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1.

1 A TRADIÇÃO ORAL DAS INTERPRETAÇÕES DA LEI E SUA FORMA ESCRITA


– MISHNÁ.

A visão do leitor moderno sobre as questões que envolvem a polêmica da


difusão do Evangelho entre a pregação de Paulo e os judaizantes não pode se
olvidar daquilo que está no cerne da religião judaica nos primeiros séculos da Era
Comum: a relação do judeu com as Escrituras Sagradas e a forma como se deveria
observar os preceitos e mandamentos nela contidos.

Como se pode extrair do senso comum, a história de Israel enquanto nação,


como narrada na Bíblia, passa pela aliança de Deus com o povo no deserto e a
confecção de escritos que deveriam ser observados com tamanho zelo pelos judeus,
quanto importava a sua própria vida. De fato, segundo WYLEN (2016) a religião que
conhecemos como modernamente como Judaísmo é derivada daquela religião do
povo israelita, tal como apresentada na Bíblia que, após três séculos de conflitos, a
considerar o início pela Revolta Macabeu (168-65 a.C.) até as rebeliões judias
contra a dominação romana da região siro-palestina (66-70 d.C e 132-135d.C.).

Essa religião começou a tomar a forma atual a partir de então, sendo que
tinha por base um sistema sacrificial centrado em Jerusalém e mantido por uma
casta sacerdotal hereditária até que assumiu os contornos de uma religião baseada
em interpretações da Bíblia Hebraica das mais variadas correntes de pensamento
de acordo com as interpretações criativas que surgiam, e tinha como principais
instituições a academia (yeshivah) e a sinagoga (beit knesset) (WYLEN, 2016).

Esse mesmo pesquisador afirma que como fim da revolta Macabeu, a


sociedade judaica assistiu o emergir de novos líderes em substituição ao antigo
sistema sacerdotal hereditário, pois o Segundo Templo havia sido destruído, pondo
um fim assim, ao sistema sacrificial cotidiano. Dentre esses novos líderes da nação,
os estudiosos da Torah foram os mais destacados, assumindo o protagonismo
cultural e social desde então. Afirma ainda que esses estudiosos foram
denominados por vários nomes (fariseus, haverim, sábios, entre outros) mas que em
dado momento passaram a receber a atribuição genérica de “rabi”. Nas palavras do
pesquisador:
“O termo ‘rabi’ significa mestre, provavelmente em referência à relação
mestre-discípulo através da qual o jovem que está sendo instruído adquire
conhecimento e sabedoria. “Rabi” tem um sentido similiar ao do termo
“sensei” no karatê moderno. Assim, o aluno internaliza os valores do seu
professor enquanto aprende dos seus lábios. A relação entre os vários
títulos usados para os primeiros estudiosos (da Torah) nem sempre é clara
para nós. Nós os chamaremos a todos eles Sábios, que é um termo que
abrange todos os outros” (WYLEN, 2016, tradução nossa 1)

Os Sábios então, introduziram um novo estilo de vida segundo as Escrituras,


delineando a nova religião judaica que, segundo a maioria dos judeus tem nos
sábios Hillel e Shammai os chamados “avot há-olam” (pais fundadores), os seus
pilares, contrariando a visão anacrônica que Moisés seria o rabi fundador do
Judaísmo.

É importante destacar que, durante a evolução do que viria a ser o Judaísmo,


ao longo dos séculos, os israelitas vivenciaram diferentes culturas dominantes, como
a do antigo oriente próximo, a Babilônica, Egípcia, Pérsica, Pártia, bem como
sofreram influências do helenismo sob o Império Romano, sendo este último
preponderante nas mudanças ocorridas na evolução de sua matiz religiosa para o
que chamamos hoje de Judaísmo, requerendo especial atenção na educação
escolar, registro escrito das tradições e reinterpretação dos textos bíblicos com o
intuito de adaptar as Escrituras ao novo estilo de vida predominante (helenização),
especialmente no contexto da Diáspora (WYLEN, 2016; KOESTER, 2015).

Contada pelo ramo religioso judaico remanescente, esse registro escrito,


chamado Mishná, teria sua origem na entrega da Lei por Javé no Sinai, como
registrado no livro de Êxodo. De fato, segundo um dos tratados da Mishná, chamado
Pirkei Avot, relata (CHABAD, 2020):

“Moshê recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Yehoshua; Yehoshua aos


Anciãos; os Anciãos aos profetas; e os Profetas transmitiram-na aos

1
“The term ‘rabbi’ means master, probably in reference to the master-disciple relationship through
which a young student acquired knowledge and wisdom. “Rabbi” has a sense similar to that of the
term “sensei” in modern karate. One internalizes the values of one’s teacher as one learns from his
lips. The relationship between the various titles used for the early scholars is not always clear to us.
We will call them all Sages, a term which encompasses all the others”
Homens da Grande Assembléia. Estes [os Homens da Grande
Assembléia]disseram três ditos: Sejam prudentes no julgamento; formem
muitos discípulos; e ergam uma cerca para a Torá” Pirkei Avot 1:1

A Mishná, então, é uma compilação de leis e regulamentos que tem


correlação com a Bíblia Hebraica, sendo também chamada de Torá Oral, pois teria
sido transmitida desde Moisés até os rabinos considerados fundadores do Judaísmo
(Hilel e Shamai) (KOESTER, 2015), e apresenta marcante enfoque no aspecto
restrito à vida privada, no cotidiano, que, segundo Saldarini (2005) reflete o caráter
da comunidade judaica do segundo século, isto é, de um povo subjugado, sem
poder para legislar sobre assuntos de governo, restringindo-se assim apenas ao
cotidiano, o que pode explicar a grande ênfase em regular comportamento, como
domínio remanescente de normatização (SALDARINI, 2005; GOWER, 2012).

Confeccionada ao mesmo tempo em que os cristãos também concluíam os


seus novos escritos (Novo Testamento), a Mishná, segundo Wylen (2016) remonta
aos esforços realizados pelos novos líderes emergentes nas academias (yeshivah,
lit. “lugar onde se senta”) e nas sinagogas no intuito de disseminar a fé judaica e a
correta aplicação do elo que garantiria a manutenção da vida da nação como um
todo: a obediência a Torá.

Essas academias eram locais de instrução onde esses líderes aprenderam


aos pés dos seus próprios mestres, sendo então uma versão judaica da escola de
filosofia difundida durante o Império Romano que utilizava métodos bastante
diferente dos aplicados à instrução dos infantes, os quais aprendiam a Torah verso
por verso. Na academia, os alunos aprendiam por tópicos os assuntos, da mesma
maneira que seus mestres também tinham aprendido.

Por esse modelo de aprendizado “aos pés do mestre”, a autoridade de uma


ordenança, ou lei, não está em um verso da Torah, simplesmente, mas no nome de
um grande mestre de quem o atual mestre aprendera, daí a origem da terminação
“Torah Oral”, pois os sábios acreditavam que tinha sido transmitida de mestre para
discípulo desde um período que remonta a Moisés e a Josué, no episódio bíblico do
Monte Sinai.

De fato, Lenhardt e Collint (1997, apud LOHSE, 2000) afirmam que segundo a
crença judaica da época, “a torá é preexistente; estava junto com Deus antes da
criação do mundo”. Conforme a visão de Silva (2016), a Torá Oral precede a Torá
escrita, pois antes do registro escrito, houve a palavra falada de Deus, e a Torá Oral
é capaz de atualizar a Torá Escrita. Conforme o mesmo autor:

“Ressaltamos, entretanto, que muito embora a afirmativa acima pareça


inferir que a Torá escrita é inferior à Torá oral, não é assim que funciona na
lógica farisaica. Na verdade, acreditava-se que havia uma coerência entre
as duas, e que a segunda atualizava a primeira, levando-a a uma nível
prático, portanto aplicável ao cotidiano do homem religioso” (SILVA, 2016)

Assim é que, ainda no final do primeiro século da Era Comum, reconhecidos


mestres fariseus reunidos na cidade de Jabne, que veio a ser um importante centro
de influência na comunidade judaica, no Concílio de Jabne (c. 90 d.C.), criaram o
que foi reconhecido como corpo rabínico autorizado para interpretação Lei de Deus,
o que delimitou o Judaísmo e também oficialmente iniciou a cisão entre o Judaísmo
e o nascente Cristianismo, e quando, por fim foi compilada a Mishná, a partir de
tradições orais vigentes, baseadas nas escolas de Hillel e Shammai, a qual foi
reconhecida como fonte normativa para a religião judaica.(SILVA, 2016)

A forma de ensinar por meio de tópicos e por repetição, também é chamada


“Mishná”, que quer dizer “repetição” (hb: ‫)משנה‬, uma palavra derivada da raiz
“shanah” (hb: ‫)שנה‬, que quer dizer “estudar, revisar”, em que os discípulos aprendem
com seus mestres a tradição e as leis, oralmente, por meio de constantes
repetições. Os sábios também derivam essa palavra, em tom lúdico, da raiz “shen”
(hb: ‫)שן‬, que quer dizer “dente”, referindo-se ao humor mordaz e a mente afiada
necessários ao debate rabínico, o que nos mostra um pouco do que acontecia na
antiga academia. (WYLEN, 2016).

1.2 AS RAÍZES DO CONCEITO DE PECADO NO JUDAÍSMO DO PRIMEIRO


SÉCULO

Para compreendermos as raízes do conceito de pecado no judaísmo do


primeiro século, e necessário remontarmos a história do povo hebreu em especial
desde o evento do exílio babilônico e suas decorrências, passando pelo império
persa, com o decreto imperial de Ciro, proporcionando o retorno dos exilados à sua
pátria, o que, na prática levou apenas a uma parte da população judaica à
efetivamente retornar a terras de Israel (CARMO e ANDRADE, 2019).

Na Babilônia, o contato com a cultura caldeia, introduziu os judeus em um


novo conceito sobre a ação da divindade, em especial, a personificação do mau em
um ser, retirando esse aspecto da ação de YHWH, que passa a ser retratado com o
sumo bem. Tal pensamento, apresentado em grande parte pela religião majoritária
no exílio, de certa forma acaba por moldar o pensamento e a crença judaica no pós-
exílio.

Com a ocidentalização promovida por Alexandre Magno desde 333 A.E.C, o


processo de helenização dos povos dominados teve maior ênfase, o que acabou por
impor um choque cultural aos judeus, que teriam de conviver com outros povos,
outra maneira de pensar, outra forma de organização cívico-religiosa, acabando por
alcançar aspectos profundos da “gramática existencial simbólica” (CARMO e
ANDRADE, 2019)

Assim, é que, enquanto os judeus dispersos por todo o vasto império grego,
antes unificado sob Alexandre Magno, agora dividido nos reinos de seus
sucessores, gozavam de relativa boas relações com os dominadores em sua
maioria. Como exemplo, sob os Lágidas no Egito, o judaísmo estava protegido, uma
vez que não havia ali imposição do culto politeísta a todo custo, proporcionando
assim, paz, liberdade e consequente prosperidade entre os judeus helenistas.

Entretanto, os judeus que se fixaram na região palestina, passariam a ter


embates com os governantes selêucidas. O auge dessa tensão ocorreu sob o
governo do sírio Antíoco IV ou Epífanes, quando se deu “uma imposição do
politeísmo, que obrigava os judeus a algumas práticas consideradas abomináveis
pela Torah” (CARMO e ANDRADE, 2019).

As diferenças na assimilação da cultura grega no processo de helenização


sofrido pelos judeus nesses diferentes contextos podem ser vistos no aspecto
literário que marco a época na cultura judaica. Tais reflexos deram origem às
chamadas literaturas de justificação – as produzidas pelos judeus helenistas, que
gozavam de bom trânsito na chamada diáspora grega, que defendiam a assimilação
da cultura helênica e promoviam uma conscientização social no sentido de
resignação frente a dominação estrangeira.
Outra “consequência literária” é a chamada literatura de resistência, que
marcou o judaísmo dos habitantes das terras originais de Israel, conclamando os
adeptos a defender a sua fé das interferências externas e contra a dominação
estrangeira, caracterizada pela apocalíptica judaica. Para Carmo e Andrade (2019),
a literatura de justificação é exemplificada por Eclesiástico, Tobias, Sabedoria de
Salomão, as obras de Filon de Alexandria, e as obras de Flávio Josefo, enquanto a
literatura de resistência: o livro de Baruc, os livros de Macabeus, o livro de Judite e
os livros canônicos de Daniel, Ester e o de Zacarias (capítulos 9 a 11, considerados
pelos autores citados como acréscimos posteriores).

O episódio das tentativas de helenização dos judeus da Palestina acabou por


evidenciar uma forte tensão que culminou com a Guerra dos Macabeus e a
implantação da dinastia hasmonéia (164 a 37 a.C), e demonstrou que no seu
transcurso, a influência grega foi a menor possível, promovendo uma cisão entre o
judaísmo da diáspora e o judaísmo palestino, que parece ter sido superficialmente
conciliado pela atuação dos fariseus mais tarde.

Sobre esse pano de fundo histórico, podemos então tecer comentários sobre
a influência da literatura então produzida, consubstanciada na prática dos
ensinamentos judaicos que marcariam a mentalidade judaica no primeiro século
(TERRA e ROCHA, 2019).

Para esses pesquisadores, o conceito de pureza fazia parte da construção da


identidade judaica no período chamado de “Segundo Templo” (termo utilizado para
referir-se ao período entre o pós-exílio babilônico até a segunda metade do século I
A.E.C.). Para esses autores, no mito dos Vigilantes, apresentado no livro apócrifo de
1 Enoque, os seres celestiais acabam por desestabilizar um sistema que era fruto da
ordem estabelecida por Deus, ao descerem à terra e manterem relações com as
filhas dos homens, gerando filhos que seriam os gigantes e que levariam a criação
ao caos, violando as leis que seriam mais tarde fixadas em Levítico, além de
promoverem o ensino de feitiçarias e magia aos homens.

Assim, plasmava-se na mentalidade judaica o dualismo pureza x impureza


como sendo o resultado de se ultrapassar os limites entre o espiritual e o carnal,
entre o humano e o celestial, entre o mortal e o eterno.

Nos dizeres de Terra e Rocha (2019):


“(...) a idéia de pureza é uma maneira abstrata de lidar com os valores,
mapas e estruturas de um dado grupo (...). Há um lugar marcado e
estruturado para as coisas: tudo tem seu lugar (...). Por isso, diria Mary
Douglas, santidade e pureza se interpenetram-se e revelam-se como
permanência e preservação dos lugares/classes de pertencimento, porque
qualquer mudança tocaria essa condição (...). Assim, mistura e cruzamento
de fronteiras significaria respectivamente desordem e impureza” (TERRA e
ROCHA, 2019).

E por fim, concluem Terra e Rocha (2019):

“As obras, tradições e imaginários religiosos que são identificados nesse


grandioso movimento apocalíptico influenciaram outros tantos movimentos
religiosos antigos e modernos, entre eles os cristianismos dos primeiros
séculos. Jesus e seus primeiros seguidores, de João a Paulo, eram judeus
inseridos no contexto do Segundo Templo. Por isso, o judaísmo enoquita
não deveria ser preocupação somente para quem deseja particularmente
compreender grupos do Mundo Antigo já que ajuda na avaliação das
experiências religiosas atuais cujas raízes estão na tradição judaico-cristã,
nas quais encontraremos uma estruturação de mundo perpassada pelo
binarismo puro/impuro ou crença em espíritos malignos” (TERRA e ROCHA,
2019)

Já para Esteves (2018), houve uma gradual mudança na concepção de Mal


na mentalidade judaica ao longo de um período que divide em três fases: Antigo
Testamento, evangelhos apócrifos e apocalíptica judaica, forjando o conceito de Mal
e consequentemente de pecado. Em suas palavras: “O cristianismo primitivo, aquele
que se desenvolveu nos primeiros séculos no Império Romano, é herdeiro de um
pensamento diretamente ligado às tradições e à literatura judaica” (ESTEVES,
2018).

E para responder a perguntas cada vez mais incisivas sobre a existência do


Mal no mundo, que em um primeiro estágio era considerado como procedente de
Deus, de quem emanavam todas as coisas da criação, o que passou a trazer
conflitos cada vez mais insanáveis, promoveu-se uma “retirada” do Mal, afastando-o
da pessoa divina, que gradualmente assumia no pensamento hebreu, mais e mais a
conotação de puro Bem. Esse afastamento se intensifica no período pós-exílio, o
que se manifesta nas literaturas apocalípticas, onde o Mal é personificado,
assumindo um lugar de antagonista de Deus e dos homens, recebendo finalmente
uma identidade pessoal: Satã. (ESTEVES, 2018).

Mas é somente com o florescer do pensamento cristão que Deus passa a


assumir em definitivo o seu lugar como Deus de Paz e de Bondade, como assevera
Esteves (2018):

“(...) o conceito de Diabo evoluiu em grande medida no


pensamento hebreu, em particular no período apocalíptico. Tal
movimento havia começado no período posterior ao exílio,do Velho
Testamento, no qual os hebreus insistiam na ideia de que não havia
outro deus senão Yahweh. Anteriormente, no período pré-exílio, tudo
o que ocorria, tanto de bom como de mau, era concebido como
antinomia divina sob os poderes e a vontade atribuída diretamente a
Yahweh. Assim, durante e após o exílio, os hebreus passaram a
examinar profundamente sua religião, fazendo uma divisão clara dos
princípios e das representações concernentes ao Bem e ao Mal.
Porém, nem no Velho Testamento, nem na literatura apocalíptica,
essa separação foi de toda forma completa, conservando em um
único deus a ambivalência que persistiu até o pensamento cristão
(RUSSEL, 1991, p. 209).

Muito das formulações dos rabinos acerca do nascimento do


Mal, as mais conhecidas tiveram um grande influxo com a
descoberta feita em Qumran de documentos que deram outro tom às
raízes do Mal. Tais ideias acerca da evolução do Mal e sua
externalização imaginária, ou seja, Lúcifer, Satanás e seus
seguidores, foram muitas vezes sincretizadas e adaptadas pelo
cristianismo dos primeiros séculos, tornando-se parte da literatura
cristã, em que o Mal começa a tomar um lugar de destaque, em uma
polarização nítida entre as duas potências, na qual o Deus punitivo
veterotestamentário começa a dar lugar a um Deus de paz e
bondade. (ESTEVES, 2018).”

Assim, o pensamento judeu acerca do pecado no primeiro século é


fortemente influenciado pela necessidade de salvaguardar a aliança desse Deus de
supremo Bem com o povo eleito, garantida pela observância dos termos dessa
aliança tal como prevista nas literaturas no Antigo Testamento e revisitadas na
literatura apocalíptica como forma de encorajar a persistência até o fim contra as
forças dominadoras do Mal.

1.3 A INFLUÊNCIA DO FARISAÍSMO NA FÉ DOS JUDEUS

As referências aos fariseus podem ser encontradas basicamente em quatro


fontes, sendo elas os escritos canônicos (evangelhos e Atos dos Apóstolos), a
literatura rabínica posterior, os escritos de Flavio Josefo e a literatura de Qumrã.

Segundo Saldarini (2005), essas fontes não são suficientes para aclarar muitas
questões importantes do ponto de vista sociológico sobre este importante grupo
judaico, mas também é de parecer que correlações com o contexto social do
Império Romano e da estrutura social do período hasmoneu e herodiano, fornecem
limites e orientações para reconstrução satisfatória.

Daí, infere-se que os fariseus, no entorno do primeiro século da Era Comum, era
um dos grupos mais conhecidos, principalmente por sua forma distinta de viver o
judaísmo e por conta do seu profundo envolvimento social. Os registros na literatura
rabínica bem como os relatos no Novo Testamento apresentam vários elementos
característicos dos fariseus, enquanto que em Josefo, percebe-se que era um grupo
social bem conhecido pela forma da narrativa, que não se esforça em descrever
detalhes desnecessários para um público que já era familiar dos fariseus.

Nos manuscritos do Mar Morto, especialmente nos pesharim (comentários de


vários escritos da Bíblia Hebraica), há referências sobre um certo grupo de judeus
que permaneceu em Jerusalém a despeito das mudanças trazidas pelos
governantes helenistas, que estavam resignados com a alteração dos costumes
judaicos e eram considerados por isso transgressores da Lei. Tal assertiva era eco
da habituidade da luta política e facciosa do período greco-romano que dominou o
processo de helenização da palestina do entorno do primeiro século a.C. e trazem
elementos que nos delineiam como era o jogo político em busca de apoio por parte
dos hasmoneus, que por conta dos grupos antagônicos, precisava constantemente
de vários arranjos, coercitivos, beligerantes ou consensuais em busca de
legitimação e nesse processo provocavam instabilidade entre os fariseus, essênios e
saduceus, como relatado em Josefo e nos Manuscritos do Mar Morto.

Por conta dessa instabilidade e pelo fato de os fariseus perdurarem por dois
séculos na sociedade palestina, deduz-se que estes formam um excelente exemplo
de grupo que precisou acomodar muitas mudanças internas, a fim de garantir a sua
influência social, mantendo seus privilégios, como qualquer outro grupo social o
faria, diante de mudanças políticas, sociais, culturais e econômicas.

Assim, desempenharam vários papéis e funções sociais, tanto em relação ao


momento político em que viviam quanto em relação à abrangência populacional e
mesmo transcultural, tendo em vista as várias colônias judaicas esparsas por conta
da dispersão.

Na questão política, por exemplo, a influência farisaica variou com os


governantes, desde a pouca influência, na maioria das vezes, provocada pela
interferência dos saduceus, que formavam a elite sacerdotal do Templo de
Jerusalém e dos herodianos, até o momento de maior influência e prestígio político
sob Alexandra Salomé, a rainha judia (141 a.C . – 67 a.C.).

Em relação ao controle do Templo, as evidências que dispomos nos remetem ao


fato que jamais exerceram maioria na sua direção administrativa, mas ocupavam
assento no tribunal religioso de costumes do povo judaico, o Sinédrio. Em relação a
sua distribuição na população, sabe-se que eram letrados em sua maioria,
corporativa e voluntário, o que os habilitava a ocuparem espaço social mais
relevante que os camponeses comuns, mas estavam abaixo da elite dominante. Em
Jerusalém desempenhavam funções administrativas e burocráticas, mas segundo os
evangelhos sinóticos, também são descritos na Galiléia.

Sobre a atuação na Galiléia, a pesquisa demonstra que é necessário debruçar-se


um pouco mais sobre a questão para avaliar qual foi necessariamente o papel
desempenhados pelos fariseus. Saldarini (2005) é de parecer que os fariseus não
integravam a elite dominante na região, mas que provavelmente eram
representantes da elite religiosa de Jerusalém, defendendo os interesses do Templo,
o que explicaria os constantes embates registrados nos evangelhos sinóticos de
Jesus e seus seguidores, com os fariseus. Ou ainda poderiam ser funcionários sob
os herodianos, que desejavam manter a paz social e a arrecadação tributária, o que
poderia explicar a ênfase farisaica na observância dos dízimos agrícolas.

Voltando-se para a questão religiosa, os fariseus, que, segundo Josefo eram “em
torno de seis mil” no primeiro século a.C., gozavam de grande prestígio entre o
homem comum. O nome fariseu (gr.:φαρισαιοι), provavelmente é derivado do
hebraico “‫”פרושים‬, que significa “separado”. Essa separação autoproclamada, não
dizia respeito ao isolamento da sociedade (a exemplo dos essênios), mas a uma
separação mais transcendental, envolvendo questões espirituais: seria uma
separação dos costumes helênicos e das práticas dos dominadores, que estaria
contra a Lei de Deus.

Como eram muito amalgamados no tecido social, em especial nas camadas mais
próximas do estrato básico, os fariseus desenvolviam grande influência popular,
sendo considerados pessoas “favorecidas por Deus” e, por conta de sua relativa
flexibilidade, alcançavam parcela significativa do povo, pois não dispunham de
acessos restritos e rituais de acesso elaborados, nem dependiam de pertencimento
a famílias específicas ou a elites econômicas para sua expansão e crescimento
(OCONNOR, 2017).

As colunas da fé farisaica eram a Torá e a tradição. Esta última alicerçada sobre


o que era conhecido como a tradição dos Pais, basicamente oriundos das duas
escolas rabínicas: a mais rigorosa e literal Shimei e a mais leniente e adaptativa, de
Hilel. Entretanto, qualquer que seja a tradição, os fariseus são retratos tanto nos
evangelhos como na literatura rabínica, como muito preocupados com a pureza
ritual, que formava o cerne de sua crença e prática (MOSIER, 2021).

Segundo Eliade (2011), o judaísmo tinha como reforço contra o terror da história,
as visões apocalípticas (evidenciadas pelo profetismo e literatura apocalíptica) e isso
era tanto mais claro no senso comum, quanto mais se observava a opressão
romana, que ecoava lembranças do exílio como castigo de Deus contra o seu povo
desobediente.

Para essa mesma pesquisadora, a reação helenizante sob Antíoco Epifânio, que
se configurava em obstinação em eliminar a Torá, trouxe como reação o zelo
farisaico pela Torá. Shimon ben Laquish (apud ELIADE, 2011), asseverou “a
existência do mundo, depende de Israel aceitar a Torá; sem isso o mundo retornará
ao caos” e esse era de fato o sentimento de então incutido no povo pelo ensino dos
fariseus.

De fato, o processo de helenização pelo qual passaram nos períodos hasmoneu


e herodiano, marcou a atuação e popularização do chamado partido fariseu, pois
eram tidos como autoridades na interpretação da Torá pelo povo, apresentando uma
forma de convivência e adaptação aos novos tempos.

Em contraste com os demais grupos judaicos, especialmente os saduceus, os


fariseus ensinavam maior proximidade de Deus com os homens, interagindo com a
humanidade, numa mescla de soberania divina e responsabilidade humana. As
diferenças entre os grupos dentro do judaísmo também diziam respeito ainda a
questões de pureza ritual e tributação, que eram reflexos das interpretações da
importância da aliança judaica e do compromisso de Deus com a nação e sua terra.

Com as devidas reservas, os fariseus podem ser comparados a escolas


filosóficas helenistas, com uma proposta de reforma da vida cotidiana, uma vez que
estavam alijados, por quase todo o período, do processo de decisão política dos
judeus – espaço ocupado pelos saduceus e por grupos simpatizantes dos
helenizantes.

Com essa proposta, o ensino e atuação farisaica entre o povo pareceu ter
alcançado mais e mais adeptos e admiradores com o passar do tempo. Assim,
temos a diagramação dos fariseus como sendo portadores da palavra autorizativa
nas regras de fé e prática comunais.

É importante considerar que a as esperanças messiânicas dos judeus


repousavam sobre a observância da Torá, mas a correta interpretação da Torá era
sobrepujada pela aplicação correta da Torá, capitaneada pelos fariseus, que
infundiam esses valores na sociedade.

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