o sacrifício do outro. A ética condena-o por se calar, decisão tomada
individualmente, quando o movimento deveria ser infinito e manifesto, sacrificando-se
pelo geral. Contudo, Abraão está no paradoxo: ou como indivíduo está em relação
absoluta com o absoluto ou está perdido, não sendo herói trágico nem ético. Cala-se no
sofrimento e na angústia e não pode falar, porque seria incompreendido. O herói trágico
fala, respondendo a qualquer argumento e encontrando repouso. Abraão está só e sua
linguagem não pode ser expressa; ela é divina. É um emigrante do geral, resistindo à
tentação de agir pela moral. Realiza os movimentos da renúncia a Isaque e da fé, que o
consola, posto que crê no absurdo mesmo sem visualizar o fim da história. A única
frase dita por Abraão foi uma resposta à indagação do filho: “...Deus proverá ele mesmo
o cordeiro para o holocausto.” Sobre falar uma última frase, não cabe ao herói trágico
vulgar, pois todo o sofrimento está cumprido e ele se diminuiria se declarasse algo. O
intelectual, por sua vez, fala pela comicidade e se torna imortal. Sócrates fez esse
movimento ao replicar, afirmando-se diante da morte. Se Abraão falasse a Isaque que
dele se tratava o sacrifício, apresentar-se-ia a crise e se instalaria a dor, num ato de
fraqueza e imaturidade. Abraão não mente, pois realmente crê no absurdo, mas nada
diz com suas palavras revestidas da ironia de quem sabia o que haveria de acontecer.
Se estivesse indeciso ao falar a Isaque, já não seria o cavaleiro da fé que sofre e se
angustia por amor a Deus.

Conclusão

Na obra Temor e tremor, Kierkegaard define a fé como salto, movimento existencial


para além da ética como manifestação do geral diante de Deus na relação com o outro.
Sendo relação de alteridade com o absoluto, fé é escolha na existência e, por isso,
envolve angústia, demonstra superior paixão e implica esperança e amor, na
constituição da tríade das virtudes cristãs. De forma alguma é estágio rudimentar da
existência, mas sua mais alta expressão, escapando a qualquer investigação racional.
Expressa-se em virtude do absurdo, porque neste crê. Assim, deve-se considerar a
possibilidade de um ethos para a fé, como experiência religiosa não suscetível de
análise pela moral e por outras instâncias da razão, para o qual espera-se que as
reflexões da presente comunicação apontem e sirvam como referência para futuros
trabalhos.

Referencias

GARDINER, Patrick. Kierkegaard. São Paulo: Loyola, 2001.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803


GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo paradoxo: uma introdução à Kierkegaard.
São Paulo: Novo Século, 2000.

KIERKEGAARD, Soren A. Temor e tremor. Tradução de Maria José Marinho. São


Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 109-185 (Série Os pensadores).

LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

OLSON, Roger. História da teologia cristã: dois mil anos de tradição e reformas. São
Paulo: Vida, 2001.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1803

Você também pode gostar