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Introdução a Literatura e conceitos Judaicos

“OBRAS DA LEI” E “DEBAIXO DA LEI”

Ao longo dos séculos, Paulo tem sido muitas vezes retratado por
cristãos e não cristãos como o apóstolo que se opôs a Lei/Torá. É
compreensível. O vigoroso judeu que foi alcançado por Jesus
escreveu palavras fortes contra aqueles que procuravam se
justificar pela Lei. Paulo deixou claro: a Lei não salva, não santifica
e não estamos mais debaixo dela, mas da graça. Para muitos, essas
palavras claramente significam: a Torá foi abolida. Logo, não
devemos mais segui-la. Parece simples, não?

Nossos problemas começam quando consideramos que o mesmo


apóstolo Paulo citou alguns mandamentos da Torá como
normativos para os cristãos, dando assim autoridade não só aos
mandamentos citados, mas à sua fonte (a Torá).

Vamos mais uma vez fazer uso do material do judaísmo Nazareno,


pelo Rabino Tsadok.

Muitas pessoas se confundem com os escritos de Paulo acerca da


Torá em razão de duas expressões que aparecem na B’rit Chadashá
(2º testamento), sendo que tais expressões somente existem nos
escritos de Sha’ul (Romanos, Gálatas e 1ª Coríntios). As duas
expressões, incompreendidas pelos teólogos cristãos, são “obras
da lei” e “debaixo da lei”.
Eis os textos em que constam as expressões:
a) “obras da lei” - Rm 3:20, 28 e 9:32; Gl 2:16; 3:2,5 e10;
b) “debaixo da lei” – Rm 2:12; 3:19; 6:14-15 e 7:23; Gl 3:23; 4:5;
4:21 e 5:18; I Co 9:20.
O primeiro termo, “obras da lei”, é melhor compreendido por meio
da passagem de Gálatas 2:16, em que Paulo escreveu:
“Sabendo que o homem não é justificado pelas OBRAS DA LEI, mas
pela fé em Yeshua HaMashiach, temos também crido em Yeshua
HaMashiach, para sermos justificados pela fé do Mashiach e não
pelas OBRAS DA LEI, porquanto pelas OBRAS DA LEI nenhuma
carne será justificada”.
Paulo usa a referida expressão para descrever o falso método de
justificação que é diametralmente oposto à “fé em Yeshua
HaMashiach”. Para Sha’ul, as “obras da lei” não são os
mandamentos da Torá, porém uma heresia muito comum em sua
época.
A expressão “obras da lei” é um termo técnico-teológico usado em
um dos Documentos do Mar Morto chamado MMT, que diz:

“Agora NÓS ESCREVEMOS para você algumas das OBRAS DA LEI,


aquelas que NÓS DETERMINAMOS que sejam benéficas para
você...
E vai ser creditada a você como justiça, naquilo que você tem feito
o que é certo e bom diante dele...” (4QMMT (4Q394-399), Seção C,
linhas 26b-31, grifei).
Observe no texto citado que as “obras da lei” eram mandamentos
criados pelos religiosos daquela época, ou seja, eram
mandamentos de homens e não mandamentos do ETERNO. Tais
regras humanas não estavam de acordo com a Torá de YHWH,
porém, os religiosos afirmavam incorretamente que aqueles
preceitos tinham origem nas Sagradas Escrituras. Com efeito, as
descobertas arqueológicas do Mar Morto lançaram luzes para o
entendimento do conceito de Paulo, visto que foram descobertos
inúmeros manuscritos contendo a cláusula “obras da lei”. Por
conseguinte, basta estudar estes manuscritos para se entender
qual era a definição de “obras da lei” sob a ótica do Judaísmo do
primeiro século.
Os documentos sobre as “obras da lei” são conhecidos como
“misquat ma’aseh haTorah”, tratando-se de cartas haláquicas nas
quais se expõe de maneira sistemática a halachá do grupo
gumrânico. Nos textos descobertos, há uma grande gama de
normas que não estão nas Escrituras, mas são determinadas aos
homens como se fossem capazes de trazer justificação. Ou seja,
“obras da lei” são preceitos criados por homens e com a pretensão
de causar a justificação, não encontrando respaldo nas Escrituras.
Vamos dar um exemplo prático. Hoje em dia, ainda há pastores
evangélicos que dizem: “A Bíblia proíbe que a mulher corte o cabelo
e depile as axilas”. Onde tal preceito consta na Bíblia? Em lugar
nenhum! Assim, os líderes religiosos da atualidade agem da mesma
forma que seus pares no primeiro século: criam mandamentos de
homens e obrigam que as pessoas os cumpram. Yeshua criticou
abertamente as regras inventadas pelos homens contrárias às
Escrituras (Mc 7: 1-13).
Infere-se daí que a expressão “obras da lei” significa regras criadas
pelos homens como se fossem mandamentos do ETERNO, mas que
não constam das Escrituras, ou seja, trata-se de verdadeiro
“legalismo”.
Assim, conclui-se que, em Gálatas 2:16, Paulo estava criticando
regras criadas por homens (“obras da lei” = “legalismo”) e não os
mandamentos do ETERNO existentes na Torá.
Deve-se, pois, fazer uma distinção entre duas expressões
veiculadas por Paulo: Torá (ou Lei) e “obras da lei”. A Torá recebeu
os aplausos de Paulo; as “obras da lei” não. Verifique como o
emissário elogia a Torá e critica as “obras da lei”:
a) sobre a Torá (Lei), cujos mandamentos provêm do ETERNO,
escreveu que é santa, justa e boa (Rm 7:12); que nunca cometeu
ofensa contra a Torá (At 25:8) e que confirma a validade da Torá
(Rm 3:31);
b) sobre as obras da lei (= mandamentos de homens/legalismo),
redigiu que nenhum homem será justificado por elas (Rm 3:20 e
28) e que servem como pedra de tropeço (Rm 9:32).
“Obras da lei” significa legalismo, definido como (1) o conjunto de
regras criadas por homens sem respaldo nas Escrituras; ou (2) o
pensamento de que alguém conseguirá obter a justificação perante
o ETERNO mediante suas próprias forças no cumprimento dos
mandamentos, sem depender da graça.
Então, se “obras da lei” quer dizer legalismo, podemos retraduzir
os textos bíblicos em que a expressão aparece, valendo-se dos
manuscritos em aramaico (Peshitta):
“porquanto pelo legalismo nenhum homem será justificado
diante dele; pois o que vem pela Torá é o pleno conhecimento do
pecado.” (Rm 3:20).
“concluímos pois que o homem é justificado pela fé e não por ser
legalista em sua observância da Torá.” (Rm 3:28).
“Por quê? Porque não buscavam pela fé, mas por legalismo; e
tropeçaram na pedra de tropeço.” (Rm 9:32).
“sabendo, contudo, que o homem não é justificado pela
observância legalista, mas sim, pela fé no Mashiach Yeshua,
temos também crido no Mashiach Yeshua para sermos
justificados pela fé no Mashiach, e não pela observância legalista;
pois por legalismo nenhuma carne será justificada.” Gl 2:16).
“Só isto quero saber de vós: Foi pela observância legalista da Torá
que recebestes a Ruach [Espírito], ou pelo ouvir pela fé?” (Gl 3:2)
“Aquele pois que vos dá a Ruach [Espírito], e que opera milagres
entre vós, acaso o faz pelo legalismo na observância da Torá, ou
pelo ouvir com fé?” (Gl 3:5).
“Pois todos os que confiam no legalismo de sua observância da
Torá estão debaixo de maldição...” (Gl 3:10).
Avalie o último texto: o legalismo é tratado como maldição (Gl
3:10), enquanto o cumprimento correto da Torá é uma benção (Dt
28:1-14). Insta repetir: Paulo sempre defendeu a Torá (Lei), mas
lutou contra o legalismo (“obras da lei”).
Agora, estudar-se-á uma segunda expressão, conhecida como
“debaixo da lei”, que é muito deturpada pela teologia cristã, que
não compreende o texto de Romanos 6:14:
“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais
DEBAIXO DA LEI, mas debaixo da graça”.
Paulo usa a expressão “debaixo da lei” como sendo
diametralmente oposta à “debaixo da graça”.
Alguns acham erroneamente que antes da vinda de Yeshua não
havia graça. Afirmam que na época do “Antigo Testamento” o
ETERNO não agia com graça. Será verdade?
Em hebraico, a palavra “chessed” significa graça, e aparece pelo
menos 240 vezes no Tanach (“1º testamento”), apesar de algumas
traduções substituírem o vocábulo “graça” por “misericórdia”.
Citam-se apenas algumas passagens em que o texto original usa a
palavra “graça”:
“Noach [Noé], porém, encontrou graça aos olhos de YHWH.” (Gn
6: 8).
“Moisés disse a YHWH: ‘Vê, tudo me disseste’: ‘Faça essas
pessoas se moverem!’. No entanto, tu não me fizeste saber a
quem enviarás comigo. Mesmo assim, tu dissestes: ‘Eu o conheço
pelo nome’, e também: ‘Você encontrou graça em meus olhos’.”
(Ex 33:12).
“YHWH passou diante dele e anunciou: ‘YHWH é Elohim
misericordioso e compassivo, lento para irar-se, cheio de graça e
verdade, ele mostra graça até a milésima geração...’” (Ex 34: 6-
7).
“YHWH, tu és bondoso e perdoador, cheio de graça para com
todos que clamam a ti.” (Sl 86: 5).
“Cantarei a graça e a justiça; cantarei a ti, YHWH.” (Sl 101: 1).
“Deem graças a YHWH, porque ele é bom, porque sua graça dura
para sempre.” (Sl 136:1).
“Eu, porém, posso entrar em tua casa por causa de tua grande
graça e amor.” (Sl 5: 8 [7]). “Salva-me por tua graça.” (Sl 6:5 [4]).
“Bondade e graça me acompanharão todos os dias de minha vida;
e viverei na casa de YHWH por anos e anos vindouros.” (Sl 23: 6).
“Lembra-te de tua compaixão e graça, YHWH...Não relembres
meus pecados ou transgressões da juventude, mas lembra-te de
mim de acordo com tua graça, por causa de tua bondade,
YHWH...Todos os caminhos de YHWH são graça e verdade àqueles
que guardam sua aliança e seus ensinamentos.” (Sl 25: 6, 7 e 10).

Como vimos nos textos acima, todos extraídos do Tanach (“AT”), ou


seja, antes da vinda de Yeshua, sempre existiu a graça do ETERNO!
Yeshua não inaugurou a graça, mas foi a manifestação visível e
poderosa da preexistente graça do ETERNO, graça esta que sempre
foi derramada na vida daqueles que servem a Elohim. Logo, o
ensino cristão de que antes de Yeshua vigorava a Lei e depois de
Yeshua apareceu a graça é manifestamente falso!
Eis a tradução correta de Yochanan (João) 1:17, que se extrai
diretamente da versão Peshitta em aramaico: ‫ּמוש‬ ֵ ‫מֵ טל ּ דנָּמוסָ א ּ ביַד‬
‫שר ָר א ּ דֵ ין וטַ ּיּבותָ א ּ ביַד יֵּשוע מש יחָ א הוָא‬
ָ ‫א אֵ ת יהֵ ב‬
“Porque a Torá foi dada por meio de Moisés. E ainda: a verdade e a
graça existiram através de Yeshua HaMashiach”.
Ora, se Yeshua HaMashiach está com o ETERNO desde o princípio,
deduz-se com absoluta certeza que a verdade e a graça sempre
existiram desde a eternidade!
Portanto, o homem sempre esteve debaixo da graça e nunca
deveria estar “debaixo da lei” (legalismo humano).
Consequentemente, “debaixo da lei” não significa estar debaixo da
Torá, visto que a Torá (instrução, orientação do ETERNO) foi criada
para o benefício do próprio homem. “Debaixo da lei” não significa
os mandamentos da Torá, mas sim os falsos ensinos e regras
criadas por homens (“legalismo”), bem como o pensamento de que
o homem pode ser salvo por sua própria força. Curial lembrar: a
Torá é perfeita (Sl 19:8 ou 19:7), porque foi instituída por YHWH.
Em suma, deve o homem obedecer à Torá, e não ao legalismo. Com
fundamento nos escólios apresentados, mister retraduzir os
versículos que constam a expressão “debaixo da lei”, em
conformidade com os manuscritos em aramaico:
“Pois o pecado não terá domínio sobre vós, porquanto não estais
debaixo do legalismo mas debaixo da graça.
Pois quê? Havemos de pecar porque não estamos debaixo do
legalismo, mas debaixo da graça? De modo nenhum!” (Rm 6:14-
15)
“mas vejo nos meus membros outra ‘lei’ guerreando contra a Torá
do meu entendimento, e me levando cativo à ‘lei’ do pecado, que
está nos meus membros.” (Rm 7:23).
“Para os judeus eu me pus na posição de judeu, para ganhar os
judeus; para os que estão debaixo do legalismo como se estivesse
eu debaixo legalismo (embora debaixo do legalismo eu não
esteja), para ganhar os que estão debaixo do legalismo.” (I Co
9:20).
“Mas, antes que viesse a fé, estávamos presos ao legalismo,
encerrados até aquela fé que se havia de revelar.” (Gl 3:23).
“Dize-me, os que quereis estar debaixo da observância legalista,
não ouvis vós a Torá?” (Gl 4:21)
“Mas, se sois guiados pela Ruach [Espírito], não estais debaixo da
observância legalista da Torá.” (Gl 5:18).

Não restam dúvidas de que as expressões “obras da lei” e “debaixo


da lei” (= legalismo) são termos que indicam algo mal, ruim, nocivo.
Obviamente, estas expressões não se referem à Torá do ETERNO,
porque Sha’ul (Paulo) afirmou categoricamente que a Torá é
“santa, justa e boa” (Romanos 7:12).
Conclusão: não devemos nos sujeitar ao legalismo, que se traduz
em regras criadas por homens e na falsa ideia de que é possível
alcançar a salvação mediante a própria força. Por outro lado,
devemos obedecer à Torá do ETERNO para desfrutarmos de sua
graça. Os desobedientes que não se arrependerem não terão
acesso à graça, e serão condenados, conforme ensinou Yeshua:
“Então eu [Yeshua] lhes direi claramente: ‘Nunca vos conheci!
Apartai-vos de mim, vós que praticais a transgressão à Torá” (Mt
7:23)
Por desconhecer a verdadeira relação entre lei e graça, muitas
pessoas construíram doutrinas heréticas. Algumas dessas pessoas
entendem errado a liberdade da salvação pela graça e negam a
função da lei moral de Deus. Para elas, o cristão não tem qualquer
compromisso com a lei, afastando-se assim da fé dos apóstolos.

Dados Bibliográficos:

https://reacaoadventista.com/2018/12/23/seguir-a-lei-nao-significa-estar-
debaixo-da-lei/

(Aramaic English New Testament, 4ª edição, 2011).

Tsadok – Judaísmo Nazareno

Adaptações: Alexandre Kaman

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