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Introdução a Literatura e conceitos Judaicos

INFLUÊNCIAS E PAGANISMO PARTE II

MARCIÃO: AS HERESIAS CONTINUAM


Após a rebelião de Inácio, a expansão do Cristianismo contou com
outro nocivo ingrediente implementado por Marcião de Sínope (85
a 160 EC), um influente bispo do Cristianismo primitivo.
Enquanto os netsarim (nazarenos) usavam o Tanach (Primeiras
Escrituras) e os Ketuvim Netsarim (Escritos Nazarenos),
considerando todas as Escrituras como uma unidade e sem a
existência de hierarquia de uma sobre a outra, Marcião foi o
primeiro a inventar os termos “Velho Testamento” e “Novo
Testamento”, expressões estas que não existem na Bíblia.
Marcião cria na existência de dois deuses distintos, ensinando que
o “Velho Testamento” revelou um deus mal, que seria o deus dos
judeus; e no “Novo Testamento” se manifestou um deus bom. Em
sua mente gnóstica, o deus de Jesus seria diferente do deus dos
judeus. O pensador pagão preconizou um sistema dualista para
explicar as “contradições” entre o “Velho” e o “Novo
Testamento”. Para justificar a existência de dois deuses, Marcião
interpretou as Escrituras de maneira totalmente incorreta.
Vejamos alguns exemplos:
1) Disse Marcião que o deus mal dos judeus ensinou “olho por
olho”, enquanto o deus bom de Jesus ensinou o amor. Este
conceito é errôneo, visto que “olho por olho” não significa
literalmente arrancar o olho de uma pessoa, mas sim o dever de
indenizar um dano causado a outrem em valor proporcional à
ofensa. Ademais, no Tanach (Primeiras Escrituras/“Antigo
Testamento”), o ETERNO ordenou o amor ao próximo: “amem seu
vizinho como a si mesmos” e “amem-no como a si mesmos”
(Levítico 19:18 e 34). Logo, o amor de YHWH não surgiu com
Yeshua. YHWH sempre foi amoroso.
2) Alegou Marcião que o deus do “Velho Testamento” incentivava
o divórcio e o adultério, e o deus do “Novo Testamento” os proibiu.
Outro equívoco de Marcião. Yeshua lecionou que o divórcio foi
dado pela dureza dos corações humanos (Mateus 19:8), e a própria
Torá diz que o homem se unirá à sua mulher (palavra no singular,
ou seja, apenas uma mulher) e ambos serão uma só carne (Gênesis
2:24). Deuteronômio igualmente afirma que não deveriam ser
multiplicadas as esposas (Dt 17:17). Em suma, a Torá nunca
estimulou o divórcio e sempre abominou o adultério.
3) Sustentou que o deus do “Velho Testamento” não era
onisciente, porque perguntou para Adam (Adão): “onde você
está?” (Gn 3:9). Esqueceu-se Marcião que
YWHW é tão misericordioso que fez esta pergunta para possibilitar
que Adam (Adão) e sua mulher se arrependessem de seus pecados,
confessando-os.
4) O deus do “Velho Testamento”, prossegue Marcião, é um deus
de vingança, crueldade e ódio; e o deus de Jesus é bondoso e
amoroso. Não percebeu Marcião que YHWH não muda e sempre
externou seu amor e sua justiça para com todos os homens. Em
hebraico, a palavra “chessed” (graça) aparece mais de 240 vezes no
Tanach (Primeiras Escrituras) e o próprio perdão liberado pelo
ETERNO ao povo de Israel, após o episódio idólatra do bezerro de
ouro, demonstra o seu grande amor. Por outro lado, no “Novo
Testamento”, Ananias e Safira foram exterminados pelo ETERNO
(At 5:1-11), o que demonstra que mesmo após Yeshua a justiça de
YHWH continua a operar. Em suma, em todas as época da história
o ETERNO agiu com justiça e com misericórdia, aplicando uma ou
outra de acordo com sua infinita sabedoria.
5) Na visão do Marcionismo, Yeshua foi enviado pelo Deus Pai (o
deus bom) para superar o deus mal. Este conceito é tão absurdo
que dispensa maiores comentários.
6) Explicava Marcião que o deus do “Antigo Testamento” criou o
mundo material para alastrar o mal, tornando-se a divindade dos
judeus. Este deus perverso outorgou a Lei (Torá) com o objetivo de
promover uma justiça legalista que punisse severamente os
homens por seus pecados com sofrimento e morte. O deus de Jesus
derrubou a Lei, olhando a humanidade com compaixão e piedade.
Outra grande heresia de Marcião! Yeshua afirmou que não veio
revogar a Torá/Lei (Mt 5:17) e Paulo considerou a Torá santa, justa
e boa (Rm 7:12), chegando a dizer: “Segue-se então que abolimos
a Torá (Lei) por meio da fé? De maneira nenhuma! Ao contrário,
confirmamos a Torá” (Rm 3:31).
7) Para distinguir a obra do deus amoroso em relação ao deus cruel,
Marcião dividiu as Escrituras em “Velho Testamento” e “Novo
Testamento”. Ora, quem lê a Bíblia em hebraico sabe que não
existe a palavra “testamento”. A bem da verdade, o profeta
Jeremias usa a expressão “B’rit Chadashá”, que significa Aliança
Renovada ou “Nova Aliança” – Jr 31:30-33 (versões cristãs:
Jr:31:31-34). Com base nestes textos do profeta referido, deduz-se
que Yeshua veio para escrever a Torá no coração de seus discípulos.
Assim, o correto é usar a nomenclatura judaica:
1) Tanach (Primeiras Escrituras, isto é, aquelas anteriores a
Yeshua) e 2) B’rit Chadashá (Aliança Renovada ou “Nova Aliança”)
ou, como preferem alguns, Ketuvim Netsarim (Escritos dos
Nazarenos), que são os escritos posteriores a Yeshua. Daí, Tanach
e B’rit Chadashá (Ketuvim Netsarim) formam em conjunto o que
conhecemos como Bíblia, inexistindo superioridade de um sobre o
outro.
8) Seguindo a linha de Inácio de Antioquia, Marcião afirmou que o
Cristianismo era distinto e oposto ao Judaísmo. Marcião atraiu um
grande número de seguidores e, após ser excomungado da Igreja
de Roma, erigiu uma comunidade independente. A Igreja de
Marcião se expandiu com extrema força, alcançando multidão de
pessoas, valendo destacar que seu movimento perdurou por
muitos séculos. Numerosos gentios se agarraram a Marcião,
fugindo do “deus mal” dos judeus, o Criador dos céus e da terra
para a crueldade. O ódio pelos israelitas, incluindo-se os nazarenos,
ganhou um novo propulsor.
Policarpo, que foi discípulo de João, chamou Marcião de
“primogênito de Satanás”. Lamentavelmente, o Cristianismo
adotou inúmeras heresias do bispo gnóstico. Ademais, a teologia
cristã lançou as sementes do Marcionismo e colheu heresias ainda
maiores. Até hoje o Cristianismo, em sua quase totalidade, ensina
as teses antibíblicas iniciadas por Marcião:

a) “a Lei foi abolida por Cristo”;


b) “a Igreja substitui Israel nos planos de Deus”;
c) “existe uma separação entre ‘Velho’ e ‘Novo Testamento’”.

Milhares de líderes no mundo inteiro, discípulos indiretos do


gnosticismo de Marcião, usam a mesma fala:
“vocês não precisam cumprir isto ou aquilo, porque são
mandamentos do ‘Velho Testamento’”. Estes mesmos líderes
cobram os dízimos, instituídos pelo “Antigo Testamento”. Que seria
uma perversão!!! Não???
A Palavra do ETERNO nunca fica “velha”, razão pela qual é
impróprio o nome “Velho” ou “Antigo Testamento”. Tendo em
vista todas as explicações bosquejadas, a partir de agora não
usaremos mais as expressões pagãs criadas por Marcião,
substituindo-as pelos nomes corretos: Tanach e B’rit Chadashá (ou
Ketuvim Netsarim/Escritos Nazarenos).
No seio do Cristianismo, existe uma doutrina maligna que foi
influenciada direta ou indiretamente pelo Marcionismo: A Teologia
da Substituição.
Defende a Teologia da Substituição a tese de que no “Novo
Testamento” os cristãos substituíram os israelitas nas promessas
feitas pelo ETERNO. Afirma que os judeus negaram Yeshua e, por
isso, foram rejeitados por YHWH, que elegeu a Igreja para ocupar o
lugar que antes pertencia ao povo de Israel. Esta teologia ensina:
1) que o “Novo Testamento” substituiu o “Velho Testamento”;
2) a Igreja substituiu Israel e
3) a graça substituiu a Lei;
4) o Cristianismo substituiu o Judaísmo.

Há diferentes modalidades da teologia da substituição, chamadas


por R. Kendall Soulen de supersessionismo. Este pode ser: punitivo,
econômico ou estrutural (The God of Israel and Christian Theology,
Minneapolis,1996, Fortress).
1)Supersessionismo Punitivo. Proclama que os judeus rejeitaram
Yeshua como Messias e, em decorrência, foram punidos pelo
ETERNO, perdendo todas as promessas que lhe foram feitas no
Tanach (Primeiras Escrituras). Alguns defensores deste
supersessionismo: Hipólito de Roma, Orígenes de Alexandria e
Martinho Lutero.

2) Supersessionismo Econômico (obs: não se refere a dinheiro, mas


à função). Assevera que o povo de Israel foi substituído pela Igreja
nos planos de YHWH. Em outras palavras, Israel foi escolhido pelo
ETERNO apenas para trazer Yeshua ao mundo. Com a vinda do
Messias, instituiu-se a Igreja e Israel perdeu a finalidade. Alguns
defensores deste supersessionismo: Justino Mártir e Agostinho.
3) Supersessionismo Estrutural. Promove a marginalização do
“Antigo Testamento” (AT) como norma para a vida cristã, isto é,
não nega o AT, mas o desvaloriza, tornando-o inferior ao “Novo
Testamento” (NT). O AT é válido, porém o que realmente importa
é o NT. As regras do AT são vistas como de pouca relevância.
Além destes três tipos de supersessionismo apresentados por
Kendall Soulen, o teólogo David Novak apresenta os conceitos de
“supersessionismo fraco” e “supersessionismo forte” (Two Faiths,
One Covenant?: Jewish and Christian Identity in the Presence of the
Other: The Covenant in Rabbinic Thought, Rowman & Littlefield,
2004. Eis seus conceitos:

1) Supersessionismo fraco. A Nova Aliança, instituída pelo Novo


Testamento, é entendida como uma adição à Aliança anterior (a
religião dos judeus, ou seja, o Judaísmo). Assim, o ETERNO não
revogou a Aliança com o povo de Israel, mas os gentios não
precisam da Primeira Aliança, bastando se conectar com
Yeshua. Este supersessionismo é chamado de “fraco” porque é
sutil, mas mesmo assim possui um verniz antibíblico. Qual o erro
desta teoria? O supersessionismo fraco leciona que o gentio
somente precisa buscar a conexão com Yeshua, desligando-se
da Torá (Primeira Aliança), o que contraria os próprios ensinos
do Mashiach, uma vez que todos eles estavam fundamentados
na Torá (Mt 5:17-19).

2) Supersessionismo forte. A Nova Aliança é uma substituição da


Aliança Mosaica. Tanto o supersessionismo forte quanto o fraco
estão errados. Biblicamente, a Aliança Renovada (“Nova
Aliança”) é uma extensão (no sentido de prorrogação) da
Aliança Mosaica.

A ideia de que a Lei (Torá) foi abolida difundiu-se por meio de Inácio
de Antioquia, Marcião e todos os demais “Pais” da Igreja Católica,
sendo incorporada por quase todos os protestantes clássicos e
evangélicos, o que contraria o ensino de Yeshua no sentido de que
não veio revogar a Torá (Mt 5:17-19). Toma-se a liberdade para
reproduzir mais uma vez os relatos históricos de que os netsarim
(nazarenos) eram praticantes da Torá:
“Os Nazarenos ... aceitam o Messias de tal maneira que eles não
deixam de observar a Lei antiga [Torá].” (Jerônimo, Commentary
on Isaiah, Is 8:14).
“Eles não têm ideias diferentes, mas confessam tudo exatamente
como a Lei [Torá] proclama e na forma judaica...” (Epifânio de
Salamina, Panarion 29).
O Mashiach foi contundente ao ressaltar, no famoso Sermão da
Montanha, que absolutamente nada da Torá poderia ser retirado:
“Não pensem que vim abolir a Torá ou os Profetas. Não vim abolir,
mas confirmar. Sim, é verdade! Digo a vocês: até que os céus e a
terra passem, nem mesmo um yud ou um traço da Torá passará”
(Mateus 5:17-18).

Continua...

Dados Bibliográficos:

(Nazarene Jewish Christianity, The Magnes Press, The Hebrew University, 1992,
páginas 15 a 17).

(O Antijudaísmo de Justino Mártir no Diálogo com Trifão, Mimeografado, Vitória,


2009, página 85).

TZADOQUE – Judaísmo Nazareno

Adaptações: Alexandre Kaman

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