Você está na página 1de 4

A religião judaica na época

do Novo Testamento
Dick France

Jesus era um judeu. A igreja cristã come- havia várias inscrições que proibiam os gen-
çou na Palestina, e seus primeiros membros tios de ir além daquele ponto. Quem o fizesse,
eram judeus. Para entender o NT, precisamos corria o risco de ser morto (veja At 21.28-29;
ter algum conhecimento da religião judaica da Ef 2 . 1 4 ) .
época de Jesus. Q u a n d o os Evangelhos d e s c r e v e m Jesus
Os últimos profetas d o AT v i v e r a m 4 0 0 ensinando e ministrando "no Templo", falam
anos ou mais antes de João Batista entrar e m de algo que normalmente ocorria nessa ampla
cena. E desde aquela época a religião judaica área pública, o n d e os mestres se instalavam
não ficou sendo exatamente a mesma. A reli- nos pórticos c o b e r t o s c o p o v o se reunia
gião clássica d o Israel d o AT evoluiu e v e i o a paia ouvir e fazer perguntas. Nesse mesmo
ser o que chamamos de judaísmo. pátio também funcionava, durante as festas,
N o p r i m e i r o século da era cristã, havia o m o v i m e n t a d o m e r c a d o de animais para
judeus e m todas as partes d o mundo roma- os sacrifícios e estavam instaladas as bancas
no e até m e s m o fora ele (veja "A dispersão dos cambistas (que tinham o dinheiro sagra-
judaica"). Aqui iremos nos ater aos judeus da d o para as ofertas no T e m p l o ) , situação que
Palestina. tanto irritou Jesus.
O Templo não era apenas um lugar de ado-
A l g u m a s importantes instituições ração. Era um símbolo de identidade judaica
do judaísmo e orgulho nacional. Uma das principais razões
O T e m p l o O g r a n d e T e m p l o de Salo- por que Jesus e os seus seguidores se torna-
mão fora destruído pelos babilônios e m 587 ram malvistos foi que eles e r a m considera-
a.C. Após o exílio, os judeus que retornaram dos inimigos do Templo ( M t 2 6 . 6 1 ; 27.40; At
a Jerusalém reconstruíram o T e m p l o . Trata- 6.13-14).
va-se de um edifício menos impressionante, A s i n a g o g a Havia apenas um Templo,
que ficou de pé durante 500 anos. H e r o d e s mas cada comunidade tinha a sua sinagoga.
0 Grande decidiu substituí-lo por um magní- Ali não se ofereciam sacrifícios. Era o centro
fico templo n o v o , que se tornou uma das sete local de culto e estudo da Lei. N o sábado, a
maravilhas d o mundo antigo. (Veja " O Tem- comunidade se reunia, homens e mulheres
plo de Herodes".) A obra foi iniciada 19 a.C. separados, para ouvir a leitura e exposição de
c ainda não havia sido concluída na época de determinadas passagens da Lei e dos Profetas
Jesus (Jo 2 . 2 0 ) . Acabaria ficando pronta e m (Lc 4.16-21) e fazer orações litúrgicas. Duran-
64 d . C , mas seis anos depois o Templo foi des- te a semana, a sinagoga era a escola local,
truído pelos romanos. o centro comunitário e o núcleo d o governo
Foi este imponente c o m p l e x o de constru- local. Seus líderes e r a m as autoridades civis
ções que deixou os discípulos de Jesus admi- da comunidade, os magistrados e guardiões
rados ( M c 1 3 . 1 ) . A l i ainda eram oferecidos da moral pública.
os sacrifícios e se realizava o culto que havia Lei e t r a d i ç õ e s Israel tinha uma lei desde
sido instituído muito tempo antes. Aquele era a época de Moisés. Mas depois d o exílio e da
o c a m p o de ação dos sacerdotes e de seus destruição d o T e m p l o , Esdras ( n o século 5
auxiliares. Mas, é claro, tudo isso acontecia a.C.) liderou um movimento de estudo inten-
sob o olhar vigilante dos soldados romanos, sivo da Lei, e os judeus se tornaram cada vez
que estavam aquartelados na fortaleza Antô- mais " o p o v o do livro".
nia, de o n d e podiam avistar os pátios d o Tem- Este estudo detalhado gerou um conjun-
plo (At 21.31-40). Os prédios d o Templo cm to de tradições, ainda e m desenvolvimento
si ficavam separados d o grande pátio externo, na época de Jesus, que procurava detalhar
o "pátio dos gentios", por uma mureta na qual melhor c o m o a Lei d e v i a ser seguida. Os
Introdução ao Novo Testamento 529

escribas, que eram os estudiosos profissio- tato social com judeus menos escrupulosos,
nais e guardiões da Lei e das tradições, elabo- e p o d i a levar a um senso de superioridade
ravam regras exatas para todas as ocasiões. com relação à "plebe" (Jo 7 . 4 9 ) . Esta sepa-
H a v i a , por e x e m p l o , 39 tipos ração, b e m c o m o a tendência de dar mais
de trabalho proibidos no sába- valor à exata observação de ritos d o que a
do, e um deles (transportar um princípios amplos c o m o o amor e a misericór-
•Asregras^ o b j e t o d e um lugar a o u t r o ) dia, fez com que entrassem e m conflito com
sobre o sábado ,. . 1 1 Jesus. Ele não questionou a ortodoxia deles;
são como foi a m p l i a d o a ponto de levar apenas os acusou de terem uma visão equi-
montanhas a p r o i b i ç ã o de quase toda e vocada a respeito d o que significava servir a
penduradas * * . . Deus, assim que o esforço deles por definir as
mmfio de cabelo, qualquer atividade. Viagens exigências da lei, por mais bem intencionado
fais a Escritura e r lj ia j ma "joma-
m t a c a s a u m

áumutto pouco, j 1 1 que fosse, acabava dificultando as coisas para


mos osMishná,
regras s ã o da de sábado , cerca de 1 km as pessoas simples.
Hagigah
muitas."1.8 ( 1.12).
A t
O número de fariseus provavelmente não
O ensinamento dos escribas era grande, mas a sua influencia era marcan-
pretendia ajudar o povo a obe- te. Foram os fariseus que determinaram as
d e c e r à L e i , mas i n f e l i z m e n - diretrizes para o desenvolvimento d o judaís-
te, c o m o as palavras d e Jesus mo após a destruição de Jerusalém e m 70
a r e s p e i t o dos escribas indi- d.C. Eles imprimiram no judaísmo uma ênfa-
cam, às vezes o z e l o pelos detalhes ofuscava se c o n t i n u a d a na p i e d a d e i n d i v i d u a l , e m
as questões fundamentais da Lei ( M c 7.1-13; padrões éticos rígidos, b e m c o m o na obser-
Mt 23.23). vação ritual.
As m a r c a s d e u m j u d e u A necessida-
O s s a d u c e u s Os saduceus formavam o
de de sobreviver diante de hostilidades e per-
outro partido importante da época de Jesus,
seguição levou os judeus a valorizar aqueles
embora sua influência j á estivesse e m declí-
aspectos da Lei que os distinguiam c o m o povo
nio. Eram oriundos de famílias ricas, e m geral
de Deus. Três "sinais d e identidade" se tor-
os grandes proprietários de terras. Os princi-
naram muito importantes: circuncisão, obser-
pais sacerdotes eram, e m grande parte, sadu-
vação da lei d o sábado, e as leis alimentares
ceus, e o sumo sacerdote era escolhido dentre
(baseadas e m L v 11 e na o r d e m de não comer
eles. Controlavam a organização d o Templo, e
sangue) que i m p e d i a m os judeus d e tomar
eram, também, o partido majoritário no Siné-
uma refeição normal c o m não judeus. Um dos
drio ( o conselho superior dos j u d e u s ) , o n d e
maiores problemas enfrentados pelos primei-
eles c os fariseus freqüentemente t o m a v a m
ros cristãos foi definir c o m o seguidores de ori-
posições opostas (At 23.6-10).
gem judaica e de o r i g e m gentílica poderiam
Sua posição teológica era conservadora,
ser integrados numa mesma comunidade (leia
não aceitando nenhuma revelação além dos
At 10.1—11.18; At 15.1-29).
cinco livros d e Moisés (Gênesis a Deutero-
Partidos e m o v i m e n t o s
n ô m i o ) . Assim, eles rejeitavam crenças mais
do j u d a í s m o d o s é c u l o 1
recentes aceitas pelos fariseus, c o m o imorta-
Os f a r i s e u s Os leitores dos Evangelhos
lidade, ressurreição, anjos e d e m ô n i o s ( M c
tendem a pensar que fariseu é sinônimo de
12.18; At 2 3 . 8 ) . Sendo uma minoria aristo-
hipócrita, mas não era este o conceito que a
crática, não tinham tanto apoio popular quan-
maioria dos judeus tinha a respeito dos fari-
to os fariseus.
seus. Eles eram os puristas e m questões reli-
O s e s s ê n i o s Este grupo, a respeito d o
giosas, extremamente dedicados à preservação
qual, no passado, não se tinham muitas infor-
e observância da lei e interessados em incenti-
mações, passou a receber uma atenção toda
var os outros a fazerem o mesmo. À luz disto,
especial a partir d e 1947, c o m a descoberta
eram judeus e x e m p l a r e s ( F p 3.5-6) e eram
dos rolos d o mar M o r t o . Estes rolos perten-
muito respeitados. A maioria dos escribas per-
ciam à biblioteca da comunidade de Qumran,
tencia ao partido farisaico, e eles foram os
uma seita "monástica" dos essênios que vivia
responsáveis p e l o rico d e s e n v o l v i m e n t o das
em isolamento voluntário no deserto que fica
tradições legais mencionado acima.
p r ó x i m o ao mar M o r t o . A seita foi fundada
Seu z e l o pela o b s e r v a ç ã o meticulosa da
p e l o d e s c o n h e c i d o "mestre da justiça" por
lei ( p r i n c i p a l m e n t e e m q u e s t õ e s d e pure-
volta de 165 a . C , e sobreviveu até 68 d . C ,
za ritual na a l i m e n t a ç ã o ) limitava seu con-
530 O Novo Testamento

No - i . i ni.,
entre o AT
coNT,
it religião
de Israel
transformou-se
no judaísmo.
A foto mostra
jttdcus
ortodoxos
lie hoje, na

Jerusalém
antiga.

quando foi destruída na revolta judaica (con- que representava uma alternativa em rela-
tra os romanos). Eles se consideravam o ver- ção aos lipos mais conhecidos dos fariseus e
dadeiro p o v o de Deus, e os outros judeus, saduceus.
inclusive o sistema d o Templo e m Jerusalém, O s z e l o t e s Enquanto fariseus e saduceus
eram vistos como inimigos. Isolados no deser- tentavam conviver com o g o v e r n o romano,
to, eles aguardavam a vinda dos dois Messias e os h o m e n s de Qumran sonhavam com a
( o Messias sacerdotal de Arão e o Messias real poderosa intervenção futura de Deus, muitos
de Israel) e a grande batalha final entre os judeus não estavam dispostos a esperar. Em 6
filhos da luz c os filhos das trevas. d . C , por ocasião de um recenseamento roma-
Q u a n d o esse dia chegasse. Deus no com vistas à cobrança de impostos. Judas,
aprovaria o t e s t e m u n h o fiel da o Galileu, liderou uma importante revolta
"Eles se afastarão
da morada comunidade e restauraria o verda- (At 5 . 3 7 ) que serviu de inspiração a futuros
dos ímpios deiro santuário. grupos de rebeldes, geralmente rotulados de
e irão para
o deserto Enquanto isto, eles se ocupa- "zelotes". É possível que Barrabás, aquele "sal-
preparar
o caminho v a m c o m o estudo diligente das teador" que estava preso por ocasião do jul-
do Senhor." Escrituras, s e g u i a m uma rígida gamento de Jesus, fosse o líder de um desses
Regra disciplina monástica, guardavam a grupos. Os romanos suprimiram vários levan-
da Comunidade lei com mais rigor ainda do que os tes anteriores, mas a grande revolta judaica
de Qumran, 8.1:!
fariseus, a m a v a m uns aos outros provocada por zelotes em 66 d.C. resultou na
e odiavam os de fora. Produziram destruição de Jerusalém em 70 d.C. Na melhor
comentários bíblicos elaborados, das hipóteses, os zelotes eram patriotas com
aplicando cada frase das passagens motivações religiosas, que acreditavam que o
d o AT a sua própria situação e expectativa. p o v o de Deus não devia estar sujeito a nenhu-
N e m todos os grupos essênios adotavam o ma potência estrangeira.
mesmo estilo de vida separatista da comuni- A p o c a l í p t i c a Muitos "apocalipses" foram
dade de Qumran. N o entanto, os documentos escritos na Palestina do segundo século antes de
de Qumran dão claros indícios de que havia Cristo e m diante. Seu objetivo era trazer uma
um tipo de judaísmo apocalíptico e asceta mensagem de esperança a um povo à beira
Introdução ao Novo Testamento 531

do desespero. Nesses apocalip- t o m a v a a i m p o r t a n t e d e c i s ã o de se tornar


ses aparecem relatos de visões "prosélito". Isto e n v o l v i a circuncisão e batis-
«umgalileu extraordinárias supostamente m o , bem c o m o obediência a toda a lei, inclu-
chamado judas recebidas por grandes homens sive o sábado e as leis alimentares. Era, na
xncitou seus \ ° v e r d a d e , uma mudança de nacionalidade.
compatriotas d o passado ( E n o q u e , Elias, Muitos outros, atraídos pela fé monoteís-
à rebelião, Esdras, e t c ) , e g e r a l m e n t e ta e pela rígida moralidade d o judaísmo, que
acusando-os '
dl serem covardes S E Í 3 Z U S O de TLGLIRAS O U íma- contrastavam com o politeísmo decadente de
por c o n s e n t i r e m „ e n s J e significado SECRETO,
Roma, se identificavam com a fé e os ideais
em pagar ° , ° , .
impostos a o s números simbólicos e datas de Israel, mas não queriam se comprometer
romanos c u i d a d o s a m e n t e calculadas. t o t a l m e n t e c o m o prosélitos. Estes, que e m
e por tolerarem , alguns casos e r a m ricos e influentes oficiais
senhores U m a d e suas características romanos, a p a r e c e m no N T sob o n o m e de
humanos que £ 0 n t u a d o dualismo, ou
a c e
"os que temem a Deus" ou "os piedosos" ( A t
ocupavam . , 13.26,43,50; 17.4).
o lugar de D e u s . » seja, um conflito cósmico e m O s s a m a r i t a n o s Estes eram descenden-
joscfo, Guerra que estão envolvidos o bem e tes de israelitas que h a v i a m s o b r e v i v i d o à
dosjudeus2.H8 a l , Deus e Satanás, a luz
0 m
destruição d o reino d o N o r t e e que haviam
e as trevas. A presente ordem c a s a d o c o m g e n t e e s t r a n g e i r a que havia
mundial é controlada pelas sido transferida para aquela r e g i ã o d e p o i s
forças d o mal, mas a batalha da queda de Samaria e m 7 2 2 / 1 a.C. Nunca
final está prestes a ser travada. Então Deus foram integrados no reino de Judá e na época
esmagará toda a oposição, o mal será destru- d é N e e m i a s a divisão se cristalizou. A cons-
ído, e seu p o v o reinará e m glória. O livro d o trução do templo samaritano no monte Geri-
Apocalipse, no NT, é um apocalipse cristão. zim, nas proximidades de Siquém (Jo 4 . 2 0 ) ,
E s p e r a n ç a s m e s s i â n i c a s As estranhas levou os judeus a definitivamente repudia-
visões que aparecem nos apocalipses expres- r e m os samaritanos. Foi o
savam apenas uma entre várias esperanças ali- rei judeu Hircano quem des-
mentadas pelos judeus daquela época. Vários truiu o t e m p l o samaritano
personagens messiânicos d o A T ocupavam o e m 128 a.C.
imaginário popular: o profeta c o m o Moisés N o e n t a n t o , os samari-
(Dt 1 8 . 1 5 - 1 9 ) , Elias que estava por v o l t a r
. "Há dois povos
(Ml 4.5-6), entre outros. Mas acima de tudo tanos a d o r a v a m o m e s m o q u e eu o d e i o
aguardava-se a vinda d o Filho de Davi, um rei Deus. Sua a u t o r i d a d e era e mais um,
guerreiro CUJA missão era trazer vitória, paz e , , . . que não é um
glória a Israel. Alguns pensavam e m renova- a Lei ou os Cinco Livros de .
p o v o d e v e r d a d e

ção espiritual; a maioria, e m vitória sobre os Moisés (mas não o restante **> <>>filisteu»,
romanos. i . e os moradores
A palavra Messias ( g r e g o , "Cristo") inevi- d o A T ) , cujo t e x t o era pra- de Edom,
tavelmente despertava esperanças de inde- ricamente o m e s m o que o e o povo mio
pendência política, o que levou Jesus a ser • Í • J que mora
cauteloso c o m o uso deste título. Ele v e i o t e x t o usado p e l o s j u d e u s . , . " m M o

a um p o v o "que esperava a c o n s o l a ç ã o de C o m o muitOS d0S judeus, OS Eclesiástico S0.2S-26

Israel" (Lc 2 . 2 5 ) , mas o que ninguém espera- samaritanos a g u a r d a v a m a (século 2 a.c.)

va é que isso fosse acontecer através de uma vinda d e um profeta c o m o


cruz. M o i s é s . O ó d i o dos judeus
P r o s é l i t o s A p e s a r de os judeus serem em relação aos samaritanos
freqüentemente m a l i n t e r p r e t a d o s e ridi- se b a s e a v a mais e m fato-
cularizados, um n ú m e r o c o n s i d e r á v e l de res históricos e raciais d o
gentios era a t r a í d o pela r e l i g i ã o j u d a i c a e que e m qualquer diferença fundamental de
religião.

Você também pode gostar