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SEMINÁRIO BÁSICO TEOLÓGICO

TEOLOGIA BÍBLICA DO NOVO TESTAMENTO

PROFESSOR: _________________________________

ALUNO: ____________________________________

“Se clamares por conhecimento, e por inteligência alçares a tua voz, Se como a prata a buscares e como a tesouros escondidos a procurares,
Então entenderás o temor do Senhor, e acharás o conhecimento de Deus. Porque o Senhor dá a sabedoria; da sua boca é que vem o
conhecimento e o entendimento.” Provérbios 2:3-6

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O AMBIENTE DO NOVO TESTAMENTO

Novo Testamento é uma expressão que vem do latim: indica os livros da Bíblia escritos depois de
Cristo e contrapõe-se a Antigo Testamento, ou seja, aos livros da Bíblia escritos antes de Cristo. Para
designar os dois “Testamentos”, melhor seria a expressão “Antiga Aliança” e “Nova Aliança” (berîth,
em hebraico, e diatheke, em grego). De fato, a ideia teológica de aliança é fundamental na dinâmica
interna da Bíblia, como Palavra de Deus para todos os crentes, e percorre-a do primeiro livro ao último.
O Antigo Testamento resume-a nesta expressão: “Vós sereis o meu povo e Eu serei o vosso Deus.” (Lv
26,12; Jr 7,23; Ez 37,27)
Mas esta Aliança era provisória, apontava para a Nova Aliança (Jr 31,31-34) que foi selada com o
sangue de Jesus Cristo (Mt 26,27; Mc 14,24; Lc 22,20). A este respeito, diz o Concílio Vaticano II: “A
Palavra de Deus, que é poder de Deus para a salvação de todos os crentes, apresenta-se e manifesta a
sua virtude de um modo eminente nos escritos do Novo Testamento. Pois, quando chegou a plenitude
dos tempos, Cristo estabeleceu o Reino de Deus na terra, manifestou o seu Pai e a sua própria Pessoa
com obras e palavras e completou a sua obra mediante a sua morte, ressurreição e gloriosa ascensão e
com a missão do Espírito Santo (...). De todas estas coisas são testemunho perene e divino os escritos
do Novo Testamento.” (Dei Verbum, 17)

O NOVO TESTAMENTO E A HISTÓRIA

Escritos entre os séculos I-II d.C., em plena civilização greco-romana, os livros do Novo Testamento
aparecem-nos na língua “comum” dessa civilização (o grego koiné) e giram em torno da mensagem de
Jesus. Por isso, os Evangelhos são a base de todos os outros livros do Novo Testamento, que, por sua
vez, os explicitam e aplicam à vida prática. Mas não podemos compreender suficientemente a
mensagem de Jesus nem os escritos que a explicitam, sem conhecermos as circunstâncias históricas em
que nasceram.
Jesus anunciou a Boa Notícia da salvação apenas oralmente, em aramaico, a língua falada então na
Palestina. Os seus discípulos também não escreveram. Preocupava-os mais o anúncio oral porque era
urgente o Evangelho. A atitude de Jesus e dos seus discípulos faz do Cristianismo, não uma “Religião
do Livro”, mas a religião que se centra numa Pessoa: Jesus Cristo. Depois de terem ouvido a mensagem
oral, durante a “primeira geração” cristã, é que os discípulos da “segunda geração” registaram por
escrito as palavras e os fatos da vida de Jesus para incutir nos cristãos maior fidelidade à mensagem e
os conduzir à fé e à salvação em Cristo (Lc 1,1-4; Jo 20,30-31). Os Evangelhos não são unicamente a
“História de Jesus”; são sobretudo a narração escrita das palavras e dos fatos de Jesus de Nazaré, mas já
iluminados pelo Cristo ressuscitado, presente na sua Igreja ao longo de muitos anos.
A Constituição Dei Verbum (19) diz que os Evangelhos não são História escrita à maneira do nosso
tempo. Os evangelistas fazem uma História em função da fé, da teologia: resumem, interpretam,
explicam e redigem fatos da vida de Jesus para apresentar uma determinada ideia teológica a uma
determinada classe de ouvintes.

AMBIENTE POLÍTICO-RELIGIOSO DO NOVO TESTAMENTO

Genericamente falando, o ambiente histórico-geográfico do Novo Testamento é greco-romano. A


Palestina cai sob o domínio dos Césares de Roma em 63 a.C. e, com o Império, entra no povo da Bíblia
a cultura helenista, que se tornara a cultura mais importante do Império Romano (ver Lc 3,1-2). De
fato, um Império geograficamente enorme e com uns cinquenta milhões de habitantes continha no seu
seio multidões de povos, religiões e culturas diferentes.
No entanto, este pluralismo cultural e religioso facilitou, de certo modo, a expansão do Cristianismo,
que não tardou em adaptar as suas origens semitas à cultura dominante. Neste campo, deve ser
concedido um especial relevo a Paulo (ver At 15). A Palestina, sobretudo pela mão de Herodes, o
Grande (que reinou entre 40 a.C. e 4 a.C.), entrou também no caminho da civilização helenista, pelas
grandes obras, jogos e espetáculos copiados dos helenistas.

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Politicamente, as autoridades da Palestina – reis ou procuradores romanos – dependem do
Imperador de Roma. Pilatos foi o procurador mais famoso (entre 27 e 37 d.C.), por ter participado
ativamente no processo e na morte de Jesus.
A partir de 66 d.C., começou a revolta contra
o poder romano, que foi severamente punida
com a destruição de Jerusalém e do Templo,
inaugurado poucos anos antes. Com a
destruição do Templo, desaparece a classe
politicamente mais forte, a classe sacerdotal
ou dos Saduceus. Na fuga geral, também a
pequena comunidade cristã de Jerusalém,
segundo algumas tradições, se refugiou em
Péla, na Decápolis e em outros locais
próximos. A partir de 70 d.C. desaparecem
todos os principados da Palestina e o
território é governado por administração
direta de Roma.
Economicamente, a Palestina, pequeno
território junto do deserto, contava pouco na
economia do Império. Interessa, no entanto,
saber como nela se vivia para compreender a
linguagem utilizada por Jesus nos
Evangelhos, sobretudo nas parábolas. Trata-
se de um território de agricultura
mediterrânica (trigo, cevada, figueira,
oliveira, videira) e de pastoreio de gado
miúdo (ovelhas e cabras). A pequena
indústria e o comércio também ocupam um
lugar de destaque na vida quotidiana do
povo.
Religiosamente, fervilhavam pelo
império muitas religiões e cultos pagãos, que
gozavam de uma relativa liberdade de culto e
de proselitismo. Na Palestina, o templo de
Jerusalém concentrava as principais
instituições judaicas. Era o centro religioso, o lugar de Deus, do sacerdócio, das festas nacionais; mas
também onde as pessoas ligadas ao culto exerciam o poder político. Todo o varão judeu adulto pagava
uma didracma por ano de imposto ao Templo. Isso transformava o Templo no centro econômico do
povo de Deus.
O primeiro Templo tinha sido construído por Salomão no século X a.C. e destruído pelos Babilônios
em 587 a.C.. O segundo, mais modesto, foi construído em 515 a.C., depois do exílio da Babilônia. Um
terceiro Templo foi construído por Herodes, o Grande; inaugurado no ano 60 d.C., foi destruído pelos
Romanos no ano 70. Em forma de cubo de uns cinquenta metros e rodeado de vários átrios e portas, era
uma obra digna da admiração de qualquer visitante (ver Mt 24,1; Mc 13,1; Jo 2,20). No tempo de Jesus
estava na fase de acabamento.
A Sinagoga era a instituição religiosa mais importante depois do Templo, aonde todo o bom judeu
acudia, cada sábado. O próprio Jesus frequentava a Sinagoga (Lc 4,16-38). Era o lugar onde se
proclamava e comentava a Palavra de Deus e se fazia a oração da comunidade; também servia de
escola e centro de cultura. Teve especial importância sobretudo na Diáspora. Era chefiada pelos
doutores da Lei e fariseus; e, como não havia sacrifícios, os sacerdotes não viam nela valor maior.
Interessa aqui referir, com particular relevo, os grupos religiosos de então:
Os Fariseus. Pessoas da classe média e baixa, eram especialmente devotos e cumpridores de todas
as normas da Lei de Moisés. A sua origem, sendo embora duvidosa, deve remontar à revolução de
Judas Macabeu (séc. II a.C.: 1 Mac 2,42). Considerando Deus como o único Rei de Israel, opunham-se
ao poder político instalado: os Romanos e a dinastia de Herodes. Como dominavam na Sinagoga,
mediante a sua pregação, levavam o povo a pensar do mesmo modo. Por isso, constituíam o grupo mais
numeroso de todos. Jesus denunciou muitas vezes a sua rigidez legalista, que não respeitava o mais
importante o amor e juntava muitas outras tradições – a chamada Lei oral ou “tradição dos antigos” – às
prescrições escritas na Bíblia. Admitiam como canônicos todos os livros da atual Bíblia Hebraica, ou
seja, a Lei, os Profetas e outros Escritos (os do AT que estão nas Bíblias católicas, ecepto os
dêuterocanônicos). Sendo rígidos na observância da Lei, eram progressistas nas ideias religiosas, pois
admitiam, ao contrário dos Saduceus, a ressurreição final e a existência de anjos. Destruído o Templo,
no ano 70, com ele desapareceu também a sua organização cultual: os sacerdotes e os sacrifícios.
Restava a Lei, a Palavra de Deus que estava na mão dos Fariseus da Sinagoga. E foi a Sinagoga que
perpetuou o judaísmo até aos nossos dias.

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Os Doutores da Lei ou Escribas. Eram o grupo mais ligado ao dos Fariseus. O Novo Testamento
refere-se frequentemente a estes rabinos copistas que se tornaram também intérpretes da Lei. Eram os
“teólogos” do farisaísmo, embora também houvesse Doutores da Lei entre os Saduceus.

Os Saduceus (nome que deriva do Sumo Sacerdote Sadoc ou Zadoque) existiam, como partido
político, desde o século II a.C.. Eram a classe mais ligada ao Templo, por constituírem a classe
sacerdotal. Além do sacerdócio, detinham ainda grande parte do poder político, pois, ao contrário dos
fariseus, presidiam ao Sinédrio, mediante o Sumo Sacerdote. Politicamente abertos à autoridade
romana, eram conservadores em religião, pois, ao contrário dos fariseus, admitiam como canônicos
apenas os cinco primeiros livros da Bíblia (Pentateuco) e negavam a existência dos anjos e a
ressurreição. Esta classe sacerdotal, no exercício das suas funções, era assistida pelos Levitas, que
tinham especial missão no canto litúrgico e nos sacrifícios.
Os Samaritanos. Como o nome indica, eram os habitantes da Samaria, descendentes da população
mista israelita e pagã que ocupou aquele território depois do exílio dos Samaritanos para Nínive (711
a.C.). Como livros canônicos, só admitiam o Pentateuco (tal como os Saduceus) e tinham um templo no
monte Gerizim (2 Rs 17,24-28; Esd 4,1-4). Por este motivo, os Judeus (habitantes da Judeia, ao sul)
rejeitavam-nos, como se fossem pagãos (Lc 10,25-37; Jo 4,19-22).
Os Zelotes. Como o próprio nome indica, zelavam pela independência nacional de Israel contra o
poder político estrangeiro. Mas a sua luta era violenta, provocando sucessivos confrontos e atentados
contra o exército ocupante.
Os Herodianos. Eram os partidários da dinastia de Herodes, o Grande, que governou os diversos
territórios da Palestina a partir do ano 37 a.C. sob a suprema autoridade dos Imperadores de Roma (ver
Lc 13,31-32).

ESCRITOS E COLEÇÕES DO NOVO TESTAMENTO


O Novo Testamento está integrado por 27 livros, divididos em vários grupos ou coleções de
escritos: Quatro Evangelhos e Atos dos Apóstolos, Cartas de Paulo, Carta aos Hebreus, Cartas
Católicas (Tiago, 1 e 2 de Pedro, 1, 2 e 3 de João, Judas) e Apocalipse de João. Trata-se de uma
grande quantidade de livros, e de diferentes gêneros literários, o que torna mais difícil a sua
compreensão.
A ordem acima referida é temática e pouco tem a ver com a cronologia. De fato, o escrito mais
antigo do Novo Testamento é a Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses; e o Evangelho de João foi
um dos últimos escritos a aparecer. Tais coleções, portanto, estão organizadas segundo a temática e o
género literário.

COMO E QUANDO SE FORMARAM ESTAS COLEÇÕES?


Como dissemos, os discípulos de Jesus só bastante tarde resolveram escrever a sua mensagem.
Primeiro, porque o Mestre não lhes apareceu como um escritor, mas como um mensageiro de Deus ( Mt
28,16-20). Além disso, a primeira geração cristã vivia num ambiente escatológico, pensando que Jesus
estava para vir, glorioso, “sobre as nuvens do céu”, conforme a profecia de Daniel ( Dn 7,13; Mt
26,64; Mc 14,62; 1 Cor 16,22; 1 Ts 4,17; Ap 22,20). Não admira, pois, que os primeiros escritos do
Cristianismo sejam Cartas, destinadas a resolver problemas concretos de um determinado momento
histórico das comunidades (1 Ts 4,13-18).

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A necessidade de escrever a mensagem de Jesus veio do afastamento cada vez maior da sua fonte: o
próprio Jesus de Nazaré (Lc 1,1-4; Jo 20,30-31). A meados da década de 70, já não viveria a quase
totalidade das “testemunhas oculares” que tinham visto o Senhor ressuscitado (Lc 1,2; 1 Cor 15,3-8).
Esse distanciamento cronológico entre Jesus e as comunidades só poderia ser vencido pela palavra
escrita. E assim se formaram as duas grandes coleções ou “corpus” das Cartas de Paulo e dos
Evangelhos.
Para a escrita da mensagem de Jesus e para a formação destas coleções muito contribuiu a
autoridade dos Apóstolos, em nome dos quais esses textos foram escritos. Grande parte dos livros da
Bíblia são pseudônimos, isto é, atribuídos a um personagem importante, para terem melhor aceitação
perante o público. Nesse tempo não existia o direito de autor. Sobressai o caso do Apocalipse, de um
profeta chamado João, que foi associado ao Apóstolo João. De outro modo, este livro teria tido ainda
maiores dificuldades em entrar no Cânon dos livros inspirados.
Não podemos esquecer a relação entre o Antigo e o Novo Testamento, pois “Deus, inspirador e autor
dos livros de ambos os Testamentos, dispôs sabiamente que o Novo Testamento estivesse escondido no
Antigo, e o Antigo se tornasse claro no Novo (…). Os livros do Antigo Testamento, integralmente
assumidos na pregação evangélica, adquirem e manifestam a sua significação completa no Novo
Testamento, ao mesmo tempo que o iluminam e explicam” (DV 16).

EVANGELHO DE MARCOS

“[…] a narrativa de Marcos define a messianidade à luz


do ministério, morte e ressurreição de Jesus. […] Embora Jesus não cumpra as
expectativas messiânicas tradicionais, sua vida e ministério são a norma para definir o
que significa ser ungido de Deus” (MATERA, Frank J. Cristologia narrativa do Novo
Testamento. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 47).

Nosso início de conversa... passeando pelo Evangelho de Marcos


A tradição antiga, que remonta ao séc. II, atribui o texto deste Evangelho a Marcos, identificado com
João Marcos, filho de Maria, em cuja casa os cristãos se reuniam para orar (At 12,12). Com Barnabé, seu primo
(ou tio), Marcos acompanha Paulo durante algum tempo na primeira viagem missionária (At 13,5.13; 15,37.39)
e depois aparece com ele, prisioneiro em Roma (Cl 4,10). Mas liga-se mais a Pedro, que o trata por “meu filho”
na saudação final da sua Primeira Carta (1 Pe 5,13). Marcos terá escrito o Evangelho pouco antes da destruição
de Jerusalém, que aconteceu no ano 70, pelo general Tito e suas tropas. Pode ter sido escrito em Roma, pois há
expressões latinas que foram transliteradas para o grego: Mc 5,9-15 (legio); 6,37 (denariis); 12,14 (census);
15,15 (flagellis); 15,16 (praetorii); 15,39.44-45 (centurion). Perceba-se, neste último texto, a fé do centurião
proclamada e a culpa da morte de Jesus não ser atribuída aos romanos.

O Livro
O Evangelho de Marcos reflete o ensinamento que Pedro, testemunha presencial dos acontecimentos,
espontâneo e atento, ministrava à sua comunidade de Roma. É o mais breve dos quatro evangelhos e situa-se
no Cânon entre os dois mais extensos, Mateus e Lucas. Até o séc. XIX, Marcos foi pouco estudado e comentado,
para não dizer praticamente esquecido. Santo Agostinho considerava-o como um resumo de Mateus. A
investigação mais aprofundada desde o século passado, à volta da origem dos Evangelhos, trouxe Marcos à luz;
hoje, é geralmente considerado o mais antigo dos quatro. Na verdade, supõe uma fase mais primitiva da
reflexão da Igreja acerca do acontecimento Cristo, que lhe deu origem; e só ele conserva o esquema da mais
antiga pregação apostólica, sintetizada em Atos 1,22: começa com o batismo de João (1,4) e termina com a
ascensão do Senhor (16,19).
É comum afirmar-se que todos os outros Evangelhos, sobretudo os sinópticos, supõem e utilizaram
mais ou menos o texto de Marcos, assim como o seu esquema histórico-geográfico da vida pública de Jesus:
Galileia, Viagem para Jerusalém, Jerusalém. Estudiosos dos evangelhos apontam que Marcos e uma Fonte Q
(Quelle) foram o material existente para a formação de Mateus, Lucas e João. É Lucas (1,1-4) que nos
demonstra que havia já um bom conjunto de informações escritas acerca da vida e obra de Jesus em seu tempo
de escrita. Tais fontes provavelmente estavam ali na mesa de trabalho do autor de Lucas-Atos.

Características Literárias
Com um vocabulário e uma sintaxe menos cuidados, diferente de Mateus, Marcos apresenta apenas
dois discursos: o capítulo das parábolas (cap. 4) e o discurso escatológico (cap. 13). Mas possui muitas
narrações. É exímio na arte de contar: com realismo e sentido do concreto, enriquece os relatos de pormenores
e dá-lhes vida e cor. A este propósito são típicos os casos do possesso de Gerasa, da mulher com fluxo de
sangue e da filha de Jairo (cap. 5). Presta uma atenção especial às palavras textuais de Jesus em aramaico, e
parece ter escrito para convertidos pouco familiarizados com as tradições judaicas, preocupando-se em dar
explicações, como por exemplo: “Talitha qûm” (5,41) e “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni” (15,34). Veja-se ainda 3,17;
7,3-4.11.34; 14,12.36; 15,22.42. É preciso notar também o Jesus atlético e vigoroso, descrito na assim chamada
“jornada de Cafarnaum” (1,21-34).

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Dentre o que é próprio de Marcos, menciona-se o único texto bíblico em que Jesus aparece como “o
Filho de Maria” (6,3), ao contrário dos outros que falam de Maria, mãe de Jesus.

Plano narrativo – Cristologia de Marcos


Pode-se dizer que Marcos se faz espectador com os seus leitores. Como eles, acompanha e vive o
drama de Jesus de Nazaré, desenrolado em dois atos, coincidentes com as duas partes deste Evangelho. Ao
longo do primeiro, vai-se perguntando: Quem é Ele? Pedro responderá por si e pelos outros, de forma direta e
categórica: “Tu és o Messias!” (8,29). O segundo ato se esquematiza com uma pergunta-resposta: De que
maneira Ele se apresenta como Messias? Morrendo e ressuscitando (8,31; 9,31; 10,33-34).
O Evangelho de Marcos apresenta-nos, assim, uma Cristologia simples e acessível: Jesus de Nazaré é
verdadeiramente o Messias que, com a sua morte e ressurreição, demonstrou ser verdadeiramente o Filho de
Deus (1,1; 15,39) que a todos possibilita a salvação. “Pois também o Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por todos” (10,44-45).
Este plano é desenvolvido ao longo das 5 seções em que se divide o Evangelho de Marcos:
I. Preparação do ministério de Jesus: (1,1-13);
II. Ministério na Galileia: (1,14–7,23);
III. Viagens por Tiro, Sidom e a Decápolis: (7,24–10,52);
IV. Ministério em Jerusalém: (11,1–13,37);
V. Paixão e Ressurreição de Jesus: (14,1–16,20).

Teologia
Jesus. Tal como os outros evangelistas, Marcos apresenta-nos a pessoa de Jesus e o grupo dos
discípulos como primeiro modelo da Igreja. Mais do que em qualquer outro Evangelho, o Jesus de Marcos, o
“Filho de Deus” (1,1.11; 9,7; 15,39), revela-se profundamente humano, de contrastes por vezes
desconcertantes: é acessível (8,1-3) e distante (4,38-39); acarinha (10,16) e repele (8,12-13); impõe “segredo”
acerca da sua pessoa e do bem que faz e manda apregoar o benefício recebido; manifesta limitações e até
aparenta ignorância (13,22). É verdadeiramente o “Filho do Homem”, o título da sua preferência. Deste modo,
a pessoa de Jesus torna-se misteriosa: porque encerra em si, conjuntamente, um homem verdadeiro e um
Deus verdadeiro. Vai residir aqui a dificuldade da sua aceitação por parte das multidões que o seguem e
mesmo por parte dos discípulos. Na primeira parte deste Evangelho (1,14–8,30), Jesus mostra-se mais
preocupado com o acolhimento do povo, atende às suas necessidades e ensina; na segunda parte (8,31–13,36)
volta-se especialmente para os Apóstolos que escolheu (3,13-19): com sábia pedagogia vai formando-os,
revelando-lhes progressivamente o plano da salvação (10,29-30.42-45) e introduzindo-os na intimidade do Pai
(11,22-26).
O Discípulo de Jesus. Este Jesus, tão simples e humano, é também muito exigente para com os seus
discípulos. Desde o início da sua pregação (1,14), arrasta as multidões atrás de si e alguns discípulos seguem-no
(1,16-22). Após a escolha dos Doze (3,13-19), começa a haver certa separação entre este grupo mais íntimo e
as multidões. Todos seguem Jesus, mas de modos diferentes. Este seguimento exige esforço e capacidade de
abertura ao divino, que se manifesta em Jesus de forma velada e indireta através dos milagres que Ele realiza. É
por meio dos milagres que o discípulo descobre no Filho do Homem a presença de Deus, vendo em Jesus de
Nazaré o Filho de Deus. Porque a pessoa de Jesus é essencialmente misteriosa, para o seguir, o discípulo
precisa de uma fé a toda a prova: sente-se tentado a abandoná-lo, vendo nele apenas o carpinteiro de Nazaré.
Por isso, Jesus é também um incompreendido: os seus familiares pensam que Ele os trocou por outra família
(3,20-21.31-35); os doutores da Lei e os fariseus não aceitam a sua interpretação da Lei (2,23-28; 3,22-30); os
chefes do povo e dos sacerdotes o veem como um revolucionário perigoso para o seu status quo (11,27-33).
Daí que, desde o início deste Evangelho, se desenhe o destino de Jesus: a morte (3,1-6; 14,1-2). Mas, os
discípulos “de dentro” não são muito melhores do que “os que estão de fora” (4,11). Também eles sentem
dificuldade em compreender o mistério da pessoa de Jesus: parecem-se com os cegos (8,22-26; 10,46-53).
A incompreensão é uma das mais negativas características no discípulo do Evangelho de Marcos. É essa
a razão pela qual, ao confessar o messianismo de Jesus (8,29), Pedro pensava num messias (termo hebraico
que significa “Cristo”) mais político que religioso e que libertasse o povo dos romanos dominadores. Isso
aparece claro quando Jesus desvia o assunto e anuncia pela primeira vez a sua Paixão dolorosa (8,31); Pedro,
não gostando de tal messianismo, começa a repreender o Mestre (8,31-33). O que ele queria era o mesmo que
todos os discípulos de todos os tempos: um cristianismo sem esforço e sem grandes compromissos. Apesar da
incompreensão manifestada pelos discípulos em relação aos seus ensinamentos, Jesus não desanima e
continua a ensiná-los (8,31-38; 9,30-37; 10,32-45). O efeito não foi muito positivo: no fim da caminhada para
Jerusalém e após Ele lhes ter recordado as dificuldades por que iria passar a sua fé (14,26-31), ao verem-no
atraiçoado por um dos Doze e preso (14,42-45), “deixando-o, fugiram todos” (14,50). Este é, certamente, o
Evangelho onde qualquer cristão se sentirá melhor retratado.

Por que Jesus proibia a divulgação dos milagres? Explicando o segredo messiânico facilmente
O leitor do Evangelho segundo Marcos fica intrigado com o paradoxo: nos capítulos de 1 a 10, Jesus
atende e cura inúmeros sofredores; infunde esperança nos desanimados e medrosos; e vive e anuncia uma
maneira nova de encarar a religião. No entanto, proíbe que divulguem o que faz e quem ele é (cf. 1, 44; 5, 43;
7, 24.36; 8, 26; 9, 30). Quando “espíritos impuros” se dão conta de que ele é o Filho de Deus, Jesus proíbe que
espalhem a descoberta (cf. 1, 24-25.34; 3, 11-12). Esse “segredo messiânico” é um dos fios condutores de
Marcos.

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Motivos? Primeiro, por questão de segurança. Entre os conterrâneos de Jesus, havia forte clima de
revolta contra os romanos, que ocupavam o país com mão de ferro. O agir libertador de Jesus podia reforçar
ondas de messianismo político-militar, que seriam reprimidas. Mas então, por que Jesus fazia as curas em
público? Por que difundia mensagens tão explosivas? Por solidariedade com essa gente desprotegida; mostrava
assim de que lado Deus está, e qual a nova sociedade que ele queria estabelecer a partir dos excluídos – o
Reino de Deus. O jeito era combinar coragem com prudência.
Mera tática, então? Não. Ao longo da Bíblia, mas de modo eminente na vida de Jesus, Deus usa uma
pedagogia que faz crescer: ora se manifesta, ora se esconde. Nem todos tiram proveito dessa pedagogia. O
paradoxo “manifestação de Jesus X proibição de manifestar quem ele é” é reforçado por outro: Jesus faz e
ensina coisas maravilhosas; mas muitos não conseguem enxergar seu sentido, há uma cegueira de autoridades
religiosas, concidadãos, familiares e até de discípulos mais achegados! Essas pessoas não enxergam porque
seus interesses são outros; ou, como no caso dos apóstolos, não são suficientemente amadurecidos na linha de
Jesus (9,9-13). Notável o caso de Pedro: logo depois de fazer uma bela profissão de fé, é repreendido porque
não compreende o espírito de Jesus (8,29.33). A todos falta um elemento básico para assimilarem o projeto de
Jesus e se converterem: experiência não só da bondade e autoridade do Jesus que cura e ensina, mas também
da Paixão, morte e ressurreição do Filho de Deus. Por isso, a referência à Paixão atravessa Marcos como pano
de fundo, chave de interpretação do mistério da pessoa e missão de Jesus (9,30-32). Os capítulos 9 e 10, do
Evangelho de Marcos, através de três conceitos, propõem o caminho: anúncio da Paixão, incompreensão,
seguir Jesus até o fim. Para os discípulos, foi uma experiência longa, sofrida, marcante. No final, saberão dizer
melhor quem é Jesus e convidar outros a fazer a mesma experiência (16,9-15). Antes disso, pouco adianta falar,
pelo contrário, pode alimentar concepções de um Jesus messias, político e guerreiro, ou mágico e curandeiro,
com risco de esvaziar ou manipular sua causa.
O itinerário que Marcos aponta dá o que pensar. Só palavras e celebrações bonitas e animadas não
bastam. Ir atrás de Jesus por entusiasmo do momento, interesses imediatos ou curiosidade pode ser um
primeiro passo, mas é pouco. Talvez nossa vida, com suas alegrias e decepções, se for o caso até ao fracasso da
cruz, já seja seguimento de Jesus; mas é na família e na comunidade de fé que aprendemos a enxergar o
sentido do que nos acontece, e a estarmos abertos à experiência (gratuita!) da ressurreição. Aí, as peças do
enigma da vida e da história vão se juntando.
Esse roteiro de vida cristã encaminha respostas pessoais a várias perguntas, hoje de especial relevância: Que
significa ser cristão? Em que consiste a espiritualidade cristã? Qual o papel, em tudo isso, da liturgia, da Bíblia,
da pregação, do ensino? Ao provocar semelhantes questionamentos, misturando fatos ou palavras com
interpretação, Marcos torna-se o primeiro catecismo básico da Igreja, insuperável até hoje. É também o
primeiro livro de catequese fundamental, o mais profundo e convincente.

Os textos de Marcos para o segredo messiânico


Pode-se elencar um grande número de textos que apontam ou que denotam o segredo messiânico. São
sempre expressões que revelam um pedido insistente e até enérgico de Jesus com relação à sua identidade de
filho de Deus, Messias:
a) Com relação aos demônios:
Mc 1,34: “e ele curou muitos doentes atacados de diversas moléstias, e expulsou muitos demônios; mas não
permitia que os demônios falassem, porque o conheciam”.
Mc 3,11: “E os espíritos imundos, quando o viam, prostravam-se diante dele e clamavam, dizendo: Tu és o Filho
de Deus”.
b) Com relação aos doentes:
Mc 1,44-45: “dizendo-lhe: Olha, não digas nada a ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote e oferece pela tua
purificação o que Moisés determinou, para lhes servir de testemunho. Ele, porém, saindo dali, começou a
publicar o caso por toda parte e a divulgá-lo, de modo que Jesus já não podia entrar abertamente numa cidade,
mas conservava-se fora em lugares desertos; e de todos os lados iam ter com ele”.
Mc 5,43: “Então ordenou-lhes expressamente que ninguém o soubesse; e mandou que lhe dessem de comer.”
Mc 7,36: “Então lhes ordenou Jesus que a ninguém o dissessem; mas, quando mais lho proibia, tanto mais o
divulgavam”.
Mc 8,26: “Depois o mandou para casa, dizendo: Não entres na aldeia”.
c) Com relação aos discípulos: Incompreensão e não entendimento das ações de Jesus
Mc 6,52: “pois não tinham compreendido o milagre dos pães, antes o seu coração estava endurecido”.
Mc 8,29-30: “Então lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Respondendo, Pedro lhe disse: Tu és o
Cristo. E ordenou-lhes Jesus que a ninguém dissessem aquilo a respeito dele”.
Mc 9,9: “Enquanto desciam do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto
[transfiguração], até que o Filho do homem ressurgisse dentre os mortos”.
d) Na incompreensão das parábolas
Mc 4,10-13: “Quando se achou só, os que estavam ao redor dele, com os doze, interrogaram-no acerca da
parábola. E ele lhes disse: A vós é confiado o mistério do reino de Deus, mas aos de fora tudo se lhes diz por
parábolas; para que vendo, vejam, e não percebam; e ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se
convertam e sejam perdoados. Disse-lhes ainda: Não percebeis esta parábola? Como, pois, entendereis todas
as parábolas?”.
Os textos enunciam o mandato de Jesus para que as pessoas silenciem quanto à sua dignidade de filho
de Deus, Messias. Para Marcos o mandato é impossível de ser cumprido.

Um pouco de teoria sobre o segredo messiânico

7
Foi o teólogo alemão W. Werde que a partir de 1901, cunhou pela primeira vez o termo “Segredo
Messiânico”. O termo é uma sistematização teológica apresentada segundo a comunidade de Marcos, para o
qual Jesus é o filho de Deus que se revela progressivamente na sua vida pública e definitivamente no momento
da cruz (Mc 9,9). A teoria do segredo Messiânico repousa sob três alicerces: a) O mandato de Jesus para que
seja guardado segredo a seu respeito: demônios, doentes e discípulos; b) A incompreensão e incredulidade dos
discípulos; c) Ensinamento de Jesus ao povo, sempre feito a partir de parábolas, para que eles não
compreendessem totalmente a dimensão messiânica de Jesus.
Várias hipóteses são levantadas para dar sustentação a essa noção. Uma primeira, e estritamente
válida, é a espera judaica pelo messias. Na época de Jesus, e mesmo depois, muitas pessoas serviam-se dessa
esperança messiânica para obterem fama e prestígio, bem como para evocarem revoluções puramente
políticas. Apresentar Jesus como Messias triunfalista poderia suscitar uma interpretação radical e desencadear
um movimento de caráter somente político e consequentemente a intervenção armada de Roma. Por esse
motivo ocorre a opção por um Cristo discreto que, paulatinamente, se revela com filho de Deus, sobretudo a
partir da cruz – morte e ressurreição. Outra hipótese é que o segredo messiânico é um instrumento
estilístico/literário usado, sobretudo, para orientar o leitor do evangelho na compreensão da glória de Jesus e
da grandeza da revelação cristã da qual ele participa. O que parece razoável para o ambiente em que os
cristãos estão inseridos – as perseguições de Nero em 64 d.C.
Há ainda a ideia de que o evangelista apresenta essa noção para demonstrar aos cristãos porque os
judeus não entenderam que Jesus era filho de Deus. Eles não compreenderam essa mensagem porque a
verdadeira identidade de Jesus, que só pode ser conhecida pelo seguimento a Ele, era um mistério, um
segredo. Por isso que eles não viram Jesus desse modo.
Algumas características, para além da hipóteses que se levantam sobre essa teoria, podem ser
atestadas. Primeiro, Jesus se mostra muito reservado sobre o seu título de Messias. De fato ele não se
autoproclama messias, antes repreende os discípulos, os demônios e os doentes com relação a esse fato.
Segundo, Jesus não fala de seu messianismo antes de sua paixão. Com efeito, ele afirma aos discípulos que essa
ideia só pode ser revelada depois que o filho do homem for a Jerusalém (Mc 9,9). Por fim, o Jesus, que Marcos
apresenta, é o filho do Homem, que a partir da cruz se revela como filho de Deus.

O segredo messiânico como conforto ao leitor de Marcos – ontem e hoje


A compreensão de dados como o segredo sobre a identidade de Jesus permite entender como aquele
que seguia o “Filho do Homem” era alentado nas épocas de crise, dado que o Evangelho de Marcos é escrito
num contexto de perseguição. Permite, ainda, perceber que para entender o projeto de Jesus e conhecê-lo é
necessário seguir e viver as intempéries da vida para, desse ponto, então, saber quem é o Filho de Deus
encarnado na História e no sofrimento do povo. Um último ponto é a singularidade desse artifício literário para
apresentar a fé no Filho de Deus aos leitores do Evangelho e, ao mesmo tempo, mostrar a grandeza da fé da
qual o cristão participa.
A pergunta pela identidade de Jesus é a origem de toda a cristologia de Marcos, isto é, que sua
cristologia, em última análise, está orientada para o “Filho de Deus” que se revela e, ao mesmo tempo, se
oculta na atividade terrena de Jesus e no “Filho do Homem” que trilha seu caminho de sofrimento e morte para
a ressurreição e que prova ser aquele que virá, um dia, com poder e glória. Qual é a essência do que Marcos
poderia falar sobre Jesus para os cristãos de sua época? O Cristo autêntico e verdadeiro é aquele que cumpriu
sua missão de Filho de Deus, sofreu a Cruz e a Paixão, mas que no terceiro dia ressurgiu dos mortos,
ressuscitou. Estas verdades são já suficientes para que se possa penetrar um pouco no mistério que envolve a
identidade de Cristo, Deus e homem.

O EVANGELHO DE JOÃO – UMA PANORÂMICA


O Evangelho segundo João é o quarto e último evangelho da Bíblia, após Lucas e antes dos Atos dos
Apóstolos. Sua autoria é tradicionalmente atribuída a João, chamado pela tradição como o “discípulo amado”,
irmão de Tiago, e foi escrito entre os anos 95 e 100. Novos estudos acrescentam mais 50 anos a este momento
de escrita, tendo como base o alto nível de elaboração teológica (e filosófica, principalmente no prólogo)
presente neste evangelho. Cronologicamente, foi o último a ser escrito. A maior parte dos seus relatos é inédita
em relação aos outros três evangelhos, o que sugere que o autor tivesse conhecimento do conteúdo deles ao
escrever seu livro. Mais da metade desse evangelho é dedicado a eventos da vida de Jesus Cristo e a suas
palavras durante seus últimos dias.
O propósito de João foi inspirar nos leitores a fé em Jesus Cristo como o Filho de Deus. João também dá
ênfase à total dependência humana em relação a Deus para a salvação, além de apresentar Jesus 100% homem
e 100% Deus. Importante perceber também o valor que Jesus dá ao homem e à mulher no Evangelho de João.
Vale a pena ver algumas conversas que só aparecem neste evangelho: a. com Nicodemos, 3,1-21; b. com a
mulher de Samaria, 4,1-26; com os judeus na Festa dos Tabernáculos, 7,14-39; 8,3-58.
Duas correntes de pensamento perpassam todo o livro e é valioso segui-las:
Fé – 3,16-18; 5,24; 6,29. 40; 7,38; 8,24; 10,37-38; 11,25-27; 12,46; 14,12.
Vida eterna – 3,15-16. 36; 4,14; 5,24; 6,27. 51; 11,26; 12,50; 17,3; 20,31.

8
Estrutura do evangelho de João – entre ditos e fatos!
O Evangelho de João tem uma característica literária bastante interessante e que chama a atenção por
sua diferença para com os outros evangelhos – os sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas): boa parte do texto é
uma bela composição de ditos – os 7 EU SOU de Jesus (6,35; 8,12; 10,9; 10,11; 11,25; 14,6; 15,1) – e fatos – os
milagres que seguem e/ou se relacionam a esses ditos. Além disso, é João que nos apresenta o Espírito Santo –
o outro consolador (14,16-26; 15,26–16,14) e chama para a intimidade de Jesus aqueles que desejam conhecê-
lo mais e melhor (13,31–17,26).
Mesmo com uma composição mais tardia atestada, o Evangelho de João apresenta a pregação das
origens remotas do cristianismo, reproduzindo os elementos essenciais dessa pregação: 1. Designação de Jesus
como Messias, pela descida do Espírito Santo, segundo o testemunho de João Batista (1,31-34); 2.
Manifestação da glória de Jesus por suas obras e palavras (1,35–12,50); 3. Narração da morte, da ressurreição e
de aparições de Cristo (13,1–20,20); 4. Missão confiada aos apóstolos junto com o dom do Espírito (20,21-29)
Mais ainda, este evangelho se apresenta com a garantia de uma testemunha anônima, o discípulo que
Jesus amava e que tomou parte na paixão (13,23; 19,26.35; 18,15s), viu o sepulcro vazio (20,2s) e o Cristo
ressuscitado (21,7.20-24) e foi, talvez, um dos primeiros a seguir Jesus como discípulo (1,35). O evangelho foi
escrito com um propósito definido: 20,30-31.
A Bíblia Thompson (EUA, 1994) aponta que cada capítulo do Evangelho de João contém a descrição de
algum aspecto especial do caráter ou da obra de Cristo, quais sejam: 1,1-14 – O Filho de Deus; 2,1-10 – O Filho
do Homem; 3,2-21 – O Mestre divino; 4,7-29 – O Ganhador de almas; 5,1-9 – O grande Médico; 6,32-58 – O
Pão da vida; 7,37-38 – A Água da vida; 8,3-11 – O Defensor do fraco; 9,1-39 – A Luz do mundo; 10,1-16 – O bom
Pastor; 11,1-44 – O Príncipe da vida; 12,12-15 – O Rei; 13,1-10 – O Servo; 14,1-3 – O Consolador; 15,1-16 – A
Videira verdadeira; 16,1-15 – O Doador do Espírito Santo; 17,1-26 – O grande Intercessor; 18,1-11 – O Sofredor
modelo; 19,16-19 – O Salvador crucificado; 20,1-31 – O Conquistador da morte; 21,1-17 – O Restaurador do
arrependido.
Apesar de conter uma teologia bastante densa, o evangelho de João é um texto claro e autoexplicativo
e, por isso, deve ser um dos primeiros textos que precisamos ler na Bíblia a fim de conhecermos o filho de Deus
e seu amor por cada um de nós. Vejamos a seguir um esquema de toda a estrutura do Evangelho de João:

Prólogo (início do capítulo 1)


O ministério de Jesus
1. O anúncio da nova economia
A. A semana inaugural
● O testemunho de João
...ele vê Jesus aproximar-se dele e diz: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu
disse: Depois de mim vem um homem que passou diante de mim, porque existia antes de mim. Eu não o
conhecia, mas, para que fosse manifestado a Israel, vim batizar com água”. João 1,29-31
● Os primeiros discípulos
● As bodas de Caná (início do capítulo 2)
B. A primeira Páscoa
● A purificação do Templo
● Estada em Jerusalém
● O encontro com Nicodemos (início do capítulo 3)
● Ministério de Jesus na Judeia. Último testemunho de João.
● Jesus entre os samaritanos (início do capítulo 4)
● Jesus na Galileia
● Segundo sinal em Caná: cura do filho de funcionário real
2. Segunda festa em Jerusalém (primeira oposição à revelação)
● Cura de um enfermo na piscina de Betesda (início do capítulo 5)
● Discurso sobre a obra do Filho
3. A Páscoa do pão da vida (nova oposição à revelação)
● A multiplicação dos pães (início do capítulo 6)
● Jesus vem ao encontro de seus discípulos, caminhando sobre o mar
● Discurso na sinagoga de Cafarnaum
● A confissão de Pedro
4. A Festa das Tendas (a grande revelação messiânica, a grande rejeição)
● Jesus sobe a Jerusalém para a festa e ensina (início do capítulo 7)
● Discussões do povo sobre a origem de Cristo
● Jesus anuncia a sua próxima partida

9
● A promessa da água viva
● Novas discussões sobre a origem de Cristo
● A mulher adúltera (início do capítulo 8)
● Jesus, luz do mundo
● Discussão sobre o testemunho que Jesus dá de si mesmo
● Jesus e Abraão
● Cura de um cego de nascença (início do capítulo 9)
● Bom pastor (início do capítulo 10)
5. A festa da dedicação (a decisão de matar Jesus)
● Jesus se declara Filho de Deus
● Jesus se retira de novo para o outro lado do Jordão
● Ressurreição de Lázaro (início do capítulo 11)
● Os chefes judeus sentenciam a morte de Jesus
6. Fim do ministério público e preliminares da última Páscoa
● A aproximação da Páscoa
● A unção de Betânia (início do capítulo 12)
● Entrada messiânica de Jesus em Jerusalém
● Jesus anuncia a sua glorificação através da morte
● Conclusão: a incredulidade dos judeus

A hora de Jesus. A Páscoa do Cordeiro de Deus


1. A última ceia de Jesus com seus discípulos
● O lava-pés (início do capítulo 13)
● O anúncio da traição de Judas
● A despedida (início do capítulo 14)
● A verdadeira videira (início do capítulo 15)
● Os discípulos e o mundo (início do capítulo 16)
● A vinda do Paráclito1
● Anúncio de um breve retorno
● A oração de Jesus (início do capítulo 17)
2. A Paixão
● A prisão de Jesus (início do capítulo 18)
● Jesus diante de Anás e Caifás. Negações de Pedro.
● Jesus diante de Pilatos (início do capítulo 19)
● A condenação à morte
● A crucifixão
● A partilha das vestes
● Jesus e sua mãe
● A morte de Jesus
● O golpe de lança
● O sepultamento
3. O dia da Ressurreição
● O sepulcro encontrado vazio (início do capítulo 20)
“Jesus fez ainda, diante de seus discípulos, muitos outros sinais, que não se acham escritos neste livro. Esses,
porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome.” João 20,30-31.

1 Paráclito (parakletos) é o título dado ao Espírito Santo, que significa em grego, literalmente, aquele que está ao lado do
que chama por ele. Depois, convencionou-se traduzir parakletos por advogado, o que dá um sentido jurídico à palavra.
10
● Aparição a Maria Madalena
● Aparição aos discípulos
4. Primeira Conclusão
● Epílogo
● Aparição à margem do lago de Tiberíades (início do capítulo 21)
“Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem
ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem.” João 21,25.
● Conclusão

CULTURA GREGA E O NOVO TESTAMENTO: OS ESCRITOS DE LUCAS

EVANGELHO E ATOS DOS APÓSTOLOS


Por mais que a pesquisa em torno do ambiente do Novo Testamento tenha pontos divergentes entre
os estudiosos, um fato é certo e não provoca discussão desde a Antiguidade: o escritor do evangelho de Lucas e
do livro de Atos dos Apóstolos era grego! E os dois escritos em seu original seriam dois tomos de uma mesma
obra historiográfica que pretendia mostrar a quem quer que fosse da época e lesse um pouquinho de grego
quem tinha sido Jesus de Nazaré e quem eram seus seguidores, os do Caminho, os pequenos cristos – os
cristãos (At 11,26). Para entendermos bem os escritos de Lucas, o grego, e a mensagem de Jesus guardada em
seu coração e revelada a nós em sua obra, devemos, pois, conhecer a cultura desse evangelista e historiador,
que tanto auxiliou no estudo das verdades do evangelho entre as primeiras comunidades cristãs da nossa era.
Vejamos alguns elementos valiosos da cultura grega em sua história e literatura e como estes se apresentam
em Lucas-Atos.

Qual é o ambiente em que Lucas escreve? – o que está por trás do texto?
Jerome Murphy-O’Connor, teólogo e arqueólogo, ao falar da cidade natal de Paulo, pontua que Tarso
contava com escolas de arte retórica que funcionavam dentro do modelo helênico de educação e, para tanto,
cita Estrabão, em sua Geografia (14,5,13): “os habitantes de Tarso dedicam-se tão avidamente não só à
filosofia, mas também a todo o conjunto da educação em geral [...]. Além disso, Tarso tem todos os tipos de
escolas de retórica”. Os estudantes judeus teriam que aprender a atuar no mundo de cultura helenística do
qual agora faziam parte – a oikouméne – e o grego que aprendiam deveria ser aprimorado com leitura e escrita.
As crianças judias liam a Septuaginta e, como as pagãs, liam também Eurípides e Homero. Esse arcabouço
cultural certamente fazia parte do currículo da escola da diáspora frequentada pelo filho de um cidadão
romano (MURPHY-O’CONNOR, 2004, p.49, 62).

Martin Hengel (1991, p.75) aponta que a obra homérica era reconhecida como o livro canônico da
educação grega nos círculos judeus da Palestina e sugere que o designativo “obras de Homero” era usado como
nome genérico para toda a literatura grega2.

Helmut Koester (2005) afirma que o cristianismo não se desenvolveu como representante de apenas
uma cultura e religião mais antiga, como a de Israel, mas como parte de uma nova cultura universal do mundo
helenístico-romano. Nesta, a língua dominante e de unificação era o grego, assim como a filosofia, a arte, a
arquitetura, a ciência e as estruturas econômicas gregas constituíam os laços que mantinham os vários povos e
nações do Império Romano unidos como parte de um só todo. A educação grega já influencia Roma a partir do
III século a.C. e, apesar de alguma resistência ao helenismo, como a Revolta dos Macabeus, a maioria dos
judeus se helenizou e encontrou inspiração divina na tradução grega das suas escrituras (2005, p.109).

O evangelho de Lucas e o livro de Atos – algumas provocações iniciais


Para quem o autor do evangelho de Lucas (e também de Atos) está escrevendo? A um certo Teófilo,
cujo nome é bastante significativo – aquele que ama (filo) a Deus (Teo). Será que já paramos para pensar que o
2 Há um documento judaico (Yad, 4.6) em que é feita uma crítica feita pelos saduceus no século I: “Nós clamamos contra
vós, fariseus, pois dizeis que as Sagradas Escrituras fazem as mãos impuras enquanto os livros de Homero não fazem as
mãos impuras”.

11
texto pode ter sido escrito para todo aquele que ama e quer conhecer a Deus e que Teófilo é apenas um
expediente literário criado pelo autor para aproximar os leitores e dar aos escritos a aparência de uma carta,
como era o modelo historiográfico grego? Fica a dica!

Vejamos alguns modelos gregos que a história nos apresenta – Políbio (c.203 a.C.–120 a.C.), Cícero (106
a.C.–43 a.C.) e a Carta de Aristeas (texto que varia em sua datação entre o século II a.C. e I d.C. e que registra o
momento em que foi feita a Septuaginta, tradução do texto hebraico da Torah para a língua grega, a koiné, ja
no período helenístico) e também os prólogos de Lucas e de Atos:

Tendo, pois, muitos empreendido pôr em ordem a narração dos fatos que entre nós se cumpriram, 2
Segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra, 3
Pareceu-me também a mim conveniente descrevê-los a ti, ó excelente Teófilo, por sua ordem, havendo-me já
informado minuciosamente de tudo desde o princípio; 4 Para que conheças a certeza das coisas de que já estás
informado (Lucas 1:1-4).

Fiz o primeiro tratado, ó Teófilo, acerca de tudo que Jesus começou, não só a fazer, mas a ensinar, 2 Até
ao dia em que foi recebido em cima, depois de ter dado mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que
escolhera; 3 Aos quais também, depois de ter padecido, se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas,
sendo visto por eles por espaço de quarenta dias, e falando das coisas concernentes ao reino de Deus (Atos
1:1-3).

Políbio (Histórias, 3,32):

Não é muito mais fácil adquirir e ler os quarenta livros desta obra, todos concatenados por um fio
condutor único, e assim seguir os eventos na Itália, na Sicília e na Líbia desde a época de Pirros até a captura de
Cartago (...), todos expostos com clareza, do que ler ou possuir as obras de autores que descrevem episódios
esparsos? (...) Na realidade, sustento que a parte fundamental da História é o exame das consequências tanto
remotas quanto imediatas dos eventos, e acima de tudo o de suas causas.

Cícero (De oratore, 2,15) e Dioniso de Halicarnasso também se pronunciam sobre a visão epistemológica da
historiografia desde os antigos e este último nos diz que a história deve:

“procurar as causas do que se passou, as modalidades das ações e das intenções dos que agiram, e o
que aconteceu devido ao destino” (Antiguidades Romanas, 5,56.1). O cerne da semântica grega de história é
pesquisa, investigação: a historiografia grega é, pois, uma busca de causalidades a respeito dos assuntos
tratados (MARGUERAT, 2003, p.24).

Filócrates: posto que a informação da entrevista que tivemos com Eleazar, o sumo sacerdote dos
judeus, é de teu interesse; porque gostas de ouvir com todo detalhe o conteúdo e o objeto da embaixada, me
propus expô-lo a ti com clareza, cônscio da tua ânsia de saber. Com efeito, o melhor para o homem é aprender
e receber sempre algo, seja por narrações históricas ou por própria experiência. Desta maneira se consegue
pureza de espírito para assimilar o melhor; e inclinando-os para o mais importante, a piedade, governamo-nos
por uma norma que não erra (Carta de Aristeas, I, 1-2).

O historiador – o modelo grego de contar a história


É nítida a forma de Deus trabalhar na história através dos escritos de Lucas – lemos e ouvimos aquilo
com o que nos identificamos, porque isso é agradável a nós. Se pensarmos que a comunidade dos primeiros
séculos da era cristã – inclusive os judeus – em todo o mundo conhecido lia e falava a koiné – um grego
comum, e que todo mundo conhecia um pouquinho das bases da cultura pela qual Alexandre Magno se
apaixonara três séculos antes, poderemos entender qual terá sido o plano de Deus através da vida e dos
escritos do autor da obra lucana.

Há um autor bem conhecido na literatura grega e que escreveu na época do imperador romano Marco
Aurélio (121-180 d.C.). Seu nome era Luciano e ele vinha de uma cidade chamada Samósata. Luciano tinha uma
cultura riquíssima, mas se irritava com as bajulações que se fazia em sua época para contar as histórias acerca
dos reis e imperadores. Por isso, ele fez um panfleto denominado Como se deve escrever história, a fim de
lembrar como os historiadores do passado fizeram e que regras ditavam se um escrito era histórico ou não.
Assim, temos o “código” de Luciano (166-168 d.C.).

Willem van Unnik, em seu livro Luke’s second book and the rules of Hellenistic Historiography, 1979
(apud. MARGUERAT, 2003, p.25), formalizou as dez regras do código do historiador greco-romano com base
em Como se deve escrever história de Luciano:

12
1) escolha de um assunto nobre;

2) utilidade do assunto para os destinatários;

3) independência de espírito e ausência de parcialidade, numa palavra, do autor;

4) boa construção do relato, particularmente no início e no fim;

5) coleção adequada do material preparatório;

6) seleção e variação no tratamento das informações;

7) disposição e organização corretas do relato;

8) vivacidade na narrativa;

9) moderação nos detalhes topográficos;

10) composição de discursos adequados ao orador e à situação retórica (van UNNIK, 1979, p.37-60).

O autor de Lucas-Atos cumpriu à risca oito dessas regras. Mas é importante falarmos das “regras não
observadas”. As duas regras – números um e três, dizem, respectivamente, ao assunto tratado e à
imparcialidade do narrador. Quanto à primeira, aos olhos de Luciano, o historiador clássico trata da história
política ou militar, narra a vida dos generais e imperadores, ou seja, dos heróis de batalhas. O relato lucano não
aponta para isso. O mesmo ocorre quanto à regra terceira – Lucas é parcial ao defender o povo judeu quanto
à cultura, ao caráter, aos exemplos dados,...

O homem de letras: seria o evangelho de Lucas uma tragédia grega? Com lições
morais? E as situações em Atos de Ananias e Safira, Barnabé e Paulo?
Uma das características mais marcantes da tragédia grega é o apontamento, pelo oráculo, logo no
início da peça, do que irá acontecer no final e que já começa a provocar temor e piedade ao espectador 3. Assim
como na história de Édipo, que mataria o próprio pai – isso era o que o oráculo dissera a Laio, seu pai, que
tentou impedir de todas as formas que tal acontecesse, assim também é no evangelho de Lucas que o anjo dirá
a Maria: uma espada transpassará o teu coração, já prevendo a morte de Jesus e como ela sofreria por ser sua
mãe. Por mais que Maria pudesse tentar evitar, as palavras do anjo se cumpriram!

Ainda, é importante lermos a narrativa de Barnabé, Ananias e Safira no livro de Atos 4,36–5,11. O
autor, além de tomar elementos da tragédia grega, como o pathos (a paixão - sofrimento) e o phobos (o
temor), reelaborando-os para sua comunidade ouvinte-leitora, faz a releitura de um modelo literário ao modo
do ensino grego de Homero e de Platão, reforçando o feio repulsante, as coisas feias – na apresentação e no
desenvolvimento cuidadosamente construído e detalhadamente desvelado dos personagens Ananias e Safira,
em oposição ao ideal, ao perfeito, às coisas belas – o kalón te kai agathón, que toma corpo na figura de
Barnabé, o filho da consolação, ícone da generosidade na comunidade da Igreja nascente, possuidor,
juntamente com apenas mais um exemplo em todo o Novo Testamento (José de Arimateia, Lc 23), do título de
homem nobre (anér agathós), registrado em Atos 11,24.

A obra lucana, por sua vez, constitui-se de vários homens e mulheres bons, ligados ao campo
semântico da economia, como se uma série de ‘Barnabés’ fosse se repetindo e tomando corpo. Em Lucas,
temos Lázaro, em contraste com o rico; o bom samaritano, em oposição ao levita e ao doutor da lei; a oferta da
viúva pobre, que denuncia aqueles que davam do que lhes sobejava; o publicano que, após sua oração de
confissão, saiu justificado, não como o fariseu, que em nada mudou seu comportamento, Zaqueu que, após o
encontro com Jesus4 e um certo José5 que é chamado de homem bom, assim como José Barnabé em Atos. Para
acirrar a discussão a respeito do dinheiro e da generosidade, fica a pergunta do homem rico a Jesus 6: Bom
mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna? Ao que Jesus o interpela: por que me chamas bom? E

3 “O temor e a piedade podem, realmente, ser despertados pelo espetáculo e também pela própria estruturação dos
acontecimentos, o que é preferível e próprio de um poeta superior. É necessário que o enredo seja estruturado de tal maneira
que quem ouvir a sequência dos acontecimentos, mesmo sem os ver, arrepie-se de temor e sinta piedade pelo que aconteceu;
isto precisamente sentirá quem ouvir o enredo do Édipo” (ARISTÓTELES, Poética, 1453b5-10).
4 Respectivamente Lucas 16,19-31; 10,25-37; 21,1-4; 18,9-14.
5 Referimo-nos a José de Arimateia, chamado, como Barnabé, de homem nobre em Lc 23,50.
6 Em Lucas 18,18-23.
13
complementa apontando ao jovem que o repartir tudo que possui com os pobres é o maior voto de obediência
à lei.

. Um parêntese – as parábolas de Lucas


Passando a um tempo mais remoto, chegamos ao século VI a.C. e à obra fabulística grega, de que mais
se tem conhecimento, sob o nome de Esopo 7. Quanto à forma e à temática e de modo geral, como as
parábolas, as fábulas constituem uma breve narrativa alegórica, de caráter moralizante e didático, em que as
personagens apresentam situações cotidianas, das quais podem ser extraídos paradigmas de comportamento
social. Em nível sintático e mais individual, a construção feita a partir de personagem + um tal ou um certo8
reflete o modo como Esopo, em suas fábulas, traz vida aos protagonistas das mesmas. Assim como nas
parábolas do evangelho de Lucas, pelo menos quatro fábulas esópicas trazem exatamente a fórmula Um certo
homem.

Excurso em Atos – um pouco de Barnabé, modelo de generosidade e discipulador de


Paulo (alguns reflexos da cultura grega)
É importante assinalar que a culminância do valor de Barnabé para a Igreja nascente, apresentada no
texto de Atos dos Apóstolos, dá-se em 11,24, ao ser o personagem nomeado como um homem nobre. No
entanto, o texto que descortina toda a nobreza do personagem e a destreza do autor em construí-lo como um
modelo literário de comportamento para os ouvintes-leitores encontra-se em 4,32–5,11: estabelece-se o
confronto Barnabé x Ananias e Safira e há um resultado trágico no texto, confirmando a assertiva aristotélica
na Poética – piedade e temor são produzidos a partir do que ocorre com o casal que tenta imitar o modelo por
dissimulação. Automaticamente, são considerados anti-modelos.

A figura de Barnabé, introduzida no capítulo quarto de Atos dos Apóstolos é, no mínimo, interessante –
Barnabé é um modelo de generosidade e abertura ao diferente, ao discriminado, ao que ninguém quer acolher.
Assim começa e termina sua participação no texto de Atos. Este homem da comunidade primitiva, chamado
José e apelidado “filho da consolação”, tem como marca identitária as duas características apontadas acima e é
alguém altamente respeitado na comunidade.

Sua entrada na narrativa de Atos é precedida da vida em comunhão da comunidade primitiva 9 e


sucedida pelo ocorrido com Ananias e Safira 10. À frente, sua saída se dá quando há uma desavença com Paulo
ao preferir acompanhar o jovem João Marcos àquele – o que, dentro do mundo do texto, era um absurdo para
Paulo, já que o jovem os abandonara na última viagem que fizeram 11. Este é o resumo do personagem. Barnabé
é um discipulador nato à moda grega.

O epíteto Barnabé – filho/ homem da consolação – pode ter sido atribuído por um fato registrado em
Atos 11,26: “foi em Antioquia que pela primeira vez os discípulos foram designados com o nome de ‘cristãos’”.
Em fontes não-cristãs do século I, os nomes “Cristo” ou “Chrestus” e “cristãos” não eram uma boa referência,
pois estavam ligados a tumultos e crimes em Antioquia, segundo os relatos de Suetônio e de Tácito 12.

Se tais fontes estão corretas, é simples perceber porque justamente Barnabé, um experiente judeu-
cristão da diáspora, foi enviado à Antioquia. Os líderes fundadores locais, acusados de sedição e envolvidos
com um povo que também o seria, devem ter fugido, deixando para trás os convertidos. A igreja de Jerusalém
tomou conhecimento do fato e enviou Barnabé, não para inspecionar ou corrigir, mas trazer estabilidade a uma
comunidade fragilizada e amedrontada, que certamente precisava ser “consolada”. Se o epíteto “filho da
consolação” foi-lhe dado por seu caráter e comportamento, a ida a Antioquia pode ter sido a causa ou a
consequência da origem do mesmo13.

7 Ao que tudo indica, terá sido Esopo quem criou a tradição literária da Fábula nas literaturas ocidentais, visto que, desde o
século III a.C., todos os compiladores anônimos lhe atribuíam a autoria dos textos fabulísticos que reuniam, até que o
fabulista latino Fedro (no século I d.C. em Roma) e o poeta grego Bábrio (no século III d.C. na Grécia) elevaram finalmente
à categoria de arte literária o gênero fabulístico (SOUSA, 2002, p.LIII).
8 São elas: O cão convidado ou O homem e o cão, O cavalo e o jumento, O homem que quebrou uma estatueta e O
homicida.

9 4,32-35.
10 5,1-11.
11 Atos 15, 36-41.
12 “(Cláudio) expulsou de Roma os judeus que constantemente provocavam desordens por instigação de Chrestus”
(Suetônio, Cláudio, 25,4; cf. Nero 16; “Nero puniu os culpados que, odiados por seus atos vergonhosos, o populacho
chamava de ‘cristãos’. O autor desse nome, Cristo, fora executado pelo procurador Pôncio Pilatos, durante o reinado de
Tibério” (Tácito, Anais, 15,44,2). Apud. MURPHY-O’CONNOR, 2004, p.159-160.
13 MURPHY-O’CONNOR, 2004, p.159-160.
14
Barnabé parece ser alguém que está em segundo plano à primeira vista ou à primeira lida; no entanto,
ele é estritamente necessário. Sem a sua presença, nem Paulo teria se aproximado como convertido da Igreja
Primitiva, tampouco suas viagens missionárias teriam acontecido, segundo a narrativa de Atos. Paulo fora antes
o perseguidor da Igreja e consentira na morte de um de seus líderes – Estevão 14. Obviamente, ninguém
acreditava que Paulo havia se convertido ao cristianismo nascente e isso fica bem claro quando o autor de Atos
mostra o temor de Ananias em ir encontrar Paulo 15. Na igreja de Jerusalém, todos temiam Paulo porque
conheciam de antemão a sua “fama” e não acreditavam que ele se convertera.

Na sequência, a narrativa aponta que Barnabé, “tomando-o consigo, levou-o aos apóstolos e contou-
lhes como Paulo vira o Senhor e este lhe falara e como em Damasco pregara ousadamente em nome de
Jesus”16. Somente a partir desta intervenção de Barnabé – após ser ouvido e atendido pela liderança da igreja
local (os apóstolos) –, Paulo passou a “andar com eles em Jerusalém, saindo, entrando e pregando...” 17.
Percebe-se, assim, que Barnabé é uma peça chave dentro do livro de Atos para que toda a narrativa se
desenrole e Paulo seja inserido na mesma.

Assim como o relato da inserção de Paulo em Jerusalém, a saída de Barnabé da narrativa de Atos
continua a demonstrar generosidade e acolhimento. Consolação àquele que foi incompreendido. Enquanto
Paulo recusa-se a levar à segunda viagem missionária João Marcos, porque este não completara a primeira
viagem, desembarcando em Perge, na Panfília18 e deixando os companheiros, Barnabé o compreende e
prefere-o a Paulo, percebendo qual dos dois, naquele momento, necessitava mais dele. Essa percepção faz de
Barnabé um homem sensível, maduro e centrado. Assim devemos ser – aprender a perceber quando e quem
precisa de nós.

O texto de Atos menciona que Barnabé volta para Chipre com João Marcos e o novo companheiro de
Paulo passa a ser Timóteo. Entretanto, a figura de Barnabé fica nas entrelinhas do discurso de Paulo em suas
cartas. Um dos exemplos se encontra na primeira carta aos Coríntios 19, na qual Paulo expõe aos fiéis a questão
sobre os direitos dos apóstolos.

Embora Barnabé não o tenha acompanhado em Corinto, ele aparece no verso 6, tendo salientada sua
posição como missionário de renome, comparável à dos outros apóstolos, como Pedro 20. A natureza da alusão
sustenta que Paulo conhecia a atitude de Barnabé com relação ao apoio financeiro, porque tinham trabalhado
juntos antes em Antioquia21 e ressalta mais uma vez sua característica principal – a generosidade.

O episódio que melhor fornece informações acerca da generosidade, no plano econômico, de Barnabé,
é o que ocorre em Atos 4,32–5,11. Segundo William Kurz, Atos provê um exemplo que constitui um balanço
positivo e um negativo: Barnabé e Ananias e Safira. O modelo de doação – Barnabé obviamente –, encarna a
generalização do narrador de que não havia nenhum necessitado entre aqueles que criam, mas os que
possuíam campos os vendiam e punham aos pés dos apóstolos. Logo após essa afirmação generalizante, o
narrador introduz Barnabé como exemplificação. Nenhum dos incidentes tem um narrador que intervém na
narrativa, mas um que implicitamente foca a atenção na natureza paradigmática, tanto dos bons como dos
maus exemplos22.

O narrador enaltece o modelo positivo: a generosidade de Barnabé, que servirá como inspiração para o
ouvinte-leitor. Em seguida, tem-se a narração, em uma antítese construída bem ao modelo homérico, do
modelo negativo: a não-generosidade do casal que, em conivência, dissimula, tentando ser o que não são, isto
é, assumindo uma postura e um lugar que a eles não pertence. Abandona-se a verdade de Barnabé, pois eles
“mentem ao Espírito Santo. Resultado: Ananias e Safira são fulminados, causando temor a todos os presentes
na cena em questão.

Pode-se notar que o autor de Lucas-Atos conhece o conceito aplicado ao homem de bem, àquele que
possui nobreza de caráter e influencia positivamente na sociedade em que está inserido. Ele utiliza a expressão

14 Atos 7,54-60.
15 Atos 9,10-17.
16 Atos 9,27.
17 Atos 9,28-29.
18 Atos 13,13.
19 1 Coríntios 9.
20 1 Coríntios 9,5.
21 MURPHY-O’CONNOR, 2004, p.109.
22 KURZ, 1991, p.187.
15
anér agathós, em ambos os textos23, e em situações de similaridade interessante. O primeiro para José de
Arimateia24:

50
E eis que um homem por nome José, pertencente ao conselho [e] homem de bem e justo, 51 – este
não estava consentindo no conselho e nos atos dos outros – , proveniente de Arimateia, cidade dos
judeus, que esperava o reino de Deus,

E o segundo para José Barnabé25:

E foi ouvida a palavra aos ouvidos da igreja que estava em Jerusalém acerca destas coisas e enviaram
Barnabé [a passar] a Antioquia. […] porque ele era um homem bom e pleno do Espírito Santo e de fé. E
agregou-se uma multidão sem número ao Senhor.

Dois pontos chamam a atenção do ouvinte-leitor da obra lucana. Primeiramente, os dois possuem o
mesmo nome: José. Ao primeiro, acrescenta-se-lhe o genitivo de origem pátria – de Arimateia – a fim de
diferenciá-lo de outros Josés e especificá-lo; ao segundo, o epíteto Barnabé dado pelos apóstolos não somente
é acrescentado ao seu nome, mas é por este epíteto que ele passará a ser designado em todo o texto de Atos e
nas cartas de Paulo, bem como na tradição cristã.

Em segundo lugar, ambos eram pessoas com alguma proeminência na comunidade: José de Arimateia
pertencia ao conselho dos cidadãos, e era economicamente bem sucedido, pois possuía um túmulo que
comprara. Barnabé é, também, um mestre, o primeiro na relação dos mestres da comunidade de Antioquia26,
portanto, recebera uma educação esmerada e possuía, pelo menos, um campo fértil, que vendera e cujo preço
depositara aos pés dos apóstolos. Estes dois pontos, basicamente, caracterizam o homem de bem ou o homem
nobre lucano.

Além de um homem bom, Barnabé também é eleito com mais dois personagens de Atos, a ser pleno do
Espírito Santo, o que faz dele alguém muito especial e valioso na trama e aos olhos do autor e do ouvinte/leitor
e, ainda, corrobora e reitera Atos 4,36-37, como se lhe fosse uma espécie de culminância de tudo que até aqui
ele representou. Os outros dois personagens que recebem o título de plenos do Espírito são Estevão, o judeu
helenista e primeiro mártir27, e Paulo28, a quem será dedicado todo o texto de Atos após a separação de
Barnabé.

Ainda, o episódio ocorrido na Licaônia, no qual Barnabé é comparado a Zeus e Paulo a Hermes 29 é
emblemático quanto à inter-discursividade em Atos. Quanto a Barnabé – o ser comparado a Zeus, o pai dos
deuses, contribui para reforçar sua autoridade sobre Paulo e até mesmo sua proteção em relação ao
companheiro de missão e o fato de ser mais velho, um homem maduro. Não nos esqueçamos de que o olhar
do outro refletido na narrativa de Atos determina quem é Barnabé, isto é, a identidade deste se dá através de
uma característica que lhe é peculiar.

Fica o questionamento: até que ponto o personagem Barnabé é visto pelo olhar do autor de Atos para
ser comparado a Zeus, o ‘pai dos deuses e dos homens’ neste relato? Seria ele uma espécie de ‘pai’ 30 para
Paulo inicialmente, como o será para a comunidade de Antioquia e para João Marcos mais tarde dentro da
narrativa? De acordo com a ênfase em Atos e a que o próprio Paulo dá em suas cartas quanto à liberalidade e à
generosidade nas comunidades da Igreja Primitiva, o alto valor de Barnabé está atrelado a esta peculiaridade

23 Em todo o Novo Testamento, somente há estas duas citações para a fórmula homem de bem (anér agathós).
24 Lucas 23,50-51.
25 Atos 11,24.
26 Atos 13,1.
27 Atos 6,5.10; 7,55.
28 Atos 9,17.
29 Atos 14,10-18.
30 Não nos esqueçamos de que Platão, ao apontar na República o homem ideal que deveria governar a polis adota uma
regra em 412c: governantes mais velhos; governados mais novos! Ainda, Plínio, o Jovem, na Carta a Tito Aristo, traz à baila
um antigo costume de instrução pelo exemplo de um pai ou figura equivalente: nos tempos antigos era uma regra
estabelecida que os romanos deveriam aprender de seus anciãos não apenas por seus preceitos, mas por seus exemplos;
os princípios nos quais eles mesmos deveriam um dia agir, e então por sua vez, eles deveriam transmitir à geração mais
nova. O pai de uma pessoa mais jovem servia como instrutor e se aquele fosse órfão, alguma pessoa de dignidade supriria
o lugar do pai. Desta forma, eles eram ensinados pelo método mais seguro da instrução: o exemplo (apud. KURZ, 1991,
p.172).
16
do personagem. Deste modo, reitera-se a possibilidade da figura de Barnabé como modelo histórico-literário a
ser seguido pela primeira comunidade receptora de ouvintes/leitores do texto 31.

PAULO, SUA VIDA, SUAS CARTAS

Estudar o apóstolo Paulo é aprender um pouco sobre nós mesmos, nossos questionamentos,
nossas dificuldades, nossos dons e nossa maneira de pregar o evangelho de Jesus em sua forma mais
pura. Estabelecer um “retrato” de Paulo não é obra fácil, é preciso cruzar as informações de Atos dos
Apóstolos e das chamadas Cartas Paulinas, que apresentam, cada uma, uma faceta da personalidade
deste homem que cumpriu o chamado de Jesus de anunciar a mensagem de salvação, viajando pelos
mares Mediterrâneo e Egeu, andando pela via Egnatia e por outras estradas guardadas pelos legionários
do Império Romano, fixando-se nas cidades por algum tempo, fazendo amigos e às vezes deixando de
estar com eles. Esse homem que estudou a cultura grega e conhecia muito bem a sua cultura – judaica –

, viu um homem morrer por sua fé (At 7), tornou-se cego por um momento para poder enxergar o
Senhor (At 9,1-9) e descobriu o valor de uma verdadeira amizade para alguém que está começando a
seguir os passos de Jesus (At 9,26-30). Estes três fatos podem ter marcado sua vida para sempre.
Entremos, pois, no fascinante mundo de Saulo/Paulo, o menor dos apóstolos.

Paulo e as Cartas

O nome de Paulo aparece como autor de 13 Cartas do Novo Testamento, escritas a diferentes
comunidades, ao longo de uns cinquenta anos. Não sabemos ao certo quem e como se fez a coleção do
chamado “Corpus Paulino”. Esta coleção contém as Cartas “proto-paulinas” – ou seja, as autênticas, as
que ele próprio escreveu – e as dêutero-paulinas, escritas talvez pelos seus discípulos. São proto-
paulinas: Romanos, Gálatas, 1 Tessalonicenses, 1 e 2 Coríntios, Filipenses e Filemon; as dêutero-
paulinas – escritas entre 70 e 100 – são as “Cartas Pastorais” – 1 e 2 Timóteo, Tito – e as restantes:
Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses. Ao todo, treze Cartas. No fim do séc. II, a coleção das treze
“Cartas de Paulo” (lista que incluía frequentemente Hebreus) estava feita e era aceita em toda a Igreja
como Palavra de Deus (ver 2 Pe 3,15-16).
Paulo escritor?

Paulo não foi primariamente um escritor, mas um rabino convertido na célebre “Visão de
Damasco” (1 Co 9,1; 15,8; Gl 1,12.16) que, de tão importante, é registrada por três vezes pelo autor de
Atos (At 9,1-19; At 22,4-21; At 26,9-18). Paulo percorreu muitos milhares de quilômetros, anunciando
de cidade em cidade o “Evangelho” da morte e ressurreição de Jesus. Não lhe interessou narrar a vida
de Jesus nem sequer os seus milagres. As Cartas eram o único meio ao seu alcance para comunicar
com as comunidades recentemente formadas. Entre as Cartas autênticas de Paulo estão, assim, os
primeiros escritos cristãos que chegaram até nós.

Há, pois, uma íntima relação entre as Cartas e a geografia das primeiras comunidades cristãs
dos anos 50-60. Os Doze, que viviam em Jerusalém e viajaram muito pouco, na sua maioria não
sentiram a necessidade de escrever Cartas. Podiam responder oralmente às pessoas e à comunidade.
Daí o caráter geralmente circunstancial destes escritos, que não tinham propósitos propriamente
teológicos. Paulo era, antes de mais, um missionário: “Ai de mim, se não evangelizar!” (1 Co 9,16). A
Carta aos Romanos é a exceção mais evidente a este respeito; e Colossenses e Efésios preocupam -se
mais com a teologia da Igreja do que com os problemas das igrejas.

Tudo isto manifesta quais eram os problemas e as necessidades das primeiras comunidades cristãs,
tanto judaicas como helenistas, às quais Paulo respondeu a partir do Evangelho. Um exemplo de tudo
isto é o fato de Paulo falar apenas uma vez da Eucaristia (1 Cor 11,17-34), para responder aos abusos
que havia na comunidade de Corinto.

31 Carlo M. Martini (2000, p.69) diz-nos que Barnabé foi o que procurou, compreendeu e sustentou Paulo. Foi o amigo, o
pai espiritual, o mestre do apostolado e o que sem reservas acolheu Paulo. Martini aponta que o verbo “acolher” é o mesmo
usado quando Jesus toma Pedro pela mão para que não afundasse em meio à tempestade (cf. Mt 14,31).
17
Gêneros literários e Estrutura

Pelo que acabamos de referir, as Cartas de Paulo encerram gêneros literários bem diferentes: desde o
tratado teológico sobre a fé, da Carta aos Romanos, até ao simples bilhete a Filemon, passando pela
multiplicidade temática de 1 e 2 Coríntios. Estes gêneros literários devem-se sobretudo ao
circunstancialismo das suas Cartas, mas também ao temperamento arrebatado de Paulo, unido à sua
espiritualidade de convertido. Não podemos ainda esquecer os métodos da exegese rabínica em que
Paulo era mestre, por ter frequentado a escola de Gamaliel, assim como a linguagem própria de um
1
semita. Por tudo isto, utiliza frequentemente a linguagem da diatribe cínico-estoica e da antítese e do
exagero semita (ver Gl 3,19; 1 Cor 2,2). As grandes antíteses de conteúdo teológico de Paulo são:
Vida-Morte, Carne-Espírito, Luz-Trevas, Sono-Vigília, Sabedoria-Loucura da Cruz, Letra-Espírito,
Lei-Graça (2 Cor 3,1-16).

As Cartas de Paulo têm uma estrutura própria deste gênero literário:

Saudação. Paulo dirige-se a determinada comunidade cristã e a saúda, por vezes longamente,
desejando-lhe os bens cristãos em que aparece, com frequência, a fórmula trinitária. Nesta saudação
encontra-se já um resumo da fé cristã.

Corpo da Carta. Aqui desenvolve a sua doutrina, faz as suas exortações e responde aos problemas e
questões da comunidade. Esta parte constitui a quase totalidade da Carta e mostra-nos qual o seu
objetivo.

Conclusão. Por vezes, é bastante extensa e contém várias saudações e ações de graças de origem
litúrgica (ver Fp 4,2-23).

Estrutura das igrejas

Uma estruturação – ainda que incipiente – da Igreja, mediante os bispos, presbíteros e diáconos,
presente sobretudo nas Cartas Pastorais, mostra a necessidade que a Igreja tinha de sobreviver às
tempestades, de ultrapassar a idade da infância, em que se sentia a proteção e o acompanhamento dos
“pais” fundadores das comunidades. Esta estruturação das igrejas cresce na medida em que diminui a
tensão à volta do tema da Vinda do Senhor, nos tempos escatológicos, e na medida em que é
ultrapassada a época do Kerigma (mensagem, pregação, anúncio ou proclamação) e chega ao seu fim o
tempo do carisma dos primeiros evangelizadores. Por isso, 2 Tessalonicenses recrimina os que
propalam uma vinda imediata do Senhor (2 Ts 2,1-12).
Teologia

O conteúdo teológico das Cartas de Paulo é variado: escatológico, ou seja, a doutrina que se
refere aos últimos acontecimentos da História da Salvação; soteriológico, sobre o papel de Deus e do
crente na salvação, por meio de Cristo; cristológico, o lugar central de Cristo na realização do plano
salvador de Deus; eclesiológico, o papel que Deus confiou à Igreja, por meio de Cristo, para a
realização do seu plano de salvação integral da humanidade. Paulo elabora ainda a tradição pela
instrução (“parádosis”), a partir de temas tradicionais do judeo-cristianismo ou do helenismo. Recolhe
hinos, por exemplo, imprimindo-lhes um cunho pessoal. A sua teologia está em contínua elaboração.
Por isso, não podemos esperar dele uma teologia plenamente estruturada, nem no seu conjunto nem
acerca de qualquer tema especial.

O modo como Paulo utiliza o Antigo Testamento é sentido da sua formação rabínica. Nas 13
Cartas encontramos 76 citações formais introduzidas com as fórmulas próprias: “Como diz a
Escritura”, “Como está escrito”. Algumas citações do AT são feitas com grande liberdade (Rm 10,18:
Sl 19,4; Ef 4,8: Sl 68,18), como acontece, por vezes, no Evangelho de Mateus. Outro processo de

18
interpretação é partir retrospectivamente de Cristo para o AT, fazendo uma interpretação de Cristo
como novo Adão (Rm 15,12) ou novo Moisés (1 Co 10,2). Neste caso, o Antigo Testamento está
repleto de figuras e profecias do Novo. Isto coloca-nos uma questão:
Como Paulo conheceu Cristo e o Cristianismo?

Depois da sua conversão, Paulo viveu certamente nalguma ou em várias comunidades cristãs, de
Damasco ou da “Arábia” e viveu com os Apóstolos (Gl 1,15-24). Aí recebeu oralmente as instruções
necessárias e conheceu coleções escritas ou orais de “Palavras do Senhor”. Por isso, na sua
argumentação, Paulo distingue as palavras do Senhor das suas próprias palavras ou opiniões acerca da
indissolubilidade do matrimônio, da virgindade (1 Co 7,10.25) e da retribuição dos ministros do
Evangelho (1 Co 9,14; ver 1 Tm 5,18). Outras vezes transmite quase textualmente a doutrina dos
Evangelhos que, nessa altura, ainda não circulavam por escrito (1 Co 11,23-25) e textos dos Sinópticos
sobre a instituição da Eucaristia, a Ceia do Senhor: Rm 12,14-18 e Mt 5,38-39; 1 Co 6,7 e Mt 5,39-42;
Rm 13,1-7 e Mt 22,15-22; Mc 12,13-17; Lc 20,20-26. A grande preocupação de Paulo consiste em
levar o Evangelho, pregado no ambiente da Palestina, para o mundo greco-romano. Por isso, as suas
Cartas representam o primeiro e o maior esforço de “inculturação do Evangelho”. A passagem da
cultura semita para a cultura helenista se deve, sobretudo, a Paulo, que levou o Evangelho anunciado
por Jesus de Nazaré até às mais remotas regiões do Império Romano. Isto não quer dizer que Paulo
tivesse em menor consideração a igreja de Jerusalém e a doutrina da tradição por ela veiculada (ver Gl
2,2). A sua “visão de Damasco”, não se opondo à doutrina tradicional, apenas justifica o seu
“Evangelho”, isto é, o novo sistema de justiça fundado sobre a fé e não sobre as obras da Lei,
interpretadas no sistema farisaico, que era o seu, quando era rabino (Gl 3,23-24).

Teologicamente falando, os escritos de Paulo só se compreendem por esta sua mudança de


campo: assimilou o sistema teológico dos cristãos de origem helenista, que antes perseguia, e começou
a pregação contra o sistema judaico, que antes seguia com rigor de fariseu. Os próprios judeo-cristãos
de Jerusalém foram certamente poupados na sua “perseguição” ao Cristianismo nascente, porque
salvavam a relação umbilical entre Cristo e Moisés e não pareciam a Paulo mais do que um “desvio”
farisaico. Esta inculturação do Evangelho na cultura helenista – tipicamente citadina – levou
Paulo,homem da cidade, a utilizar uma linguagem mais teológica e abstrata, própria do ambiente
evoluído em que pregou o Evangelho, em contraposição com a linguagem campestre utilizada por
Jesus no ambiente agrícola e pastoril da Palestina.
Paulo, por ele próprio

Sou Israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. (Rm 11,1)

“Faço-vos saber, irmãos, que o Evangelho por mim anunciado, não o conheci à maneira
humana; pois eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação de Jesus Cristo.
Ouvistes falar do meu procedimento outrora no judaísmo: com que excesso perseguia a igreja de Deus
e procurava devastá-la; e no judaísmo ultrapassava a muitos dos compatriotas da minha idade, tão
zeloso eu era das tradições dos meus pais. Mas, quando aprouve a Deus – que me escolheu desde o seio
de minha mãe e me chamou pela sua graça – revelar o seu Filho em mim, para que o anuncie como
Evangelho entre os gentios, não fui logo consultar criatura humana alguma, nem subi a Jerusalém para
ir ter com os que se tornaram apóstolos antes de mim. Parti, sim, para a Arábia e voltei outra vez a
Damasco. A seguir, passados três anos, subi a Jerusalém, para conhecer a Cefas, e fiquei com ele
durante quinze dias. Mas não vi nenhum outro apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor. O que vos
escrevo, digo-o diante de Deus: não estou a mentir. Seguidamente, fui para as regiões da Síria e da
Cilícia. Mas não era pessoalmente conhecido das igrejas de Cristo que estão na Judeia. Apenas tinham
ouvido dizer: ‘Aquele que nos perseguia outrora, anuncia agora, com
“São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também
eu. São ministros de Cristo? – Falo a delirar – eu ainda mais: muito mais pelos trabalhos, muito mais
pelas prisões, imensamente mais pelos açoites, muitas vezes em perigo de morte. Cinco vezes recebi
dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com vergastadas, uma vez
apedrejado, três vezes naufraguei, e passei uma noite e um dia no alto mar. Viagens a pé sem conta,
perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus irmãos de raça, perigos da parte dos
pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos da parte dos falsos irmãos!
Trabalhos e duras fadigas, muitas noites sem dormir, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez. Além
de outras coisas, a minha preocupação quotidiana, a solicitude por todas as igrejas! Quem é fraco, sem
que eu o seja também? Quem tropeça, sem que eu me sinta queimar de dor? Se é mesmo preciso
gloriar-se, é da minha fraqueza que me gloriarei. O Deus e Pai do Senhor Jesus, que é bendito para
sempre, sabe que não minto” (2 Co 11,22-31).
19
Paulo e a cidade

A principal diferença entre a mensagem de Paulo e a de Jesus é que a maioria das alegorias e
imagens utilizadas por Jesus nos evangelhos são sempre do campo – as aves, os lírios, a galinha, o
semeador, o pastor, envoltas no ambiente da Galileia, da Judeia e de Jerusalém. Nas cartas de Paulo,
tanto as autênticas quanto as não-autênticas, as referências são relacionadas à cidade, ao ambiente e
universo cosmopolita grego: a construção da cidade (1 Co 3,10-17; Ef 2,19-22), o atleta que se aplica
ao treinamento (1 Co 9,24-27), a carta de recomendação (2 Co 3,1-3), o mediador, tomada dos debates
políticos (Gl 3,19ss), a armadura, tomada dos jogos e dos combates bélicos (Ef 6,10-20; 1 Tm 6,11-12;
2 Tm 4,6-8), a ama de leite, tomada das divisões sociais da cidade (1 Ts 2,5-12), o ladrão e as
sentinelas (1 Ts 5,1-11), o soldado [de Cristo] (2 Tm 2,1-7), os embaixadores [de Cristo] (2 Co 5,18-21;
Ef 6,19-20), o tesouro em vasos de barro, tomada das atividades comerciais (2 Co 4,7-12).

1A diatribe (conversação) cínico-estoica é o que Paulo mais utiliza nos escritos polêmicos (Rm, 1 e 2 Cor; ver
Rm 3,3-8). Segundo este modo de falar, o autor responde a perguntas imaginárias do interlocutor. Por isso,
Paulo usa fórmulas como: De maneira nenhuma (Rm 3,4.31; 6,2.15) e interrogações permanentes (Rm 6,16;
11,2; 1 Cor 3,16; 5,6...)

20
Paulo e o mundo grego

As alusões feitas por Paulo aos autores gregos são raras e citadas de modo livre. Seu acesso à
filosofia e à literatura gregas provém do universo cultural helênico, no qual ele está plenamente
envolvido. Um exemplo disso pode ser a citação do poeta Menandro (342 a.C–291a.C) em 1 Co 15,33:
“As más conversações corrompem os bons costumes”. Paulo também faz referências aos cultos de
mistério gregos e às práticas religiosas dos gregos. Ele combate as manifestações religiosas da gnose
por meio de uma mística concreta, santa e ética. Algumas expressões tipicamente paulinas comprovam
sua mística profunda: “Estou crucificado com Cristo” (Gl 2,19-20); “Todos vós sois um em Cristo”(Gl
3,26-28); “Se alguém está em Cristo, é nova criatura” (2 Co 5,17).
Paulo e o Império Romano

Sobre o universo romano, Paulo usa a terminologia jurídica e administrativa e as expressões


oficiais do Império Romano. Ele chama os habitantes de Filipos de políteuma (Fp 1,27; 3,20), isto é,
cidadãos com plenos direitos dentro do Império Romano. Paulo também conhece as divisões territoriais
do Império Romano e usa-as corretamente: Síria, Cilícia, Ásia, Macedônia, Acaia, Ilírico e Espanha (Gl
1,2.21; Rm 16,5; 2 Co 1,16; 1 Ts 1,7-8; Rm 15,19; Rm 15,24.28).
Paulo consciente de seus limites

A estrutura física franzina, o semblante alquebrado, o temperamento explosivo e problemas de


comunicação geraram muitas críticas ao ministério de Paulo. Tendo consciência de tudo isso, diz que
“ele não é nada” (2 Co 12,11) e faz da perseverança, da humildade e dos sofrimentos as marcas
essenciais da pregação do evangelho. Ele mesmo fala de suas limitações:

1. A personalidade tímida e as dificuldades com a retórica grega: 1 Co 2,1-4


2. A presença física fraca diferente da força das cartas: 2 Co 10,9-10
3. As fraquezas comuns a qualquer ser humano: 2 Co 12,5-6

4. O espinho na carne: 2 Co 12,7-9 – que pode ser uma depressão ou angústia constante, epilepsia,
cegueira, defeito na fala, malária, enxaqueca, ou, ainda, os adversários: os ociosos em Tessalônica,
Evódia e Síntique em Filipos, os judaizantes e acomodados na Galácia, os ressentidos em Éfeso, os
místicos em Colossos, os espirituais em Corinto,...

De tudo isso, vem a resposta em graça de Deus: “o homem perfeito em Cristo”(Cl 1,28) e “a
criatura nova no Senhor Jesus”(Cl 3,10).

Sofrimentos de Paulo – o lixo do mundo

O sofrimento de Paulo se mostra em 2 Co 11,23-33 e o mais dramático está em 1 Co 4,9-13.

Vejamos também:

em Filipos: 1 Ts 2,2;

em Éfeso: 1 Co 15,32; 16,9; 2 Co 1,8-10

na Macedônia: 2 Co 7,4-5

na Galácia: Gl 4,11-15; 2 Co 12,7-10

em viagem a Jerusalém: Rm 15,31

em Roma: Fp 2,28; 4,11-13; Cl 1,24.

21
Carta aos Romanos

Foi durante o Inverno de 55-56, em Corinto, que Paulo escreveu esta carta, provavelmente a
última (16,23). Acabara de resolver os conflitos com as comunidades de Filipos (Fp 3,2-4) e Corinto (1
e 2 Co), e considerava terminada a evangelização da parte oriental do império romano: as comunidades
cristãs que fundara nas maiores cidades se encarregariam de irradiar o Evangelho para as províncias
(Rm 15,23). Assim, podia finalmente visitar os cristãos de Roma (Rm 1,13-15; 15,22-24) e seguir de lá
até à Espanha, a província ocidental do império.

Antes, porém, quer entregar aos cristãos de Jerusalém a coleta de solidariedade que, desde o
“concílio”, organizou nas suas comunidades (Rm 15,25-28; Gl 2,10). Receia, no entanto, não ser bem
aceito (Rm 15,30-32). Afinal, é em Jerusalém que mais o contestam, por não exigir que os gentios
abracem certos preceitos da Lei judaica para serem cristãos. Sabe, por isso, que a aceitação da coleta
em Jerusalém levaria, na prática, ao reconhecimento das suas comunidades; e, com uma unidade
eclesial de judeus e gentios assim obtida, seria mais fácil a missão na Espanha. Daí que a maior parte
da carta seja escrita em forma de diálogo com um judeu (Rm 2,1-5). É às dúvidas dos cristãos de
Jerusalém que se consideravam o verdadeiro Israel que ele responde.

Destinatário

Essas dúvidas eram conhecidas dos cristãos de Roma. Aí o cristianismo, levado talvez por
comerciantes vindos do Oriente, se iniciara nas sinagogas judaicas. Pelo menos foi nelas que se gerou o
conflito entre judeus e cristãos, que fez com que o imperador Cláudio, no ano 49, os expulsasse da
capital (At 18,2). Os poucos que ficaram tiveram que separar-se da sinagoga e assim sobreviver, o que
era difícil, uma vez que ainda não podiam contar com o apoio de uma estrutura eclesial organizada. Por
este fato, não admira que muitos deles se apoiaram em tradições e práticas judaicas para a santificação
do dia-a-dia, como as referentes a alimentos e à guarda do sábado. Paulo fala disso nos cap. 14-15.

Entretanto, tinha crescido o número dos que consideravam secundárias tais normas; e a minoria
dos que as seguiam era mesmo olhada com desprezo. Além disso, segundo dá a entender no cap. 16, os
cristãos estavam divididos por várias comunidades, reunidas em diferentes casas, como acontecia com
as sinagogas. Paulo dirige-se a todos na mesma carta e tenta levá-los à reconciliação e à unidade.

Motivo da carta

Só com os cristãos de Roma unidos poderá Paulo contar com o apoio, em meios e pessoas, para
a evangelização da Espanha. É por esta razão que quer visitá-los e preparando a visita lhes escreve (Rm
1,8-17; 15,22-24), baseando-se na sua condição de apóstolo dos gentios (Rm 1,1.5; 15,15-16) e com os
direitos e deveres que isso lhe dá sobre os cristãos de Roma, cuja maioria é proveniente do paganismo
(1,6.13.15); mas reconhece, ao mesmo tempo, que não tem sobre eles a mesma autoridade que teria, se
fossem uma comunidade por ele fundada (Rm 15,14-21). Assim, antes de lhes comunicar abertamente
o objetivo da visita em Rm 15,24, expõe-lhes longamente o Evangelho de que se tornou apóstolo e que
anuncia (Rm 1,18-11,36), procurando esclarecer os pontos mais polêmicos.

Divisão e conteúdo

A Carta aos Romanos poderá dividir-se em quatro partes:

Introdução: 1,1-17;

I. O Evangelho da Salvação: 1,18–11,36;

22
• Vida de acordo com o Evangelho: 12,1–
15,13; Conclusão: 15,14-16,27.
Teologia

Na primeira parte, Paulo expõe o seu Evangelho (1–11): a salvação realizada por Deus em
Cristo é universal e exclusiva; estende-se a judeus e gentios e só pode ser adquirida pela fé, já que, sem
Cristo, nem sequer os judeus estão em condições de cumprir a Lei e se salvar, assim, pelos próprios
meios (1,18–5,21). E é por causa disso que Paulo é acusado de destruir as duas realidades constitutivas
de Israel: a sua eleição, como povo de Deus, e a Lei, como norma de vida (3,1-8). Nos cap. 6–8
responde à questão sobre a Lei: a fé em Cristo não é contra a Lei, mas é mesmo o único meio que nos
torna capazes de a cumprirmos. Nos capítulos 9–11 mostra como a Igreja de Cristo, ao acolher os
pagãos, não perdeu as suas raízes no povo cuja eleição começa em Abraão; pelo contrário, só quando
todos, pagãos e judeus, aderirem a Cristo, se cumprirão plenamente as promessas de Deus.

Na segunda parte (12–16), Paulo exorta à unidade, que provém da participação comum no
amor de Cristo e se manifesta no bom relacionamento entre os de dentro e os de fora da Igreja (12–13)
e, sobretudo, na aceitação da sensibilidade e diversidade próprias de cada um (14,1–15,13). Temos aqui
o Evangelho na sua expressão prática. Rm 15,14–16,27 é a conclusão.

1ª Carta aos Coríntios

Paulo escreveu esta carta em Éfeso, durante a terceira viagem missionária, para remediar os
abusos, as divisões e escândalos de que teve conhecimento por mensageiros vindos de Corinto (1,11), e
para responder às questões que lhe foram postas por escrito (7,1). Estas circunstâncias explicam o
caráter não sistemático da carta, com a única preocupação de enfrentar as necessidades e resolver as
dúvidas dos seus correspondentes.

A comunidade

Ao longo destas páginas, desenha-se o retrato fiel de uma comunidade viva e fervorosa, mas
com todos os problemas resultantes da inserção da mensagem cristã numa cultura diferente daquela em
que tinha sido anunciada anteriormente. As questões abordadas derivam em grande parte do fenômeno
da inculturação do Evangelho em ambiente helenista. Paulo procura esclarecer, mostrando-se firme ao
condenar os comportamentos inconciliáveis, mas era compreensivo quando a fé não corria perigo.

Conteúdo

O conteúdo da 1.ª carta aos Coríntios pode resumir-se nos seguintes pontos doutrinais:
Prólogo: 1,1-9;

I. Divisões na igreja de Corinto: 1,10–4,21;

II. Escândalos na igreja: 5,1–6,20;

2. Resposta a questões concretas: 7,1–


11,1; IV. A Assembleia Litúrgica: 11,2-34;

V. Os carismas (dons): 12,1–14,40;

VI. A ressurreição dos mortos: 15,1-58;

Epílogo: 16,1-24.

23
Teologia

Os cristãos de Corinto enfrentaram várias “tentações”: reduzir a fé cristã a uma sabedoria


humana, diversificada à maneira das escolas filosóficas de então (1,10; 3,22); ceder aos imperativos de
uma ética sexual, caracterizada, ora por uma moral relaxada, ora pelo desprezo da carne, segundo as
diferentes correntes filosóficas (5,1-3; 6,12-20; 7,1-40); continuar a observar as práticas cultuais do
paganismo (cap. 8–13) e a sofrer a influência suspeita das refeições sagradas (11,21) e do frenesi
delirante de certos ritos (12,2-3). Tiveram ainda dificuldade em conciliar o mistério fundamental da
ressurreição dos mortos com as doutrinas dualistas da filosofia grega (cap. 15).

As soluções propostas estão marcadas pelas condições culturais de então e pelo concreto da
vida; mas não se reduzem a meros estudos de caso já ultrapassados, porque o gênio de Paulo, mesmo
quando desce a questões do dia-a-dia, sabe sempre elevar-se aos princípios fundamentais que lhes
asseguram perenidade e oferecer-nos uma teologia aplicada ao concreto da vida cristã. Eis aqui o
interesse e a atualidade desta carta: através dela, sentimos ao vivo o pulsar de uma comunidade cristã
muito rica, a forte personalidade de Paulo, muito consciente das suas responsabilidades, e a presença
constante do Ressuscitado que anima a comunidade e a tudo dá sentido.

2ª Carta aos Coríntios

Paulo escreve esta carta provavelmente depois de ter abandonado Éfeso e quando se encontrava
na Macedônia (2,13; 7,5), no fim do ano 56. Não é fácil reconstituir os acontecimentos que se passaram
depois da 1.ª carta; mas, quando o Apóstolo se decide a escrever esta, faz reconfortado com as boas
notícias que Tito lhe trouxera de Corinto (7,13).

Autenticidade e unidade

A autenticidade paulina desta carta é hoje comumente aceita, mas a sua unidade é objeto de
muitas discussões. Se é inegável a unidade temática em volta do apostolado cristão, são evidentes
também: as grandes diferenças entre a primeira parte, de tom afável, e a terceira, de tom severo que vai
até à ameaça; a inserção violenta do trecho 6,14–7,1 na exortação iniciada em 6,11-13 e continuada em
7,2; o aspecto de duplicado do cap. 9 em relação ao 8. Uns defendem a unidade literária, bem apoiada
pela tradição manuscrita, recorrendo à psicologia do apóstolo ou a uma lógica do discurso diferente da
nossa, para explicar as incongruências; outros veem aqui uma compilação de cartas: o trecho 6,14–7,1
poderia corresponder à carta pré-canônica (1 Co 5,8-13), o cap. 9 seria um duplicado dirigido a um
auditório mais vasto: todas as igrejas da Acaia e os cap. 10–13 seriam a carta escrita “entre muitas
lágrimas” (2,4; 7,8). As razões contra a unidade não são mais convincentes do que a hipótese contrária.

Divisão e conteúdo

Sem obedecer propriamente a um plano, esta carta divide-se em três partes claramente distintas:
Prólogo, que tem uma saudação e uma bênção (1,1-11).

I. Paulo faz a apologia do seu comportamento em relação aos coríntios (1,12–7,16). Começando por
se defender das acusações de inconstância e de leviandade que lhe fazem (1,12–2,17), sublinha, depois,
a grandeza do ministério apostólico (3,1–6,10) e termina com um apelo à confiança afetuosa dos seus
destinatários (6,11–7,16).

2. Paulo dá instruções relativamente à coleta em favor da igreja de Jerusalém (8,1–9,15).

24
• Defesa de Paulo, que faz novamente a sua apologia, em tom polêmico e cáustico, defendendo a
autenticidade do seu ministério contra uma minoria de agitadores que trabalham no seio da comunidade
(10,1–13,13).

Teologia

Escrita num estilo apaixonado e vibrante, onde abundam as antíteses e frases cheias de ritmo e
de sentido que se tornaram célebres, esta bem pode ser considerada a carta magna do apostolado
cristão, que nos informa sobre aspectos relevantes da missão de Paulo e nos revela sua alma, no que
tem de mais humano. Não tendo o valor doutrinal da 1.ª carta, dá-nos, contudo, preciosos ensinamentos
sobre as relações entre os dois Testamentos (3–4), a Santíssima Trindade (1,21-22; 3,3; 13,13), a ação
de Cristo e do Espírito Santo (3,17-18; 5,5.14-20; 8,9; 12,9; 13,13) e a escatologia individual (5,1-10).

Carta aos Gálatas

A carta aos Gálatas é uma das mais lidas e comentadas em todo o mundo cristão. E dos escritos
paulinos foi dos mais explorados por alguns grupos ou Igrejas, sobretudo em dois momentos: o da
2
polêmica de Santo Agostinho com o herético Pelágio (séc. IV) e o dos Reformadores, no debate
católico-protestante (séc. XVI).
Data e destinatários

Quem são os Gálatas? No tempo do NT, a Galácia era uma província romana da Ásia Menor,
que abrangia: a Galácia propriamente dita, a Frígia, a Pisídia e a Licaônia. Galácia, nos Atos (16,6;
18,23), distingue-se da Frígia. As igrejas da Galácia devem ter sido fundadas por ocasião da 1.ª viagem
missionária de Paulo (At 13,1–14,26). O apóstolo dos gentios escreve a carta aos Gálatas entre 55 e 57,
a partir de Éfeso ou de Corinto, depois de 1 Ts e antes de Rm, Fp e Fm.
Contexto

Na altura, nem sempre havia uma distinção clara entre judaísmo e cristianismo. Pregadores
judeus, que seguiram os passos de Paulo, vieram anunciar a necessidade da circuncisão para a salvação.
No início da Igreja, o mais sério problema que se apresentou à consciência cristã foi o da relação da
“nova doutrina” de Cristo com a Lei de Moisés, ou melhor, com o Antigo Testamento. O Antigo
Testamento, cujos cinco primeiros livros, ou Pentateuco, constituem a Lei de Moisés, ainda hoje é
venerado pelos cristãos como Palavra de Deus; mas as suas prescrições sobre o culto, os alimentos, as
doenças, etc. ver o Levítico deixaram de vigorar. Hoje, é claro que não estamos obrigados a tais
prescrições; para os primeiros cristãos, porém, o assunto não era tão claro. Tratava-se de judeus
convertidos, que continuavam a observar a Lei e a circuncidar-se. A Igreja nasceu no seio do Antigo
Testamento. Esta carta pode considerar-se uma espécie de circular, apaixonada e polêmica (5,12),
dirigida às pequenas comunidades dispersas pelo imenso território da Galácia, que estavam em situação
de crise de identidade cristã. Tratava-se da fidelidade ou infidelidade ao Evangelho, num momento em
que o cristianismo corria perigo de se converter numa simples seita judaica.
Divisão e conteúdo

O conteúdo desta carta pode resumir-se no seguinte:


Introdução: 1,1-10;

I. Origem divina do Evangelho: 1,11–2,21; II. O Evangelho faz-nos filhos de Deus: 3,1–4,7;

III. O Evangelho faz-nos livres: 4,8–5,12; IV. Vida cristã, caminho de liberdade: 5,13–6,10;
Conclusão: 6,11-18.

Teologia

A discussão acerca do anúncio do Evangelho também aos pagãos, considerados imundos pela
Lei (At 10–11; 15), foi o primeiro problema que surgiu após a Ressurreição de Cristo e do Pentecostes.

25
Depois, levantou-se o problema de se os cristãos, vindos do paganismo, estavam também sujeitos à Lei
mosaica. Divergiam as opiniões. Paulo, apesar de ser judeu da seita dos fariseus (os mais zelosos da
Lei), tornou-se o campeão da liberdade cristã ou da não sujeição à Lei, interpretada à maneira dos
fariseus. Isso lhe custou a hostilidade, não só dos judeus, mas também dos cristãos de origem judaica.
O chamado concílio de Jerusalém (At 15) não conseguira acalmar completamente os ânimos. Cristãos
de origem judaica puseram em causa a validade e legitimidade do anúncio evangélico feito por Paulo,
negando-lhe a dignidade apostólica e acusando-o de pregar um Evangelho mutilado e de anunciar um
cristianismo diferente do dos outros apóstolos de Jerusalém. Por isso, tentavam submeter os recém-
convertidos ao jugo da Lei.

Aurélio Agostinho (354-430 d.C.), embora tenha nascido num lar cristão, viveu uma vida dissoluta antes da sua conversão.
Durante nove anos foi maniqueísta, vindo a se converter à fé cristã em 386 d.C., sendo batizado em 387 d.C. por Ambrósio, em
Milão. Em 391 d.C. foi ordenado ao sacerdócio, sendo quatro anos mais tarde consagrado bispo coadjutor de Hipona. Porém, em
pouco tempo morreria o bispo Valério, e Agostinho assumiria o seu lugar, como bispo de Hipona. Mas somente em 412 d.C., é
que começa a controvérsia que dividiu definitivamente as opiniões dentro da Igreja. Ele é conhecido como um dos primeiros
defensores das doutrinas da graça no período da patrística. A discussão sobre o livre arbítrio e predestinação já se estendia antes de
Agostinho, eram assuntos conflitantes no seio da Igreja. Contudo, para o nosso objetivo sem mais delongas, basta dizer que em
Agostinho o assunto foi definido quando ele sumarizou e sistematizou as opiniões já existentes, levando a Igreja a tomar uma
posição oficial, ainda que temporariamente. Quando Pelágio se fez notar dentro da Igreja Cristã, Agostinho já era uma figura
influente. Pelágio era um monge britânico que apareceu em Roma, por volta do ano 400 d.C., para refutar as doutrinas de
Agostinho. Pelágio escreveu um comentário sobre as epístolas paulinas em 409 d.C.. A sua posição teológica pode ser
denominada de “monergismo humano”, e esta foi expressa de forma mais desenvolvida pelo seu principal discípulo Celestius.
Esse “monergismo humano” de Pelágio é assim chamado porque para ele o poder da vontade humana é decisivo e suficiente na
experiência da salvação. Sua célebre frase expressa claramente essa mentalidade, quando ele afirma “se eu devo, eu posso”. A
controvérsia entre Agostinho e Pelágio, se resumia em dois pontos teológicos: a liberdade [capacidade] da vontade humana (livre
arbítrio), e na maneira como Deus opera sua graça. Quanto ao livre arbítrio, a discussão era se o ser humano é absolutamente
capaz de exercer a sua liberdade, ou não. Agostinho ensinava e defendia a doutrina “do pecado original”, e os seus inevitáveis
efeitos mortais sobre a vida de todos os descendentes de Adão. Pelágio, contudo negava tal contaminação, e afirmava a inocência
da alma, como também a absoluta capacidade de escolha tanto moral, quanto espiritual. Parte da discussão teológica envolvia o
modo como Deus opera a sua graça. Agostinho, coerentemente com sua primeira afirmação, ou seja, de que todo ser humano é
escravo do seu pecado e que o seu livre arbítrio possui uma fonte pecaminosa, morta espiritualmente, afirmava que o homem
carece absolutamente da ação graciosa de Deus em todos os seus aspectos para ser salvo, sendo exposta essa posição na doutrina
da predestinação. Pelágio, refutando Agostinho, afirmava que o homem possuí tanto o poder volitivo para
escolher ser salvo, como para desistir desta salvação. Defendia que o ser humano possui uma capacidade de
decidir o seu futuro independente da graça de Deus.

26
CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA

Foi o que aconteceu nas igrejas paulinas da Galácia. Nas pegadas do apóstolo, os judaizantes atraíram os
gálatas para a sua causa. Paulo escreveu-lhes, então, esta carta polêmica, em defesa da sua dignidade apostólica e
da ortodoxia da sua doutrina, reconhecida, pelas colunas da Igreja-mãe de Jerusalém; expõe aqui o seu
pensamento sobre as relações entre a Lei de Moisés e Cristo. Este último ponto será amplamente tratado na carta
aos Romanos, cronologicamente posterior à carta aos Gálatas.

Para o apóstolo, a Lei de Moisés foi “um pedagogo”, cuja missão era conduzir a Cristo (3, 24). Se os
cristãos continuassem a observar a Lei como necessária para a salvação, então a obra de Cristo teria sido inútil: a
salvação não nos viria por Ele, mas pela Lei. Por isso, o que nos justifica não são as obras da Lei, mas a fé em
Cristo. Partindo deste princípio, Paulo vai ainda mais longe. Esforça-se por provar aos seus adversários que a Lei
nunca justificou ninguém. O próprio Abraão não foi justificado pela observância da Lei, mas pela fé e pela
promessa. A Lei não fez mais do que manifestar o pecado, ao indicar um caminho, sem dar forças para segui-lo.
Só a Boa Nova de Cristo, que é poder de Deus para todo o que crê, justifica, porque, indicando o caminho, dá a
força sobrenatural para seguir o caminho. O grupo dos judaizantes quase desapareceu com a queda de Jerusalém,
por volta do ano 70.

Carta aos Efésios

O tom geral desta carta não está de acordo com a autoria de Paulo: é muito impessoal, faltando o estilo e a
linguagem próprios do Apóstolo. Mais que uma carta, parece tratar-se de uma espécie de homilia que utiliza o
modelo epistolar. As referências indiretas a Paulo (3,13; 5,18-22) não chegam para lhe atribuirmos este escrito.
Deve tratar-se de um documento pertencente a um autor dos círculos paulinos, que se dirige aos pagãos
convertidos ao cristianismo, fazendo-o em nome de Paulo (1,1-2).

Destinatário

Não está claro se foi escrita aos cristãos de Éfeso, grande cidade da Ásia Menor evangelizada por Paulo,
na sua terceira viagem missionária (At 19) ou aos de Laodiceia (Cl 4,16). O tom impessoal da Carta, a ausência
de companheiros do apóstolo (não se refere a nenhum) leva os estudiosos a inclinarem-se pela hipótese de uma
carta-circular dirigida às igrejas paulinas da Ásia Menor. Além disso, o nome do destinatário (a cidade de Éfeso)
falta nos códices mais importantes.

Divisão e conteúdo

A carta aos Efésios está organizada em duas partes:

Apresentação: 1,1-2.

I. A Igreja e o Evangelho (1,3–3,21):

A graça de Deus: 1,3-14;

Cristo, Senhor do mundo e da Igreja: 1,15-23;

A obra de Cristo: 2,1-22;

Lugar de Paulo no plano de Deus: 3,1-21.


27
CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA
• Exortação aos batizados (4,1–6,20): Viver na
unidade: 4,1-16;

Instruções várias: 4,17–5,20;

Cristo e a Igreja. Consequências: 5,21–6,9;

Combater inimigos espirituais: 6,10-20.

Saudação final: 6,21-24.

Teologia

Por esta época, na cristandade da Ásia Menor começavam a se propagar doutrinas judaico-gnósticas sobre
as forças espirituais, os anjos, colocando-os acima de Cristo. Com isso, procurava-se exaltar a Lei de Moisés,
pois, segundo as tradições rabínicas, ela fora promulgada por anjos. Se os anjos, que a promulgaram, eram
superiores a Cristo, também a Lei o seria, em relação ao Evangelho. Contra esta visão das coisas, Paulo expõe o
“Mistério de Cristo” na sua grandeza cósmica, enraizado no “Mistério da Igreja”. É na Igreja que Deus revela
hoje o seu plano salvador realizado em Cristo e por Cristo. A Igreja de Cristo é universal, nova Criação e Corpo
em crescimento. É nela que judeus e pagãos se encontram na unidade. A Igreja é ainda o novo povo de Deus, a
esposa de Cristo (5,21-32), por quem Ele deu a vida.
Carta aos Filipenses

Filipos era uma cidade situada ao norte da Grécia, que Filipe II da Macedônia, pai de Alexandre Magno,
agregou ao seu reino, dando-lhe o seu próprio nome. Paulo chegou a Filipos nos anos 49 ou 50, com Timóteo,
Silvano e Lucas. O mesmo Lucas, nos Atos (16,1-40), faz a narração do fato na primeira pessoa do plural, como
um dos intervenientes nele.

Comunidade

Foi em Filipos que começou a evangelização da Europa. Os judeus, sendo poucos, não possuíam aí uma
sinagoga, mas apenas um lugar de oração. Lídia, que Paulo batizou, fazia parte deste grupo. Formou-se aí uma
pequena comunidade, sobretudo de origem pagã (At 16,11-40; 1 Ts 2,2). Esta comunidade sentia-se
particularmente unida a Paulo; dela o apóstolo recebera dons (4,15; 2 Co 11,8-9), não obstante insistia no
trabalho gratuito (1 Co 4,12; 9,15; 2 Co 11,7-9; 1 Ts 2,9; 2 Ts 3,7-9). Quando a comunidade soube que ele fora
preso, em Éfeso ou em Roma, organizou uma coleta e enviou Epafrodito até Paulo para a entregar. Epafrodito,
porém, caiu doente, o que causou preocupações em Filipos. Paulo, logo que a doença o permitiu, reenviou-o a
Filipos, com esta carta (2,25-30).

Data e local

Esta é, pois, com Cl e Fm, uma das cartas do cativeiro. Parece ter sido escrita em Roma (At 28,16.30-31);
no entanto, poderá ter sido escrita num outro qualquer cativeiro (2 Co 11,23; ver 1 Co 15,32; 2 Co 1,8). “O
pretório”, de 1,13, não prova que Paulo tenha escrito a carta em Roma, pois esse termo designava também a
residência dos governadores romanos (Mt 27,27; Mc 15,16; Jo 18,28-31). O mesmo se diga da “casa de César”
(4,22). O cativeiro pode ter sido em Éfeso, onde Paulo passou dois anos (At 19,8-10). Se foi escrita nesta cidade,
a carta seria dos anos 56-57; se foi escrita na prisão de Roma, teria sido nos primeiros meses de 63.
28
CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA
Divisão e conteúdo

O conteúdo da carta é o seguinte:


Introdução: 1,1-11;

I. Prisão de Paulo: 1,12-26;

• Deveres da comunidade: 1,27–2,18; III. Solicitude


pela comunidade: 2,19–3,1;
IV. O Apóstolo, modelo da comunidade: 3,2–4,1;

Conclusão: 4,2-23.

Teologia

Esta carta não tem um pensamento teológico organizado. No entanto, sobressaem algumas doutrinas: a
comunhão fraterna entre a comunidade e o apóstolo. Apesar de estar preso, Paulo vê nestes acontecimentos
dramáticos uma fonte de esperança para o anúncio do Evangelho. Por seu lado, os Filipenses deverão ser fiéis a
Cristo perante os falsos mestres, imitando Paulo (3,2-11). Para exortar os cristãos, o apóstolo cita-lhes um hino a
Cristo, servo sofredor (Is 53), mas que Deus fez Senhor de toda a criação (2,6-11). Característica fundamental
desta carta é o tom afetuoso, que perpassa todo o texto.

Carta aos Colossenses

Colossos era uma pequena cidade da Ásia Menor situada junto de Hierápolis, entre Éfeso e Laodiceia.
Parece que nunca foi visitada por Paulo. O fundador desta igreja foi Epafras (4,12), discípulo de Paulo. A ela
pertenciam Filemon, destinatário de uma carta-bilhete a propósito do escravo Onésimo (Fm), e Arquipo (4,17). O
problema dos anjos, a que se alude na introdução da carta aos Efésios, também era aqui muito vivo. Esta carta,
cronologicamente anterior à dos Efésios dá uma primeira resposta paulina a esse problema. As qualidades, os
poderes e as funções que os judeo-gnósticos atribuíam aos anjos, atribui-os Paulo ao Cristo-Cósmico, que tem a
primazia em toda a criação e é Filho de Deus por natureza.
Destinatário

A carta foi dirigida aos cristãos de Colossos durante o primeiro cativeiro de Paulo (4,3.10.18), na última
parte do seu ministério (61 a 63). A comunidade de Colossos tinha saído do paganismo e não era conhecida
pessoalmente pelo apóstolo, embora fosse fundada por um discípulo seu. A novidade do vocabulário e dos temas
desta carta manifesta a sua originalidade em relação às outras cartas paulinas, o que se pode explicar pela
novidade do meio ambiente da comunidade de Colossos, ou por a carta não ter sido escrita diretamente por Paulo.
Divisão e conteúdo

O conteúdo da carta é o seguinte:


Introdução: 1,1-23;

• O Evangelho de Paulo: 1,24–2,5; II. Fidelidade


ao Evangelho: 2,6-23; III. Viver segundo o
Evangelho: 3,1–4,6; Conclusão: 4,7-18.

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CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA
Teologia

Os cristãos de Colossos viam-se tentados a seguir as crenças esotéricas, um misto de elementos pagãos,
judaicos e cristãos. Estas crenças atribuíam muita importância às forças cósmicas, ao poder dos anjos e de outros
seres que se colocavam entre Deus e os seres humanos e influenciavam o destino de cada pessoa. Tais doutrinas e
o recurso a práticas supersticiosas (2,16-23), preconizadas por mestres “heréticos”, levaram Paulo a proclamar
Jesus Cristo como único e universal mediador entre Deus e o mundo criado. Nele se celebrou a vitória sobre
esses poderes, à qual os cristãos se associam pelo batismo (2,6-15), que é fundamento da liberdade cristã face a
toda a sujeição (2,16-3,4). A fé em Cristo morto e ressuscitado é o único caminho que conduz à sabedoria e à
liberdade. Os cristãos, despojados do homem velho e revestidos de Cristo, pelo batismo, nasceram para novas
relações humanas baseadas na fraternidade (3,5-15).
A 1ª Carta aos Tessalonicenses

É a partir da sinagoga (At 17,2) que Paulo inicia, com bons frutos, a evangelização de Tessalônica; mas a
hostilidade judaica obriga-o a interrompê-la bruscamente (At 17,5-9). Por isso, o Apóstolo deixa uma
comunidade apenas constituída, sujeita às seduções do paganismo de que proveio, na sua maioria (1,9) e à
perseguição. Daí a inquietação manifesta pela sorte dos crentes (2,17; 3,1.5).

Contexto

Com os seus companheiros, Paulo parte para Bereia; e depois, sozinho, para Atenas e Corinto, onde se lhe
vêm juntar Silas, ou Silvano, e Timóteo (At 18,5). Timóteo, entretanto, tinha sido enviado a Tessalônica (3,1) e
traz boas notícias. É neste contexto que é escrita a 1.ª carta aos Tessalonicenses, provavelmente de Corinto e
entre os anos 50 e 52.

Teologia

Em nível cronológico, esta carta é o primeiro escrito do Novo Testamento, fato que lhe confere uma
particular importância. É uma carta colegial, quanto ao remetente e às características gerais (veja - se o uso do
plural), e eclesial, nos seus destinatários e na sua função (5,27); prolonga a obra da evangelização, que não é de
um só, mas coletiva. A tonalidade dominante é pastoral: não há polêmica, nem erros a corrigir. Com profundo
reconhecimento a Deus por tudo o que Ele realiza, Paulo encoraja os cristãos a progredir. Revela uma grande
intensidade afetiva, que é recíproca entre os missionários e os crentes. Nela sobressaem a gratidão, o entusiasmo,
a confiança, a solicitude como de mãe e pai (2,7-8.11). E comunica ao leitor a generosidade e a grandeza de alma
dos tempos iniciais, de fundação.

Divisão e conteúdo

I. Ação de graças (1,2–3,13), em 3 seções:

Saudação inicial (1,1)

Ação de graças pelo trabalho dos missionários e pela resposta dos tessalonicenses (1,2–2,16).

Missão de Timóteo, cujo êxito suscita reconhecimento a Deus (2,17–3,10).

Voto final (3,11-13).

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CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA
5. Prática cristã “no Senhor Jesus Cristo” (4,1–5,24), em 4 seções: Dois aspectos
fundamentais da vida cristã: santificação e caridade (4,1-12).

Dois aspectos da expectativa escatológica: os mortos antes da parusia e o Dia do Senhor (4,13–5,11). Outros
conselhos úteis à vida cristã (5,12-22).

Voto final (5,23-24). Saudação final


(5,25-28).

2ª Carta aos Tessalonicenses

A autenticidade da segunda carta aos Tessalonicenses é problemática. Por um lado, registram-se


numerosas semelhanças literárias entre 1 Ts e 2 Ts; há versículos que quase se repetem: 1,2-3 e 1,3; 2,12 e 1,5;
3,13 e 1,7; 3,11-13 e 2,16-17; 2,9 e 3,8; 5,23 e 3,16; 5,28 e 3,18. Por outro lado, o tom de 2 Ts é menos
apaixonado, mais solene e, sobre a vinda do Senhor (2,1-12), a perspectiva parece oposta: em 1 Ts seria
considerada iminente, enquanto 2 Ts se concentra nos sinais que devem precedê-la. Como estes ainda não
aconteceram, o Dia do Senhor não estaria próximo. Estas diferenças, consideradas fundamentais por alguns, são
por outros explicadas como complementares. Tratar-se-ia de dois aspectos coexistentes e não opostos na
apocalíptica judaica.

Época e autor

Para os defensores da sua autenticidade paulina, 2 Ts teria sido escrita pouco tempo depois de 1 Ts e
propor-se-ia corrigir interpretações erradas que 1 Ts teria suscitado na comunidade. Para os que a consideram não
autêntica, 2 Ts seria bem posterior (anos 70) e teria um autor desconhecido, o qual, servindo-se de 1 Ts,
procuraria afrontar e corrigir o clima de euforia e de psicose apocalíptica, provocado talvez pela guerra judaico-
romana de 66-70. A questão da autenticidade não retira, porém, importância a este escrito, que é uma advertência
à Igreja de todos os tempos contra a tentação de aguardar o futuro sem se empenhar em construí-lo no presente.
Divisão e conteúdo

A carta tem as partes seguintes:

Saudação inicial: 1,1-2;

I. Deus, conforto na tribulação: 1,3-12; II. A


vinda do Senhor: 2,1–3,5;

III. Vida desordenada e inativa: 3,6-15;

Saudação final: 3,16-18.

1ª Carta a Timóteo

Natural de Listra, filho de pai grego e de mãe judia, Eunice (At 16,1), Timóteo tornou-se companheiro de
Paulo, desde que este por ali passou, no decorrer da segunda viagem missionária (At 15,35-18,22). Aparece
associado a ele no endereço de várias cartas (2 Co, Cl, 1 e 2 Ts, Fm), está ao seu lado em Atenas (At 17,14-15),
em Corinto (At 18,5), em Éfeso (At 19,22) e é um dos portadores da coleta para Jerusalém (At 20,4). Foi

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encarregado por Paulo de várias missões difíceis, para resolver situações delicadas (Rm 16,21; 1 Co 4,17; 16,10-
11; Fp 2,19-24; 1 Ts 3,2-6).

Divisão e conteúdo

No conteúdo teológico desta carta destacam-se especialmente dois conjuntos:

Saudação inicial e ação de graças: 1,1-20.

I. A organização eclesial (2,1–4,16).

• Conselhos a várias classes de pessoas (5,1–6,19). Mas a


sequência dos temas é a seguinte:

Combater as falsas doutrinas: 1,3-20;

Organização do culto: 2,1-15;

Qualidades para o episcopado: 3,1-7;

Qualidades do diácono: 3,8-13;

Hino ao mistério da piedade: 3,14-16;

Contra os falsos mestres: 4,1-5;

Timóteo como modelo: 4,6-16;

Instruções para vários grupos cristãos: 5,1–6,19.

Saudação final: 6,20-21.

2ª Carta a Timóteo

Das três cartas pastorais, esta é a que contém mais informações de ordem pessoal, quer no que diz respeito
a Paulo (1,12.15-18; 3,10; 4,6-8.16-18), quer aos seus destinatários (1,5; 2,17; 3,15; 4,9-15.19-22). Estes
elementos, aliados ao fato de ser esta a carta pastoral que menos se afasta do estilo paulino, constituem um sério
argumento em favor de uma autoria, pelo menos parcial, do apóstolo, quer sob a forma de um escrito seu que
tenha sido posteriormente completado, quer de indicações dadas a um secretário que se encarregou da redação.
De qualquer modo, na sua forma atual, esta carta dificilmente pode ser atribuída a Paulo, na sua totalidade; os
dados de natureza pessoal, habitualmente considerados fidedignos, podem ser fruto de informações orais sobre a
última fase da vida do apóstolo.

Divisão e conteúdo

A carta tem a seguinte estrutura:

Saudação e ação de graças (1,1-5), que introduzem o tema central, enquadrado por duas exortações solenes a
Timóteo, para que renove a graça do ministério pastoral que lhe foi confiado (1,6-18; 4,1-5). Parte central: é um
aprofundamento da missão de Timóteo (2,1-13), contraposta à dos falsos mestres (2,14-26) e exercida num
ambiente de indiferença e hostilidade (3,1-17). O testemunho do próprio Paulo, que se sente já no crepúsculo de
uma vida inteiramente dedicada ao Evangelho e espera concluí-la na fidelidade à sua missão (4,6-8), constitui

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CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA
exemplo e encorajamento para todos os pastores. Conclusão: tem algumas recomendações e pedidos (4,9-18) e
uma saudação final (4,19-22).

Carta a Tito

Tito foi, com Timóteo, um dos principais colaboradores de Paulo. De origem grega, aderiu à fé,
provavelmente através de Paulo, durante a primeira viagem missionária deste. Certo é que o acompanhou a
Jerusalém, para a assembleia apostólica, constituindo um exemplo vivo da decisão tomada de não impor os
costumes judaicos aos cristãos oriundos do mundo pagão, pois, embora sendo grego, não foi obrigado a
circuncidar-se (Gl 2,1.3).

Ação de Tito

Na sua colaboração com Paulo, foram-lhe confiadas tarefas delicadas como a organização da coleta em
favor das igrejas da Judeia (2 Co 8,6-17) e, provavelmente, a pacificação da comunidade de Corinto e a
reconciliação entre esta e o próprio Paulo (2 Co 2,1-13). Paulo refere-se a ele sempre em termos muito elogiosos
(2 Co 7,6-7.13-16; 12,18). Conforme 2 Tm 4,10, foi-lhe ainda confiada uma missão na Dalmácia. A presente
carta aponta-o como “bispo” de Creta (Tt 1,5), onde, segundo a tradição, exerceu o ministério até ao fim dos seus
dias. É estranho que os Atos dos Apóstolos, que mencionam várias vezes Timóteo, não façam nenhuma
referência a Tito. Nunca foi apresentada uma explicação convincente para o fato, sugerindo alguns que Tito é o
redator das passagens “nós” dos Atos (At 16,10-17; 20,5–21,18; 27,1–28,16).
Autenticidade

A maioria dos exegetas contesta a autenticidade paulina da carta a Tito, quer pelo vocabulário utilizado,
que se afasta bastante do que encontramos nas autênticas cartas de Paulo, quer pelos problemas tratados, que
fazem supor uma fase de desenvolvimento da Igreja posterior à época apostólica. Além disso, a carta encontra-se
redigida num tom muito impessoal, com exceção do título de “meu verdadeiro filho” que se encontra na saudação
(1,4), longe, pois, das afetuosas referências de Paulo a Tito em outras cartas.
Divisão e conteúdo

A carta pode estruturar-se do modo seguinte:

Saudação inicial (1,1-4);

Orientações a Tito sobre os critérios de escolha dos responsáveis das comunidades (1,5-9); Aviso
contra os falsos mestres (1,10-16);

Ensinamentos sobre o modo de comportamento de várias categorias de crentes (2,1-15); Elenco


de deveres sociais (3,1-11);

Recomendações de caráter pessoal (3,12-14);

Saudação final (3,15).

Carta a Filemon

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Pelo tema e pelo tom afetuoso, esta é certamente uma carta autêntica de Paulo (v.19). Filemon era um
cristão de elevada posição social, convertido por Paulo, e tinha como escravo outro cristão, Onésimo. Este, tendo
fugido ao seu senhor, refugiou-se junto de Paulo (v.10), que o refere em Cl 4,9 como “irmão fiel e querido”. Este
fato era motivo de graves penas civis, tanto para o escravo como para quem o acolhia. Paulo, pondo de parte a
questão legal, envia-o ao seu senhor com o presente “bilhete” e pede a Filemon que acolha de novo, não como
escravo, mas “como irmão querido” (v.16), um irmão na fé. Mais: como se fosse o próprio Paulo (v.17).
Lugar

Pelo que é dito no v.1, a carta terá sido escrita num dos cativeiros de Paulo (Roma, Éfeso ou Cesareia),
nos últimos anos da sua vida (ver v.9-10.13.18). Os companheiros referidos aqui (v.23-24) são os mencionados
em Cl 4,7-17.
Divisão e conteúdo

Esta tem a estrutura normal das cartas de Paulo:

Apresentação e saudação: v.1-3;

Ação de graças: v.4-7;

Corpo da carta: v.8-22;

Saudação final: v.23-25.

Teologia

Como noutras ocasiões em que trata a questão da escravatura, Paulo não se preocupa em mudar a estrutura
social em vigor (1 Co 7,20-24; Ef 6,5-9; Cl 3,22–4,1). O que ele faz é deixar isso de lado e deslocar o problema
para a questão do amor fraterno, mais profunda que a questão legal em vigor, pois, em Cristo, “não há escravo
nem livre” (Gl 3,28). Daí em diante, Filemon deve tratar o (antigo) escravo Onésimo como irmão, porque Paulo
está disposto a recompensá-lo monetariamente, isto é, a resgatar Onésimo. Com isto, Paulo, embora não se
oponha frontalmente à escravatura, tampouco a aprova; e afirma que o amor fraterno, centro do Evangelho de
Cristo, é que levará à eliminação da escravatura.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

● ARISTÓTELES. Poética. Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Tradução e notas de Ana Maria
Valente. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.
● BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1980.

● HENGEL, Martin. Judaism and Christianism: studies in their encounter in Palestine during the Early
Hellenistic Period. Minneapolis: Fortress, 1991.

● KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: história, cultura e religião do período helenístico.
v.1. São Paulo: Paulus, 2005.
● MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo: Loyola,
2003.
● O’CONNOR, Jeromy Murphy. Paulo: biografia crítica. Tradução de Bárbara Theoto Lambert. São Paulo:
Loyola, 2004.

● POLIBIO. História. Seleção, tradução e notas de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1985.

● Bíblia de Estudo Aplicação Pessoal, Versão Almeida Revista e Corrigida, CPAD, 2003.

● http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=Cartas_de_São_Paulo

● http://www.monergismo.com/textos/arminianismo/controversia_agostinho_pelagio.htm

● Bíblia de Estudo Palavra-chave (Hebraico-Grego), 4ª Edição, Versão Almeida Revista e Corrigida, CPAD,
2015.

● Fonte: http://www.capuchinhos.org/biblia/index.php?title=Novo_Testamento

● Referências Bibliográficas:

● BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

● BÍBLIA. Português. Bíblia de Referência Thompson. Edição contemporânea. Flórida: Vida, 1994.

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