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Introdução a Literatura e conceitos Judaicos

APROFUNDAMENTO DOS P’RUSHIM (FARISEUS)


Escreveu William Manson:
“Acostumamo-nos de tal forma, e com razão, a fazer de
Jesus objeto de religião, que acabamos por esquecer
que, em nossos registros mais antigos, ele é
apresentado não como objeto de religião, mas como
homem religioso. ” (The Teaching of Jesus, 1935, página
101).
A advertência do preclaro estudioso é importante porque
ressalta que Yeshua era um homem religioso. Então, qual
era a religião de Yeshua? Era Yeshua cristão? Em estudos
anteriores, demonstrou-se que Yeshua não veio criar uma
nova religião. Logo, Yeshua nunca foi cristão. A uma,
porque o Cristianismo surgiu em momento bem posterior à
sua morte. A duas, porque nas Escrituras não há um texto
sequer em que Yeshua recomenda a criação de uma nova
religião. A três, porque a B’rit Chadashá é de clareza solar
ao apontar quais eram as práticas religiosas de Yeshua e de
seus talmidim. Enquanto homem, Yeshua viveu plenamente
o Judaísmo e pautou toda a sua vida por meio da prática
desta religião. Insta frisar: Yeshua não era cristão, mas sim
um judeu zeloso da Torá e o maior rabino que o Judaísmo
conheceu. À luz das bessorot (boas novas ou “evangelhos”)
não há dúvidas de que Yeshua foi um mestre do Judaísmo,
razão pela qual era chamado de rabi: “E Yeshua, voltando-
se e vendo que eles o seguiam, disse-lhes: Que buscais? E
eles disseram: Rabi, onde moras?” (Yochanan/João 1:3)
“Natan’el respondeu, e disse-lhe: Rabi, tu és o Filho de
Elohim; tu és o Rei de Yisra’el.” (Yochanan/João 1:49). “E,
respondendo Yehudá, o que o traía, disse: Porventura sou
eu, Rabi? Ele disse: Tu o disseste.” (Matityahu/Mateus
26:25) No primeiro século já sabemos que existiam três
grandes grupos dentro do Judaísmo:

● 1) os p’rushim (fariseus);
● 2) os ts’dukim (saduceus) e
● 3) os isiyim (essênios).

Apesar de diversos outros setores do Judaísmo se fazerem


presentes, os três citados formavam os principais blocos da
religião judaica. O pensamento do rabino Yeshua possui
fortíssimas bases nas doutrinas dos p’rushim (fariseus) e
dos isiyim (essênios). Neste capítulo, estudar-se-ão apenas
as raízes farisaicas do pensamento de Yeshua, deixando- se
para outro momento a análise dos aspectos essênios de
suas doutrinas. Cristãos desavisados poderão se
surpreender com este estudo, porque estão acostumados a
pensar incorretamente que Yeshua era “inimigo dos
fariseus”. Em verdade, os ensinos do Mashiach são
compatíveis com as concepções farisaicas e o
entrelaçamento entre ambos é tão profundo que alguns
estudiosos afirmam categoricamente que “Yeshua foi
fariseu”. Particularmente, pensamos que as doutrinas de
Yeshua possuem tanto elo com o farisaísmo quanto com o
essenismo, além de diversos elementos particulares, de
modo que o Judaísmo por ele ensinado é singular. Por tal
motivo e até em função da omissão dos evangelhos quanto
ao tema, preferimos não rotular Yeshua como fariseu ou
como essênio. Contudo, há conexões entre o magistério de
Yeshua e o dos fariseus. Tal afirmativa parece insana aos
indoutos cristãos, que desconhecem o significado da palavra
parush (fariseu), bem como a crença desta facção do
Judaísmo. No âmbito do Cristianismo, acostumou-se a achar
que o vocábulo “fariseu” tem um sentido pejorativo, e é esta
falsa ideia que está entranhada na mente das pessoas,
como se observa no Dicionário Houaiss: “Fariseu. Adjetivo e
substantivo masculino. 1. relativo a ou membro de grupo
religioso judaico, surgido no século II A.C., que vivia na
estrita observância das escrituras religiosas e da tradição
oral; o grupo foi acusado de formalista e hipócrita pelos
Evangelhos; 2. que ou aquele que segue de maneira
formalista uma religião; 2.1. que ou aquele que, por observar
fielmente um dogma ou rito, se acredita dono da verdade e
da perfeição, achando-se no direito de julgar e condenar a
conduta de outrem a pretexto de dar ajuda; 3. que ou aquele
que ostenta piedade e virtude sem tê-las; 4. Derivação:
sentido figurado. Que ou quem é orgulhoso e hipócrita.” Eis
o conceito de “rabi”, conforme a lição da Jewish
Enciclopédia: “Termo hebraico usado como título para
aqueles que são distinguidos para o ensino, que são
autoridades, professores da Torá, e apontados como chefes
espirituais da comunidade. É derivado do substantivo br,
que em hebraico bíblico significa ‘grande’.” (vocábulo
“Rabbi”, Jewish Encyclopedia). Então, se chamavam Yeshua
de rabi, significa que era Professor da Torá, ou seja, rabino.
Yeshua viveu como rabino, porque:
1) ensinava a Torá (Matityahu/Mateus 5:17-19);
2) venceu a tentação no deserto citando três vezes a
Torá (Matityahu/Mateus 4:1-10; compare com
Devarim/Deuteronômio 8:3; 6:16 e 6:13);
3) disse que nunca conheceu aqueles que transgridem
a Torá (“praticantes da iniquidade”) (Matityahu/Mateus
7:23);
4) pregou a teshuvá (retorno à Torá do ETERNO,
“arrependimento”) (Matityahu/Mateus 4:17);
5) dirigia-se à sinagoga nos shabatot (sábados) para o
estudo da Torá e dos Profetas (Lucas 4:16);
6) disse ao jovem rico que este deveria obedecer às
mitsvot (mandamentos) da Torá para alcançar a vida
eterna (Matityahu/Mateus 19:16-17);
7) lecionou os grandes princípios da Torá no “Sermão
da Montanha” (Matityahu/Mateus 5 a 7);
8) citou o “Shemá” como a mitsvá (mandamento) mais
importante, ao lado da mitsvá de amar o próximo como
a si mesmo (Yochanan Marcus/Marcos 12:28-31;
Devarim/Deuteronômio 6:4-5 e Vayikrá/Levítico 19:18);
9) vestia-se como judeu zeloso, usando tsitsiot
(Matityahu/Mateus 9:20 e Bemidbar/Números 15:37-41);
10) como autêntico israelita, além de ser circuncidado
no coração, também foi circuncidado na carne (Lucas
2:21); Partindo-se da premissa irrefutável de que Yeshua
era um rabino, qual seria a seita ou as seitas do
Judaísmo que compunham a base de seus
ensinamentos?
O Dicionário Houaiss tece um quadro negativo acerca dos
fariseus, expressando a mentalidade popular de que “os
fariseus foram religiosos hipócritas”. Não obstante, tal
pensamento está totalmente equivocado, quando se analisa
o significado histórico da palavra à luz do pensamento
semita do primeiro século. Na época de Yeshua, os p’rushim
(fariseus) eram respeitados e tidos em alta conta pela
população de Yehudá (Judeia), ou seja, o parush (fariseu)
era visto como homem piedoso, temente a Elohim e zeloso
observador da Torá. Cita-se, por oportuno, o testemunho do
historiador Flávio Josefo, que viveu nos tempos de Yeshua:
“Assim, cidades inteiras dão testemunhos valiosos de
sua virtude [do grupo dos fariseus], de sua maneira de
viver e de seus discursos”. (História dos Hebreus,
CPAD, 8ª edição, Página 830).
“Quanto às duas primeiras seitas de que falamos, os
fariseus são tidos como os mais perfeitos conhecedores
de nossas leis e de nossas cerimônias. (...). Enquanto os
fariseus são sociáveis e vivem em amizade uns com os
outros, os saduceus são naturalmente rudes e vivem
mesmo grosseiramente entre si, como se fossem
estrangeiros.” (Ob. Cit. Página 1134).
Por conseguinte, segundo o depoimento de Josefo,
percebe-se que os p’rushim (fariseus) eram homens
virtuosos e cumpridores da Torá, razão pela qual gozavam
de prestígio perante a população. Entretanto, houve
distorções e erros no farisaísmo que foram criticados por
Yeshua, e isto não pode ser usado como argumento de que
“todos os fariseus foram perversos”. Tal generalização é
absurda. Seria o mesmo que chamar todos os brasileiros de
idólatras pelo fato de grande parte da população do Brasil
pertencer a religiões pagãs. Haverá a exposição, neste
capítulo, da afinidade existente entre as lições de Yeshua e
a doutrina dos fariseus, fato que foi constatado por inúmeros
historiadores, inclusive o aquilatado Professor Geza Vermes,
da Oxford University, ao tratar da mensagem de Yeshua:
“Seja como for, poucos contestariam que a sua mensagem
foi essencialmente judia ou que, no tocante a determinados
tópicos controversos – por exemplo, sobre a ressurreição
dos mortos -, ele [Yeshua] exprimia a opinião dos fariseus.”
(Jesus e o Mundo do Judaísmo, Loyola, 1996, página 15).
consulta-se o magistério de David Stern: “Na época de
Yeshua existiam duas principais opiniões do que era a
situação religiosa. Em 586 A.E.C [antes da era comum, ou
seja, antes de Yeshua], a Babilônia conquistou a Judéia e
Jerusalém, derrubou o Primeiro Templo, que o rei Salomão
tinha construído, e deportou as classes governantes para a
Babilônia. Com o Templo, os sacrifícios e os kohanim
[sacerdotes] não funcionando mais, os judeus no exílio, e
depois de seu retorno, 70 anos depois, buscaram outra
forma de se organizar e pela qual pudessem centrar sua
vida comunal. Eles a encontraram na Torá (a ‘Lei’, veja 5:17
N), como pode ser visto no relato sobre a leitura da Torá por
Esdras (Neemias 8). Os antigos estudantes,
desenvolvedores e mantenedores da Torá, parecem ter sido
da casta sacerdotal hereditária – o próprio Esdras era um
kohen [sacerdote] e um sofer (‘escriba’). Mas depois, na
medida em que os kohanim [sacerdotes] voltaram a se
preocupar com o sistema sacrificial como ele se
desenvolveu no período Segundo Templo, um movimento
que apoiava a Torá e favorecia sua adaptação às
necessidades do povo surgiu e tornou-se um desafio para a
autoridade dos kohanim [sacerdotes]. Os kohanim do século
I E.C eram conhecidos como tz’dukim [saduceus], em
homenagem ao kohen gadol [sumo sacerdote], apontado
como pelo rei Salomão Tzadok (seu nome significa ‘justo’;
comparece 6:1-4 & N; 13:17 & N). Nesse meio tempo, sob a
autoridade dos Macabeus no século II A.E.C, aqueles cuja
principal preocupação não eram os sacrifícios, porém a
Torá, eram chamados de Hasidim [ou Chassidim] ... (...) Os
sucessores dos Hasidim [ou Chassidim] eram conhecidos
como p’rushim, que significa ‘separados’, porque eles se
separavam do modo mundano para não fazer o mesmo que
as pessoas faziam. Esses p’rushim não apenas assumiram
que o Tanakh era a palavra de Deus para o homem, mas
também consideravam que a tradição acumulada ao longo
dos séculos pelos sábios e mestres era também a palavra
de Deus – a Torá Oral – de modo que se desenvolveu um
sistema de viver que tocava em cada aspecto da vida. Nos
dias de Yeshua, os tz’dukim [saduceus] tendiam a ser mais
ricos, mais céticos, mais carnais e cooperavam mais com os
governantes romanos do que os p’rushim.” (Comentário
Judaico do Novo Testamento, editora Atos, 2008, páginas
43 e 44). Tendo em vista que a corrupção política e
sacerdotal havia se instalado, bem como que o ETERNO
não mais estava a falar diretamente ao povo por meio de
seus profetas e dos kohanim (sacerdotes), como o homem
religioso poderia saber qual é a vontade de Elohim? Se não
mais havia revelação direta, como consultar o ETERNO?
Entendiam os p’rushim (fariseus) que a vontade do ETERNO
já estava revelada em suas Escrituras (o Tanach) e nas
tradições transmitidas oralmente por seus antepassados.
Por conseguinte, o desiderato de Elohim deveria ser
buscado por meio do estudo da Torá. Os p’rushim
estudavam a Torá e a ensinavam à população, incentivando
que os homens comuns conhecessem a Palavra do
ETERNO. Construíram sinagogas em diversas cidades de
Yisra’el com o objetivo de criar centros comunitários de
congregação, oração e estudo das Escrituras. Graças ao
trabalho incansável dos p’rushim, 50 anos antes do
nascimento de Yeshua, cada vila da Terra Santa contava
com uma sinagoga, todas detentoras de rolos da Torá a fim
de viabilizar o estudo por parte do homem leigo. Em tal
época, não havia imprensa, sendo os rolos copiados
manualmente. Para disseminar o conhecimento da Palavra
do ETERNO, muitos p’rushim eram soferim (escritas),
dedicando-se à reprodução fiel das Escrituras Sagradas e
distribuindo-as às sinagogas. Se hoje nós temos acesso às
Escrituras, devemos reconhecer o trabalho de cada sofer
(escriba) que permitiu que a verdade escrita de Elohim
chagasse até os dias atuais. Nas sinagogas disseminadas
pelos p’rushim, existiam escolas em que os meninos eram
alfabetizados e iniciados nos estudos das Escrituras,
garantindo-se o direito de todo homem de ler e aprender a
Torá. Os judeus frequentavam as sinagogas com o propósito
de ler a Torá e os Profetas no shabat, dia santificado pelo
ETERNO. Também era comum que houvesse a leitura e
estudos nas segundas e quintas-feiras. Qualquer pessoa do
povo que tivesse o conhecimento da Torá e devoção
inerente poderia conduzir a congregação, ler a Lei e explicar
o conteúdo para seus pares, ou seja, não havia a
concentração da pregação nas mãos de um líder especial.
No Cristianismo, quem conduz a missa ou o culto é o padre
ou o pastor, sendo vedado que o fiel assuma a pregação no
lugar das “autoridades eclesiásticas”. Pensam os cristãos
que a “a Palavra do Senhor foi confiada apenas a homens
especiais” (padre ou pastor). De modo totalmente contrário,
na região de Yehudá (Judeia) do primeiro século, entendiam
os p’rushim (fariseus) que todo homem deve conhecer a
Torá e tem o direito de transmitir sua mensagem a seus
compatriotas. É claro que nas sinagogas havia liderança,
normalmente constituída dos anciãos e rabinos. Não
obstante, havia plena participação democrática dos
membros. Cumpre repetir: já que o sacerdócio no Beit
Hamikdash (Templo) estava corrompido, os p’rushim e os
judeus zelosos passaram a dar grande importância às
sinagogas, local em que poderiam aprender a Torá,
considerada o antídoto do ETERNO contra o pecado:
“Mesmo assim, o SANTO, bendito seja, falou a Yisra’el:
‘Meus filhos, eu criei o impulso mau, mas eu [também] criei a
Torá como seu antídoto. Se vocês se ocuparem da Torá,
não serão entregues ao domínio do impulso mau. Mas, se
não se ocuparem da Torá, então serão entregues ao poder
do impulso mau’.” (Talmud Bavli, Kidushim 30b). Além de
ser um centro de estudo da Torá e adoração nos shabatot
(sábados), as sinagogas funcionavam durante a semana
como local de administração da justiça, reuniões políticas,
prestação de serviços fúnebres, educação dos jovens,
distribuição de alimentos aos pobres etc. Em todas estas
plúrimas atividades, os p’rushim (fariseus) estavam na
liderança e, por tal motivo, conquistaram a simpatia da
população e exerceram grande influência junto à opinião
pública. Neste contexto, fácil entender o motivo de Flávio
Josefo registrar o apreço da população pelos p’rushim:
“... os que pertenciam à seita dos fariseus, de que
falamos há pouco, os quais desfrutam tal prestígio
perante o povo, que este acolhe os seus sentimentos,
ainda que contrários aos dos reis e dos sumo
sacerdotes.” (História dos Hebreus, CPAD, 8ª edição,
página 605).
“... os fariseus tinham também a fama de ser muito
piedosos e muito mais instruídos que os outros, em
coisas de religião...” (Ob. Cit. Página 1018).
Eram os p’rushim reputados pela população como
verdadeiros sábios, participando ativamente do Sanhedrin
(Sinédrio), a suprema corte religiosa e política de Yisra’el.
Flávio Josefo estima que no primeiro século o grupo dos
p’rushim contava com pouco mais de seis mil pessoas,
número pequeno, considerando-se a grande população da
época (há divergências acerca do número de habitantes da
região no primeiro século, variando-se de 500 mil a dois
milhões e meio).

Continua...

Dados Bibliográficos:

TZADOQUE – Judaísmo Nazareno

Adaptações: Alexandre Kaman

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