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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 1 of 32

PROFETAS DE ISRAEL
COMUNAIS, ACRATAS E ANTICLERICAIS
por R.B.Y.Scoot

título original em inglês: The Relevance of the Prophets


título da edição impressa: Os Profetas de Israel -- Nossos Contemporâneos

Tradução de Joaquim Beato

Edição Eletrônica: Projeto Periferia


http://www.geocities.com/projetoperiferia5/profetas1.htm

PREFÁCIO DO AUTOR

Escrever eu esta obra foi resultado da sugestão de meu amigo, Professor


Gregory VIastos, de que estava havendo necessidade de um livro sôbre os
profetas hebreus, que demonstrasse sua importância atual para a religião,
especialmente para a responsabilidade da religião na luta pela justiça, liberdade
e solidariedade humana. Já em agôsto de 1937, havia eu pronunciado uma série
de preleções sob o título dêste volume, para o Instituto de Verão para Clérigos,
no MacDonald College, de Quebec, e este volume segue o esbôço e até certo
ponto incorpora a substância dessas preleções. O livro pode, de fato, apresentar
sinais de ter sido composto a intervalos, por um considerável período de tempo
de uma vida atarefada.

Esta interpretação da religião profética e de sua relação com nossos problemas


é destinada aos ministros e leigos que não temem o sério estudo crítico da
Bíblia, mas não estão particularmente interessados nas discussões mais
técnicas, que levam os especialistas do estudo da Bíblia a suas conclusões. O
resultado do estudo crítico não é destruir, mas tornar claro o valor espiritual e a
autoridade moral das Escrituras. O autor tentou expor em termos positivos o
significado e o valor dos escritos proféticos hebraicos, e indicar sua profunda
importância como uma parte que são de nossa herança religiosa, parte essa que
tem o constante frescor de uma fonte perene.

Se houver algo no que aqui vai que seja nôvo para os especialistas e

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professôres de Velho Testamento, será muito pouco. O autor tem, no entanto, a


esperança de que a estruturação e a exposição do material sejam
suficientemente distintivas para garantir sua inclusão entre os livros a respeito
de profecia referidos nas salas de aulas e consultados nas bibliotecas dos
seminários.

Desejo registrar meu reconhecimento pelo interêsse e ajuda da parte de meus


colegas, o Reitor G. G. D. Kilpatrik

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e o Sr. Robert George, que leram o manuscrito inteiro; e também de meu


colega, Professor Gerald Cragg e de meus antigos professôres, Dr. Richard
Davidson e Professor W. A. Irwin, que me concederam o benefício da crítica de
alguns capítulos salteados. Sem a constante ajuda e encorajamento de minha
espôsa, este livro nunca teria sido completado.

R.B.Y.SCOTT

PREFÁCIO DO TRADUTOR

Nestes dez anos de contacto com a literatura especializada a respeito dos


profetas de Israel, não encontrei nada que superasse a presente obra como
exposição da religião profética, tanto em sua radicação no solo fecundo do
mosaísmo e de suas reinterpretações confessionais e teológicas mais antigas,
quanto em sua significação para os nossos dias, tão turbulentos, tão
revolucionários, tão sob o persistente impacto da secularização, distantes dos
dias de Amós, Oséias, Isaías e Miquéias, mas igualmente necessitados de uma
nova e relevante reinterpretação teológica de nossa herança cristã, que
fundamente uma nova visão da História, uma nova e dinâmica ética social, e
torne poderosamente atuantes e abertas à transformação as formas e estruturas
estabelecidas de nossa-religião.

O título em português, embora chame a atenção para o objetivo mais imediato


do livro, não nos deve levar a esquecer, que a contemporaneidade dos profetas
de Israel é demonstrada pelo autor com base num trabalho sólido de história e
exegese, em que transparece a segurança de quem está perfeitamente em dia
com o que de melhor se tem feito no âmbito de sua especialidade. O leitor sério
não poderá deixar de lado os cinco capítulos iniciais, em que são versados com
clareza e economia os aspectos mais técnicos do estudo dos profetas. Eles
constituem uma introdução preciosa e necessária ao debate construtivo e
iluminador que, neste campo, devemos aos métodos da crônica histórica e
literária, da história das religiões, da história da tradicão e da história e crítica da
forma. Resumem, realmente, de maneira competente e segura, para
comodidade do leitor, uma verdadeira biblioteca especializada.

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Se, por influência desta obra, o leitor +descobrir» os profetas e for tomado do
desejo de aprofundar os aspectos mais técnicos de seu conhecimento deles,
poderá consegui-lo

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lendo, além de Skinner(*), já traduzido pela ASTE (1), as obras de, por exemplo,
T. H. Robinson (2), Guillaume (3), Neher (4), Heschel (5) e Lindblom (6). Se
sentir necessidade de pôr-se ao corrente dos problemas específicos de
+introdução» poderá ler, com proveito, Bentzen (7), Robert & Feuillet (8) e
Weiser (9).

Quero consignar aqui meus agradecimentos públicos aos


Revs. Júlio Andrade Ferreira e Aharon Sapsezian, ex-presidente e secretário
executivo da ASTE, durante o longo tempo que
me custou concluir esta tradução, pela paciência, compreensão e
companheirismo que sempre me demonstraram. Ao
Professor Dr. Ziba Alves de Assis agradeço os retoques que
garantiram o teor de vernaculidade que se pode notar nos
capítulos 1-5, trabalho que lhe demandou tempo e boa vontade, sem nenhuma
compensação. Sou grato aos seis jovens
datilógrafos que, sucessivamente, me ofereceram, menos pela
remuneração que por dedicação, o serviço de sua especialidade. Finalmente, é
de justiça agradecer ao Seminário Presbiteriano do Centenário a liberdade de
realizar, dentro do conceito de dedicação exclusiva ao ensino teológico, este
trabalho de tradução que tanto me enriqueceu, como cristão e como professor, e
espero seja de alguma valia para o enriquecimento não só do ensino em nossos
seminários, como também de toda a Igreja no Brasil.
Vitória, novembro de 1966.
Joaquim Beato

As notas e citações bíblicas aparecem em ordem no fim do livro.

NB. As citações da Bíblia são tiradas da edição revista e atualizada, da


Sociedade Bíblica do Brasil, à qual conconsignamos nossos agradecimentos. Os
pouquíssimos casos em que isso não se dá são indicados ao leitor.

As abreviaturas usadas são tão óbvias que dispensam explicação.

CAPITULO 1

QUE É PROFECIA?

Para os objetivos dêste estudo, o termo +profecia» é tomado no sentido de +a

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obra dos profetas hebreus», cujos registros literários se encontram nas páginas
do Velho Testamento. A profecia hebraica não foi nem é inteiramente única, mas
continua incomparável em sua qualidade espiritual e valor permanente para a
religião. +Os profetas», por excelência, são os profetas de Israel e suas palavras
são o padrão da profecia, embora cheguem a nós na linguagem de um mundo
remoto e antigo. De fato, só por um grande esfôrço de imaginação, e assim
mesmo imperfeitamente, podemos recapturar o sentimento do instante em que,
pela primeira vez, um profeta falou a seus contemporâneos a palavra que Deus
lhe dera para falar.

Um dos resultados dos estudos bíblicos intensivos do último século, simultâneo


com o tirar do esquecimento notáveis remanescentes das civilizações que
circundaram e antedataram Israel, é esse reconhecimento de que os profetas
são primariamente figuras do passado. Sua mensagem -- ou o que dela
sobrevive -- foi dirigida a homens de seu próprio tempo nas condições e
circunstâncias em que viviam, e em linguagem que só os homens de sua própria
nação e época poderiam compreender plenamente. É farta de figuras de
linguagem e de alusões contemporâneas obscuras para nós; não, como alguns
imaginam, porque profecia seja uma língua de mistério esotérico, mas
principalmente porque nosso conhecimento dêsse tempo antigo está longe de
completo.

Os profetas eram homens de Israel e porta-vozes do Deus de Israel à nação de


que eram membros. Teriam fica-

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do espantados ao saber que suas palavras seriam preservadas em forma escrita


por muitos séculos, e seriam lidas em lugares de culto, neste inimaginável
mundo moderno -- em novas línguas, de fato, mas com o contexto local e
temporal inalterado. Sentir-se-iam descoroçoados ao ouvir que alguns, em
nossos dias, seriam incapazes de distinguir a Palavra viva de seu contexto
incidental; que em vez de reconhecerem, nas profecias deles, a mensagem
intemporal de Deus à mente e consciência, as usariam como um manual de
adivinho para predizer o futuro. Pois a relevância da mensagem dos profetas,
para nós, está em algo diferente de predição e adivinhação que os profetas
mesmos denunciavam tão severamente: +Desamparastes o teu povo, a casa de
Jacó, porque os seus se encheram da corrupção do Oriente e são agoureiros
como os filisteus» (Isaías 2.6).

Profecia e Predição não são Idênticas

No uso corrente hoje o termo +profecia» é mais ou menos sinônimo de


+predição do futuro». Esse é, de fato, um dos sentidos que os dicionários dão à
palavra. Alguns cristãos crêem ardentemente, e muitos outros, vagamente, que
a Bíblia prediz o curso dos acontecimentos presentes e futuros, de modo que

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um intérprete hábil pode aprender de suas páginas os segrêdos da história não


escrita ainda. Os mestres que pretendem ter essa habilidade encontram
seguidores prontos entre os incautos, que são levados, por uma curiosidade
natural e pela fascinação do misterioso, a imaginar que podem cruzar a entrada
proibida e penetrar nos desígnios do Altíssimo. Há muitos entre esses, na
verdade, cujas virtudes cristãs compensam de algum modo suas idéias bizarras
e superstição inconsciente. Mas tal uso das escrituras proféticas não passa de
uma revivescência da antiga prática pagã de adivinhar o futuro, sem atenção ao
aviso: +Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou para
sua exclusiva autoridade» (At 1.7). Uma percepção da natureza crítica dos
tempos em que vivem leva os homens a considerarem sua própria época como
o comêço do Fim, a meta final de tôda a História. Mas as guerras e rumores de
guerras, a multiplicação da ciência, a apostasia e o mundanismo, que eles
apontam como sinais do Fim poderiam com igual ou melhor razão ser apontados
aos homens de muitos períodos anteriores.

A História testifica que isso, realmente, já tem acontecido. A especulação


milenial tem aparecido, de tempos em tempos, dentro da comunidade cristã
desde seus dias mais antigos, pela própria razão de que ela é sugerida por
certas passagens escatológicas e apocalípticas das Escrituras. Inácio,
Policarpo, Justino e Irineu, no segundo século a.D., criam que estavam vivendo
nos últimos tempos. No terceiro século, Hipólito declarou que o fim viria
quinhentos anos depois do nascimento de Cristo. No quarto século, Lactâncio
ensinava que o Juízo estava próximo, como Oto de Freising o faria oitocentos
anos mais tarde. O fim do primeiro milênio da era cristã era esperado por alguns
como o fim do mundo. Pouco antes de 1260 a. D., Joaquim de Flora, em +O
Evangelho Eterno», estabeleceu aquêle ano para a inauguração da nova +Era
do Espírito». Militz de Kromeriz fixou igualmente os anos de 1365 a 1367 e, no
período da Reforma, Hoffman, o anabatista, estabeleceu a data de 1533. Em
tempos mais recentes, mas com igual futilidade, Guiness, em «Light for the Last
Days» («Luz para os últimos Dias», 1886), designou o ano de 1930; Russell, em
+Millenial Dawn» («Alvorada Milenial», 1907), ano de 1914; e Bell Dawson, em
+The Time Is At Hand» («O Tempo Está Próximo», 1926), o ano de 1934 (3).

Se as passagens bíblicas em que esses escritores basearam suas predições


forem examinadas, ver-se-á que são tomadas principalmente de Daniel e
Apocalipse, juntamente com secções dos três primeiros evangelhos e das
epístolas, onde linguagem e idéias semelhantes são encontradas. Por outro
lado, quase não fazem qualquer referência, exceto no caso de breves
passagens messiânicas, à coleção de livros proféticos que forma a segunda das
três divisões da Bíblia hebraica, que é nosso Velho Testamento. É essa divisão,
contudo, que contém os livros dos três profetas +maiores», Isaías, Jeremias e
Ezequiel, tanto quanto o +Livro dos Doze,» isto é, os Doze Livros proféticos
+menores» ou mais curtos. O livro de Daniel não é, na Bíblia hebraica, incluído
na coleção inti-

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tulada +Os Profetas»; está na terceira divisão conhecida como «Os Escritos»,
uma coleção mais variada.

A Profecia Deve ser Distinguido da Literatura Apocalíptica

A verdade é que Daniel e Apocalipse não são, absolutamente, no sentido


original, escritos proféticos. Pertencem, juntamente com os outros escritos
semelhantes, mencionados acima, a um tipo distinto, conhecido como literatura
«apocalíptica», que começou a ser escrita pelos judeus, quando a voz da
profecia própria fraquejou e caiu no silêncio. A +apocalíptica» tem alguns traços
em comum com a profecia. Deriva, em grande parte, do material profético mais
antigo, e pode, na verdade, ser considerada uma forma tardia e especializada
de profecia escrita, tratando, de modo nôvo, de um único tema profético -- a
consumação da história. Mas não pode ser simplesmente equacionada com
profecia, especificamente, e usada à custa da exclusão dos livros proféticos
mais antigos e mais importantes. Ela é um fenômeno distinto.

O que chama a atenção imediatamente, ao se compararem esses escritos


apocalípticos com livros proféticos, como Isaías e Jeremias, é o uso constante
naqueles do simbolismo visionário, bêstas de formas fantásticas, chifres e taças
e trombetas; sinais nos céus, uma mulher vestida de sol e coroada de estrêlas,
um homem cavalgando as nuvens, o +Ancião de Dias» sentado num trono,
circundado por uma multidão celestial. Como tais coisas não poderiam ser
visíveis aos olhos da carne, diz-se que foram manifestadas num sonho ou visão.
Usualmente se introduz um ser angélico que interpreta para o vidente o
espetáculo e os sons da visão.

Os livros apocalípticos têm sido chamados +Tratados para o Tempo de


Angústia», porque parece terem sido escritos para fornecer ao povo que sofre
adversidade e peseguição, o consôlo de uma grande esperança no Deus que
opera por detrás das cenas da História. Na sua maior parte, são dominados pela
convicção de que o mal está aumentando e está aproximando-se de um clímax
que produzirá a inter-

17

venção catastrófica de Deus e o fim do mundo. A intromissão do sobrenatural na


ordem natural mostra o dualismo que caracteriza o escrito apocalíptico, e que é
expresso explicitamente em IV Esdras 7.50: +O Altíssimo não fêz um mundo (ou
século) mas dois». O vidente recebe na visão a possibilidade de olhar o que
está acontecendo naquele mundo celestial o correspondente do que acontece
neste mundo; o aparecimento sucessivo de criaturas terríveis e as batalhas dos
campeões angélicos determinam a história dos reinos terrestres, que eles
representam (4). Os acontecimentos são, aqui e ali, inter-relacionados e, na
base da visão, o escritor apocalíptico passa a predizer o curso futuro dos
eventos.

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A apocalíptica é, em certo sentido, mitologia -- uma representação pictórica e


narrativa de uma realidade que está além da experiência dos sentidos. É uma
mitologia, não das origens de tôdas as coisas (como Gn 1-3), mas do Fim. Os
acontecimentos do presente são vistos como avançando rápido para um clímax,
em que os enigmas morais da vida serão resolvidos por meio da intervenção
direta do próprio Deus.

Outra característica dêste tipo de literatura, diferenciando-o da profecia


propriamente, é sua atribuição, comumente, à autoria de algum antigo sábio ou
profeta. Em Ezequiel 14.14, Daniel é citado, com Noé e Jó, como um homem
considerado justo pela tradição, embora, de acôrdo com a data atribuída pelos
conservadores aos livros que trazem seus nomes, ele e Ezequiel teriam sido
contemporâneos. A Bíblia nada sabe das noções modernas de propriedade
literária ou de plágio. De fato, literaturas desenvolvidas como a Lei, os Salmos e
Provérbios, são atribuídas a autores associados, pela tradição, exclusivamente
com seus começos. De igual modo, no caso da literatura apocaliptica, era um
processo literário aceito atribuir o livro a algum antigo herói. Esta literatura
começou a ser escrita depois do tempo de Esdras, quando se sustentava que o
período da inspiração tinha terminado, e um nôvo escritor, a fim de conseguir
audiência, tinha de assumir o papel de um profeta ou patriarca do tempo antigo.
A fraude era mais aparente do que real.

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Outra conseqüência do ensino dos escribas de que o período da inspiração


tinha-se encerrado foi um nôvo interêsse nas predições contidas na profecia já
existente. Se não tinham sido, e aparentemente não poderiam ser, literalmente
cumpridas, deviam, então, ser explicadas simbolicamente. Os «setenta anos»
de escravidão babilônica em Jr 25.11, 12, torna-se, em Dn 9.2, 24, +setenta
semanas de anos», a fim de trazer o +fim das assolações de Jerusalém» até
aproximadamente o período dos Macabeus, para o qual o autor estava
escrevendo. Começou assim o cálculo dos tempos e épocas, e com ele um
esquema da história futura predeterminada.

A apocalítica é, então, uma dualista +mitologia do Fim», que sucedeu à profecia


falada e escrita, no judaísmo pré-cristão. Não é a mesma coisa que profecia.
Mas é, histórica e religiosamente, importante por seus próprios méritos, porque
afirmava convicções profundas quanto ao sentido das crises sucessivas em
relação ao Fim transcendente da História. A distincão é muitíssimo necessária,
por causa da confusão entre as duas por parte daqueles que tomam a
apocalíptica como representante da profecia, resultando disso a negligência de
livros como Amós, Oséias e Jeremias.

Predição e Adivinhação

Embora o elemento de vaticínio seja na apocalíptica muito maior de que na

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verdadeira profecia, nas palavras dos grandes profetas podem encontrar-se


também numerosas predições. O exemplo dado acima, tirado de Jeremias, é um
dos mais explícitos. Dizer que profecia e predição não são idênticas não é negar
a existência e importância de um elemento de vaticínio naquela. Como, então,
se pode dizer que os prognosticadores modernos estão seguindo fogos-fátuos,
quando calculam, com base nas Escrituras, as datas dos acontecimentos
futuros? A resposta é, primeiro, que estão tomando equivocadamente
apocalíptica por profecia; e, segundo, que estão usando a Bíblia (até certo
ponto) como um manual de adivinho e como instrumento de adivinhação.

A adivinhação, diz o Professor Herbert Rose (5), é uma prática que resulta não
só da curiosidade quanto ao futuro, mas também da incapacidade da mente não
desenvolvida

19

de compreender um argumento negativo que exclua definidamente o que


parecia possível. Nela está envolvida também uma vaga idéia da uniformidade
da natureza. A adivinhação é praticada quase universalmente por povos em
níveis inferiores de cultura, e se tornou uma arte especializada entre as nações
do mundo antigo, inclusive Israel. Coisas estranhas, como uma ave agindo
peculiarmente, ou ocasionais ações humanas involuntárias, como espirrar, eram
tomadas como sinais de calamidade porque em alguma ocasião tinham sido
seguidas por calamidades. Portentos naturais como eclipses e terremotos eram
ao mesmo tempo extraordinários, e aterradores. Sonhos e pressentimentos
vinham à mente de modo aparentemente espontâneo. Que poderiam significar?
O sonhador podia sonhar de nôvo (como normalmente acontece) e então
ganharia reputação de vidente. Outro que pretendesse discernir o sentido de
uma mensagem escrita nos céus estrelados, poderia ganhar a atenção dos
incautos. As marcas curiosas do fígado de um animal sacrificado poderiam ser
lidas como se fôsse a escrita secreta de algum deus. Os homens inventavam
ordálios e jogos de azar, o resultado dos quais, não sendo humanamente
determinável, era atribuído a um agente sobrenatural e interpretado dentro
dêsse modo de ver. As pessoas em estados mentais anormais eram tidas como
possuídas de espíritos, e seus gritos estranhos eram tomados como uma
mensagem divina para ser traduzida por homens habilitados (como em Delfos).

Havia muito destas coisas no antigo Israel. Diz-se que José tinha uma taça pela
qual +adivinhava», observando as formas assumidas pelos sedimentos do vinho
ou pelo óleo derramado na água (6). Gedeão pediu e exigiu o sinal do novêlo
sêco no chão úmido e do novêlo úmido no chão sêco (7). Davi ouviu o estrondo
da marcha de um exército invisível pelas copas das amoreiras (8). O éfode e as
sortes sagradas, Urim e Tumim, eram instrumentos de adivinhação oficialmente
usados pelo sacerdócio, e foi somente quando Javé (9) não respondeu a Saul
+nem por sonho, nem por Urim, nem por profetas», que o rei recorreu à
necromante de Endor (10). Acaz, rei judaíta posterior, separou um altar especial
para +inquirir» por ele (11).

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Esses exemplos mostam que tais práticas eram familiares em Israel até no
período profético. Mas eram expressamente repudiadas pelos próprios profetas
como estranhas ao gênio e espírito de sua religião. Isto é feito enfaticamente no
Deuteronômio, recodificação das leis antigas sob a influência profética: +Não se
achará entre ti... nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem
feiticeiro, nem encantador, nem necromante, nem mágico, nem quem consulte
os mortos (isto é, médium espírita); pois todo aquêle que faz tal coisa é
abominação ao Senhor ... (mas) suscitar-lhes-ei um profeta do maior de seus
irmãos, semelhante a ti (isto é, Moisés); em cuja bôca porei as minhas
palavras» (12). Nada podia deixar mais claro do que isso que profecia na
tradição e maneira de Moisés é algo inteiramente diferente desses vários
métodos de devassar o futuro, denunciados como práticas pagãs, arrogantes e
erradas. O profeta não tem tal saber secreto e habilidade divinatória. Ele só
pode falar quando Deus lhe dá uma palavra, e então não pode deixar de falar:
+Falou o Senhor Deus, que não profetizará?» (13).

O Elemento de Vaticínio na Profecia

O que acabamos de dizer refere-se principalmente ao período clássico da


profecia que se iniciou cêrca da metade do oitavo século antes de Cristo. As
etapas anteriores da profecia hebraica, como se verá no próximo capítulo, foram
mais intimamente associadas com adivinhação e possessão de espíritos. Os
grandes profetas alijaram quase todos os traços dessas associações primitivas,
mas permanece em sua profecia um elemento de predição que é importante
distinguir dos agoureiros e adivinhos.

Tomemos como exemplos Amós e Isaías, ambos os quais fizeram predições


que foram cumpridas. Com terrível insistência em côres lúridas, Amós
descreveu a iminente subversão, pelo terremoto e a conquista, de uma
sociedade corroída pela injustiça. Em dois anos (14), seguiu-se um dos mais
memoráveis terremotos da Palestina e menos de uma geração mais tarde a
invasão dos assírios colocou um ponto final na existência política do reino do
Norte, Israel. Isaías, na crise sírio-efraimita, em 735-734 a. C., garantiu a Acaz,

21

rei de Judá, que antes que uma criança, a nascer em breve, saísse da infância,
a ameaça a Judá se teria desvanecido; antes que outro infante fôsse capaz de
dizer +mamãe» e +papai», os adversários aliados de Judá teriam sido
despojados pelos assírios (15). Essas predições foram cumpridas,
aparentemente dentro de um ano. De nôvo, quando Jerusalém estava
ameaçada pelas fôrças de Senaqueribe em 701-700 a. C., Isaías garantiu ao rei
Ezequias que a cidade não seria tomada. Uma vez mais seu vaticínio foi
justificado pelos acontecimentos (16).

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Esses exemplos são típicos, e deve-se notar de que tipo eles são. Os profetas
predisseram desgraça num caso e livramento no outro -- degraça ou livramento
que estão para sobrevir ao povo a que o profeta se dirige. Mais importante,
esses advirão como conseqüência imediata de sua condição moral e espiritual,
no momento em que o profeta fala. As margens do tempo presente (por assim
dizer) são estendidas para incluir um futuro próximo, que está vital e moralmente
relacionado com esse presente. Essas predições não são vislumbres de um
futuro predeterminado que deve passar através do momento presente para o
passado, como um filme animado passando pelas lentes do projetor. O futuro
não é tão mecânícamente determinado. O que está para acontecer é a
conseqüência necessária de uma situação moral; e será, ao mesmo tempo, a
realização concreta da +Palavra» profética, que expressa em relação à situação
dada a vontade justa de Javé. Quando Deus está para agir, torna conhecido seu
propósito: +Certamente o Senhor Deus não fará coisa alguma, sem primeiro
revelar o seu segrêdo aos seus servos, os profetas» (17). Essas predições estão
integralmente relacionadas com a situação espiritual daqueles que as ouvem;
além disso, são moralmente condicionadas por esse fato: +Contudo não vos
convertestes a mim, disse o Senhor... portanto, assim te farei, ó Israel!» (18) .
+Acautela-te e aquieta-te, não temas. Se o não crerdes, certamente não
permanecereis» (19).

Esse condicionamento moral e essa referência imediata explicam como um


vaticínio profético, longe de ser inevitavelmente cumprido com exatidão literal,
pode ser modi-

22

ficado ou revogado inteiramente. Isaías declara categoricamente que Ezequias


está para morrer, mas traz-lhe mais tarde a palavra de clemência. Javé mostra a
Amós visões de uma praga de gafanhotos e de um grande incêndio próximos,
mas atende ao pedido do profeta: +E o Senhor se arrependeu disso. Também
não acontecerá, disse o Senhor» (20). Deus retém a plena liberdade de uma
vontade ativa; não pode ser peado por qualquer anúncio antecipado dos
acontecimentos ou esquema de datas. Mas sua liberdade não é caprichosa ou
arbitrária. Suas limitações são as imposições da própria natureza dele -- justiça,
misericórdia e verdade: +Ele pemanece fiel, pois não pode ser infiel a si
mesmo» (21).

Em conseqüência do que acabamos de dizer, podemos ver como algumas


predições proféticas poderiam permanecer sem cumprimento, enquanto outras
foram cumpridas em essência mas não literalmente. Por exemplo, embora
Isaías 17.1 declare que Damasco se tornará um montão de ruínas, esta continua
uma cidade populosa até hoje. Em Ez 26.7-14 lemos que Javé fará de Tiro
+uma penha descalvada», pela mão de Nabucodonosor, enquanto num capítulo
posterior (29.17-20) se reconhece que o cêrco de Nabucodonosor contra Tiro
tinha fracassado, e se diz que Javé lhe dará a terra do Egito em compensacão.
Mais interessante ainda é a declaração de Miquéias: «Sião será lavrada como
um campo, e Jerusalém se tornará em montões de ruínas», quando tomada

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junto com a explicação dada um século mais tarde na própria Jerusalém de que
a contrição de Ezequias tinha levado Javé a mudar de propósito (22).

Outro ponto a ser lembrado é que essas predições são usualmente revestidas
de linguagem poética, imagens e hipérboles, que só um literalista muitíssimo
prosaico insistiria em tomá-las como uma descrição exata. Tomemos a
conhecida passagem: +Nos últimos dias acontecerá que o monte da casa do
Senhor será estabelecido no cume dos montes» (23). Quão distante de tal
literalismo rígido era a compreensão, por parte de Jesus, do modo como as
antigas profecias deviam ter cumprimento, evidencia-se em seu comentário
sobre João Batista: +E, se vos importais de crê-lo, ele

23

é o Elias, que estava para vir» (24). Muitos judeus esperavam, com base na
predição de Malaquias 4.5, 6, a volta real de Elias à terra. Seria difícil pretender
que Jesus ensinasse a reencarnação. Para ele o cumprimento da predição
estava num nível de significado mais pofundo, como quando ele disse, em outra
ocasião, que Moisés tinha escrito a respeito dele (25).

Não obstante duas passagens na lei deuteronômica referem-se ao cumprimento


da profecia como um critério de sua genuinidade. Dt 18.22 diz: +Quando um
profeta falar em nome do Senhor, e a palavra não se cumprir nem suceder,
como profetizou, esta é palavra que o Senhor não disse; com soberba falou o tal
profeta». Em Dt 13.1-3, o teste é levado mais longe: +Quando profeta ou
sonhador se levantar no meio de ti, e te anunciar um sinal ou prodígio, e suceder
o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros
deuses... não ouvirás as palavras dêsse profeta... porquanto o Senhor vosso
Deus vos prova para saber se amais o Senhor vosso Deus de todo o vosso
coração». Em outras palavras, o fracasso de uma predição pode ser usado
como teste negativo, mas o cumprimento dela não é garantia de genuinidade, se
a substância da mensagem do profeta se afastar dos princípios básicos do
javismo. Isso patenteia mais do que tudo que a essência da profecia é, não a
predição, mas a declaração da verdade religiosa.

Porta-vozes da Crise

Os profetas de Israel não eram, portanto, meros prognosticadores; eram porta-


vozes de uma palavra viva de Deus. Suas freqüentes referências ao futuro, e
especialmente ao futuro imediato, resultam de seu senso da importância
espiritual e da urgência moral do presente. Êles tinham certeza do que Javé
estava prestes a fazer por causa daquela situação espiritual presente, situação
que incluía não só a atitude dos homens, mas o fato da presença de Deus.
Falavam numa atmosfera de momentos que eram críticos para os homeus
porque a vontade justa de Javé estava presente, e suas exigências eram
irresistíveis. Nesta conexão, o profeta deve ser distinguido do sacerdote, por

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 12 of 32

24

um lado e do +sábio» por outro (26). O sacerdote ministrava em termos do


eterno e imutável ao que na vida do homem era constante ou repetido. O
+sábio» destilava em seu ensino a essência da longa experiência de todos. A
mensagem do profeta era relacionada ao contexto temporal da vida de maneira
diferente. O tempo, como o homem o conhece, tem dois aspectos: avança
caminhando em movimento incessante; as gerações vêm e vão. Mas alguns
momentos presentes se destacam de todos os outros. A hora soa; chega o
momento de decisão e de suprema experiência. Nesse momento há algo mais
do que um vislumbre instantâneo de uma gota de tempo, quando a corrente do
tempo passa pela borda da catarata. Pode tratar-se de um grande momento,
prenhe de conseqüências eternas na determinação do destino. Ali e então o
eterno se revela, exigindo e desafiando. O profeta, não o sacerdote ou o mestre,
é a voz de Deus, nesse momento. Ele é o porta-voz que pode dar expressão ao
sentido de uma ordem eterna e de uma realidade divina. Ele torna manifesta a
crise moral de que os homens não se apercebem. Declara qual é o caminho da
vida e qual o caminho da morte.

Uma ilustração disso pode ser encontrada nos capítulos 7 e 26 do livro de


Jeremias, onde temos dois relatos da mensagem desse profeta numa ocasião
particular. O cenário é a porta do templo de Jerusalém, onde as multidões estão
reunidas para um festival religioso. O profeta é resistido pelos sacerdotes e pelo
povo, quando declara que essa casa será destruída como o antigo santuário em
Silo, porque Israel identifica a religião essencial com o turno de serviços de
acôrdo com o calendário litúrgico, antes que com as sempre novas respostas às
exigências éticas de Deus.

Os profetas eram, primariamente, muito mais pregadores, no mais alto sentido


do termo, do que mestres ou prognosticadores. O epigrama que os descreve
como +pregadores antes que preditores» faz uma distinção útil ainda que não
completamente exata. Eles fizeram predições, mas essas eram apenas
acidentais em sua mensagem. Sua relevância hoje não se deve, portanto, a que
eles predisseram o curso dos acontecimentos do mundo moderno. Mas, embora
não falem de nosso tempo falam a ele, porque nosso tempo é

25

também de crise e os problemas em jôgo são espirituais e morais. Se


conseguirmos deixar de lado o contexto local e temporal da Palavra deles, como
falada aos homens daquele inundo antigo, veremos que ela é dirigida também a
nós.

A Relevância dos Profetas

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Usar a palavra +crise» com a leviandade com que comumente a usam, torna-a
menos percuciente. Aos homens que necessariamente não podem ver sua
situação em perspectiva histórica, pode parecer tolice falar dela como carregada
de conseqüências inusualmente graves. Mas de fato tôda época é crítica para
os homens que vivem nela, pois nela são chamados a julgar, decidir e agir. Sua
crise pessoal é a única que são chamados a confrontar. Os profetas de Israel
podem tornar manifesta a realidade e natureza de nossa crise, mesmo quando
falam da sua própria. Eles nos confrontam com a responsabilidade de decidir em
resposta a Deus. Suas profecias expressam sua certeza moral e compreensão
espiritual do que será por causa do que é, porque Javé e não outro deus é
Senhor.

A mensagem dos profetas é, portanto, relevante hoje num sentido mais profundo
e verdadeiro do que se tivessem predito nossa história como cigana a ler-nos a
sorte. Eles são contemporâneos de cada geração, porque a verdade que
declaram é permanentemente válida. O que dizem tem a qualidade intemporal e
o poder constrangedor da afirmação espiritual autêntica. Quanto mais lemos
suas palavras, mais nos impressiona seu desprendimento e destemor, sua rica
humanidade e gênio poético, sua penetração e autoridade espirituais. Nada há
no mundo pré-cristão que se compare à grande sucessão dos profetas hebreus.
Não é suficiente nenhuma explicação deles que não reconheça que por meio
deles o Deus eterno estava executando seu propósito para a criação e redenção
da humanidade.

Ser-nos-á útil hoje descobrir quais foram as causas da espantosa vitalidade


espiritual do movimento profético. Os profetas eram homens que se tinham
entregue com abnegação completa ao serviço de Deus, que conheciam em sua
pró-

26

pria vida e por meio da experiência religiosa do seu povo. De seu chamado para
o ministério, disse Amós simplesmente: +O Senhor me tirou de após o
gado» (27). A resposta pronta de Isaías à solicitação de Javé, que buscava
alguém para levar sua mensagem foi: +Eis-me aqui, envia-me a mim» (28). Por
seu devotamento, de todo o coração, ao Deus dos pais vinha-lhes um
entendimento mais profundo do significado para o tempo presente daquilo que
era essencial na fé dos antepassados. Por meio da obediência moral ao Deus
conhecido, vinha-lhes um nôvo conhecimento dele, e no reconhecimento de sua
presença, uma revelação nova e mais plena de sua natureza e de seu propósito.
Esses homens não eram inovadores conscientes. Se algo de nôvo emergiu
neles se deve a Javé, não a eles.

Além disso, os grandes profetas, sem exceção, eram tremendamente


preocupados com as condições sociais e as questões públicas, como evidências
de uma crise espiritual. Não falam de pecado e arrependimento meramente em
termos gerais. São específicos e perturbadores em suas denúncias.

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A estrutura eclesiástica era para eles um entrave e seus ofícios uma ofença a
Deus, se ao mesmo tempo a situação humana real e os problemas morais
urgentes fossem ignorados: «Quando estendeis as vossas mãos, escondo de
vós os meus olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço,
porque as vossas mãos estão cheias de sangue» (29). Isto era o que Javé dizia
enquanto prosseguiam os serviços no templo; mas só Isaías, entre tôda a
multidão de adoradores, o ouvia.

Outro fator que contribuía para o poder espiritual dos profetas era sua vívida
percepção da presença e atividade do Deus que adoravam no santuário,
influindo no tumulto da vida social cotidiana dos homens. Seu testemunho
supremo era de que o Deus que escolhera os pais e falara a Moisés, estava
presente e falava no seu tempo de modo igualmente real. Ele não era um deus
só dos começos mitológicos nem um deus como Baal Mercarte, que podia estar
«meditando,... de viagem ou a dormir». Era, antes, um Deus que estava para
+fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os
ouvidos» (29). Os profetas reconhe-

27

ciam que Deus estava operando no seu mundo contemporâneo, porque não
pensavam nêle somente em termos tradicionais e convencionais.

E, ainda, podemos aprender dos profetas algo quanto à maneira como a religião
pode tornar-se a dinâmica, e sua ética a diretiva da transformação social. A
religião vital que eles proclamavam e os padrões morais que estabeleceram tão
firmemente tiveram por fim uma profunda influência no espírito e +ethos» da
comunidade, e até mesmo em suas formas de culto e leis sociais. Uma nova
compreensão da religião e de suas exigências éticas totais se estabeleceu em
resultado de sua missão, embora, por certo, o povo comum estivesse longe da
plena compreensão e ainda mais longe de suas implicações para a conduta.
Não obstante, a religião de Israel e sua cultura foram recriadas por meio da
missão dos profetas, como se pode ver do fato de sua influência dominante,
mais tarde, na composição e compilação da Bíblia hebraica. A completa
transformação da superstição e da religião da natureza, do comêço da
monarquia, com suas concomitantes convenções sociais (31), na florescência
do judaísmo, no que ele tem de melhor, é a expressão do que, abaixo de Deus,
os profetas do VIII ao VI século a. C. realizaram.

Finalmente, podemos aprender desses antigos porta-vozes da verdade eterna


que, como o Deus deles não estava prêso dentro da tradição das eras passadas
de Moisés e Davi, assim nosso Deus não está prêso dentro da tradição da era
deles ou do primeiro século a.D. Ele é o Deus vivo, operando não só nas almas
dos indivíduos hoje, mas presente como o árbitro final nas lutas e confusão de
nossa vida social. Onde as fôrças cruéis dêste mundo moderno dobram e
esmagam os espíritos de homens e mulheres, ai está Deus presente em poder,
o vindicador daqueles para quem as desvantagens são demasiado grandes.
Para homens e povos que tenham visão e fé e seriedade moral, Deus mantém

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 15 of 32

sua porta aberta -- para uma vida pessoal e comunitária que seja nobre e livre.
Se, em nosso orgulho e auto-suficiência, não dermos ouvidos à sua palavra e
exigências dela, veremos que hoje também seus juízos caem sôbre a terra.

NOTAS E CITAÇÕES BÍBLICAS

CAPITULO 1

(1) Is 2.6.
(2) At 1. 7.
(3) Sôbre esta secção, ver Case, «The Millenial Hope», de que são tirados alguns dos
exemplos acima.
(4) Cf. Dn 7 e 10. 13-21.
(5) «Encyclopedia of Religion and Ethics», ed. Hastings, artigo: «Divination».
(6) Gn 44.5.
(7) Jz 6.36ss.
(8) II Sm 5.24.
(9) «Javé» é, provavelmente, a forma original do nome «Jeová». Esta não é palavra
hebraica, mas forma híbrida, na qual se combinam as consoantes de «Yahweh» ou «Javé»
com as vogais de «Adonai», palavra que significa «Senhor». As vogais desta sob as
consoantes daquela indicavam que, na leitura:«Adonai» devia ser pronunciado, em vez de
«Javé». A forma «Jeová» entrou em uso somente na Idade Média, devido à incapacidade
de reconhecerem como tal palavra viera a aparecer no texto hebraico do Velho
Testamento.
(10) I Sm 28.6.
(11) II Rs 16. 15.
(12) Dt 12.10-12, 18.
(13) Am 3.8.
(14) Essa é a razão do acusativo de duração, em Am 1.1: «durante dois anos antes do
terremoto»; cf. nota de autoria de Meek, no «Journal of the American Oriental Society»,
vol. 61, pp 62-63. (Ver também RSV, margem, in loco. Trad.). Há outra
referência ao mesmo terremoto, em Zc 14.5.
(15) Is 7.10-16; 8.3, 4.
(16) Is 37.33ss.
(17) Am 3.7.
(18) Am 4.10, 12.
(19) Is 7.4, 7.
(20) Is 38.1-6; Am 7.1-6.
(21) II Tm 2.13, na tradução de Moffatt.
(22) Cf. Mq 3.9-12 e Jr 26.17-19.
(23) Is 2.2.
(24) Mt 11.14, na tradução de Moffatt.
(25) Jo 5.46.
(26) Sôbre êsses três grupos de guias espirituais reconhecidos pela comunidade, ver Jr
18.18.
(27) Am 7.15.
(28) Is 6.8.
(29) Is 1.15.
(30) I Rs 18.27; 1 Sm 3. 11.
(31) Ver adiante, pp 181-188; 165-171.

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CAPITULO II

O MUNDO DOS PROFETAS

O mundo em que a profecia floresceu, no VIII século a. C., era ponto de


convergência de três diferentes estilos de vida: a vida do criador de gado, a vida
do agricultor e a vida do citadino. As tribos israelitas, antes da conquista de
Canaã e de seu estabelecimento ali, tinham sido nômades ou seminômades;
uma sociedade patriarcal simples, que tirava sua subsistência dos rebanhos e
do gado, suplementando-a com cereais cultivados em estações temporárias de
pouso. A conquista foi um processo vagaroso, no curso do qual os israelitas se
firmaram como a classe dominante no que era e continuava realmente uma
sociedade canaanita. Adotaram a língua canaanita (que agora chamamos
«hebraico»), fundiram a cultura canaanita com suas próprias tradições e se
tornaram um povo sedentário, com seu território próprio. Sua vida econômica
era agora sustentada principalmente pelos produtos agrícolas: a viticultura e a
cultura da oliveira; ficando os rebanhos e o gado em segundo plano. Cidades e
vilas tornaram-se os centros fixos das tribos e dos clãs, e certo regionalismo
fortalecia (embora pudesse ser também seu rival) a velha lealdade do
parentesco.

Com o advento da monarquia, e especialmente com o reinado de Salomão, o


modo de vida urbano e comercial se desenvolveu grandemente, em parte com
prejuízo da comunidade pastoril e agrícola mais antiga. A estrutura social
tornou-se agora mais centralizada e autocrática, e apareceu o Estado como uma
nova entidade dentro da sociedade israelita. A côrte, os oficiais do rei e o
exército permanente eram não-produtores, e só podiam em parte ser
sustentados com os

30

impostos que pesavam sôbre o comércio em trânsito pela Palestina e com o


tributo dos povos dominados. Pesados impostos e trabalho gratuito obrigatório
para o Estado começaram a drenar a moderna riqueza da comunidade.

Tansformações de tal amplitude nas condições sociais econômicas não


poderiam deixar de afetar profundamente as condições e crenças religiosas do
povo. Pois quaisquer que sejam a origem e importância última de uma religião,
esta deve ser relevante para as condições concretas em que o povo vive. Seus
padrões de fé e de conduta refletem necessariamente a estrutura social e
econômica em que ela seja fator operante, como, por sua vez, essa estrutura é
afastada pelos padrões e ideais de vida sustentados pela religião.

As tensões sociais e econômicas, resultantes dos choques culturais dentro da


sociedade israelita, sob a monarquia, produziram em conseqüência tensões e

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 17 of 32

reações religiosas de importância permanente. O elemento nômade, pastoril,


tribal na tradição e sociedade israelitas, continuou, até o fim, como o ideal
clássico, predominante e normativo da religião de Israel. As figuras dos
patriarcas, no Gênesis, idealizam o tipo nômade de vida. A obra de Moisés é
transformada no eixo da teologia histórica posterior de Israel, e a tradição afirma
que Moisés tirou Israel do Egito +civilizado» e o introduziu no deserto, e que ele
terminou sua obra fora do território sedentário. Profetas e salmistas voltam-se
para esse período anterior à Conquista como supremamente importante (1).
Eles dão aos eventos do Êxodo e da Peregrinação o mesmo valor que os
teólogos cristãos têm dado aos acontecimentos da vida de Cristo, especialmente
à Cruz. Alguns profetas erguem o grito de +volta a Moisés» (2) como
pregadores modernos têm levantado movimentos de +volta a Cristo». Não
faltavam + fundamentalistas», como os recabitas, que tomavam isso
literalmente, e se recusavam a construir casas, a cultivar a terra ou a tomar
vinho, porque estes eram os modos de Canaã na época moderna (3).

De modo que o tribalismo nômade das tradições patriarcais e mosaicas afetou


permanentemente o curso futuro do desenvolvimento religioso. Isso não quer
dizer que os li-

31

deres religiosos posteriores (exceto reacionários como os recabitas) desejassem


retornar de fato às condicões de vida do deserto. Queriam, antes, reverter às
idéias e valores característicos, que se tornaram explícitos pela primeira vez no
período criador das origens religiosas, e que continuaram válidos, embora
tivessem de ser reinterpretados constantemente de acôrdo com as
necessidades e peculiaridades de cada época. Para podermos compreender o
mundo dos profetas, devemos ver como se superpuseram a essa cultura
religiosa tribal e pastoril as culturas sucessivas agrária e urbana de Canaã.
Cada estilo de vida tinha suas diferentes características sociais, econômicas e
religiosas, de modo que a situação era complexa e o conflito, inevitável.

As Características da Sociedade Pastoril

O homem primitivo vivia principalmente da caça. Quando aprendeu a domesticar


animais, sua provisão de alimentos se tornou mais garantida e, em
conseqüência, sua vida era mais longa e a família se tornou um grupo social
estável. À medidaque os rebanhos cresciam, as famílias se desenvolviam em
clãs e finalmente em tribos, movendo-se com os rebanhos e o gado à procura
de pastagens.

Pelo fato de ser o interior da Arábia um deserto, os habitantes dessa região têm
continuado na sua quase totalidade povos de pastôres nômades, até o presente.
De tempos em tempos fizeram incursões nas terras mais férteis para o norte e o
oeste: Mesopotâmía, Síria, Palestina e Baixo Egito. Nessas regiões as tribos

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 18 of 32

nômades se fixaram entre os habitantes anteriores, para estabelecerem


sociedades mais estáveis, tornadas possíveis pelo cultivo dos produtos do solo.
Os antepassados de Israel pertenciam ao norte do deserto arábico, e à parte do
+crescente fértil» que ficava do outro lado do curso superior do Eufrates.
Invadiram Canaã como tribos nômades e, séculos mais tarde, sua estrutura
social e ideológica trazia ainda as marcas da herança nômade, pastoril.

O fato fundamental a respeito da sociedade nômade semítica é o laço do


parentesco consangüíneo. Essa +consciência de família» permeia o
pensamento e governa a maior parte das atividades do grupo social. A pergunta
de Caim: «Acaso sou eu tutor do meu irmão?», só poderia produzir
consternação. A família não era só a unidade social primária, mas também a
unidade econômica e religiosa primária. Nas histórias patriarcais, como, por
exemplo, no prólogo de Jó, a riqueza do pai dá subsistência à família patriarcal e
o patriarca oferece sacrifício em favor dela. A importância do parentesco e o
orgulho da família aparecem nas genealogias abundantes no Velho Testamento
e fazem soar a nota hebraica típica nas histórias do nascimento de Jesus, em
Mateus e Lucas (4). A veneração do túmulo de um antepassado (5), o desejo de
ter um filho para perpetuar a família (6), são outras tantas ilustrações da
importância que se dava aos laços de sangue. A maneira usual de contar a
descendência era através do pai, mas subsistem traços de um sistema
matriarcal que pode ter sido mais antigo (ou peculiar a certas tribos). Exemplos
disso são o dar a mãe nome ao filho no nascimento (7) e a forma de casamento
chamada +beená», em que a espôsa continuava na casa de seu pai e os filhos
pertenciam à família dêste (8).

Esse senso vivido de consangüinidade subjaz, também, à mais característica


das instituições do deserto, a +vendeta». Quando se matava um homem,
causava-se, também, um dano à sua família. O sangue da família tinha sido
derramado e devia ser vingado da família cujo representante tivesse cometido o
assassínio e trazido essa culpa sôbre sua parentela (9). Quando a comunidade
se tornou mais civilizada fêz-se uma distinção clara entre o homicídio
premeditado e o acidental, e foi tomada providência para que um acusado
encontrasse abrigo contra os enfurecidos parentes, até que as circunstâncias do
caso fôssem apuradas (10). A culpa e a punição foram restringidas ao indivíduo,
pela primeira vez, na lei pós-profética de Deuteronômio 24.16.

A sociedade era uma família de famílias. O que mais se aproxima de nossa


palavra +família» é a palavra traduzida como +casa», que significa, neste
particular, uma família concreta ou um grupo único de três ou quatro gerações
descendentes de um antepassado masculino vivo (11). O clã compreendia um
grupo dessas +casas paternas» que sentiam uma unidade psíquica por
descenderem tôdas de um ante-

33

passado mais remoto comum. Essa unidade expressava-se especialmente


numa emergência, como quando Gideão tocou a rebate e os abiezritas (o clã de

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 19 of 32

seu pai Joaz) se ajuntaram após ele (12). A tribo, também, era idealmente uma
família, e as +doze tribos» de Israel afirmavam tôdas sua descendência remota
de um dos filhos de Jacó. Mas que a tribo era algumas vêzes simplesmente uma
família artificial nós o sabemos, em vista da composição da tribo de Judá, que
se formou aliança +por pacto» de clãs distintos (13), do mesmo modo como a
+supertribo» de Israel foi formada por federacão de aliados que afirmavam,
contudo, ser Jacó o antepassado comum. A tribo pode ser definida como um
grupo de clãs que se declaram descendentes de um antepassado remoto
comum, os quais partilham de uma religião comum e reconhecem uma
autoridade comum.

A formacão ou ampliação de uma tribo pela federacão numa família artificial


maior punha em operação a instituição do +pacto», que pertence ao mesmo
círculo das idéias de parentesco. Um pacto era mais do que uma aliança: era a
intermistura e identificação de uma vida com outra. A frase hebraica +cortar um
pacto» pode referir-se a uma prática original de beber um do outro o sangue de
incisões feitas na ocasião, ou, como no Velho Testamento (14), à morte de uma
vítima sacrificial, para que sua vida formasse um elo entre as partes, quando
seu corpo fôsse consumido na festa do pacto. A divindade tornava-se participe
do pacto pelo derramamento do sangue sôbre o altar diante do qual a cerimônia
era realizada (15). O +sangue do pacto» tornava os homens +irmãos de
sangue», e criava entre eles uma comunidade de almas, como quando +a alma
de Jonas se ligou com a de Davi» (16).

Certas conseqüências dessa organização famílio-tribal da sociedade podem ser


citadas. A primeira é que a riqueza econômica da comunidade era, de fato,
riqueza da comunidade; embora investida no cabeça da família ou clã, tratava-
se de um depósito para todos. A propriedade pessoal confinava-se a artigos
pessoais, como ornamentos, vestes e armas, e não havia propriedade privada,
em regra, nos rebanhos e gado de que a comunidade, como um todo,
dependesse para

34

sua existência. Assim, embora por consentimento comum alguns tivessem


privilégios apropriados à sua posição de chefes e guias, não havia rico nem
pobre no clã, a não ser na medida em que o clã todo fôsse rico ou pobre.
Mesmo os escravos eram membros da casa (17).

A sede da autoridade eram os cabeças de famílias, e, na agregação maior, a


tribo, um conselho de anciãos. Êstes julgavam as questões de acôrdo com
padrões aceitos de moral e com os costumes da tribo (18). Não tinham, porém,
poder despótico. A liberdade do deserto e sua vida indômita e nômade,
somadas ao forte sentimento de fraternidade do clã, produziam um forte e
duradouro amor da libedade e da justiça igualitária.

Em questões de religião, devemos estabelecer diferença entre dois elementos


distintos na herança que Israel recebeu de seu passado nômade. Havia,

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primeiro, o que ele tinha em comum com outros nômades semitas: crença em
espíritos e demônios e numa divindade que mantinha para com a tribo um
+pacto de sangue». É possível que tenha havido a crença num deus do céu,
supremo, +EI», reconhecido como o poder por trás de todos os fenômenos;
numa divindade lunar e numa deusa da fertilidade, originalmente associada com
os oásis. A essa herança nômade deviam ser atribuídas certas características
do culto hebraico posterior, como o sacrifício do primogênito do rebanho, e os
festivais da divindade lunar que guiava os peregrinos no deserto, através da
frescura da noite, +Pesach» (ou Páscoa) e Lua Nova (19).

O segundo elemento da herança religiosa de Israel, recebido da época do


deserto, distinguia-o dos outros povos semíticos -- o culto do deus Javé, em que
Moisés o havia iniciado (20). Javé era um deus cujo poder se manifestava na
tempestade, no vulcão e no terremoto, e cujas características pessoais de
justiça e misericórdia faziam exigências correspondentes da parte daqueles que
estavam dentro de seu pacto. Ele era pessoalmente interessado e ativo nos
acontecimentos históricos que tinham sucedido ao seu povo. O pacto com Javé
estabelecera uma comunidade com as características de uma grande família,
com um interêsse comum, uma vida comum e uma vontade comum. Israel
tornou-se

35

idealmente um +povo», no sentido da palavra hebraica +am», que significa


aquêles que juntos formam uma entidade, um todo, e cujos membros são unidos
pela solidariedade como irmãos e camaradas. O funcionamento harmonioso do
pacto era a +paz», e produzia bem-estar, ou +bênção». Sob os termos do pacto,
Javé prometia +salvação» (isto é, prosperidade ou vitória) com a condição de
Israel ser leal aos padrões morais e religiosos estabelecidos por ele, e de
fidelidade, responsividade e obediência a ele. As tradições quanto às obrigações
particulares dêsse +pacto de obediência» variam como se pode ver, por
exemplo, comparando as várias formas do Decálogo encontradas em Êx 20, Dt
5, Êx 34, Lv 19 e Dt 27. Mas elas são unânimes em que o direito de cultuar e
servir a Javé dependia da obediência ética. Como os profetas e salmistas
posteriores o afirmam: +Que é isso? Furtais e matais, cometeis adultério e jurais
falsamente, queimais incenso a Baal e andais após outros deuses que não
conhecestes, e depois vindes e vos pondes diante de mim nesta casa?» +Quem
subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O
que é limpo de mãos e puro de coração» (21).

A Sociedade Agrícola Sedentária

A conquista de Canaã por Israel foi um processo que se estendeu por várias
gerações, e foi realizada provavelmente tanto por penetração pacífica como por
fogo e espada (22). Com algumas exceções, como Jericó e Hazor no norte, as
tribos não podiam tomar as cidades muradas, mas estabeleciam-se entre os

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canaanitas agrícolas e urbanos, e com o tempo os dominavam e absorviam.


Como no caso dos árabes modernos da Transjordânia (23), os clãs e tribos
vizinhos estariam ao mesmo tempo em vários estágios entre o nomadismo
pastoril e a vida agrícola sedentária. Até o fim, especialmente na parte menos
fértil, ao sul do país, manadas de ovelhas e bodes continuaram a ser um
importante fator econômico.

No tempo de Davi, o cultivo da cevada, do linho e do trigo, junto com as vinhas e


plantações de oliveiras, tinha aberto uma nova e mais rica vida econômica à
massa dos israelitas, Os métodos de plantio eram bastante primitivos.

36

Depois de o solo pedregoso ter sido suficientemente limpo, era arado, com
auxílio de bois, e semeado por homens +andando e chorando» levando a
preciosa semente (24). A colheita era um tempo de festas, quando os homens
metiam a foice no cereal e o atavam em molhos. Na eira, o grão era batido com
um mangual, ou pisado sob um pesado trilho cortante; era então jogado na
corrente do vento com uma «pá» ou trôlha chata, para separar a palha. O grão
era comido tostado, ou era moído e transformado em farinha. As uvas eram
cultivadas em vinhas cuidadosamente tratadas (25), e eram pisadas num lugar
escavado na rocha ou postas a secar para serem usadas como passas. As
azeitonas eram pisadas para extração do azeite, usado na cozinha e para unção
das pessoas. Figos, romãs, tâmaras e mel acrescentavam variedade ao
cardápio.

O cultivo dos cereais, das árvores e das vinhas era uma arte que teve de ser
aprendida com os canaanitas. Os israelitas aprendiam ao mesmo tempo com
eles a reverenciar os +baalins» locais, espíritos da fertilidade cujo favor era
necessário para a garantia de uma boa colheita. Isso não era uma deslealdade
óbvia a Javé, pois esses baalins não eram divindades propriamente, mas
espíritos menores e locais, semelhantes àqueles em que acreditavam os povos
do deserto. O culto de baal, em Canaã, incluía esse animismo popular junto com
o culto do grande deus da tempestade, Baal ou Hadade. Javé era o deus da
federação e povo de Israel, o único deus da sociedade política. Os baalins,
gênios menores dos campos e das vinhas, eram considerados como operantes
numa esfera completamente distinta. Foi só quando, ao tempo de Acabe e Elias,
a manifestação local de Baal, o deus da tempestade e deus da cidade de Tiro,
se tornou rival de Javé, na esfera política, que se produziu o conflito
irreconciliável. A condenacão familiar pelo editor pós-profético de Reis:
+Edificaram altos, estátuas, colunas e postes-ídolos no alto de todos os
elevados outeiros e debaixo de tôdas as árvores verdes» (26) supõe as
condições e julga pelos padrões do século VII. Pois, do próprio Jacó se diz que
erigiu um desses pilares sagrados em Betel, e Samuel tinha sacrificado num
+lugar alto» local (27). A extensão em que as formas israelitas de culto foram
influenciadas pelos precedentes ca-

37

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 22 of 32

naanitas foi ponderável. Os três grandes festivais anuais do calendário sagrado


eram festivais de colheita: +Pães ázimos» (com que a Páscoa veio a ser
associada), no comêço da colheita da cevada; +Semana ou colheita», sete
semanas depois, na conclusão da colheita do trigo (28); +Tabernáculos», o
festival da vindima, no outono. Essas festas já eram celebradas, em Canaã,
muito antes da entrada dos israelitas, e, mesmo no ritual judaico posterior,
podem ser discernidos traços de um fundo religioso canaanita. Além disso, as
conhecidas variedades de sacrifício no Velho Testamento, tais como ofertas
pacíficas, oferta pelo pecado, oferta de manjares e holocaustos, eram
características do culto canaanita (29). Essas coisas foram assimiladas pelo
javismo primitivo porque não entravam em conflito óbvio com seu culto simples,
mas percebeu-se que eram suplementos necessários às novas condições de
vida agrária.

Os perigos morais do culto de baal, porém, estavam presentes desde o


princípio. Seu objetivo principal era garantir a fertilidade do homem, dos animais
e da terra, o que levava à associação da prostituição +sagrada», tanto de
mulheres como de homens, com os santuários. Isso, junto com a desbragada
orgia e bebedeira que acompanhavam certos festivais, tendia para a
determinacão de um povo que tinha vivido sob o código moral do deserto, mais
austero. A própria multiplicidade de santuários de baal e sua associação com a
preocupação diária de ganhar a vida, antes que com emergências ocasionais,
como a guerra e a peste, mantinham os baalins, em vez de Javé,
constantemente no centro da atenção. De fato, o próprio Javé veio a ser referido
como um baal, cujo campo de ação particular era fazer que seu povo
prosperasse, se multiplicasse e enchesse a terra. Nomes próprios compostos de
+Javé» («Jo» ou +Ias») e +Baal» eram dados a crianças israelitas: o segundo
nome de Gideão era Jerubaal; um dos filhos de Saul era chamado Isbaal; e um
dos guerreiros de Davi era Bealias, que significa +Javé é meu baal» (30).

+Baal» significa, literalmente, +proprietário», «senhor», ou (num uso derivado)


«marido», visto que a mulher era propriedade do marido e era ele o responsável
por sua fertilidade. A palavra é usada com referência a donos de

38

propriedade, como em Jz 19.22, 23: «O senhor da casa»; e a conhecida


passagem de Is 1.3: «o boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura
de seu dono.» Jó 31.38, 39, fala dos donos de terras como +os baals», e as leis
de Ex 24.14 e Dt 15.2 usam o mesmo termo a respeito de homens capazes de
promover processos e emprestar dinheiro. Com o culto dos baalins,
+proprietários» dos campos e vinhas, estava associado um sistema de
propriedade particular individual e uma atitude para com os bens, bastante
alheios à tradição nômade.

Deve ser lembrado que Israel própriamente era uma minoria na população total,
uma minoria que se estabelecera como classe dominante, adotando embora, em
grande parte, o estilo de vida, havia muito, estabelecido na terra. Como

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conseqüência, testemunhamos uma radical convulsão social e cultural, dentro


da própria comunidade israelita. Tribos nômades, cuja divindade tinha sido deus
da tribo e cuja base econômica -- ovinos e bovinos -- era propriedade comum,
tornavam-se agora um povo agrícola sedentário, adorando não só a Javé, mas
também aos deuses da terra, da qual tiravam agora sua principal subsistência.
Javé era ainda o Deus que mantinha o clã: os baalins, com seus santuários
locais, corporalizavam o espírito de localidade e propriedade. A multiplicidade
dessas divindades locais era, óbviamente, uma fôrça divisória, em constraste
com a influência unificadora do Deus único da federação tribal, o poder do qual
se manifestou de maneira característica no episódio comemorado no cântico de
Débora (31). Mas, com o passar do tempo, diminuiu a ênfase do clã, e cresceu a
ênfase da localidade. A vila tornou-se nôvo centro de lealdade, ao lado do clã,
embora na maioria das vêzes os dois coincidissem, no comêço do processo.

Com isso apareceu nôvo conceito de propriedade de terra, estável e


permanente, em comparacão com a propriedade de rebanhos que podia ser
tomada da noite para o dia, por salteadores. Israel afirmava seu direito a Canaã
com base numa tradição religiosa de que Yahweh tinha prometido a terra aos
patriarcas e a Moisés. Canaã tornou-se a +terra dos pais»; marcada com uma
relação mística de sangue e solo; a fonte da existência da comunidade, dando
«semente ao que semeia e pão ao que come».

39

Como a terra de Israel era relacionada com a totalidade psíquica do povo, assim
a terra da família era ligada à alma da família. Nabote, cidadão plebeu, rejeitou,
com indignação, a sugestão do rei no sentido de ele trocar ou vender sua
propriedade ancestral: +Guarde-me o Senhor de que eu dê a herança de meus
pais» (32). As leis de propriedade real no Velho Testamento objetivam manter a
terra no domínio da família, e facilitar sua recuperação, se perdida. A lei que
estabelece o resgate pelo parente mais próximo (Lv 25.25), a lei que ordenava o
cancelamento periódico dos débitos (Dt 15.1-3) e a chamada lei do Jubilei (33)
anulando tôdas as transferências de terra no fim de cinqüenta anos (mesmo que
esta última pareça nunca ter realmente estado em vigor), tôdas objetivavam
manter a ligação sagrada da família com seu próprio solo. O proprietário
mantinha a terra como representante de sua família; tinha só o usufruto, não o
direito de dispor. O princípio envolvido era fundamental do ponto de vista
religioso: +A terra nco se vendera em perpetuidade, porque a terra i minha; vss
sois para mim estrangeiros e pereginos; Lev 25:23 (34).

A Sociedade Comercial Urbana

O terceiro estilo de vida que aumentava as complexidades e tensões da


sociedade israelita anterior ao período profético, era o da cultura urbana e
comercial em que o espíríto de Canaã encontrou sua expressão mais
desenvolvida e característica (Note-se que a palavra +canaanita» é usada como

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sinônima de +mercador», em Pv 31.24). Esse estilo de vida começou a produzir


considerável impacto sôbre os israelitas no reinado de Davi, quando três fatores
operaram simultaneamente para esse fim. O primeiro foi a conquista das
restantes cidades canaanitas e sua assimilação por Israel, junto com seus
costumes estabelecidos. O segundo foi o estabelecimento por Davi de uma
capital que não podia ser sustentada, com sua côrte e fôrças militares, com o
produto do campo da vizinhança imediata, mas devia depender do +superavit»
econômico da terra tôda. O terceiro foi o início,

40

no reinado de Davi, de relações comerciais em grande escala com os fenícios,


ou canaanitas do Norte.

Os frutos dêsse comêço foram colhidos no reinado de Salomão, que efetuou


uma revolução social econômica cultural e religiosa ainda maior do que Israel
tinha experimentado, quando se tornara povo sedentário antes que nômade.
Pois, com Salomão, a sociedade livre, com base no clã, caiu sob um despotismo
real que era, ao mesmo tempo, uma forma opressora de capitalismo estatal. Por
sua política de impostos pesados e exação de trabalho forçado, o rei
transformou a massa de seus súditos em escravos, e a propriedade deles
tornou-se propriedade dele. Só ele (e seus favoritos da côrte) tirava proveito da
nova amplitude do comércio estrangeiro da exportação de cobre de Edom (35),
e provavelmente também de israelitas para servirem como soldados
mercenários no Egito (36). O aviso solene, pôsto na bôca de Samuel, no
documento antimonárquico e teocrático de I Sm, dá-nos um retrato ao vivo da
política de Salomão: +Ele tomará vossos filhos, e os empregará no serviço dos
seus cargos, e como seus cavaleiros,... e para capitães de cinqüenta; outros
para lavrarem os seus campos e ceifarem as suas messes; e outros para
fabricarem suas armas de guerra, ... tomará o melhor das vossas lavouras e das
vossas vinhas ... e o dará aos seus servidores; dizimará o vosso rebanho, e vós
lhe sereis por servos» (37).

Embora as tribos do Norte se revoltassem contra essa opressão, depois da


morte de Salomão, e tentassem estabelecer uma monarquia sua própria e mais
democrática não demorou muito que, ali, também, a côrte se tornasse centro de
ostentação de riqueza e poder. Nenhum acôrdo entre o absolutismo e a
democracia fraternal podia ser levado a efeito com facilidade na atmosfera de
Canaã, onde, o exemplo do direito divino fôra estabelecido pela tradição local e
pela prática nas nações circunvizinhas. A fraternidade tribal foi rompida
permanentemente, dividindo-se os homens em poderosos e oprimidos, ricos ou
pobres. Uma vez que o povo perca sua relação orgânica com seu meio de
subsistência, sejam os rebanhos do nômade, ou lavouras e vinhas do agricul-

41

tor; uma vez que a riqueza e o poder do indivíduo se tornam o objetivo


sancionado do esforço dentro da comunidade -- a pobreza, a injustiça e a luta

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social estabelecem-se definitivamente.

No período nômade, como já vimos, a produção e distribuição de bens eram


ambas numa base familiar de serviço mútuo e vantagem comum, e qualquer
+superavit» econômico fazia crescer a riqueza do clã como um todo. O processo
econômico era tão natural, que chegava a ser em grande parte inconsciente.
Com a transição para a agricultura, a propriedade imóvel da família e o
aparecimento das vilas, a família e seus dependentes tinham a seu dispor
provisão abundante. Ainda aqui, qualquer sobra era imediatamente distribuída
aumentando as possessões e amenidades da família. (As trocas eram feitas por
escambo, no mercado, ou a peso de prata. O ouro era usado principalmente
como ornamento, e era raro antes do tempo de Salomão. Moedas cunhadas não
entraram em uso senão no período persa).

Mas, com o estabelecimento da côrte e a determinação de Salomão de


arremedar a glória mundana dos estados vizinhos, começou uma concentração
de riqueza a drenar o +superavit» econômico da comunidade e a deixar a
massa do povo pobre ou miserável. Vastas quantidades de alimento, bens e
serviços eram agora exigidos para a mantença da côrte real e do exército, ao
passo que o trabalho forçado, que construía as cidades para os destacamentos
de carros de guerra e embelezava Jerusalém, deixava as lavouras e os
rebanhos desamparados. A importação de grandes novas quantidades de ouro
e prata forçou a subida dos preços numa súbita inflação. Os homens eram
forçados a hipotecar suas terras, suas pessoas ou seus filhos para pagar os
impostos exigidos. Os juros eram de usura, e muitos israelitas livres perderam
suas terras e se tornaram escravos, enquanto aquêles que tinham uma
vantagem inicial e alargavam suas terras, amontoavam dinheiro. O resultado
humano da operação de tal sistema está resumido, com exatidão, nas palavras
de Jesus: +Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em

42

abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado». (38).

Como o culto tribal de Javé tinha sido a religião no período nômade, e como
uma mistura do culto de baal e de javismo tinha predominado no período inicial
do estabelecimento na terra, assim os desenvolvimentos urbanos e comerciais
também tiveram seus paralelos religiosos. Esses apareceram, em primeiro lugar,
como resultado da função exercida no culto de tôdas as monarquias correntes
pelo rei semidivino e, em segundo lugar, do reconhecimento mútuo das
divindades nacionais, o qual acompanhava as alianças comerciais e políticas.
Deuses babilônicos, sírios e egípcios vinham tendo, desde muito, seus
santuários entre a população mista de Canaã. Agora eram honrados em
Jerusalém e talvez mesmo no templo de Javé, o qual, afinal de contas, era
naquele tempo uma capela real mais do que a catedral da nação. O culto
cerimonial de Javé no templo de Salomão seguia o padrão do antigo e difundido
culto das monarquias no mundo contemporâneo, o mito e ritual do deus como
criador e rei, e do rei humano como o filho divino e símbolo da vida do povo.

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Assim Javé veio a ser adorado com pompa e esplendor, enquanto as


características sociais e as exigências éticas da tradição do pacto mosaico eram
deixadas em segundo lugar. O caráter peculiar do próprio Javé e, com isso, seu
particular direito ao serviço de seu povo, tendiam a perder-se de vista, quando
ele se tornou apenas um dos muitos deuses nacionais no vasto mundo.

Israel Entre as Nações

O mundo dos profetas tinha horizontes mais vastos do que o reino de Davi em
sua máxima extensão ideal. A estrada real nas nações, na paz e na guerra,
atravessava o corredor palestiniano. Sucessivas ondas de invasão do deserto,
das planícies mesopotâmicas e das montanhas do Norte acrescentavam sua
quota ao sangue e cultura dos canaanitas. No décimo quinto século a. C., a
Palestina tinha-se tornado uma parte do império egípcio e, embora a efetividade
do

43

contrôle egípcio variasse, a influência cultural egípcia tornou-se da máxima


importância. Os filisteus que se estabeleceram na extremidade sul da planície
marítima, cêrca de 1200 a.C., e cuja luta com Israel pelo contrôle da Palestina
levou à consolidação das tribos em um reino, foram também eventualmente
absorvidos na comunidade israelita. As íntimas relações comerciais e culturais
mantidas com os fenícios são ilustradas por episódios bem conhecidos nos
reinados de Davi, de Salomão e de Acabe (39).

O estabelecimento da monarquia só foi possível porque o Egito estava fraco e


incapaz de controlar seu antigo domínio na Palestina. Depois da morte de
Salomão, o faraó Sesonc invadiu o país e pilhou Jerusalém, numa aparente
tentativa de abalar o poder crescente de Roboão; mas não foi feita nenhuma
tentativa de ocupação permanente. Outra invasão dêsse tipo foi vencida pelo
neto de Roboão, Asa. Depois disso, durante dois séculos não há registro do
aparecimento de exércitos egípcios na Palestina, até que em 700 a. C. Sabaca
(chamado Sô, em II Re 17.4) veio em socorro de Judá durante o cêrco de
Jerusalém por Senaqueribe, da Assíria.

A maior potência do mundo então era a Assíria, chamada com razão +cruel
Assíria», por causa dos novos métodos de brutalidade na guerra estabelecidos
pelo agressivo Assurnasirpal, no IX século. O primeiro movimento da Assíria em
direção ao poder tinha sido feito dois séculos antes, quando ela acabou com os
impérios hitita e egípcio. Agora foi feito nôvo avanço em direção do
Mediterrâneo, e em 853 a. C. Acabe, de Israel, foi um dos doze aliados que
lutaram e detiveram o grande Salmanasar III em Karkar, no vale do Orontes;
embora pouco mais tarde Jeú, sucessor de Acabe, fôsse forçado a pagar-lhe
tributo. Ainda no século VIII, depois de um intervalo de tumulto interno, os
assírios moveram-se para o ocidente, e nôvo alarme se espalhou através da

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Síria e Palestina. Em 734 a. C. o reino do Norte de Israel foi desmembrado e


muitos de seus cidadãos deportados; em 722, Samaria foi capturada e a
existência política do reino

44

do Norte terminou. Judá tornara-se tributário, como medida de precaução, em


734, e continuou a ser estado vassalo até que o império assírio caiu, mais de um
século depois. Apenas uma vez aderiu Judá às revoltas periódicas dos povos
submetidos, em 701, tendo como conseqüência seu território devastado por
Senaqueribe, e muitos de seu povo levados embora como cativos. O cêrco de
Jerusalém tornou-se memorável pela ação do profeta Isaías, e seu livramento foi
atribuido a um milagre.

Para o fim do VII século, esgotada por 200 anos de guerra e enfraquecida ainda
mais por atacantes bárbaros do Norte, a Assíria caiu, pelos ataques conjugados
dos medos e caldeus. Este povo, que tinha estabelecido a sede do seu poder
em Babilônia, empenhava-se agora numa luta mortal contra o Egito pela
herança do império assírio mundial. Nesse meio tempo, Josias de Judá declara
sua independência em 621, depurando do culto de Javé todos os traços de
influências assírias e de outras procedências. Em 608, Josias foi morto pelos
egípcios, e um preposto do faraó foi colocado no trono de Judá, três anos mais
tarde, as ambições egípcias foram finalmente frustradas no campo de batalha de
Carquemis, Judá se tornou um estado satélite vassalo de Babilônia. Mas sua
fidelidade vacilava. Um partido pró Egito agia ativamente na política interna, e a
segunda de duas revoltas resultou na destruição de Jerusalém por
Nabucodonosor, em 586 a. C., e na deportação de seus cidadãos principais e o
fim da monarquia davídica.

História Política dos Reinos Gêmeos

De Davi até à queda de Jerusalém uma linhagem ininterrupta de reis governou


em Judá, enquanto, em sua história separada de cêrca de 212 anos, o reino de
Israel ao norte foi governado sucessivamente por reis de dez diferentes famílias.
É verdade que a linha judaica dependeu uma vez do tênue fio da vida de uma
criança quando, no século IX, a torrente de revolução característica do reino do
Norte transbordou para Judá. Mas o fio sustentou-se, e os descendentes de
Davi sentaram-se em seu trono por dezoito gerações.

45

Roboão de Judá, cuja loucura tinha dividido em dois o reino de Davi, continuou a
considerar os israelitas como rebeldes, e iniciou as hostilidades, que
continuaram esporadicamente por cinqüenta anos. O apêlo a Damasco por parte
de seu neto Asa, pedindo ajuda contra o reino do Norte, começou uma longa
série de guerras entre os sírios e Israel, das quais Judá derivava pouco

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benefício. Pois o rei judaíta seguinte, Josafá, embora na aparência um aliado,


figura na humilhante posição de receber ordens do rei de Israel para arriscar a
vida, a fim de proteger a do outro no campo de batalha (40). O filho e o neto de
Josafá casaram na família real do Norte, e foi uma rainha israelita que herdou o
trono de Judá, quando os reis do Norte e do Sul foram simultâneamente
assassinados por Jeú (41).

A história do reino israelita, ao norte, é uma seqüência de assassínios. Somente


Omri e Jeil fundaram dinastias que duraram mais de duas gerações, e nada
menos de sete reis tomaram o trono assassinando seu ocupante O grande Omri
foi o sobrevivente de uma luta sanguinária entre três pretendentes ao trono, já
manchado de sangue.

Omri pode ser chamado +o Davi do Norte», pois lançou os fundamentos do


poder do reino do Norte. O livro de Reis dedica-lhe apenas um versículo, em
adição às fórmulas estereotipadas dos anais (42); porque os historiadores
religiosos judeus não estavam interessados nas realizações de seus rivais. Mas
de fontes extrabíblicas, tanto quanto do que é incidentalmente registrado no
Velho Testamento, podemos medir a grandeza de Omri. Ele é o primeiro rei
israelita ou judaíta a ser mencionado por nome em inscrições estrangeiras, e
Israel era ainda conhecido como +a terra de Omri» no reinado de Jeú, que
tomara o trono do neto de Omri. Como Davi, Omri demonstrou astúcia e
capacidade estratégica quando fundou uma nova capital, Samaria, num local
independente de associações tribais, de grande fortaleza natural, perto das
grandes rotas comerciais, isolado, contudo, entre as colinas. Como Davi ainda,
Omri fortificou e embelezou sua capital, estendeu seu poder por meio de
conquistas estrangeiras, estabeleceu intimas relações com Tiro e pôs ponto

46

final na luta intestina com o outro povo de Yahweh. No profeta do VIII século,
Miquéias (6:16), há uma referência curiosa a respeito dos +estatutos de Omri»,
aparentemente um código de comercialismo individualista, que estava tomando
o lugar da antiga economia comunitária do passado de Israel.

O filho de Omri, Acabe, não foi como Salomão para com seu pai Davi. Foi um rei
mais capaz do que Salomão, e um sucessor à altura de Omri. O livro de Reis
consagra seis capítulos ao seu reinado, porque foi também o período do profeta
Elias (43). Israel agora está debaixo da sombra da ameaça assíria. Duas
notáveis batalhas de Acabe contra Damasco (44), resultaram provavelmente de
uma tentativa da parte de Damasco para forçá-lo a aderir à aliança anti-Assíria.
Eventualmente Acabe fêz isso, e contribuiu com o maior contingente de carros
de guerra para as fôrças aliadas, que enfrentaram Salmanasar III em Karkar.
Internamente, em tempo de paz, Acabe dedicava-se à construção de cidades e
de uma casa, ou palácio, +de marfim», que se tornou famosa, e dos
remanescentes da qual têm sido recuperados entalhes de marfim, em tempos
modernos (45).

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O fim de seu reinado encontra Acabe, de nôvo, em guerra com Damasco. I Reis
22 dá um relato circunstanciado da batalha para recuperar Ramote-Gileade, e
do estratagema com o qual Acabe esperava que o rei judaíta atraísse o fogo do
inimigo, enquanto ele mesmo lutaria despercebido nas fileiras. Mas enquanto o
homem propõe, Deus dispõe, e o historiador não pode deixar de estender-se
com amarga satisfação sôbre o fim do marido de Jezabel e inimigo de Elias (46).

O conflito religioso entre Acabe e Elias girara em torno da crescente influência


do culto de Melearte, o Baal de Tiro. Esse culto tinha sido introduzido por
Jezabel, espôsa de Acabe, e filha do rei-sacerdote de Tiro, com escândalo para
aquêles que prezavam a tradição javista que fizera de Israel uma nação. Não foi
um conflito inteiramente doutrinário,
pois o javismo sancionava um estilo de vida que era antagônico ao nôvo
comercialismo, ao absolutismo dos reis e à

47

divisão da sociedade em classes. O assassínio judicial de Nabote por Jezabel, a


fim de que o rei pudesse possuir sua vinha, feriu as próprias raizes de apêgo do
israelita à terra de sua família. A velha ordem da tradição tribal ainda persistia, e
os costumes religiosos e econômicos eram tão entrelaçados que a revolta contra
as novas fôrças, ameaçadoras do estilo tradicional, veio sob a égide de um tipo
de javismo puritano. E +puritano» nem sempre é sinônimo de manso e gentil.

Elias começou assim uma revolução em nome da +religião dos velhos tempos»
revolução que terminaria numa orgia de sangue em Jizreel e Jerusalém. A igreja
convocou o braço secular para expurgar o Estado, quando Elias providenciou a
unção de Jeú ben Ninsi como rei de Israel (47). Se violência, batalha, assassínio
e morte repentina fizessem a obra de Javé, Jeú seria o homem. A história de
sua selvagem corrida a Jizreel e da matança de dois reis e uma rainha é uma
das mais vívidas da Bíblia (48). Isso foi somente o comêço dos horrores. Todos
os príncipes reais de ambas as dinastias, que Jeú pôde encontrar, foram mortos,
e os adoradores de Baal tírio chacinados quando estavam indefesos no seu
templo. Jeú escusava essa orgia de sangue invocando o nome de Deus;
encontrando-se com o chefe da seita puritana dos recabitas convidou-o
alegremente a testemunhar seu «zêlo para com Javé» (49). Foi assim que a
dinastia de Omri teve um terrível fim.

O rei de Judá também pereceu nas mãos de Jeú. Mas em Jerusalém Jeú foi
igualado por alguém tão rápido e brutal como ele mesmo, Atalia, a rainha-mãe,
filha de Acabe. Vendo que seu filho, o rei, estava morto, ela matou a família real
judaica até o último (conforme pensava), e se estabeleceu no trono. Mas seu
neto infante foi salvo e escondido, até que seis anos mais tarde, foi colocado no
trono pelo sacerdócio de Jerusalém e pela guarda do Templo. A própria Atalia
foi morta, então, e sua morte foi o sinal para o término, em Judá, da revolta
contra as pretensões de Baal no domínio de Javé.

48

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O sangue derramado nessa guerra de religiões enfraqueceu tanto Israel quanto


Judá, por uma geração. Mas com a quase contemporânea subida de Jeroboão II
ao trono, no Norte, e de Azarias ou Uzias, no Sul (788-786 a. C.), começaram
dois longos reinados marcados pela prosperidade e expansão. O livro de Reis é
mais uma vez cheio de má vontade em sua informação, dizendo somente de
Jeroboão que ele foi grande conquistador, embora não ortodoxo, e de Azarias
que ele foi ortodoxo mas leproso. Mas nas profecias contemporâneas e
imediatamente subseqüentes de Amós e Oséias, Isaías e Miquéias, recebemos
uma vívida descrição da expansão material e desenvolvimento cultural, de
elaboradas construções e cerimonial religioso esplêndido. Nova riqueza e luxos
faziam violento contraste com a nova pobreza que era o preço daqueles. Foi um
período que produziu fortes personalidades em sua vida multifacetada:
soldados, administradores, príncipes, mercadores, escritores e eclesiásticos -- a
maioria sem nome. Mas, acima de tudo, deu os profetas, cujos nomes vivem
para sempre, porta-vozes de uma ordem moral divinamente sancionada, e da
Palavra de um Deus vivo que é dono da História e cuja vontade é o bem.

Os profetas proclamaram a essa sociedade fútil e mundana uma mensagem de


condenação, e não demorou muito que a tragédia se realizasse. Dentro de
quinze anos após a morte de Jeroboão, Samaria tinha caído e a terra era uma
província assíria. Pouco mais tarde, Judá foi devastada pelos exércitos de
Senaqueribe, e embora sua dinastia, como vimos, sobrevivesse ao império
assírio, haveria logo de cair ante seus sucessores babilônicos.

NOTAS E CITAÇÕES BÍBLICAS

CAPITULO II

(1) Por exemplo, Am 5.25; Os 9.10; 11.1; ver adiante pp etc.


(2) I Rs 19; Mq 6.4, 5; Os 13.4.
(3) Jr 35.6, 7.
(4) Mt 1.1-17; Lc 3.23-28.
(5) Gn 35.20, cf. I Sm 10.2.
(6) Gn 15.2, 3; I Sam 1.
(7) Gn 29.32-35.
(8) Cf. Gn 2.24; 31.43; Jz 15.1.
(9) Gn 4.23, 24; II Sm 3.27; cf. 2.23.
(10) Dt 4. 41, 42; Ex 21.13, 14.
(11) Gn 7.1, 13; 46.5-7; 50.22, 23.
(12) Jz 6. 34; cf. 6.11; Nm 1.2.
(13) I Cr 2; Jz 1.11ss. cf. Meek, «Hebrew Origins», pg. 124
(14) Gn 15.8-21; 31.44, 54.
(15) Êx. 24.5-8.
(16) I Sm. 18.1, 3.
(17) Êx 20.17; Gn 15.2, 4; 24.2.
(18) Êx 18.21-26; cf. I Sm 13.12.
(19) Note-se também, em Am 8.5 e II Rs 4.23, a associação de Lua Nova, e Sábado.
(20) Quantas e quais tribos participavam do pacto original é outro problema. Estamos
cuidando aqui das tradições posteriores «agregadas».

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Profetas de Israel -- Comunais, Acratas e Anticlericais Page 31 of 32

(21) Jr 7.9, 10; SI 24.3, 4.


(22) Cf. H 1. 16, 19, 21, 27-33.
(23) Cf. Garstang: «The Heritage of Solomon», pp 41ss.
(24) SI 126.6. O costume originou-se na lamentação pela morte do deus da fertilidade,
simbolizada no sepultamento da semente. Cf. Ez 8.14 e 1 Co 15.36.
(25) Cf. Is 5.1, 2.
(26) I Rs 14.23.
(27) Gn 28.18, 22; I Sm 9.12, 19, 22-25.
(28) A princípio, aproximadamente; depois, sete semanas exatamente; cf. Ex 23.14-16; Lv
23.15, 16.
(29) Cf. Leslie: «Old Testament Religion», pp, 40-44.
(30) Jz 8.35; I Cr 8.33; 12.5.
(31) Jz 5.
(32) I Rs 21.3.
(33) Lv 25.8-17.
(34) Lv 25.23.
(35) Em 1932-33, foram encontrados por N. Glueck, 56 km a sudeste do Mar Morto,
remanescentes de extensas instalações de indústria de cobre, as quais datam dêsse
período.
(36) Cf. Dt 17.16, e, Oesterley & Robinson: «History of Israel» vol I, pp 257.
(37) I Sm. 8.11-17.
(38) Mt 25.29.
(39) Cf. II Sm. 5.11, 12; I Rs 5; 7.13s; 16.31, 32.
(40) I Rs 22.30.
(41) II Rs 8.26, 27; 11.1-3.
(42) I Rs 16.24.
(43) I Rs 16.29-22.40.
(44) I Rs 20.
(45) I Rs 22.39; Am 3.15; SI 45.8.Cf. «Palestine Exploration Fund Quarterly Statement»
janeiro de 1933.
(46) I Rs 22.37, 38.
(47) II Rs 9.1-10.
(48) II Rs 9.16-37.
(49) II Rs 10.15-17.

Fim da primeira parte de «Profetas de Israel: Comunais, Acratas e Anticlericais».

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